Arquivo de etiquetas: Coreia do Norte

EUA e Coreia do Norte voltam aos “tempos da guerra”

Pyongyang encerrou o único canal de comunicação diplomática com Washington. Os norte-coreanos reagiram mal a um novo pacote de sanções que, pela primeira vez, visa o líder Kim Jong Un e penaliza violações aos direitos humanos

A Coreia do Norte decretou o encerramento do único canal diplomático com os Estados Unidos, que funcionava na missão norte-coreana na ONU. A decisão segue-se à aprovação de um pacote de sanções por parte do Departamento do Tesouro norte-americano, na semana passada, que visa pessoalmente, e pela primeira vez, o líder norte-coreano, Kim Jong-un.

Pyongyang recebeu o anúncio de novas sanções como uma declaração de guerra. Segundo a agência noticiosa estatal norte-coreana (KCNA), o regime decretou que, no futuro, as relações entre a República Popular Democrática da Coreia e os Estados Unidos serão reguladas pela “lei dos tempos da guerra” e que “a questão dos detidos norte-americanos não será exceção”.

Este ano, a Coreia do Norte condenou o estudante americano Otto Frederick Warmbier a 15 anos de trabalhos forçados, acusado de remoção de uma insígnia política de um hotel. Um outro caso envolve um cidadão sul-coreano nascido nos Estados Unidos, Kim Dong Chul, condenado a 10 anos de trabalhos forçados por subversão e espionagem.

“O Governo da República Popular Democrática da Coreia [RPDC] enviou ao Governo dos EUA uma mensagem a 10 de julho através da sua missão permanente na ONU relativa ao facto de os EUA recentemente terem debilitado a dignidade da liderança suprema do país divulgando aquilo que eles designam de ‘relatório sobre direitos humanos’ e de ‘listas de alvos de sanções especiais’ relacionadas com a RPDC”, noticiou a agência norte-coreana.

Relação não oficial

Oficialmente, Estados Unidos e Coreia do Norte nunca tiveram relações diplomáticas — a Coreia do Norte nasceu da divisão da península coreana na sequência da guerra com a parte sul (1950-1953). Mas os dois países tinham um ponto de contacto.

A relação azedou com a publicação do relatório “Abusos graves dos direitos humanos ou censura na Coreia do Norte”, do Departamento de Estado norte-americano, a 6 de julho passado.

Os EUA consideraram o Líder Supremo Kim Jong-un “o responsável, em última instância”, por “abusos notórios dos direitos humanos”. São denunciados “dez outros indivíduos e cinco entidades”, entre elas o Ministério da Segurança, que segundo a Administração Obama superintende campos de concentração e outros centros de detenção, onde são práticas a tortura, execuções, estupros, situações de fome e trabalhos forçados.

No passado, o regime norte-coreano já tinha sido alvo de sanções em virtude de atividades relacionadas com o seu programa nuclear. Mas nunca por questões relativas aos direitos humanos. “Os Estados Unidos são totalmente responsáveis pelas coisas desagradáveis que vierem a seguir-se a nível bilateral”, alertou Pyongyang.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de julho de 2016. Pode ser consultado aqui

Coreia do Norte diz que testou a bomba H, mas há dúvidas

A Coreia do Norte acaba de aceder ao “grupo dos Estados nucleares avançados”, garantem as autoridades de Pyongyang. A realização de um teste nuclear, esta quarta-feira, não está em causa. Mas especialistas duvidam que tenha envolvido uma bomba de hidrogénio, como os norte-coreanos reclamam

A Coreia do Norte tem uma capacidade única de acordar o mundo em sobressalto. Em virtude da diferença horária, quando grande parte do planeta está a despertar do sono, já o dia vai lançado no país. E quando um líder como Kim Jong-un decide fazer jus à sua megalomania, a abertura dos noticiários internacionais está garantida.

Foi o que aconteceu esta quarta-feira quando, às primeiras horas da manhã em Portugal, foi conhecida a realização, na Coreia do Norte, de um teste envolvendo um dispositivo nuclear de hidrogénio miniaturizado. Segundo a agência oficial KCNA, o ensaio nuclear — o quarto desde 2006 — aconteceu às 10 horas locais (uma e meia da madrugada em Lisboa).

“Esta é a medida de auto-defesa que temos de tomar para defender o nosso direito de viver em face das ameaças nucleares e chantagens por parte dos Estados Unidos e para garantirmos a segurança da península coreana”, justificou a apresentadora da televisão estatal norte-coreana. “Não vamos desistir de um programa nuclear, enquanto os EUA mantiverem a sua postura agressiva.”

Coreia do Sul pede mais sanções

O Conselho de Segurança da ONU reuniu-se de urgência para discutir este aparente significativo avanço das ambições militares norte-coreanas. Park Geun-hye, a Presidente da Coreia do Sul — com quem o Norte continua tecnicamente em guerra desde 1953, quando foi assinado um armistício mas não um tratado de paz após a Guerra da Coreia —, instou a comunidade internacional a adotar sanções mais duras contra a Coreia do Norte.

Pyongyang garante que a detonação da bomba de hidrogénio (bomba H) coloca o país “no grupo dos Estados nucleares avançados”. Mas, na região, especialistas questionam os componentes usados no ensaio, defendendo que a atividade sísmica detetada no sítio de testes de Punggye-ri (nordeste) — 5.1 na escala de Richter — sugere a utilização de um dispositivo menos potente.

Citado pelo jornal “The Japan Times”, o australiano Crispin Rovere, especialista em política nuclear e controlo de armas, afirmou: “A informação sísmica recebida indica que a explosão é significativamente mais baixa do que a que seria de esperar de um teste com a bomba H. O que me parece é que eles realizaram com sucesso um teste nuclear, mas não conseguiram completar a explosão de hidrogénio”.

Uma bomba de hidrogénio — também designada bomba termonuclear — tem um poder muito mais destruidor do que as bombas atómicas despejadas pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. Enquanto estas baseavam-se em reações de fissão de elementos radioativos (urânio e plutónio respetivamente), a bomba H baseia-se numa reação de fusão de isótopos do hidrogénio, libertando quase mil vezes mais energia.

A bomba H nunca foi usada em tempo de guerra. A única vez que foi detonada foi a 1 de novembro de 1952, no atol de Eniwetok (Ilhas Marshall). Nesse ensaio (operação Ivy), a bomba teve um poder de explosão de cerca de 10 milhões de toneladas de TNT, sensivelmente 700 vezes o poder da bomba de Hiroshima.

A Coreia do Norte é, oficialmente, uma potência nuclear desde que, a 9 de outubro de 2006, realizou o seu primeiro ensaio atómico. Nessa altura, já se havia retirado do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1970. Fê-lo a 10 de janeiro de 2003, após os EUA terem acusado Pyongyang de possuírem um programa secreto de enriquecimento de urânio.

Do “clube do nuclear”, fazem mais sete países: os cinco Estados permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China), a Índia e o Paquistão. A nona potência, não declarada, é Israel. Os três últimos não subscrevem o TNP.

O teste hoje anunciado por Pyongyang aconteceu dois dias antes do 32º aniversário de Kim Jong-un, no poder há quatro anos. Analistas referem que o líder norte-coreano busca um grande feito para dar visibilidade ao sétimo congresso do Partido dos Trabalhadores da Coreia, marcado para maio — o partido no poder já não reune em congresso há 36 anos.

“Não creio que tenha sido um teste com uma bomba H. A explosão teria de ser maior”, disse Choi Kang, vice-presidente do Instituto Asan de Estudos Políticos, sedeado em Seul (Coreia do Sul), citado pelo diário “The Japan Times”. “Eu acho que eles estão a disfarçar o teste realizado, porque recentemente Kim Jong-un falou do assunto.”

No mês passado, durante uma inspeção militar, o líder norte-coreano sugeriu que o país já tinha desenvolvido a bomba H. Fora de portas — então, como agora —, o anúncio foi acolhido com ceticismo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 6 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui

Coreia do Norte confirma. Quem “erra” é condenado a trabalhos forçados

O líder norte-coreano não é visto em público há cerca de um mês. Adensam-se os rumores sobre o seu estado de saúde. Na ausência de Kim Jong-un, um representante norte-coreano junto da ONU admitiu em Nova Iorque que no país se “reeducam” aqueles que erram em “campos de trabalho”

A Coreia do Norte admitiu, pela primeira vez, a existência de campos de trabalhos forçados no território. “Tanto na lei como na prática, reeducamos através de campos de trabalho — e não centros de detenção — onde as pessoas são mentalmente melhoradas e refletem sobre os seus erros”, disse Choe Myong Nam, responsável do ministério dos Negócios Estrangeiros e representante do país junto das Nações Unidas.

A afirmação foi feita durante um raro encontro com jornalistas, em Nova Iorque, e surge como uma tentativa de resposta a um duro relatório das Nações Unidas sobre os direitos humanos na Coreia do Norte, divulgado em fevereiro. O texto alertava para casos concretos de “extermínio, assassinato, escravatura, tortura, detenção, violação, abortos forçados e outro tipos de violência sexual”, ilustrados por relatos atrozes — como a mulher que foi obrigada a afogar o filho ou os presos forçados a cavar as suas sepulturas para depois serem mortos com marteladas no pescoço.

No encontro com a imprensa em Nova Iorque, o responsável norte-coreano evitou responder a perguntas sobre a saúde do líder norte-coreano,Kim Jong-un, que não é visto em público há cerca de um mês, o que tem dado azo a especulações.

No domingo, o chefe de Estado norte-coreano — um confesso amante de desporto — esteve ausente da receção aos atletas que participaram nos Jogos Asiáticos, que se realizaram em Incheon, na vizinha — e rival — Coreia do Sul, com quem o Norte continua tecnicamente em guerra desde 1953.

“Centenas de milhar de pessoas”, segundo a agência noticiosa norte-coreana, saudaram, na berma das ruas de Pyongyang, a delegação de 150 atletas que conquistou 11 medalhas de ouro e 25 de prata e bronze, naquela que foi a melhor participação do país na competição desde 1990. Uma celebração nacional à qual Kim Jong-un faltou.

Na véspera, o general Hwang Pyong-so, tido no estrangeiro como o número dois do regime norte-coreano, encabeçara a delegação que se deslocou à Coreia do Sul — oficialmente para assistir à cerimónia de encerramento dos Jogos Asiáticos, oficiosamente, diz-se, com motivações políticas.

Os rumores acerca do estado de saúde de Kim Jong-un dispararam a 25 de setembro quando o Presidente falhou, pela primeira vez em três anos de poder, uma sessão da Assembleia Suprema do Povo, o Parlamento norte-coreano. Então, a televisão estatal noticiou que a ausência se devia a um “desconforto físico”.

A norte, a saúde do Presidente é um tabu, mas na parte sul da península, a agência Yonhap informou que Kim Jong-un, de 31 anos, padece de gota. Está lançado o debate sobre quem, realmente, está ao comando do país mais isolado do mundo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de outubro de 2014. Pode ser consultado aqui

O “Querido Líder” morreu, viva o “Grande Sucessor”!

Kim Jong-il sai de cena e deixa como herdeiro um filho de 29 anos. Haverá luta pelo poder? Endurecimento do regime? Perestroika?

Kim Jong-un, líder supremo norte-coreano PIXABAY

Um jovem de 29 anos, sem experiência política nem carreira militar, à frente de um país dotado de armas nucleares e considerado ‘pária’ a nível internacional é caso para inquietar os quatro cantos do mundo. É o que se passa na Coreia do Norte onde, após a morte do líder Kim Jong-il, na sequência de um ataque cardíaco, faz hoje uma semana — o funeral será só na próxima quarta-feira —, o seu filho Kim Jong-un foi confirmado na liderança do país.

“Surpreender-me-ia pouco se, tal como o seu pai, Kim Jong-un demorasse alguns anos a consolidar o poder. Kim Jong-il não liderava sozinho. Fazia parte de um triunvirato, partilhando o poder com um chefe do Governo e um presidente do Parlamento”, comentou ao Expresso Armando Marques Guedes, professor de Geopolítica no Instituto de Estudos Superiores Militares.

Apesar de a Coreia do Norte ter uma imagem monolítica, o aparelho político pode ser a chave para impedir que o país se torne um joguete nas mãos de um imaturo membro da dinastia Kim — que governa a República Democrática da Coreia desde a sua criação, em 1948.

Kim Jong-un herda do seu excêntrico e mitómano pai — promovia a ideia de que não tomava banho porque o seu corpo não produzia fezes — um país ‘de ficção’. A Coreia do Norte é o último regime estalinista puro à face da Terra. Em solidariedade, Cuba decretou três dias de luto e o Partido Comunista Português “expressou condolências ao povo coreano”.

Dotado de um arsenal nuclear — o hermetismo do país leva a especulação a oscilar entre seis e 12 bombas — e de um exército com 1,2 milhões de homens, é também um país com dificuldades em alimentar a sua população (24 milhões de pessoas) — a superfície arável é escassa e com a desagregação da URSS, a Coreia do Norte perdeu o seu principal parceiro comercial.

Kim Il-sung fizera assentar o desenvolvimento do país no conceito de juche (“autossuficiência”) mas crises cíclicas de má gestão combinadas com inundações gigantescas em meados da década de 1990 arruinaram a economia e mataram à fome estima-se que entre 5% a 10% da população. “Kim Jong-il adotou uma ‘economia socialista de mercado’ e começou um processo acelerado de exigência de ajudas alimentares externa. Obteve-a — quantas vezes sob ameaça — de uma Coreia do Sul então como hoje de vento em popa economicamente falando, e ainda negociando com a China e os EUA em condições de extrema dureza”, refere Armando Marques Guedes. “No início do milénio, Kim Jong-il conseguira delinear uma nova política externa com reatamento de relações com a Coreia do Sul e algumas concessões táticas aos EUA, mantendo sobre ambos enormes pressões político-militares, designadamente a obtenção, em 1994, de armas nucleares.”

Bolachas para alimentar o povo

Durante a última ronda de conversações, na semana passada, em Pequim, entre os EUA e a Coreia do Norte, ficou patente a ansiedade norte-coreana em garantir dos norte-americanos o fornecimento de 20 mil toneladas mensais de bolachas e barras de cereais, durante um ano. Em contrapartida, Pyongyang faria cedências ao nível do seu programa nuclear e regressaria à mesa das negociações a Seis (EUA, Rússia, China, Japão e Coreias), iniciadas após a saída da Coreia do Norte do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em 2003.

Desde que, em 2002, George W. Bush inscreveu a Coreia do Norte no “eixo do mal” que Pyongyang teme ser a etapa seguinte de um ‘ajuste de contas’ iniciado no Iraque. Porém, é o interminável conflito com o vizinho a sul que consome recursos e alimenta paranoias.

“Um conflito com os sul-coreanos seria devastador para estes últimos, caso tivesse (como tudo indica) uma dimensão não-convencional, que incluísse armas de destruição maciça. Seul está facilmente ao alcance dos mísseis de Pyongyang. Seria também catastrófico para o regime norte-coreano, tendo em vista a garantia de segurança norte-americana e a presença robusta de forças de Washington na região”, explica o professor.

Na segunda-feira, Barack Obama falou com o seu homólogo sul-coreano, Lee Myung-bak, e reafirmou “o forte compromisso dos EUA para com a segurança do nosso aliado próximo”. Os EUA têm 30 mil homens em solo sul-coreano. “Pyongyang não tem forças militares capazes de fazer frente a nenhum dos dois adversários”, diz Marques Guedes. “O que tem é uma disponibilidade maior do que a de qualquer deles em absorver perdas num eventual conflito. E colocou-se progressivamente na posição de ter de criar ameaças periódicas que tornem claro esse diferencial de disponibilidade.” De tempos a tempos, o alerta dispara nas Coreias, ora a propósito de atritos navais ora devido ao disparo intimidatório de mísseis.

“O regime norte-coreano aprendeu a manipular essa capacidade em assumir riscos impensáveis para os adversários e dela extrair ganhos, pondo em cheque a sua população, sem hesitações. Os vizinhos veem-se na contingência de conceder apoios cada vez maiores pela esperança que nutrem em ver o Estado-Partido implodir, o que só acontecerá quando deixar de conseguir controlar a população por intermédio de expedientes ideológicos dia a dia mais surreais; e se, em simultâneo, deixar de conseguir exportar tecnologia termonuclear num mercado internacional em expansão. O Estado norte-coreano constitui uma ameaça global. Logrou transformar-se numa espécie de bombista-suicida coletivo disposto a irradiar destruição ao seu redor.”

UM APAIXONADO
POR BASQUETEBOL,
UMA INCÓGNITA NA POLÍTICA

Kim Jong-un nasceu em janeiro de 1983 — tem, por isso, 28 anos. Mas por conveniência do regime, ‘foi envelhecido’ um ano. A campanha de propaganda desenvolvida pelo Partido dos Trabalhadores — o único partido na Coreia do Norte — elegeu 2012 como o ano em que o país se converterá numa “nação forte e próspera” e Pyongyang quer que essa conquista coincida com o 30º aniversário do novo líder. Oficialmente nascido em janeiro de 1982, Kim Jong-un é o mais novo de três filhos de Kim Jong-il. A mãe, Ko Young-hee, era uma bailarina de ascendência coreana, nascida em Osaca (Japão). Faleceu em 2004, estima-se que de cancro da mama. O novo líder norte-coreano estudou no Colégio de Steinhoelzli, na Suíça, onde era conhecido pelo nome Pak Un. Colegas de então enumeram o gosto pelo basquetebol — era fã dos Chicago Bulls — e pelos filmes de Jackie Chan. Em 2009, um ano após o pai ter sofrido uma apoplexia que acelerou o processo de sucessão, foi designado “brilhante camarada” pelo pai. Ingressou na carreira militar e foi graduado general de quatro estrelas, o que causou algum desagrado nas altas patentes. Com a morte do pai (o “querido líder”), ganhou o epíteto de “grande sucessor”. Impreparado para o cargo, há quem aponte o tio, Jang Song-thaek, como o líder de facto.

GUERRA E PAZ NA PENÍNSULA

1983 — A 9 de outubro, o Presidente da Coreia do Sul, Chun Doo-hwan, é alvo de um atentado, durante uma visita à Birmânia. Um dos bombistas confessou ser um militar norte-coreano

1990 — A 3 de março, é detetado um túnel cavado pelos norte-coreanos sob a Zona Desmilitarizada. Foi a quarta descoberta desde 1974

1991 — A 17 de setembro, a República da Coreia (sul) e a República Popular Democrática da Coreia (norte) aderem às Nações Unidas

2000 — Primeira cimeira interpresidencial

2003 — A Coreia do Norte retira-se do Tratado de Não-Proliferação Nuclear

2006 — A Coreia do Norte testa o míssil Taepodong-2, de longo alcance

2007 — Comboios de passageiros cruzam a fronteira entre as Coreias, pela primeira vez em 56 anos

2010 — Afundamento do navio de guerra sul-coreano “Cheonan”, a 26 de março, no mar Amarelo. O ataque, atribuído à Coreia do Norte, matou 46 marinheiros

Artigo publicado no Expresso, a 23 de dezembro de 2011

Coreia do Norte é uma espécie de bombista suicida coletivo

Kim Jong-un levará algum tempo a consolidar a sua liderança, diz Armando Marques Guedes, professor de Geopolítica no Instituto de Estudos Superiores Militares. Disposta a “irradiar destruição ao seu redor”, a Coreia do Norte constitui “uma ameaça global”. Entrevista

Kim Il-sung, Kim Jong-il e Kim Jong-un WIKIMEDIA COMMONS

Que marca deixou Kim Jong-il na Coreia do Norte?
O processo de transição foi complicado, por vezes mesmo turbulento, devido às mudanças que, a par e passo, foram ocorrendo num sistema que já era, à partida, complexo. Kim Il-sung, o seu pai, fundador e chefe de Estado norte-coreano morreu em 1994. A transição começara alguns anos antes, mas revelou-se difícil. É tido como consensual que só três anos depois Kim Jong-il conseguiu consolidar a sua posição de liderança. O que significou tornar-se secretário-geral do Partido dos Trabalhadores da Coreia e, mais importante, presidente da Comissão de Defesa Nacional, uma entidade então declarada como o posto de topo no país — uma vez que, nesse mesmo ano de 1998, a Assembleia Popular Suprema declarou extinto o lugar de Presidente da República Popular e Democrática da Coreia, em memória e por respeito a seu pai, Kim Il-sung, que postumamente então se tornou no “Presidente Eterno”.

E após essa transição?
Ao contrário do seu pai, Kim Jong-il não liderava, formalmente, sozinho. Fazia antes parte de um triunvirato, partilhando o poder com um chefe do Governo e um presidente do Parlamento. Na prática, porém, Kim Jong-il, o “Querido Líder”, ou “Querido Pai”, tal como antes dele o seu pai, manteve pelo menos desde 1998 um controlo político absoluto em todos os domínios. Cada cinco anos viu-se reconduzido nos lugares que ocupava por unanimidade, em eleições que a Constituição não exigia. Nos termos das mudanças ocorridas no sistema de governo do país, fê-lo representando sempre um eleitorado militar, dadas as suas funções no novo sistema de governo norte-coreano — um sistema no qual a distinção entre o poder formal e o informal é, ao mesmo tempo, marcadíssima e pouco relevante ter, sobretudo, uma alçada simbólica.

E qual o legado económico de Kim Jong-il?
A governação económica de Kim Jong-il viu-se prejudicada por crises cíclicas de má gestão, agravadas por repetidas e gigantescas inundações que, em meados dos anos 1990, virtualmente destruíram a economia agrícola de subsistência existente no pequeno país com pouca superfície arável. Kim depressa adoptou uma “economia socialista de mercado”, e começou um processo acelerado de exigência de ajudas alimentares externa. Obteve-a, quantas vezes sob ameaça, de uma Coreia do Sul então como hoje de vento em popa, e ainda negociando com a China e os Estados Unidos em condições de extrema dureza. Em inícios do milénio, Kim Jong-il conseguira delinear uma nova política externa que incluiu o reatamento de relações com a Coreia do Sul e algumas concessões tácticas aos Estados Unidos — mantendo sempre sobre ambos enormes pressões político-militares, designadamente a obtenção, em 1994, de armas nucleares.

E ao nível da política externa?
Externamente, Kim Jong-il manteve o seu controlo do Estado por meio de chantagens e desafios político-militares sucessivos, beneficiando sempre do apoio da vizinha China. A obtenção de armas nucleares permitiram-lhe lograr as famosas e polémicas, mesmo internamente, “Negociações de Seis Parceiros” com a China, o Japão, a Rússia, os Estados Unidos e a Coreia do Sul. Internamente, segurou com firmeza as rédeas do país e da população recorrendo a um misto de repressão sistemática (considera-se haver 200 mil prisioneiros políticos na República Democrática e Popular da Coreia) e pela sofisticação de um “culto da personalidade” que se alimentou por via de regra de imagens paternalistas de reportório (e porventura natureza) ‘mágico-religioso’, imagens essas persistentemente utilizadas em todos os aspectos do dia a dia, de uma ética neo-Confuciana inculcada pelo sistema de ensino e pelos media, e pela enunciação constante da eminência de agressões externas – a que a presença, na vizinha Coreia do Sul, de 30 mil soldados norte-americanos e de parte do arsenal nuclear de Washington forneciam alguma plausibilidade.

Seul ao alcance dos mísseis norte-coreanos

Um conflito com a Coreia do Sul é, hoje, o principal trauma norte-coreano?
Um conflito com os sul-coreanos seria devastador para estes últimos, caso tivesse (como tudo indica) uma dimensão não-convencional, que incluísse armas de destruição em massa. Seul está facilmente ao alcance dos mísseis de Pyongyang. Seria também catastrófico para o regime norte-coreano, tendo em vista a garantia de segurança norte-americana e a presença robusta de forças de Washington na região. As ameaças sul-coreana e norte-americana ao regime norte-acoreano não são facilmente separáveis uma da outra. Em todo o caso, Pyongyang não tem forças militares capazes de fazer frente a nenhum dos dois adversários. O que tem, isso sim, é uma disponiblidade maior do que a de qualquer deles em absorver perdas num eventual conflito. E colocou-se progressivamente na posição de ter de criar ameaças periódicas que tornem claro esse diferencial de disponibilidade.

Qual o interesse da China na Coreia do Norte?
A posição geográfica e forma da península coreana têm sido objeto de leituras geopolíticas fascinantes. Antes e durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o Império Japonês em afirmação expansionista apelidou o país de “um punhal apontado ao coração do Japão”. E, de facto, a península historicamente tem funcionado como um corredor entre o continente e o arquipélago japonês, nas duas direções: foi por essa via que correu, a partir do século I DC grande parte da sinificação nipónica, foi por ela também, no sentido inverso, que o Japão nos anos 30 do século XX invadiu a China, como foi ainda por aí que a China e a União Soviética se degladiaram e dividiram a península na guerra de 1950-1953.

Seguiu-se a Guerra Fria…
Depois de 1945, e sobretudo com o início da Guerra Fria, este papel agudizou-se, face a uma China que se sentiu ameaçada por um enclausuramento crescente pelos norte-americanos e, depois de 1953, por uma ameaça dirigida ao coração do Império do Meio. A solução foi criar uma barreira difícil de transpor, a Coreia do Norte; para lá de eventuais afinidades político-ideológicas, a China encara em termos sobretudo geo-estratégicos a ligação que tem feito questão de manter com Pyongyang, que considera lhe fornece profundidade estratégica face ao ‘eixo Japão-Estados Unidos’.

E de que forma Pyongyang tem usado esse recurso?
O regime norte-coreano tem usado e abusado dessa posição geográfica privilegiada que tem — como barreira e como válvula de escape — para Pequim. O que tem permitido às elites do partido monolítico de Pyongyang uma inflação do seu poder, ancorada numa constante manipulação das vantagens e riscos que o posicionamento do pequeno Estado lhes concede. A parada tem vindo a subir de tom, na justa medida em que a Dinastia Kim e os seus apoiantes militares tudo tem feito para sustentar esse status quo geopolítico. Radica aqui todas as construções ideológicas norte-coreanas, do conceito de juche (auto-suficiência) a toda a parafernália simbólica que tem vindo a erigir par se legitimar internamente. O “complexo militar-industrial” norte-coreano tem-se mostrado tão exímio como implacável nessa escalada — sacrificando às suas ambições cada vez mais desmesuradas, sem aparentemente pestanejar, a população do pequeno Estado. Enquanto os múltiplos conflitos de interesses e a urgência de contenção recíproca das grandes potências que se defrontam nos palcos nordeste asiáticos se mantiverem, a polarização política interna e externa do Estado norte-coreano parece inescapável.

Nuclear é apólice de seguro para elites sem escrúpulos

E como surge o programa nuclear?
A nuclearização do regime de Pyongyang começou como um esforço chinês de garantir uma neutralização eficaz de ameaças externas e foi-se a pouco e pouco transmutando num mecanismo perigoso de sobrevivência de um regime incapaz de, por outros meios, se manter à tona. Hoje constitui uma espécie de apólice de seguro de elites sem escrúpulos apostadas a eternizar a sua supremacia — mesmo que a China venha a considerar o país um fardo político demasiado pesado, como crescentemente tem vindo a ser o caso.

George W. Bush inscreveu a Coreia do Norte no “eixo do mal”. Sente que o país é uma ameaça ao mundo?
A Administração Bush herdou das suas antecessoras a convicção de que o brinkmanship militar (agora nuclear) norte-coreano entrou numa escalada incontrolável. Com efeito, um ponto de não-retorno foi há muito atingido pelas elites no poder em Pyongyang. A sua sobrevivência depende integralmente da disponibilidade que manifestem, alto e bom som, para sofrer perdas maiores do que aquelas que os seus adversários estejam dispostos a incorrer. Pior, o regime norte-coreano aprendeu a manipular essa sua capacidade em assumir riscos impensáveis para os seus adversários e dela extrair ganhos, pondo em cheque a sua própria população sem quaisquer hesitações.

E como reagem os vizinhos?
Os vizinhos de Pyongyang (a China incluída) vêm-se em resultado na contingência de ir trocando os apoios cada vez maiores que lhe concedem pela esperança que nutrem em ver o Estado-Partido implodir — o que apenas terá lugar quando o regime deixar de conseguir controlar a população por intermédio de expedientes ideológicos dia a dia mais surreais; e se, em simultâneo, deixar de conseguir exportar tecnologia termonuclear num mercado internacional em expansão. Por outras palavras, o Estado norte-coreano constitui uma ameaça global pois logrou transformar-se numa espécie de bombista suicida coletivo disposto a irradiar destruição ao seu redor, e mesmo noutros lugares de um mundo mais à mão, num processo que ameaça derrubar em cascata os frágeis equilíbrios regionais e globais que o viabilizaram e lhe deram alento.

O que conhece de Kim Jong-un? Preocupa-o a sua impreparação para o cargo?
Kim Jong-un é o mais novo dos três filhos de Kim Jong-il. Viveu e estudou na Suíça. Em 2009, foi designado pelo seu pai como “Brilhante Camarada”. Na mesma data ingressou na carreira militar, sendo de imediato graduado como General de Quatro Estrelas. Quando da morte do seu pai foi designado, oficialmente, como “grande Sucessor”. Pouco se sabe sobre ele. Mas desde há pelo menos dois anos estava indigitado como herdeiro do poder e das funções de Kim Jong-il. Surpreender-me-ia pouco se, tal como o seu pai, Kim Jong Un demorasse alguns anos a consolidar o seu poder, num sistema político tão complexo e multi-dimensional como é o norte-coreano. Quaisquer vácuos de poder, mesmo se temporários, são preocupantes quando o que está em causa são os mecanismos de tomada de decisão numa potência nuclear.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de dezembro de 2011. Pode ser consultado aqui