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Quando as primeiras-damas cantam a mesma canção

A aproximação entre países beneficia de um trabalho diplomático transversal que, muitas vezes, envolve também as primeiras-damas. É o caso da China e das duas Coreias, onde as mulheres dos Presidentes têm um passado comum: são as três antigas cantoras. Duas delas voltam agora a estar juntas, numa capital pouco comum para um encontro entre ambas

Ri Sol-ju (à esquerda) e Kim Jung-sook convivem durante um almoço em Pyongyang, à margem da cimeira intercoreana de setembro de 2018 FOTO GETTY IMAGES

A recente abertura da Coreia do Norte ao mundo, tornada possível pela mão que lhe estendeu Donald Trump, provocou uma discreta mudança no protocolo norte-coreano. Dias antes da histórica cimeira intercoreana de 27 de abril de 2018, na zona desmilitarizada de Panmunjom — onde, pela primeira vez, um líder norte-coreano pisou território do Sul —, a televisão pública norte-coreana noticiou a presença da mulher do líder Kim Jong-un, Ri Sol-ju, num espetáculo de ballet de uma companhia chinesa, em Pyongyang.

O espaço informativo foi apresentado por Ri Chun-hee, a famosa pivô dos anúncios importantes, que se referiu a Ri Sol-ju como “respeitada primeira-dama”. Até então, ela era sempre referida como “camarada Ri Sol-ju”.

Em vésperas de cimeiras importantes com a Coreia do Sul e com os Estados Unidos, este impulso ao estatuto da mulher do Presidente norte-coreano tornou-a “igual entre iguais” no contacto com outras primeiras-damas e deu para o exterior uma aparência de normalidade ao regime de Pyongyang.

Kim Jong-un e a mulher inauguram um parque de diversões em Pyongyang REUTERS

Desde março de 2018, quando Kim Jong-un efetuou a sua primeira viagem ao estrangeiro — à China —, Ri Sol-ju já privou com duas homólogas: a chinesa Peng Liyuan e a sul-coreana Kim Jung-sook. Dos encontros saíram imagens de grande empatia, que as obrigações protocolares não explicarão na sua totalidade. É que as três partilham uma paixão comum que, no passado, as levou a trilhar o mesmo percurso: são antigas cantoras.

A chinesa e a norte-coreana acabam aliás de estar novamente juntas, desta vez numa capital pouco comum para encontros entre ambas – e respetivos maridos -, Pyongyang, aonde o Presidente chinês termina esta sexta-feira uma visita oficial de dois dias, a primeira em 14 anos.

Os líderes chinês e norte-coreano e respetivas mulheres, esta quinta-feira, em Pyongyang EPA

O secretismo que envolve a Coreia do Norte faz com que pouco se conheça da personalidade de Ri Sol-ju. Terá nascido em 1984, no seio de uma família da elite norte-coreana. No sítio na internet da Universidade Kim Il-sung, de Pyongyang, o seu nome consta da lista de antigos alunos. Algumas notícias citando fontes ligadas aos serviços secretos sul-coreanos dão conta que terá estudado Canto na China. Certo é que foi solista na Orquestra Unhasu e notabilizou-se, em especial, na interpretação do tema “Pegadas do Soldado”.

https://www.youtube.com/watch?v=xsAUBG1KADM

A carreira artística da primeira-dama norte-coreana é anterior ao casamento com Kim Jong-un, que terá ocorrido em 2009. Dela diz-se também que integrou um grupo de “cheerleaders” que, em 2005, viajou até à Coreia do Sul para animar os Campeonatos Asiáticos de Atletismo, em Incheon. Esta é uma prática recorrente com a qual a Coreia do Norte procura atrair atenções fora de portas e transmitir uma imagem de talento, beleza, juventude e felicidade.

Aquando da cimeira intercoreana de Pyongyang, em setembro de 2018, a música teve um papel central na convivência das primeiras-damas. Visitaram o Conservatório Kim Won-gyun, acompanhadas pelo compositor Kim Hyung-suk e por duas estrelas da K-Pop, a cantora Ailee e o “rapper” Zico, todos membros da delegação sul-coreana.

No Grande Teatro de Pyongyang, Ri Sol-ju e Kim Jung-sook assistiram a um espetáculo com os maridos. Oriundas de países contrastantes a tantos níveis e aparentando uma o dobro da idade da outra, aproveitaram os momentos juntas para encurtar distâncias.

De mão dada, as primeiras-damas coreanas seguem os maridos, durante a primeira cimeira entre Kim Jong-un e Moon Jae-in, em Panmunjom GETTY IMAGES

Também no caso da sul-coreana Kim Jung-sook a música preencheu a sua vida de solteira. Nascida em 1954, conheceu Moon Jae-in na Universidade Kyung Hee, um estabelecimento privado da Seul, onde ele estudou Direito e ela Canto Lírico.

No mesmo ano em que terminou o curso, 1978, ela entrou como soprano para o Coro Metropolitano de Seul, de onde saiu em 1982, um ano depois de se casar com Moon. Após anos de ativismo pró-democracia contra a ditadura militar, que o tinham levado à prisão, ele começara finalmente a exercer advocacia.

Kim Jung-sook abandonou os palcos e passou a acompanhar o marido, filho de refugiados norte-coreanos, num percurso que os levaria até à Casa Azul, a sede da presidência sul-coreana.

O casal presidencial sul-coreano, no Monte Paektu, Coreia do Norte, a 20 de setembro de 2018 REUTERS

Na China, a subida à presidência de Xi Jinping, em 2013, também sentenciou o fim da carreira musical de Peng Liyuan, a atual primeira-dama. O casal conheceu-se em 1986, era ele vice-presidente da Câmara de Xiamen (sul) e ela já uma famosa cantora — em 1983, tornara-se uma celebridade nacional após atuar na Gala de Ano Novo transmitida pela televisão CCTV, o programa mais visto do ano. Quando se casaram, em 1987, Xi pouco mais era do que o marido de “Mama Peng”, como lhe chamavam alguns fãs.

Nascida em 1962, em Yuncheng (leste), começou a estudar música aos 15 anos. Atingida a maioridade, entrou no Exército de Libertação do Povo, em 1980, onde viria a chegar a general, e foi admitida no Conservatório de Música de Pequim. No Exército, tornou-se uma espécie de “combatente artística e cultural”, interpretando temas patrióticos, de exaltação da China e do exército chinês.

Neste espetáculo transmitido na CCTV a 1 de agosto de 2007, Peng Liyuan canta “Ei, quem nos vai ajudar a virar uma nova página? Quem nos vai libertar? É o querido Exército de Libertação do Povo, a estrela salvadora do Partido Comunista. O Exército e o povo são uma família, ajuda-nos a lavar as nossas roupas.”

A entronização do casal presidencial tornou alguns episódios da carreira de Peng Liyuan incómodos. Numa foto de junho de 1989, a soprano surge vestida com o uniforme militar verde, de microfone na mão, rodeada por militares de cócoras que a ouvem cantar. A foto foi tirada na Praça Tiananmen, a seguir à repressão das manifestações pró-democracia. Peng Liyuan cantava para os militares que tinham defendido os interesses do regime chinês.

Em Lisboa, Xi Jinping e Peng Liyuan posam numa varanda do Palácio de Belém, a 4 de dezembro de 2018, após serem recebidos pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa PEDRO FIÚZA / GETTY IMAGES

Em 2017, a primeira-dama chinesa foi homenageada pelos Estados Unidos. Numa cerimónia realizada no Conservatório de Música de Pequim, foi condecorada com o grau de Professora honorária conferido pela Juilliard School, famosa escola de música e artes cénicas de Nova Iorque.

“Esta honra não é apenas dada a mim, é também um reconhecimento da música popular chinesa e um reflexo dos laços culturais cada vez mais próximos entre chineses e norte-americanos”, disse Peng Liyuan durante a cerimónia. “Espero que a cooperação entre escolas de artes e organizações dos dois países se aprofunde no futuro.” Um desejo superior à guerra comercial em que vivem os dois países.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 21 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

Quem são os homens que seguem Kim Jong-un para todo o lado de bloco de notas na mão

São “a sombra” do líder da Coreia do Norte em cada visita ao terreno. Anotam todas as suas observações e tratam que depois sejam cumpridas. Esta é uma prática governativa da dinastia Kim, no poder há sete décadas

Sempre que viaja pelo país, Kim Jong-un leva no seu rasto ‘um pequeno exército’ de homens munidos de um pequeno bloco de apontamentos numa das mãos e uma caneta na outra. Poderiam até passar por jornalistas não fosse o caso de muitos deles envergarem o uniforme militar.

Trata-se de membros do Partido dos Trabalhadores da Coreia — o único permitido na República Popular Democrática da Coreia — e também de militares. “Anotam o que o líder diz e depois asseguram que as suas instruções são seguidas e concretizadas”, explica ao Expresso Steve Tsang, diretor do Instituto da China da Escola de Estudos Africanos e Orientais (SOAS), da Universidade de Londres.

Esta prática verifica-se em toda e qualquer visita do líder norte-coreano ao terreno, sejam instalações militares, propriedades agrícolas, escolas, fábricas ou locais de lazer. Em cada sítio, Kim Jong-un “vai dando alguns conselhos sobre como as coisas devem ser feitas”, diz ao Expresso James Grayson, professor jubilado da Universidade de Sheffield especialista em assuntos coreanos. Os “apparatchiks” apontam tudo para que a vontade do líder não fique por cumprir.

Este tipo de aparições públicas enquadra-se na chamada política de Orientação no Local, explica James Grayson, e é um elemento-chave da propaganda norte-coreana e do culto da personalidade incentivados pela dinastia Kim. “Esta é uma prática característica da família que tem governado a Coreia do Norte.”

“Isto não começou com Kim Jong-un”, corrobora Steve Tsang. “Foi iniciada quando estava no poder o seu avô”, Kim Il-sung, o fundador da Coreia do Norte, em 1948. A seguir, foi seguida pelo seu filho Kim Jong-il (1994-2011) e agora pelo neto, que lidera o país há mais de sete anos.

Nas visitas ao terreno, Kim Jong-un faz-se acompanhar pelos órgãos de informação oficiais — nomeadamente pela agência noticiosa KCNA, que disponibiliza as fotos que acompanham este artigo (muitas delas sem referência a data ou local) —, canais transmissores por excelência da sua ‘liderança benevolente’.

Num misto de preocupação, conhecimento e grande sabedoria — já que faz reparos sobre tudo, desde equipamentos militares a espigas de milho —, o líder surge aos olhos dos norte-coreanos como alguém verdadeiramente empenhado no seu bem estar.

Os diligentes funcionários surgem convenientemente enquadrados nas imagens captadas, provando que o Estado — e a ideologia Juche (autossuficiência) — funciona. Próximos do líder, dispensam-lhe toda a atenção e acompanham-no no seu estado de espírito. Não raras vezes, riem-se com ele e chegam a pousar os blocos de notas para o aplaudir.

(FOTO FLICKR KIKODOZE)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 30 de janeiro de 2019 e republicado no “Expresso Online”, a 3 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui e aqui

Viagem ao país onde quase não se ouve o barulho das crianças

Ir de férias à Coreia do Norte não é tarefa impossível. Um jovem português predispôs-se à aventura para tentar perceber o que era ficção e realidade entre tanta coisa que ouvia sobre um país governado há 70 anos por uma família. O primeiro mito caiu poucos minutos após entrar no país…

Duas grandes estátuas em bronze de Kim Il-sung e Kim Jong-il, os “grandes líderes” falecidos, são uma das imagens icónicas de Pyongyang JOÃO CHALEIRA

João Chaleira levava meia dúzia de horas em solo norte-coreano quando se questionou, pela primeira vez, se aquele país seria tão fechado e rígido como tantas vezes ouvira nas notícias. Sentado à mesa de um restaurante, no centro de Pyongyang, partilhava o jantar com sete outros ocidentais que, como ele, tinham escolhido a Coreia do Norte para umas curtas férias. Nos dias seguintes, iam viajar juntos, acompanhados por duas guias norte-coreanas, uma fluente em inglês, a outra em francês.

Quando pensavam que o jantar tinha terminado, as luzes da sala apagaram-se. “Olhámo-nos sem perceber o que se passava”, conta este abrantino de 29 anos, residente em Lisboa desde os 18. “Surgem, então, duas empregadas com um bolo. As guias levantam-se da mesa e começam a caminhar na minha direção. Cantam os ‘parabéns a você’ e entregam-me um ramo de flores. Depois agradecem-me por eu ter escolhido passar o meu aniversário no seu país. Eu, que esperava o tal país rígido, quase agressivo e de poucos sorrisos, sou de repente confrontado com uma festa surpresa em Pyongyang! A ideia de que ia passar os dias seguintes a olhar por cima do ombro caiu logo ali.”

O português não dissera a ninguém que fazia anos, mas uma situação desmascarou-o. À chegada ao país, tinha a recebe-lo, na estação ferroviária de Pyongyang, uma das guias, que logo lhe pediu o passaporte — o documento só seria devolvido no final da viagem. Daí até à preparação da festa, tudo foi feito na maior discrição.

Vista geral sobre a cidade de Pyongyang, atravessada pelo Rio Taedong JOÃO CHALEIRA

Na Coreia do Norte, só se entra a partir da China, em comboio ou de avião. João optou por ir por terra: primeiro, de Pequim a Dandong (norte da China), onde apanhou outro comboio, que só parou na capital norte-coreana. Ao todo, precisou de quase 24 horas.

O controlo fronteiriço foi feito dentro das carruagens, atravessada a Ponte da Amizade, sobre o Rio Yalu, que separa Dandong e a cidade norte-coreana de Sinuiji. “Ia preparado para um controlo muito rígido. Tinham-me dito que era necessário encarar esse momento com o máximo de cuidado e respeito. Quando chegou a minha vez, a primeira coisa que me perguntarem foi se levava… livros.”

A pergunta não o surpreendeu. Em Pequim, tinha tido um “briefing” preparatório, onde — para além de lhe explicarem que “a Coreia do Norte não existe”, e que o país chama-se República Popular Democrática da Coreia (DPRK, na sigla inglesa) — lhe falaram da realidade que ia encontrar e de regras que havia que cumprir. “Foi-me dito para não levar livros, documentos relacionados com a Coreia ou mesmo bandeiras da Coreia do Sul, Japão ou Estados Unidos estampadas em roupas ou em malas.”

Curiosamente, carimbos no passaporte — ainda que relativos aos mesmos países — não eram problemáticos. Preocupante era a tecnologia que o turista levava consigo para dentro do país. “Camera?” “Phone?” “Computer?”, perguntavam os agentes, num inglês rudimentar, durante a revista, que podia implicar pesquisas nos telemóveis e portáteis.

“Eles anotavam as marcas e os modelos de tudo o que era tecnologia, provavelmente para garantir que os equipamentos que entravam no país eram os mesmos que saíam, e que nenhum ficava lá com informação. Tirando isso, foi tranquilo. Os agentes sorriam e pediam permissão para mexer nas malas. Terminados os procedimentos, podíamos descer do comboio para esticar as pernas. Na plataforma, havia uma senhora a vender ‘duty-free’. Caiu o meu primeiro mito em relação à Coreia do Norte.”

Hora de ponta numa estação do metro, em Pyongyang JOÃO CHALEIRA

Entre os companheiros de viagem, havia uma grega, uma alemã, um canadiano, um finlandês e três franceses. Uns mais viajados do que outros, todos com a mesma motivação para ali estarem: espreitar a Coreia do Norte e, dentro do que fosse possível observar, tentar confirmar o que era realidade e ficção entre tanta coisa que tinham ouvido sobre um país governado há 70 anos pela família Kim.

No “briefing” em Pequim, tinham sido aconselhados a evitar conversas de cariz político. Mas o que fazer quando era a própria guia — João interagiu mais com a falante de inglês — a disparar perguntas? “O que achas da reunificação? Achas que vai acontecer?” “Os EUA devem estar envolvidos? E a China?”

Muitas vezes, as discussões começavam a dois e generalizavam-se ao grupo. “No início, tinha receio de responder. Não sabia se podia dizer o que realmente pensava. Com o passar dos dias, a conversa tornou-se mais distendida. Muitas vezes, ela apenas ouvia; noutras, também dava a opinião. Até que ponto era sincera, não sei. Também não consegui perceber se as perguntas eram curiosidade pessoal ou se tinha indicações para recolher as nossas opiniões e reportá-las. Mas tendo sempre presente que não estava num país livre, e que só via aquilo que me deixavam ver, foi outro mito que caiu, o de que não é possível ter conversas políticas na Coreia do Norte.”

Em Pyongyang, o Arco da Reunificação recorda um projeto antigo que se mantém atual: a reunificação da Península JOÃO CHALEIRA

A Coreia do Norte enquanto destino de férias entra nos planos de João Chaleira — um apaixonado por basquetebol licenciado em gestão de empresas — na senda de um conjunto de “viagens míticas” com que sempre sonhou, e que concretizou. Foi de Moscovo a Pequim a bordo do Transiberiano, visitou Machu Picchu (Peru), viu o nascer do sol no Salar de Uyuni (Bolívia), calcorreou Israel e a Palestina, o Japão e a Islândia. Em dezembro foi à Patagónia.

“Quando comecei a pensar na viagem seguinte, quis optar por algo mais marcante a nível pessoal. E surgiu a ideia da península da Coreia, com o propósito de conhecer os dois lados de uma das fronteiras mais fechadas do mundo que separa, para além de países, duas realidades distintas.” Esteve cinco dias no Norte e sete no Sul.

Se ir ao Sul é fácil, ir ao Norte não é necessariamente difícil. Há agências acreditadas pelas autoridades de Pyongyang que vendem “tours”. Para além da capital, João visitou Nampo, Sariwon, Kaesong e a zona desmilitarizada entre as duas Coreias. As burocracias são céleres e simples — o visto é dado à entrada —, mas também criteriosas… Há que assinar um documento em que o turista garante que não trabalha como jornalista, fotógrafo ou escritor. Nesses casos, a agência deixa de poder ser útil e aconselha-o a contactar diretamente as autoridade norte-coreanas — uma forma polida de fechar a porta, salvo honrosas exceções…

No comboio que levou João até Pyongyang, seguia também o ator Michael Palin, dos Monty Pyhton. “Ia lá gravar um programa de viagens para a ‘National Geographic’. Já ia acompanhado por um guia. Tinham fitas azuis no braço que os identificava como jornalistas.”

O Palácio do Sol, onde estão sepultados Kim Il-sung e Kim Jong-il, avô e pai do atual líder JOÃO CHALEIRA

Na Coreia do Norte, pode-se tirar fotografias em “todo o lado”, salvo onde os guias o proíbem, como edifícios governamentais, controlos militares nas ruas ou situações que revelem pobreza. No metro, pode-se fotografar as estações, mas não os túneis.

Também não é permitida a captação de imagens no Palácio do Sol, onde estão os mausoléus de Kim Il-sung e Kim Jong-il — avô e pai do atual líder, Kim Jong-un — e onde só se entra com traje formal. “Ainda em Lisboa, recebi um email da agência aconselhando a que levasse camisa, calça, gravata e sapatos para a visita ao Palácio do Sol”, diz João.

Em dois momentos do programa, foi também aconselhado ao grupo que fizesse vénias em sinal de respeito: uma no Palácio do Sol, onde o visitante tem de se curvar aos pés, à esquerda e à direita dos corpos (não à cabeça); outra diante das duas grandes estátuas em bronze dos “grandes líderes” falecidos, uma das imagens icónicas de Pyongyang. As vénias não eram obrigatórias, mas quem não as fizesse ficaria excluído das visitas aos locais.

Lembrança do Comité Português de Estudo do Kimilsunismo, na Torre Juche, um monumento em Pyongyang que homenageia a ideologia do regime norte-coreano, segundo a qual “o homem é dono do seu próprio destino” JOÃO CHALEIRA

Contactar com locais foi um obstáculo intransponível. “Com o passar dos dias, fui percebendo até onde é que podia ‘esticar a corda’. Um dia, quando saíamos do autocarro, havia um senhor a pouca distância, que nos olhava com curiosidade. Levantei a mão, ele sorriu e correspondeu. Num ápice, a guia colou-se a mim para se inteirar do que estava a acontecer. Pedi para tirar uma fotografia com o homem e ela autorizou, agindo sempre com pressa. O senhor seguiu-nos, com o telemóvel na mão, e pediu para tirar uma foto comigo. Ela não deixou.”

Durante a estadia na Coreia do Norte, João nunca ficou sozinho — até ao dia em que se sentiu indisposto. “Estávamos num restaurante. A guia ficou preocupadíssima. Imagino a pressão que sofrem para mostrar o melhor do país e fazer com que os turistas não fiquem com má imagem. Seria um grande problema se um ocidental adoecesse num ‘tour’. Pedi-lhe para ir ‘lá fora’ apanhar ar. Ela hesitou mas deixou. Só depois me apercebi que estive 15 minutos sozinho numa rua de Pyongyang.”

Na memória, João guarda a imagem de uma cidade organizada, incrivelmente limpa e estranhamente silenciosa, com pouco trânsito e onde quase não se ouve barulho de crianças. Diz também nunca se ter sentido em risco. “Antes de partir, perguntavam-me se eu não tinha medo de ir à Coreia do Norte. Eu comecei a fazer essa pergunta a mim próprio e uma resposta foi-se formando na minha cabeça. Eu teria medo de ir ao Afeganistão ou à Síria, pelo fator aleatório: podia estar numa praça e acontecer um atentado terrorista. Na Coreia do Norte, bastaria seguir as indicações das guias e manter o foco: Atenção às fotos! Mantém-te com o grupo! Evita conversas com locais! Atenção às risadas e cotoveladas quando nos contam histórias surreais dos líderes!”

“Todas as nossas ações, por mais inocentes que fossem, estavam a ser vigiadas pelas guias. Mas, verdadeiramente, nunca me senti vigiado. Havia um controlo, mas era tão bem feito que eu facilmente me abstraía.”

Foto tirada desde o alto Hotel Yanggakdo, onde ficam hospedados todos os turistas que visitam Pyongyang JOÃO CHALEIRA

No fim de cada dia de visitas, o grupo era deixado no Hotel Yanggakdo, onde ficam hospedados todos os turistas que visitam Pyongyang. Inaugurado em 1995, o edifício é um monstro de betão ao estilo soviético, com 1000 quartos distribuídos por 48 andares. “Nós ficávamos no piso 37. Eu ia jurar que os turistas eram alojados nos andares de cima para parecer que o hotel estava cheio, mas estava muito longe disso.”

Sem as guias por perto, por que não arriscar uma escapada noturna pelas ruas da cidade? “O hotel tem uma localização curiosa”, explica João. Situado numa ilha no meio do Rio Taedong, que atravessa a capital, o acesso faz-se através de duas pontes, uma para cada lado. “Não lhe vou chamar prisão, mas é a comparação que ocorre com facilidade…” Não havia guardas à porta do hotel a impedir a saída para o exterior, mas possivelmente se arriscassem ir sozinhos seriam intercetados e mandados para casa.

João Chaleira junto à guia do Museu da Guerra de Libertação da Pátria Vitoriosa, em Pyongyang. A gravata, que tinha sido necessária para visitar o Palácio do Sol, já estava fora do pescoço JOÃO CHALEIRA

No hotel, não faltava nada: restaurantes, bares e karaoke; casa de câmbio, posto de correios, terminais de telefone, onde se podia ligar para o estrangeiro. A outra forma de fazer chamadas internacionais passava por comprar um chip de telemóvel norte-coreano, que custava mais de 100 euros e que só permitia fazer chamadas, não receber. No fim da viagem, o chip teria de ficar no país.

O grupo almoçava e jantava quase sempre em restaurantes, numa sala reservada só para turistas, sem possibilidade de contacto com locais. “Em alguns lugares, parecia mesmo que éramos os únicos clientes, numa sala cheia de mesas e cadeiras vazias e uma mesa posta para nós.”

Na última noite, em jeito de despedida, a guia pergunta ao grupo o que quer fazer. Sugerem ir a um pub local. Ela recorda que no hotel há bares com fartura, mas o grupo insiste. Encurralada, ela não dá parte de fraca. Terminado o jantar, mergulham na noite norte-coreana — o grupo com a expectativa de testemunhar como os locais se divertem, as guias com a sensação do dever cumprido. Chegados ao pub, não faltava música nem bebidas. Mas o local estava… vazio.

Artigo publicado no Expresso Diário”, a 19 de novembro de 2018 e republicado no “Expresso Online”, a 25 de novembro de 2018

Coreia do Norte terá entre 20 e 60 bombas nucleares

A estimativa foi avançada por um ministro sul-coreano, durante um debate parlamentar. Seul diz, porém, não reconhecer a Coreia do Norte como um Estado nuclear, pelo que o processo de desnuclearização da Península é para continuar

Pela primeira vez, a Coreia do Sul concretizou, em público, a possível dimensão do arsenal nuclear da Coreia do Norte. Na segunda-feira, durante um debate parlamentar, o ministro sul-coreano para a Unificação afirmou que Pyongyang possuirá entre 20 e 60 bombas.

Cho Myoung-gyon atribuiu a origem da informação aos serviços secretos da Coreia do Sul. A revelação poderá ter sido acidental, já que, esta terça-feira, Seul apressou-se a esclarecer que as palavras do ministro não significam que a Coreia do Sul reconheça e aceite a Coreia do Norte como um Estado nuclear.

A desnuclearização da Península Coreana tem sido o principal dossiê em cima da mesa de conversações entre as duas Coreias (que já realizaram três cimeiras presidenciais este ano) e entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos (que estão a preparar a segunda cimeira entre Kim Jong-un e Donald Trump).

EUA e Rússia têm mais de 1000

Se, ao longo dos anos, o arsenal nuclear norte-coreano tem sido alvo de grande secretismo, dado o isolamento do país, o mesmo se passa relativamente à quantidade de armas nucleares em posse das restantes potências nucleares, de que só existem estimativas.

Segundo a Federação dos Cientistas Americanos (FAS), numa informação atualizada em junho deste ano, os Estados Unidos terão até 1750 bombas e a Rússia até 1600. Segue-se, a grande distância, a França com um máximo de 300, a China com 280 e o Reino Unido com 280.

No capítulo das potências nucleares que não subscreveram o Tratado de Não Proliferação Nuclear (em vigor desde 1970), o Paquistão terá até 150 ogivas nucleares, a Índia 140 e Israel 80. Em relação à Coreia do Norte, a FAS atribui-lhe 15 bombas, aquém do número avançado pelo Governo sul-coreano.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de outubro de 2018. Pode ser consultado aqui

Fotogaleria. Pelas ruas de Pyongyang, a capital do país mais fechado à face da Terra

O desanuviamento na Península Coreana tem permitido visitas à Coreia do Norte por parte de repórteres estrangeiros e, consequentemente, uma “espreitadela” demorada sobre a capital do país. Tiradas durante o mês de setembro, estas 30 fotos ajudam a levantar o véu sobre uma das cidades mais desconhecidas do mundo

Num país fechado como a Coreia do Norte, onde só se entra a partir da China, percorrer as ruas da sua capital — ainda que apenas através de fotografias — não é um exercício frequentemente acessível. As imagens da cidade não abundam, muito menos aquelas que registam as rotinas dos seus habitantes.

A recente visita do Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, a Pyongyang — para a terceira cimeira intercoreana do ano com o homólogo norte-coreano — permitiu um olhar demorado sobre a cidade. Entre 18 e 20 de setembro, a cimeira entre Moon Jae-in e Kim Jong-un foi coberta por repórteres sul-coreanos de 15 órgãos de informação — jornalistas estrangeiros, mesmo os que trabalham a partir de Seul, ficaram de fora. Anteriormente, no início do mês, o Governo norte-coreano organizara uma visita para jornalistas estrangeiros, por ocasião do 70º aniversário da fundação do país.

Essas “espreitadelas” permitiram a captação de imagens “frescas” de Pyongyang, reveladoras de uma cidade tranquila, ordeira e limpa, com edifícios coloridos e sem congestionamentos de trânsito. Mostram também crianças sorridentes e adultos compenetrados na vida, como em qualquer parte do mundo. E também uma dinastia omnipresente: os Kim, que governam a Coreia do Norte há exatamente 70 anos.

Nas ruas, há retratos abundantes de Kim Il-sung (líder entre 1948 e 1994) e Kim Jong-il (1994-2011) — avô e pai do líder atual — que os norte-coreanos reverenciam com vénias. Já os turistas ocidentais — porque também os há em Pyongyang — não resistem às “selfies” naquele improvável destino de férias.

FOTOS EM FALTA

6. O Arco do Triunfo norte-coreano, comemorativo da resistência coreana ao Japão, entre 1925 e 1945 ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES – FALTA ESTA FOTO!!!

17. Aula de canto para futuras professoras, numa faculdade de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERS – FALTA ESTA FOTO!!!

Militar norte-coreano à saída do Museu de História Natural, em Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Vista sobre a capital norte-coreana, onde se estima que vivam cerca de 2,5 milhões de pessoas ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Trabalhadoras de uma fiação, em Pyongyang ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Carruagem do metro da capital norte-coreana Trabalhadoras de uma fiação, em Pyongyang ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Restaurante no centro de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Polícia-sinaleiro norte-coreano. Há muitos em Pyongyang, apesar de o trânsito não ser intenso PYEONGYANG PRESS CORPS / GETTY IMAGES
Crianças patinam num parque da cidade ED JONES / AFP / GETTY IMAGES
Um baloiço com a forma de um míssil e aviões, num jardim de infância da capital da Coreia do Norte DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Pyongyang é banhada pelo rio Taedong ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Banda feminina anima o jantar a bordo de um restaurante flutuante, no rio Taedong ED JONES / AFP / GETTY IMAGES
Arranha-céus coloridos, em Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERS
É na Praça Kim Il-sung que se realizam as vistosas e impressionantes paradas militares norte-coreanas PYEONGYANG PRESS CORPS / GETTY IMAGES
Uma norte-coreana produz sabonetes, numa fábrica de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Numa fábrica de cosméticos, três mulheres produzem pincéis ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Empregadas de uma fábrica de seda gozam de um momento de descanso, numa piscina DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Alunas do ensino superior usam óculos de realidade virtual, durante uma aula DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Esta norte-corena trabalha como guarda à entrada de uma fábrica DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Hora de ponta na estação Puhung, no metro de Pyongyang ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Guarda na estação de Puhung ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Autocarro elétrico, numa rua da capital da Coreia do Norte ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
À espera do autocarro, numa paragem de Pyongyang PYEONGYANG PRESS CORPS / GETTY IMAGES
Na capital norte-coreana, a bicicleta é um meio de transporte popular ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Os retratos do avô e do pai do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un, proliferam por toda a capital ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
Convidados de um casamento, com os noivos ao centro, curvam-se diante de duas estátuas em bronze de Kim Il-sung e Kim Jong-il DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Ao fundo, a Torre Juche, um dos monumentos icónicos de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERS
Dois turistas tiram uma “selfie”, no miradouro da Torre Juche ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES
A noite cai em Pyongyang, a Torre Juche ilumina-se e, junto ao rio, um homem navega pela internet norte-coreana DANISH SIDDIQUI / REUTERS
A 19 de setembro, muitos habitantes de Pyongyang pararam para fixar atenções em ecrãs que transmitiam notícias sobre a cimeira intercoreana que decorria na cidade. A reunificação é uma esperança permanente Kim WON JIN / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de setembro de 2018. Pode ser consultado aqui