Arquivo de etiquetas: Coreia do Norte

A caminho da Coreia do Norte “de olhos bem abertos”

Um grupo de jornalistas ocidentais e chineses viajou para a Coreia do Norte para cobrir o encerramento de um local onde se realizaram testes nucleares. Apesar de previamente convidados, os repórteres sul-coreanos ficaram em terra

Cerca de 20 jornalistas ocidentais e chineses embarcaram, esta terça-feira, rumo à Coreia do Norte para testemunharem o desmantelamento do sítio de Punggye-ri, onde foram realizados seis testes com armas nucleares. Para Pyongyang, o encerramento do local é uma demonstração de boa fé e seriedade em relação à desnuclearização da península coreana.

Entre os órgãos de informação que receberam visto da Coreia do Norte estão a agência Associated Press, as televisões americanas CNN e CBS, a agência russa TASS, a televisão Russia Today e a televisão chinesa CCTV.

“Vamos entrar com os olhos bem abertos e veremos o que acontece”, disse o repórter da CNN Will Ripley, no Aeroporto Internacional de Pequim, de onde partiu o voo da Air Koryo rumo à Coreia do Norte. “Esperamos que os norte-coreanos sejam transparentes como dizem que são e nos mostrem o local de testes nucleares e o seu desmantelamento.”

Previamente, os Estados Unidos apelaram a “um encerramento permanente e irreversível que possa ser inspecionado e totalmente contabilizado”, mas a comitiva não inclui técnicos que possam, com o seu conhecimento específico, atestar que o que efetivamente acontece é aquilo que Pyongyang apregoa.

A 12 de maio, a Coreia do Norte endereçou convites a jornalistas de cinco países — Coreia do Sul, China, Rússia, Estados Unidos e Reino Unido. Cinco Estados apenas, “devido ao espaço confinado do local”, informou, no Twitter, um dos repórteres bafejados com um visto.

https://twitter.com/willripleyCNN/status/995298752213565440?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E995298968077680640%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es2_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2018-05-22-A-caminho-da-Coreia-do-Norte-de-olhos-bem-abertos

Chegados à hora de embarque, porém, os sul-coreanos ficaram em terra, sem autorização para subirem a bordo.

Em comunicado, o Ministério da Unificação da Coreia do Sul lamentou o revés na decisão de Pyongyang. “No entanto, o Governo [de Seul] presta a devida atenção ao facto de a promessa do Norte em desmantelar o local de testes nucleares de Punggyeri, uma primeira medida no sentido da desnuclearização, estar a decorrer como planeado, e espera que tal ação conduza à realização com sucesso da cimeira entre a Coreia do Norte e os EUA”.

Apesar da histórica cimeira entre as duas Coreias, a 27 de abril passado, a relação bilateral continua vulnerável. A realização, esta semana, dos exercícios militares anuais conjuntos entre os EUA e a Coreia do Sul foi sentida, em Pyongyang, como uma provocação. Os norte-coreanos endureceram o discurso e ameaçaram cancelar a anunciada cimeira entre os líderes dos EUA e da Coreia do Norte, Donald Trump e Kim Jong-un, a 12 de junho em Singapura.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

Kim ao ataque, Trump à defesa

O encontro entre os líderes da Coreia do Norte e dos EUA está tremido. Pyongyang está sem paciência para pressões e provocações

Os Estados Unidos não fazem mais ameaças vazias. Quando prometo uma coisa, cumpro-a.” No dia em que rasgou o acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão, a 8 de maio passado, Donald Trump invocou — como exemplo contrário ao extremar de posições entre EUA e Irão — o processo de aproximação à Coreia do Norte. “Tenho esperança de que se vá celebrar um acordo e, com a ajuda da China, da Coreia do Sul e do Japão, alcançaremos um futuro de grande prosperidade e segurança para todos.”

Ao devolver a relação com o Irão aos tempos de tensão e de desconfiança, o chefe de Estado norte-americano pode, inadvertidamente, ter gerado receios junto dos norte-coreanos. “Pessoalmente, acredito que foi dada uma mensagem muito problemática em termos de credibilidade e confiança nos Estados Unidos”, afirmou, quarta-feira, o sul-coreano Ban Ki-moon, ex-secretário-geral das Nações Unidas, numa entrevista à televisão norte-americana CNBC. “Que tipo de mensagem tirará a Coreia do Norte disto? Posso confiar no Presidente dos Estados Unidos? Esta poderá ser a primeira pergunta que se coloca ao líder da Coreia do Norte.”

Esta semana, os preparativos para a anunciada cimeira entre os líderes dos Estados Unidos e a Coreia do Norte — a 12 de junho, em Singapura — sofreram um revés, quando Pyongyang cancelou “indefinidamente” as conversações com os sul-coreanos visando a organização do encontro. A decisão apanhou de surpresa os meandros diplomáticos, já que, ainda na semana passada, Pyongyang dera mostras de boa vontade ao libertar três cidadãos norte-americanos detidos no país por “atividades hostis”. Estes foram recebidos por Trump numa base militar do Estado de Maryland.

Exercícios provocadores

Na origem deste endurecimento da posição norte-coreana está a realização de exercícios militares conjuntos entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos, iniciados segunda-feira e que se prevê que durem duas semanas. Habitual entre os dois aliados, por alturas da primavera, o exercício Max Thunder envolve cerca de 100 aeronaves de ambos os países, em manobras que o Pentágono qualifica de “defensivas”.

Também caíram em Pyongyang afirmações de altos responsáveis norte-americanos a pressionar a Coreia do Norte no sentido de uma “desnuclearização unilateral”. “Se os Estados Unidos estão a tentar pôr-nos a um canto para nos forçarem a abandonar o nuclear de forma unilateral, deixaremos de estar interessados nesse diálogo e não poderemos deixar de reconsiderar o nosso compromisso em relação à cimeira Coreia do Norte-Estados Unidos”, afirmou, quarta-feira, Kim Kye-gwan, o vice-ministro norte-coreano dos Negócios Estrangeiros.

“Já declarámos a nossa posição favorável à desnuclearização da península coreana”, acrescentou o governante. “Já deixámos claro, em várias ocasiões, que as condições prévias para a desnuclearização são o fim da política hostil à Coreia do Norte, das ameaças nucleares e da chantagem por parte dos Estados Unidos.”

“Kim Jong-un pretende afirmar a sua posição na mesa das negociações. Pretende mostrar que não vai a Singapura numa atitude de total submissão a Trump e aos Estados Unidos”, explica ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei, Japão. “Simultaneamente, tendo em conta as recentes declarações de John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, o líder norte-coreano está a rejeitar veementemente o modelo líbio de desnuclearização [ver descodificador nesta página]. A mensagem de Pyongyang é que o nível de cedências norte-coreanas tem o seu limite.”

Esta posição de força tem, naturalmente, consequências internas. “A lógica que guia o líder norte-coreano é a sobrevivência do regime e da sua liderança. As recentes ameaças de cancelamento da cimeira podem servir também para consumo interno”, acrescenta Saraiva. “Se a imagem externa de Kim saiu beneficiada a nível internacional com o recente clima de desanuviamento, não sabemos ao certo que impacto teve junto das elites e da população.”

Um país, dois sistemas

Esta semana Moon Jae-in, Presidente da Coreia do Sul, irá a Washington para transmitir a Trump as fronteiras negociais do Norte e articular uma posição conjunta que volte a sentar os norte-coreanos à mesa do diálogo. Para o professor de Ciência Política, a China — o grande aliado da Coreia do Norte e sua porta de saída para o mundo — tem um papel fundamental na resolução deste impasse.

“O que está em causa é a integração da Coreia do Norte no sistema internacional e a transformação da Coreia do Norte de um sistema totalitário num sistema autoritário, através da sua ‘dengxiaopingzação’: um país, dois sistemas, em conjunto com a desnuclearização. Se isso se concretizar, passamos de um ‘jogo de soma zero’ [o ganho de um jogador representa a perda do outro] para um jogo onde todos ganham (win-win) a nível local, regional e global.”

Teorias e jogos à parte — aos quais Trump não parece ser sensível —, o Presidente dos Estados Unidos parece já ter tido rédea mais folgada no processo de diálogo com a Coreia do Norte. É que depois de retirar os EUA do acordo com o Irão e de provocar o mundo árabe transferindo a embaixada dos Estados Unidos em Israel de Telavive para Jerusalém — com consequências trágicas na Faixa de Gaza (ver páginas seguintes) —, Trump precisa de um sucesso diplomático para provar que, contra tudo e quase todos, a sua América está no caminho certo.

DESCODIFICADOR

Como desnuclearizar?

O fim do programa nuclear norte-coreano está no coração do processo de aproximação entre Washington e Pyongyang

1. Que poder tem o Norte?
A Coreia do Norte é uma das nove potências nucleares em todo o mundo. É também uma das quatro que não fazem parte do Tratado de Não-Proliferação Nuclear — as restantes são Índia, Paquistão e Israel. Pyongyang chegou a assinar o documento, em 1985, mas retirouse em 2003. Na era de Kim Jong-un (no poder desde 2011), sucessivos testes com mísseis balísticos, cada vez mais ameaçadores, desvendaram uma capacidade bélica para atingir território norte-americano. Para o nervosismo global que se seguiu, muito contribuiu o profundo
desconhecimento sobre o país, último reduto marxista-leninista e onde se vive segundo a ideologia juche (autossuficiência), introduzida por Kim Il-sung, o “pai fundador” do Estado e avô do líder atual.

2. O que é o modelo líbio?
Quando, em 2003, na Líbia, um embrionário programa de armas de destruição em massa causava dores de cabeça, o ditador Muammar Kadhafi aceitou eliminá-lo em troca do levantamento de sanções e do fim do estatuto de pária na comunidade internacional. O material perigoso seguiu para o Laboratório Nacional de Oak Ridge, no Tennessee. Recentemente, John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional de Trump, defendeu um “modelo líbio” para pôr fim à ameaça norte-coreana. Quinta-feira, o jornal japonês “Asahi Shimbum” noticiou que os EUA exigiram que a Coreia do Norte envie ogivas nucleares, um míssil balístico intercontinental e material nuclear, dentro de seis meses, para tirarem Pyongyang da lista negra do terrorismo.

3. Os EUA têm alternativas?
Perante a repugnância que provocou, em Pyongyang, a possibilidade de uma solução “à líbia” para o nuclear norte-coreano — até pelo fim trágico que teve Kadhafi, anos depois, em 2011, assassinado nas ruas na sequência de um bombardeamento ocidental ao país —, os Estados Unidos apressaramse a desvalorizar essa fórmula. “Não vi [o modelo líbio] ser discutido, por isso não estou consciente de que seja aquele que estamos a usar”, disse esta semana Sarah Sanders, porta-voz da Casa Branca, preferindo falar num “modelo Trump”, sem concretizar em que consiste. Citado pelo jornal “The Korea Herald”, Kim Yeol-su, do Instituto para os Assuntos Militares da Coreia, comentou: “A ideia de um modelo Trump é como oferecer um kit de primeiros socorros à cimeira EUACoreia do Norte”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

Norte e Sul cumpriram. A palavra aos EUA…

Seul e Pyongyang querem assinar um tratado de paz e desnuclearizar a península. A cimeira entre Trump e Kim dirá se é sonho ou realidade

A cimeira de Panmunjom foi um passo importante no sentido da paz definitiva na península coreana, mas o ponto final no conflito que permanece em aberto desde 1953 não pode ser colocado sem a concordância dos Estados Unidos, signatários do Armistício, em representação das Nações Unidas. Daí que o histórico encontro, ontem, entre Moon Jae-in e Kim Jong-un tenha ficado aquém daquilo que ambos os líderes desejariam — o enterro do machado de guerra através da assinatura de um tratado de paz.

“Durante este ano em que se assinala o 65º aniversário do Armistício, Coreia do Sul e Coreia do Norte concordaram em procurar ativamente encontros a três, envolvendo as duas Coreias e os Estados Unidos, ou encontros a quatro, envolvendo as duas Coreias, os Estados Unidos e a China, com vista à declaração do fim da guerra e ao estabelecimento de uma paz permanente e sólida”, consagra a “Declaração de Panmunjom para a Paz, Prosperidade e Unificação na Península Coreana”, assinada por Kim e Moon.

Tal como o Presidente sul-coreano desejara há dias, a cimeira — a terceira de sempre, ao mais alto nível, entre Norte e Sul — é, acima de tudo, um trampolim para um desejado encontro entre Estados Unidos e Coreia do Norte — esse, sim, inédito —, o único fórum com autoridade política para ditar decisões sobre os grandes diferendos.

O maior deles é a desnuclearização da península. Sobre o assunto, a “Declaração de Panmunjom” — dirigida a “80 milhões de coreanos”, sem distinção de Norte e Sul — confirmou “o objetivo comum” de uma “completa desnuclearização” do território. A interpretação do que isso significa, em termos práticos, é uma frente da próxima batalha diplomática entre Washington e Pyongyang: os norte-americanos serão tentados a pensar que desnuclearizar a península é acabar com o arsenal nuclear norte-coreano, à semelhança do que aconteceu com a Líbia de Kadhafi. “Devíamos insistir que se o encontro se realizar deve ser similar às discussões que tivemos com a Líbia há 13 ou 14 anos: como arrumar o programa de armas nucleares deles e levá-lo para [o Laboratório Nacional de] Oak Ridge, no Tennessee”, defendeu recentemente John Bolton, conselheiro de Trump para a Segurança Nacional.

Sem data nem local, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor legado: a vontade comum do início de uma nova era

Já os norte-coreanos, que sentem há décadas a presença militar dos Estados Unidos na Coreia do Sul como uma ameaça direta, poderão exigir o regresso a casa dos cerca de 28 mil militares norte-americanos estacionados no Sul. Num comunicado surpresa, a 20 de abril, durante uma reunião do Partido dos Trabalhadores da Coreia, Kim Jong-un anunciou a suspensão dos testes nucleares e de mísseis balísticos intercontinentais e o desmantelamento das instalações usadas para os exercícios nucleares, em Punggye-ri, no norte do país. No Twitter, Donald Trump saudou a “muito boa notícia para a Coreia do Norte e para o mundo — um grande progresso! Aguardo a nossa cimeira”.

A CIA em Pyongyang

Com um fuso horário de 13 horas entre Washington D.C. e Seul, o staff da Casa Branca manteve-se acordado madrugada fora, reagindo como parte interessada às imagens que chegavam de Panmunjom e que faziam notícia em todo o mundo. Num comunicado, a Presidência desejou que as conversações progridam no sentido de “um futuro de paz e prosperidade em toda a península” e desejou “a continuação de discussões robustas na preparação do planeado encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un”.

Na sua conta oficial no Twitter, a Casa Branca aproveitou a confirmação, no Congresso, de Mike Pompeo como novo secretário de Estado para publicar duas fotos de um recente encontro, em Pyongyang, entre o então diretor da CIA e o líder da Coreia do Norte. Pompeo “fará um excelente trabalho ajudando o Presidente Trump a liderar os nossos esforços no sentido da desnuclearização da Península Coreana”, diz o post.

Sem data nem local anunciados, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor dos legados — sorrisos e uma vontade comum de iniciar uma nova era entre as Coreias. Mas o imprevisível Trump não tem o feitio do conciliador Moon. “Se quando eu lá estiver o encontro não for frutuoso”, já avisou o Presidente dos EUA, “levanto-me respeitosamente e abandono a sala”.

QUEM É MOON JAE-IN?

O encontro entre Moon Jae-in e Kim Jong-un foi, para o sul-coreano, muito mais do que uma questão de Estado — foi também um assunto do coração. Nascido a 24 de janeiro de 1953, a meio ano do fim da Guerra da Coreia, Moon Jae-in é filho de um casal oriundo do norte da península. Em fuga ao regime comunista de Kim Il-sung — avô do atual líder norte-coreano, que assumiu as rédeas do país em 1948 —, os pais deixaram Hungnam e fizeram-se ao mar durante três dias, no convés de um navio norte-americano repleto de refugiados. Desembarcaram na ilha de Geoje, no sul da península, onde passaram a viver e onde Moon Jae-in nasceu. Foi o primeiro de cinco filhos.

Naquela ilha, a família lutou para escapar à pobreza. Quando a mãe ia vender ovos, o filho ia amarrado às costas. Na sua autobiografia, lançada em 2011, Moon escreveu: “Quando a reunificação [coreana] pacífica chegar, a primeira coisa que quero fazer é pegar na minha idosa mãe e levá-la à sua terra natal.” “Moon Jae-in: O Destino” foi lançada em 2011, quando o autor ainda não tinha carreira política — fora apenas assessor do Presidente Roh Moo-hyun (2003-2008), de quem era amigo. Mas Moon já levava décadas de combate. Primeiro como líder estudantil, contra a ditadura militar, o que levaria a que fosse expulso da Universidade Kyung Hee, em Seul, onde estudava Direito, e fosse preso. E, posteriormente, na barra dos tribunais, com Moon a exercer advocacia na área dos direitos humanos e civis.

O suicídio de Roh, em 2009, afetado por um escândalo de corrupção que envolvia familiares do ex-Presidente — que Moon sentiu de forma particular —, foi o tiro de partida para se aventurar na política. Foi deputado entre 2012 e 2016 e líder do Partido Democrático (liberal). Aos poucos foi construindo a imagem de um político pragmático, que tocava os mais jovens e em quem se podia confiar. Perdeu as presidenciais da primeira vez que foi a votos, em 2012, para Park Geun-hye, a primeira mulher na Casa Azul, que seria destituída e condenada a 24 anos de prisão por corrupção. Cinco anos depois foi Moon Jae-in que o povo escolheu para virar essa página negra.

Na presidência, este católico, casado com a cantora Kim Jung-sook (que conheceu na universidade) e pai de um rapaz e de uma rapariga, sempre defendeu a aproximação aos norte-coreanos, mesmo quando de Pyongyang, em vez de palavras conciliatórias, só se ouviam ordens de lançamento de mísseis cada vez mais ameaçadores. “Não acho que seja desejável para a Coreia do Sul sentar-se no banco de trás e observar as discussões entre os Estados Unidos e a China e os diálogos entre a Coreia do Norte e os EUA”, defendeu numa entrevista ao jornal “The Washington Post” por alturas da sua eleição. Ontem, o lugar da frente foi seu, ao ser o anfitrião, pela primeira vez na História, de um líder da Coreia do Norte.

(Foto: Kim Jong-un e Moon Jae-in, a 27 de abril de 2018, em Panmunjom CASA AZUL (CHEONGWADAE) / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 28 de abril de 2018

Cenas de ficção no lugar mais tenso do mundo

Na última fronteira da Guerra Fria, soldados norte e sul-coreanos ficam frente a frente num único local: a Área de Segurança Conjunta, na aldeia de Panmunjom, que esta sexta-feira acolhe uma histórica cimeira entre as duas Coreias. Ora preparados para uma guerra que parece iminente, ora fotografados por turistas em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”, mais parecem atores num parque temático

Três soldados sul-coreanos vigiam a fronteira com a Coreia do Norte, na Área de Segurança Conjunta, em Panmunjom HENRIK ISHIHARA GLOBALJUGGLER / WIKIMEDIA COMMONS

A fronteira mais fortificada do mundo — junto à qual, esta sexta-feira, terá lugar uma cimeira histórica entre as duas Coreias — é cenário digno de um filme de Hollywood. A cerca de 50 quilómetros para norte de Seul, na Área de Segurança Conjunta, militares norte e sul-coreanos ficam cara a cara em encontros de rotina e vigiam-se de forma quase teatral, trocando olhares ferozes, seguindo movimentos com binóculos e registando a atividade inimiga com máquinas fotográficas.

“Muitas vezes, os soldados sul-coreanos fazem movimentos de Taekwondo, a arte marcial coreana”, explica ao Expresso Kim Seong-Kon, professor visitante da Universidade George Washington (EUA). “Esses gestos permitem-lhes melhores posições para desembainhar a arma mais rapidamente” e reagir com eficácia a tudo o que aconteça.

Entre as “armas psicológicas” a que os sul-coreanos recorrem para tentar fragilizar os do Norte constam também… óculos de sol. Há quem diga que os sul-coreanos usam-nos para esconder as emoções e evitar contacto visual com o inimigo. “Talvez haja outras razões”, diz o professor Kim. “Pode intimidar-se os inimigos e olhar para qualquer lado sem que os soldados norte-coreanos o percebam.”

Igualmente, a forma como os militares se posicionam na Área de Segurança Conjunta dá azo a interpretações várias. Muitas vezes, os sul-coreanos colocam-se à esquina dos edifícios e os norte-coreanos de costas para o Sul. Diz-se que os sul-coreanos preocupam-se especialmente com uma possível escalada da situação. Atentos e à esquina, podem antecipar qualquer confronto e ter cobertura atrás dos edifícios no caso de serem alvejados.

Quanto aos norte-coreanos, ao virarem as costas para Sul mostram lealdade ao Norte e revelam uma preocupação maior — as deserções de militares ou civis norte-coreanos. O último caso conhecido aconteceu a 13 de novembro de 2017, quando um militar norte-coreano lançou-se na direção do Sul — primeiro de jipe e depois a correr a pé —, foi ferido a tiro pelos compatriotas e acabou por ser resgatado pelos sul-coreanos.

De um lado e do outro, gigantescos altifalantes tentam desmoralizar os guardas fronteiriços e incentivar a deserções, debitando mensagens sobre a maravilha que é viver num e noutro lado. Os do Norte difundem música marcial, os do Sul respondem com K-Pop, o estilo sul-coreano mundialmente famoso mas proibido na Coreia do Norte.

“Há uns dez anos, levei o escritor norte-americano Robert Coover, que na altura vivia na Catalunha, à zona desmilitarizada”, conta o professor Kim. “A dada altura, ele disse: ‘Isto parece uma encenação de um espetáculo político’.” Como se os soldados fossem atores num parque temático.

A Área de Segurança Conjunta é o único troço da zona desmilitarizada (DMZ, sigla em inglês) onde não há arame farpado nem minas no solo. A DMZ é uma ampla “terra de ninguém”, de 248 quilómetros de comprimento por quatro de largura, fortificada com vedações, torres de vigia e campos minados, concebida para servir de tampão a grandes concentrações de tropas e armamento pesado.

Segundo o livro “The Two Koreas — A contemporary history”, de Don Oberdorfer e Robert Carlin (2014), “atrás das fortificações estão duas das maiores concentrações militares em todo o mundo — 1,1 milhões de norte-coreanos voltados para 660 mil sul-coreanos e 28 mil norte-americanos”. Coreia do Norte e Estados Unidos são potências nucleares.

Esse “buraco” na cerca que divide os dois países fica na aldeia de Panmunjom (hoje desabitada), onde foi assinado o Armistício que pôs fim a três anos de guerra entre Norte e Sul (1950-1953). É num dos seus edifícios — a Casa da Paz — que, esta sexta-feira, se encontrarão, cara a cara, o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, e o líder norte-coreano, Kim Jong-un. Será a primeira vez que um líder norte-coreano atravessará o paralelo 38, a fronteira.

No chão da Área de Segurança Conjunta, uma linha em cimento assinala a fronteira política entre os dois países. Essa divisão tem na sua origem um episódio trágico, já lá vão mais de 40 anos. Na manhã de 18 de agosto de 1976, na borda oeste da Área de Segurança Conjunta, cinco trabalhadores sul-coreanos, protegidos por dez militares norte-americanos e sul-coreanos aproximaram-se de um álamo com o intuito de aparar os ramos que obstruíam a vista entre dois postos de vigia do Sul.

Militares norte-coreanos aproximaram-se e levantaram objeções. Um capitão americano, Arthur Bonifas, que estava a três dias de terminar missão na península coreana, ignorou o protesto, mesmo após os norte-coreanos chamarem reforços. Foi derrubado por um golpe de karaté e espancado até à morte por meia dúzia de norte-coreanos, tal como aconteceu ao tenente Mark Barrett. Foram as primeiras mortes na Área de Segurança Conjunta desde o seu estabelecimento, em 1953. Para evitar mais incidentes, as partes acordaram, então, a divisão do local por uma Linha de Demarcação Militar, que não pode ser ultrapassada.

Sobre a linha de cimento ergueram-se cinco edifícios que funcionam como salas de conferência. Pelos vidros das janelas, uns e outros observam e fotografam o que se passa no interior, especialmente em dias de visitas importantes.

Um dos edifícios sobre a linha de fronteira é a sala de Conferência da Comissão Militar de Armistício onde, pontualmente e ao sabor da conjuntura política, as partes se reúnem para discutir assuntos militares, políticos e logísticos. A mesa é atravessada pela Linha de Demarcação Militar.

Esta sala é de visita obrigatória para os muitos turistas que, vindos do Norte ou do Sul, acorrem a Panmunjom em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”. Na prática, no seu interior podem cruzar a fronteira, ainda que por pouco mais de um metro, andando apenas de um lado para o outro.

Aldeias para coreano ver

Ao longo dos anos, Panmunjom tem funcionado como um barómetro da relação entre Pyongyang e Seul. É lá que, pontualmente, se encontram emissários dos dois lados e é por lá também que têm cruzado a fronteira delegações oficiais, suprimentos de emergência (para responder a situações de fome ou catástrofes naturais, no Norte), prisioneiros entretanto libertados ou mediadores internacionais.

Nos termos do Armistício está proibida qualquer atividade civil dentro da zona desmilitarizada, exceto em duas pequenas localidades: do lado sul-coreano, Daeseong-dong, onde os moradores não pagam impostos, vivem sob rigoroso recolher obrigatório e saem para os arrozais com escolta armada; e, do lado norte-coreano, Kijongdong, construída nos anos 50 para aliciar desertores, com elegantes prédios de apartamentos, mas onde não vive vivalma. Os do Sul dizem tratar-se de uma “aldeia de propaganda”.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 26 de abril de 2018 e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui

Tiro de partida para o encontro Kim-Trump

A cimeira de Panmunjom vai desbravar terreno para a reunião EUA-Coreia do Norte. E talvez anunciar o fim da guerra na península

Sessenta e cinco anos depois, a Guerra da Coreia pode estar prestes a terminar — oficialmente. As armas calaram-se em 1953 e, na aldeia sul-coreana de Panmunjom, foi assinado um armistício, mas nunca as Coreias selaram a paz entre ambas com um tratado. “Com a possibilidade de uma cimeira entre Donald Trump [Presidente dos EUA] e Kim Jong-un [lí- der da Coreia do Norte], acredito que existam condições para, simbolicamente, se estabelecer o fim do conflito”, disse ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei (Japão). “Esse gesto poderá desencadear novos entendimentos e ideias sobre como as Coreias poderão coexistir pacificamente.”

Na próxima sexta-feira, as lideranças das duas Coreias regressam à chamada “aldeia da trégua”. “O armistício que se arrasta há 65 anos deve acabar. Assim que o fim da guerra for declarado, devemos procurar assinar um tratado de paz”, defendeu, na quinta-feira, o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in. Nesse dia, foi criada uma “linha direta” entre o gabinete de Moon, no Sul, e a Comissão para os Assuntos de Estado, presidida por Kim, no Norte.

A cimeira de sexta-feira será apenas a terceira, ao mais alto nível, desde a divisão da península. A primeira realizou-se em 2000, entre Kim Jong-il, pai do atual líder norte-coreano, e Kim Dae-jung, que receberia o Nobel da Paz. A segunda ocorreu em 2007, entre Kim Jong-il e Roh Moo-hyun, um dos Presidentes sul-coreanos caídos em desgraça após deixarem a Casa Azul — terminou o mandato em 2008 e suicidou-se em 2009. Ambas se realizaram na capital norte-coreana, Pyongyang, o que faz com que Kim Jong-un esteja prestes a tornar-se o primeiro líder norte-coreano a atravessar o paralelo 38.

Sob o lema “Paz, um novo começo”, a cimeira em Panmunjom será “o pontapé de saída” de um jogo cuja segunda parte será “disputada” entre Coreia do Norte e EUA. “Temos de tentar que a cimeira intercoreana seja um bom começo, para que a cimeira entre Washington e Pyongyang tenha uma boa conclusão”, defendeu o chefe de Estado sul-coreano.

Virar costas, com respeito

Kim e Trump têm uma reunião apalavrada para fins de maio, inícios de junho. “Neste momento, discute-se o possível local da cimeira”, diz Rui Saraiva. “Falou-se de Pequim, que daria protagonismo à China, ou na zona desmilitarizada, que elevaria o papel da Coreia do Sul. Uma das opções favoritas dos americanos é uma embarcação em águas internacionais. Fala-se também no terreno neutro da Suíça, onde Kim Jong-un viveu e estudou. Trump vai querer um sítio que lhe dê o centro das atenções, mas Moon Jae-in e Xi Jinping [Presidente chinês] foram fundamentais em todo este processo.”

Esta semana, Trump confirmou contactos diretos “a um nível extremamente alto” entre Washington e Pyongyang. Foi noticiada uma visita à Coreia do Norte de Mike Pompeo — o diretor da CIA que aguarda confirmação como secretário de Estado — e um encontro com Kim Jong-un. “Não é algo impensável”, diz Rui Saraiva. “Em 2000, Madeleine Albright [secretária de Estado de Bill Clinton] visitou Pyongyang e encontrou-se com Kim Jong-il.”

Quando e onde quer que a cimeira aconteça, Trump já disse ao que vai. “Nunca estivemos numa posição como esta em relação àquele regime. Se vir que não vai ser um encontro frutuoso não vamos. Se durante o encontro não houver resultados abandonarei a reunião de forma respeitosa.”

(Foto: Donald Trump e Kim Jong-un, com os penteados trocados. Grafitis do artista australiano Lush Sux, nos pilares de uma ponte, em Viena BWAG / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 21 de abril de 2018