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Os novos ‘muros da vergonha’

Crescem em todo o mundo para impedir a circulação humana. Travam terroristas, ilegais e dividem populações

Há quem diga que, com os seus 6352 quilómetros de comprimento, a Grande Muralha da China é a única construção humana visível a partir da Lua. Nunca um astronauta o confirmou, mas tal não belisca o estatuto daquela fortaleza histórica, construída ao longo de 14 séculos. Em 1987, a UNESCO consagrou-a património da Humanidade — algo impensável em relação aos muros que hoje crescem um pouco por todo o mundo. À sombra de argumentos antiterroristas ou anti-imigração ilegal, ou em nome de reivindicações políticas, erguem-se autênticos ‘muros da vergonha’.

Esta semana, numa conferência realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, intitulada ‘A União Europeia e a Imigração’, o vice-presidente da Comissão Europeia, Franco Frattini, afirmou: “Não imagino uma Europa fortaleza”, defendendo que a “Europa tem de estar mais próxima de África”. Ora, é impossível ignorar que, em matéria de imigração, a relação Europa-África tem esbarrado contra muros, nomeadamente em Ceuta e Melilla. Mas como comentou ao “Expresso” o ex-comissário europeu António Vitorino: “A imigração ilegal não se combate com nenhum tipo de muro. Isso não significa que não tenha que haver mecanismos de controlo das fronteiras. Os espaços têm um limite à capacidade de integração de pessoas que vêm de fora”. Os muros são “uma parte de uma política mais geral de controlo dos fluxos migratórios. Por si só, não pode resolver tudo”, acrescentou.

Mas 17 anos após a queda do Muro de Berlim (ícone da Guerra Fria que dividiu fisicamente a Europa e ideologicamente o mundo), o Velho Continente continua a enfrentar a necessidade de derrubar tais obstáculos. Na Irlanda do Norte, sobretudo em Belfast e em Derry, cerca de 40 barreiras separam protestantes e católicos. Ironicamente chamam-se Linhas de Paz.

MÉXICO-EUA: GRANDE MURALHA ÀS PORTAS DO ‘EL DORADO’

A cidade mexicana Tijuana e a norte-americana San Diego estão separadas por uma vedação metálica, onde, do lado do México, pregadas cruzes (umas identificadas, outras anónimas) que homenageiam migrantes que morreram ao tentar atravessar a fronteira TOMAS CASTELAZO / WIKIMEDIA COMMONS

Ainda que muitas muralhas se estendam mar adentro, como é o caso do Muro da Tortilla — o maior dos vários pedaços de vedação espalhados ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México —, nem sempre conseguem conter a criatividade humana. Do histórico deste muro, erguido para travar a imigração ilegal entre Tijuana e San Diego, consta o feito de um acrobata que, certo dia, com o passaporte na mão, se meteu dentro de um daqueles canhões usados pelos homens-bomba no circo e, tal qual um duplo no cinema, voou para o lado de lá do muro.

A proeza não fez escola, mas ainda hoje cavar túneis é uma técnica popular para quem arrisca entrar clandestinamente nos EUA: já foram descobertos túneis pavimentados, com trilhos férreos e até com electricidade. Mas não são os túneis a maior preocupação da Casa Branca. A 26 de Outubro passado, o Presidente George W. Bush assinou o Decreto Vedação Segura (Secure Fence Act), que prevê a construção de novos 1125 quilómetros de vedação.

Os obstáculos criados pelo muro, equipado com um sofisticado sistema de vigilância, têm levado cada vez mais candidatos a imigrantes a contornar dificuldades atravessando zonas inóspitas, tais como o Deserto Sonoran e a Montanha Baboquivari, no Arizona. Em alguns casos, percorrem 80 quilómetros antes de encontrar a primeira estrada. Mas há quem nunca a alcance.

Também Melilla se tornou um território mais blindado após o drama humano do Verão de 2005. Na sequência de sucessivas avalanchas de subsarianos que tentaram saltar a dupla cerca metálica de 11 quilómetros que percorre a fronteira entre aquele enclave espanhol e Marrocos, as autoridades de Madrid introduziram alterações físicas e tecnológicas para tornar a vedação mais eficaz e… mais humana. Ordenaram então a construção de uma terceira vedação, tridimensional, que, além de retardar o tempo que o clandestino demora a superar os obstáculos, impede que se lesione.

ISRAEL-CISJORDÂNIA: TÃO POLÉMICO QUANTO O CONFLITO

Os receios terroristas em relação ao vizinho do lado são os alicerces de alguns muros. Israel, Índia, Marrocos e Arábia Saudita ergueram barreiras em nome da segurança interna

Grafiti do misterioso artista britânico Banksy no chamado “muro da Cisjordânia”. Intitulado “Balloon Debate”, foi desenhado num troço da vedação em Ramallah MARGARIDA MOTA

Nenhum outro muro provocou tanta polémica como o que Israel está a construir, desde 2003, junto ao território palestiniano da Cisjordânia. Para Israel, esta “vedação anti-terrorista” visa a protecção dos seus cidadãos ante a infiltração de bombistas suicidas; para os palestinianos, trata-se de um ‘muro’ que dificulta a vida na Palestina ao expropriar milhares de hectares agrícolas fundamentais à subsistência de muitas famílias palestinianas.

Projectado com 720 quilómetros, o muro faz várias incursões em território palestiniano, violando a fronteira anterior à guerra de 1967. Há dois anos, o Tribunal Internacional de Justiça considerou-o ilegal. Mas para Israel construir a cerca em cima da Linha Verde seria descurar as reais necessidades de segurança dos israelitas em prol de uma mera declaração política.

Também na Índia, a ameaça terrorista levou à construção de muros nos dois lados da fronteira. A oeste, junto ao Paquistão, uma vedação de 550 quilómetros, em arame, electrificada e equipada com sensores de movimento estende-se ao longo da Linha de Controlo, na disputada região de Cachemira.

A leste, junto ao Bangladesh, está em curso a construção de uma outra cerca, com 3286 quilómetros de comprimento e três metros de altura. Visa não só impedir a infiltração de terroristas como também de contrabandistas e de imigrantes ilegais.

Tanto num lado como no outro, a afectação de terras férteis, que as autoridades indianas justificam com a necessidade de criar uma ‘terra de ninguém’ junto às vedações, gerou protestos por parte dos agricultores locais, subitamente privados do principal meio de subsistência.

Neste caso, contra números não há argumentos. Segundo as autoridades indianas, esta política reduziu em 80% a entrada de terroristas. Igualmente, em Israel, a redução drástica do número de atentados parece dar razão aos defensores do muro.

Distante das atenções da comunidade internacional está o muro do Sara Ocidental — tão distante quanto o próprio conflito o está das agendas dos políticos. Construído nos anos 80, consiste em 2720 quilómetros de barreiras de pedras e areia com três metros de altura, artilhadas com bunkers, cercas e minas.

Na ausência de qualquer tipo de diálogo entre Marrocos e a Frente Polisário — que reclama a independência do Sara Ocidental —, as autoridades marroquinas apostam nesta muralha defensiva para conter as incursões dos guerrilheiros sarauis.

Preocupações terroristas, bem como a prevenção de movimentações não-autorizadas de pessoas e bens através da fronteira, estiveram na base da construção de uma vedação entre a Arábia Saudita e o Iémen. Já este ano, Riade apresentou um projecto multimilionário de construção de uma barreira de segurança ao longo dos 900 quilómetros de fronteira com o Iraque.

COREIAS: A ÚLTIMA FRONTEIRA

Conflitos latentes ou mal resolvidos transformaram algumas fronteiras em locais de grande tensão. Na península coreana e na ilha de Chipre há dois exemplos que perduram

“Zona tampão” administrada pelas Nações unidas, em Nicósia, e proibida a “veículos militares e pessoais” MARGARIDA MOTA

O ex-Presidente americano Bill Clinton afirmou tratar-se do “lugar mais assustador à face da Terra”. A apreciação pode ser subjectiva, mas a fronteira entre as duas Coreias é seguramente o sítio mais patrulhado do mundo. Cerca de dois milhões de militares concentram-se nos dois lados da vedação de 248 quilómetros, repleta de sensores, torres de vigia, arame farpado, minas, artilharia automática, armadilhas para tanques e armamento pesado. A cerca divide, desde 1953, a península coreana pela metade e é tida como a última fronteira da Guerra Fria.

Igualmente, em Chipre subsiste uma demarcação em arame com mais de 30 anos. Com quase 180 quilómetros, a chamada Linha Verde separa, desde 1974, as partes turca e grega da ilha. Até 2003, era uma fronteira inultrapassável. Hoje, há cinco pontos de passagem.

(Imagem de abertura: PIXY)

Artigo publicado no Expresso, a 25 de novembro de 2006

A nova ameaça nuclear

ZSCOUT370 / WIKIMEDIA COMMONS

Ocupada com o dossiê nuclear iraniano, a comunidade internacional foi surpreendida pelo anúncio, na segunda-feira, do primeiro teste nuclear na Coreia do Norte. O mundo ficou nervoso e o Conselho de Segurança da ONU tornou-se o palco de negociações com vista à adopção de sanções ao regime norte-coreano, o último reduto marxista-leninista à face da Terra.

O Japão deu o pontapé de saída nas retaliações: na quarta-feira, decretou um embargo total às importações provenientes da Coreia do Norte e encerrou os seus portos a todos os navios norte-coreanos. Insensível às ameaças internacionais, Pyongyang reagiu dizendo que interpretará eventuais sanções como uma declaração de guerra, ameaçando com mais testes.

Com 23 milhões de habitantes, um regime totalitário que ignora os mais básicos direitos humanos e uma economia fortemente centralizada, a Coreia do Norte é um país fustigado por desastres naturais e uma escassez alimentar crónica. Há mais de uma década, o país mantém-se vivo graças a uma ajuda internacional maciça. Essa ajuda está agora ameaçada.

PERGUNTAS & RESPOSTAS

1. O que aconteceu a 9 de Outubro?

A Coreia do Norte anunciou ter efectuado o seu primeiro teste nuclear subterrâneo. Institutos do mundo inteiro registaram actividade sísmica artificial. Mas subsiste a dúvida: ter-se-á tratado de um ensaio nuclear ou da detonação de uma grande quantidade de explosivos convencionais?

2. O que justifica a crise que se seguiu?

Os receios perante a iminência de uma Coreia do Norte com poder nuclear e a vulnerabilidade do Japão, China, Rússia e Estados Unidos perante o arsenal norte-coreano.

3. Quais as consequências para a região?

Pyongyang não tem uma estratégia de expansão regional, pelo que não está em causa a alteração do equilíbrio de forças entre as potências do Pacífico. Mas esta ameaça nuclear pode originar um efeito de contágio. O Japão, por exemplo, que se prepara para rever a política de defesa, pode encarar como prioritária a opção nuclear.

4. O que move o regime norte-coreano?

Uma aparente obsessão em forçar os Estados Unidos ao diálogo directo. “A questão à volta de futuros ensaios nucleares está ligada à política americana para o nosso país”, reagiu Kim Yong-nam, o número 2 do regime comunista. Ao recorrer ao trunfo nuclear, a Coreia do Norte, que vive na mais completa autarcia, parece lutar pela sua própria sobrevivência política.

TESTEMUNHO

PROTEGIDOS DO BURACO NEGRO

Visto a partir de Pyongyang, o mundo está contaminado. Com más ideias, maus sistemas e más pessoas. Em Agosto, entrei na última viagem de jornalistas antes do teste nuclear. Embora o enriquecimento de plutónio seja conversa natural no país de Kim Jong-Il — onde o jornal é dobrado de forma a não danificar a sua fotografia —, as palavras têm de ser estudadas. Kim, a universitária que me acompanhou como menina modelo da nação, nada dizia que não fosse preparado. Viajar? Para onde, num mundo tão ameaçador? Ouvir música estrangeira? Mas o quê? A televisão repete filmes da luta contra o Japão. “Sim, conheço a Europa e a montanha muito alta de lá, o Evereste…”, disse Kim. Ao resto da nação de camponeses, explica-se o mundo como um buraco negro do qual estão protegidos por três fronteiras militarizadas (Rússia, China e Coreia do Sul). Numa noite, Kim deu a um austríaco o cartão da empresa de vinho da mãe, enquanto ele explicava o que é publicidade. Kim ficou nervosa: “Como escrevo para um e-mail austríaco se só falo inglês?”

Maria João Belchior, jornalista

OS NÚMEROS NEGROS DO REGIME

2,5 milhões de norte-coreanos terão morrido desde 1994 na sequência de vagas de fome e doenças decorrentes da escassez alimentar

300 mil norte-coreanos terão fugido desde 2004 para a China, onde se escondem das autoridades que não os reconhecem como refugiados e ameaçam deportá-los

200 mil norte-coreanos serão prisioneiros políticos

DATAS-CHAVE DA CRISE

29/01/2002: George W. Bush diz que a Coreia do Norte integra o “eixo do mal”

10/01/2003: Pyongyang anuncia a sua retirada do Tratado de Não-Proliferação Nuclear

27/08/2003: Começa, em Pequim, o diálogo a seis sobre o nuclear coreano

PROTAGONISTAS

Kim Jong-Il, Líder da Coreia do Norte

“Querido Líder” para os coreanos, é um ilustre desconhecido na comunidade internacional que o vê como uma figura caricata e paranóica. Escolheu a dedo o dia para anunciar o ensaio nuclear coreano: comemorava o nono aniversário da sua chegada ao poder, o novo primeiro-ministro japonês andava em digressão pela região e o sul-coreano Ban Ki-Moon era confirmado no cargo de secretário-geral da ONU. Ki-Moon elegera o dossiê nuclear norte-coreano como uma das prioridades do seu mandato.

Hu Jintao, Presidente da China

Aliada ideológica e principal parceira comercial da Coreia do Norte — fornecendo mais de 90% do petróleo e 80% dos bens de consumo —, a China saiu humilhada desta crise. Com esta demonstração de independência, Pyongyang desautorizou Pequim e pôs em causa a sua mediação nas negociações a seis (Coreia do Norte, Coreia do Sul, China, Japão, EUA e Rússia) sobre o nuclear coreano. A China reagiu ao anúncio do ensaio defendendo “acções punitivas” contra a Coreia.

Artigo publicado no Expresso, a 14 de outubro de 2006