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Coreia do Sul vai a votos: campanha marcada pelo preço do cebolinho e o surgimento de um ‘partido de protesto’

Os sul-coreanos escolhem, esta quarta-feira, o seu próximo Parlamento. Nos boletins de voto, haverá candidatos afetos a um novo partido antissistema que tem concentrado a insatisfação dos eleitores desiludidos com os partidos tradicionais. O custo de vida e a elevada inflação dos alimentos tornaram o cebolinho um dos protagonistas destas eleições legislativas

A visita de um chefe de Estado a um mercado, com os órgãos de informação atrás, é um momento que, à partida, não antecipa grande interesse para além do seu lado pitoresco. Mas na Coreia do Sul, a ida do Presidente Yoon Suk-yeol a um supermercado, num bairro de Seul, a 18 de março, originou grande polémica.

Junto à banca do cebolinho, o líder sul-coreano pegou num molho e disse: “Acho que 875 won [0,60€] por cebolinho é um preço razoável”. O comentário desencadeou um coro de críticas e tornou esta planta aromática um tema de campanha das eleições legislativas desta quarta-feira, com os líderes da oposição a usarem o episódio para acusar o Presidente de estar desfasado da realidade quotidiana dos cidadãos.

Rapidamente se apurou que na véspera, naquele mesmo espaço, o preço do cebolinho era de 1000 won (0,70€) e uma semana antes era vendido a 2760 won (1,90€). No próprio dia da visita de Yoon, o preço médio do cebolinho no comércio a retalho era de 3018 won (mais de 2€).

Para expor a discrepância de preços no mercado, políticos afetos à oposição desataram a comprar cebolinho a diferentes preços e a sugerir, com ironia, que o Presidente passasse a visitar os supermercados locais para controlar os preços.

Nas sondagens, o custo de vida e a elevada inflação dos alimentos surgem como grandes preocupações dos eleitores sul-coreanos. Na quarta maior economia asiática, o preço do cebolinho tornou-se assim uma arma de arremesso político.

As eleições desta quarta-feira visam eleger os 300 deputados que vão ter assento na Assembleia Nacional nos próximos quatro anos. A atual maioria parlamentar é afeta ao Partido Democrático (PD, centro-esquerda), que se opõe ao Partido do Poder Popular (PPP, conservador), do Presidente Yoon Suk-yeol.

O Presidente — que detém o poder executivo, já que na Coreia do Sul o sistema é presidencial — vai a caminho de metade do seu mandato, que será único por determinação constitucional. Ganhou as eleições presidenciais por escassos 0,73%, a margem mais magra da história do país, o que ditou um mandato de grande dificuldade. Estas eleições são vistas também como uma espécie de referendo à sua atuação.

“Ao longo dos últimos dois anos, o mandato tem sido marcado por uma forte oposição por parte da maioria simples no Parlamento, marcada por conflitos, obstruções legislativas e dificuldades na aprovação de orçamentos, a que se juntam vários escândalos e até um debate em torno da qualidade da democracia na Coreia do Sul”, diz ao Expresso Rita Durão, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

“Apesar do Presidente ter certos poderes independentes, reformas estruturais nas áreas da economia, educação, saúde ou do trabalho — que são cada vez mais pedidas pelos sul-coreanos e nomeadamente pelos mais jovens — necessitam de apoio dos dois maiores partidos.”

Outros temas quentes da campanha eleitoral foram a greve prolongada de milhares de médicos, em protesto contra o plano governamental de reforma do sector, a fraca taxa de crescimento demográfico da Coreia do Sul — que tem 52 milhões de habitantes e a taxa de fertilidade mais baixa do mundo — e também a corrupção.

Desde 1987, quando o país ascendeu ao clube das democracias, cinco Presidentes foram detidos, julgados ou condenados a penas de prisão, no âmbito de casos de corrupção.

Um dos casos mais recentes teve no centro a primeira dama. Kim Keon Hee foi filmada secretamente a receber uma mala Christian Dior no valor de 2200 dólares (pouco mais de 2000€). A lei anticorrupção sul-coreana proíbe os cônjuges de funcionários públicos de receberem presentes de valor superior a um milhão de won (680€).

Nas fileiras da oposição também se lida com o problema. Durante a campanha eleitoral, o líder do Partido Democrático, Lee Jae-myung, compareceu três vezes em tribunal para responder em processos por corrupção.

Novos partidos a tempo das eleições

A política sul-coreana tem sido amplamente dominada por dois partidos. Atualmente, o PPP detém a presidência e o PD goza de maioria simples na Assembleia Nacional. Em conjunto, têm quase 250 em 300 deputados. Mas o próximo Parlamento pode ser mais fragmentado.

A pensar nestas eleições, antigos líderes destas duas formações fundaram novos partidos. Em janeiro, foi fundado o Partido Nova Reforma, coliderado por um antigo presidente do PPP, Lee Jun-seok, e por um ex-primeiro-ministro, Lee Nak-yon. No mês seguinte, um grupo dissidente do PD liderado por um antigo primeiro-ministro, Lee Nak-yon, fundou o Partido Novo Futuro.

“Existe muita flexibilidade partidária na política sul-coreana, focada em líderes carismáticos, sem forte lealdade a um partido específico”, explica Rita Durão, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa. “Há, muitas vezes, partidos novos ou fusão de partidos durante o período de eleições.”

À semelhança de outros países, como Portugal, o descontentamento de muitos sul-coreanos relativamente ao modus operandi dos partidos tradicionais e de sucessivos escândalos que salpicam a classe política levou à emergência de um ‘partido de protesto’ — o Partido da Reconstrução da Coreia.

“Este partido tem vindo a subir nas sondagens devido à insatisfação generalizada com o Governo e a oposição que, muitas vezes, têm membros e líderes envolvidos em escândalos. A postura mais populista, ‘antigoverno’ ou ‘antissistema’ acaba por apelar aos eleitores cansados e desiludidos com o status quo do sistema político atual”, acrescenta a investigadora.

Pedras no sapato

Fundado há pouco mais de um mês, o novo partido é liderado por Cho Kuk, um antigo ministro da Justiça que enfrenta uma pena de dois anos de prisão por fraude. O político foi condenado por usar a sua influência para beneficiar de favores académicos, nomeadamente admissões universitárias para os seus filhos e interferir na investigação de um caso de corrupção.

A 8 de fevereiro, um tribunal de recurso confirmou a sentença aplicada em primeira instância. Segundo o jornal “The Korea Times”, a justiça “não colocou Cho sob detenção imediata, alegando baixo risco de fuga, poucas hipóteses de destruição de provas e a necessidade de garantir o seu direito de defesa”.

A Assembleia Nacional determinará a agenda da política interna para os próximos quatro anos, mas não será relevante ao nível da política externa, área que é da competência do Presidente. Após subir ao poder, Yoon Suk-yeol endureceu a relação com a Coreia do Norte.

“O atual Presidente tem sido fortemente criticado pela sua tendência em alinhar-se com os Estados Unidos (fortalecendo a aliança de segurança) e com o Japão (um caso muito delicado dadas as tensões entre os dois países por razões históricas), alienando e antagonizando a China (a parceira económica mais importante da Coreia do Sul)”, conclui Rita Durão.

“Independentemente do resultado eleitoral, a agenda da política externa de Yoon Suk-yeol vai permanecer inalterada.” Mas uma vitória do seu partido criará condições parlamentares para que governe sem estar refém de uma maioria adversa e possa deixar marca no país.

(FOTO Apoiantes do Partido Democrático, de oposição ao Presidente sul-coreano, numa ação de campanha, em Seul ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

Se o Norte provocar, o Sul “retaliará muitas vezes mais forte”: retórica da guerra é a tónica dominante entre as duas Coreias

Na península da Coreia, o sonho da reunificação esfumou-se. Norte e Sul multiplicam ameaças que parecem tornar a guerra uma questão de tempo. Enquanto Seul tem a proteção dos Estados Unidos, Pyongyang aproveita a necessidade de munições da Rússia para reforçar a sua indústria militar. Rita Durão, especialista em Relações Internacionais, detalha ao Expresso as razões para a retoma da tensão e também o que pode simbolizar as aparições públicas de Kim Jong-un na companhia da filha, ainda criança

Kim Jong-un e Yoon Suk-yeol ILUSTRAÇÃO DA REVISTA “NEWSWEEK”

Há seis anos, por esta altura, a península coreana estava a caminho de uma sucessão de cimeiras ao mais alto nível envolvendo as duas Coreias e os Estados Unidos que criou a ilusão de que a reconciliação coreana era possível.

Em Pyongyang mandava Kim Jong-un, como ainda hoje. Em Seul, governava Moon Jae-in, sensível ao tema por ser filho de refugiados norte-coreanos. E em Washington, era Presidente o imprevisível Donald Trump, que fez tábua rasa de décadas de prática diplomática norte-americana e tornou-se o primeiro Presidente dos Estados Unidos a pisar solo norte-coreano.

A ilusão foi breve e a realpolitik impôs-se. Hoje, como tem sido a tónica predominante nos últimos 70 anos, a tensão está de regresso à península, com o líder norte-coreano a orientar pessoalmente a realização de manobras militares e testes com mísseis.

Na terça-feira, a agência norte-coreana KCNA noticiava que Kim Jong-un supervisionou exercícios envolvendo “múltiplos lançadores de foguetes supergrandes” e defendeu ser necessário “convencer ainda mais os inimigos de que, se um conflito armado e uma guerra eclodirem, eles nunca poderão evitar consequências desastrosas”.

O principal inimigo da Coreia do Norte está identificado. A 15 de janeiro, num discurso na Assembleia Suprema do Povo (Parlamento), Kim Jong-un defendeu que a reunificação pacífica entre as Coreias — separadas desde 1953 — não era mais possível e que a Constituição do país deve ser revista para consagrar a Coreia do Sul como “inimigo principal e imutável”. E ameaçou:

“Se a República da Coreia [a do Sul] violar sequer 0,001 milímetro do nosso território terrestre, aéreo e marítimo, isso será considerado uma provocação de guerra”

Oito dias depois, a 23 de janeiro, imagens de satélite obtidas pela Airbus expuseram a destruição recente do Arco da Reunificação, um monumento icónico em Pyongyang que simbolizava a esperança na reconciliação.

A degradação da relação entre as Coreias “resulta de um conjunto de fatores e de vários intervenientes políticos que, década após década, têm falhado em desenhar uma abordagem realista para gerir a situação nuclear na península coreana”, explica ao Expresso Rita Durão, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

“Apesar do ambiente de paz vivido há uns anos, as cimeiras não resultaram no alívio de sanções que o regime norte-coreano esperava, nem num tratado de paz que pusesse fim à guerra na Coreia [1950-1953, concluída apenas com um armistício]”, continua. “A política norte-americana quanto a este assunto permaneceu focada na necessidade de desnuclearização da Coreia do Norte previamente a qualquer tipo de concessões.”

Novo Presidente, nova política

Paralelamente à prioridade que a questão coreana perdeu na agenda internacional — relegada para segundo plano por crises que impactaram fortemente o mundo como a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia —, também a mudança de Governo na Coreia do Sul alimentou o braço de ferro.

À ‘pomba’ Moon Jae-in (impedido de se recandidatar por lei), sucedeu o conservador Yoon Suk-yeol, empossado a 10 de maio de 2022, que endureceu o tom relativamente ao vizinho do Norte.

Agora que Kim Jong-un abandonou o objetivo de reunificação — algo que Rita Durão considera ser “uma mudança de política sem precedentes no âmbito das relações intercoreanas” —, o Presidente sul-coreano já respondeu na mesma moeda: se o Norte provocar, o Sul “retaliará muitas vezes mais forte”.

“Podemos interpretar os testes balísticos realizados pela Coreia do Norte não só como uma forma de consolidar e expandir o seu arsenal como qualquer outro Estado com capacidade nuclear, mas também como sinal de reinício do aumento de tensões para depois preparar um momento para negociações”, analisa Rita Durão, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa.

“Este momento para diálogo — a existir — poderá depender de vários fatores, nomeadamente o resultado das eleições presidenciais norte-americanas [a 5 de novembro] e das legislativas sul-coreanas [a 10 de abril], períodos durante os quais é já expectável que a Coreia do Norte aumente a tensão na península.”

O amigo americano

Na passada segunda-feira, o secretário de Estado norte-americano deslocou-se a Seul para participar na terceira edição da Cimeira para a Democracia, uma iniciativa de Joe Biden que reúne representantes de governos, organizações não-governamentais e membros da sociedade civil. Antony Blinken reuniu-se com Yoon Suk-yeol e reafirmou a “determinação contínua” dos dois países “face à retórica hostil e às atividades desestabilizadoras” da Coreia do Norte.

Os Estados Unidos têm cerca de 25 mil militares estacionados na Coreia do Sul. Na semana passada, os dois países terminaram os tradicionais exercícios militares anuais conjuntos, que duraram 11 dias e envolveram ações de interceção de mísseis e simulação de ataques aéreos. Este ano, o Freedom Shield, como se designa, estendeu-se por 48 exercícios de campo, o dobro da edição de 2023.

Horas antes da chegada de Blinken a Seul, o regime de Pyongyang disparou vários mísseis balísticos de curto alcance, que percorreram cerca de 300 quilómetros antes de cair no Mar do Japão.

E já com o norte-americano em solo sul-coreano, Kim Jong-un demonstrou que também ele valoriza alianças estratégicas e felicitou Vladimir Putin pela reeleição como Presidente da Federação Russa.

“Dar-lhe-ei firmemente as mãos enquanto atendemos às demandas dos tempos para proporcionar um novo ponto de viragem na amizade Rússia-Coreia do Norte, que tem longas raízes e tradições históricas”

(Excerto da nota enviada por Kim Jong-un a Vladimir Putin)

Coreia do Norte e Rússia partilham uma base ideológica comum que passa pela “luta contra a ordem liberal liderada pelos EUA, sendo estes últimos vistos como um ‘inimigo comum’”, diz Rita Durão. A guerra na Ucrânia acentuou o sentimento de identificação mútua ao colocar a Rússia no grupo das nações isoladas pelo mundo ocidental, onde já estava a Coreia do Norte.

A Rússia, neste momento, precisa de todas as munições que conseguir na guerra com a Ucrânia. Numa perspetiva norte-coreana, a economia beneficia do comércio de armas com a Rússia, mitigando o impacto das sanções e, ao mesmo tempo, assegura alguma assistência técnica russa no âmbito da expansão do programa balístico norte-coreano.”

Recentemente, Kim Jong-un surgiu num evento público numa limousine Aurus Senat, de fabrico russo, oferecida por Vladimir Putin, que usa este carro de luxo como veículo oficial.

Esta semana, um grupo de bailarinos russos pertencentes ao Teatro Mariinsky, de Vladivostok, apresentou em Pyongyang o ballet “A Bela Adormecida”. É o mais recente de uma série de intercâmbios com que Moscovo e Pyongyang querem afirmar a sua amizade.

Potência nuclear onde se morre à fome

A intensidade com que o regime de Pyongyang aposta na indústria de armamento para projetar poder conflitua com a grande vulnerabilidade socioeconómica do país, designadamente ao nível da segurança alimentar.

Fortemente isolado do resto do mundo, a Coreia do Norte descreve-se como um Estado socialista autossuficiente (ideologia Juche) e justifica a aposta no nuclear como uma necessidade para garantir a sobrevivência.

“A Coreia do Norte coloca a sua própria sobrevivência como prioridade máxima, sendo esta assegurada através da aposta no seu programa nuclear e balístico. Olha, por exemplo, para a Ucrânia como mais um caso de como um país que, após ter abandonado a sua capacidade nuclear, foi invadido. Nesse sentido, a economia da Coreia do Norte depende fortemente do sector militar e do comércio de armas, o que resulta numa alocação desproporcional de recursos para este sector em detrimento de outras áreas ligadas a suprir necessidades básicas e o bem-estar da população norte-coreana”, explica Rita Durão.

“Acaba por ser um círculo vicioso. A Coreia do Norte vê o programa nuclear como essencial à sua segurança e os recursos existentes são maioritariamente canalizados para esse sector. Porém, a aposta no programa resulta em sanções adicionais que servem, em última instância, a narrativa do regime de que o programa nuclear é, de facto, essencial à sua segurança, bem como a narrativa de autossuficiência”, acrescenta.

“Enquanto essa dinâmica persistir, a situação humanitária na Coreia do Norte continuará a ser relegada para segundo plano. Será talvez prudente que a comunidade internacional considere levantar algumas sanções — parte do motivo pelo qual o diálogo entre os EUA e a Coreia do Norte falhou foi exatamente neste âmbito —, dado que a eficácia das mesmas tem sido questionada ao longo do tempo”, defende a investigadora do IPRI.

Nos eventos públicos, seja numa simples visita de caráter social, seja em ambientes mais sensíveis, como exercícios militares, o líder norte-coreano, de 40 anos, surge, cada vez mais, na companhia de Kim Ju-ae, a filha, que terá à volta de 10 anos de idade.

“Tem-se especulado que as aparições públicas de Kim Jong-un com a filha podem indicar que o regime se encontra a preparar a sucessão hereditária, assegurando que a transição é feita progressivamente, com o propósito de mostrar continuidade da dinastia Kim”, conclui Rita Durão.

“Há dois aspetos relevantes a realçar. Em primeiro, a questão das normas de género na Coreia do Norte, um país muito patriarcal, pelo que a visibilidade de uma herdeira pode sugerir uma evolução ou tentativa de projetar uma Coreia do Norte aberta à incorporação da mulher em posições de poder (como, aliás, já se fala também em relação à irmã de Kim Jong-un).”

“Em segundo, a aparição da filha com o pai nomeadamente em visitas de âmbito militar (ligadas ao programa nuclear e balístico) poderá também servir o propósito de consolidar o poderio nuclear como algo que é irreversível na história da Coreia do Norte, servindo também para assegurar o futuro das futuras gerações.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Perfil de Yoon Suk-yeol. Novo Presidente promete inverter o rumo

Novato e conservador, quer ser duro com o vizinho do Norte. A 21 de maio recebe Joe Biden em Seul

O Presidente sul-coreano Yoon Suk-yeol e a primeira dama Kim Keon-hee de partida para uma viagem ao Cambodja, a 11 de novembro de 2022 FLICKR REPUBLIC OF KOREA

A tomada de posse do conservador Yoon Suk-yeol como Presidente da Coreia do Sul, terça-feira, augura uma nova era. O sucessor do liberal Moon Jae-in (impedido por lei de se recandidatar) venceu as eleições de 9 de março com um discurso anticorrupção e assumindo um tom duro face à Coreia do Norte.

Na política há menos de um ano, Yoon venceu com menos de 1% de vantagem sobre o adversário mais direto, Lee Jae-myung, do partido de Moon. Com 61 anos, Yoon formou-se em Direito e só entrou na Ordem dos Advogados à nona tentativa. Promotor de justiça durante muitos anos, procurador-geral do país entre 2019 e 2021, enfrentou pesos pesados da política e magnatas dos negócios, incluindo membros do Executivo de Moon e ainda a ex-Presidente Park Geun-hye, que acabou impugnada e condenada a 25 anos de cadeia (entretanto foi indultada).

Para desanuviar, o novo Presidente tem como prazer pessoal a culinária. Católico, casado e sem filhos, é doido por animais, possuindo quatro cães e três gatos.

Estimular a economia na era pós-pandémica com menos intervenção estatal, combater os altos preços da habitação e o desemprego persistente entre os jovens, abolir o salário mínimo e a semana laboral de 52 horas (defende que “os trabalhadores devem poder trabalhar 120 horas”) foram algumas das suas promessas de campanha. Mais polémica foi a ideia de abolir o Ministério da Igualdade de Género e Família e a associação que traçou entre feminismo e baixa natalidade.

Maior desafio reside em Pyongyang

Há desafios à agenda do novo Presidente, nomeadamente o facto de o seu Partido do Poder Popular só ter 113 dos 300 deputados da Assembleia Nacional e a realização de eleições locais em junho, que já levaram Yoon a um périplo pelo país.

Mas será a relação com o imprevisível vizinho do Norte a ditar muito do êxito da sua governação. “Yoon prometeu continuar os esforços diplomáticos com a Coreia do Norte e apoiou o envio de ajuda humanitária. Ao mesmo tempo, defendeu o reforço da [relação de] dissuasão entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos contra as ameaças/provocações da Coreia do Norte e a continuação das sanções internacionais até que Pyongyang registe uma desnuclearização substancial”, diz ao Expresso Jong Eun Lee, professor na Universidade Americana, em Washington. “Enquanto a Coreia do Norte continuar com testes com mísseis [desde janeiro já fez pelo menos 15], é provável que a Administração Yoon adote uma atitude de linha dura. É previsível que responda com iniciativas com vista ao fortalecimento do sistema de defesa antimíssil da Coreia do Sul e a realização de exercícios de defesa em larga escala com os EUA.”

Em campanha, Yoon defendeu ataques preventivos contra a Coreia do Norte como única forma de conter o perigo dos novos mísseis hipersónicos, testados com êxito por Pyongyang. Prometeu pedir aos EUA que colocassem no país armas nuclea­res táticas. Dentro de dias saberá o que pensa o homólogo americano. Entre 20 e 24 de maio, Joe Biden fará o seu primeiro périplo asiático: Coreia do Sul e Japão. O encontro Yoon-Biden será a 21.

Jong Eun Lee antecipa “o fortalecimento da aliança entre os dois países”, formalizada em 1949, após a divisão da península. “A Administração Yoon defende uma ‘aliança estratégica abrangente’, que passe pela expansão das áreas de cooperação com os EUA, em concreto a participação na estrutura de segurança do Indo-Pacífico — como o Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad, na sigla inglesa) —, a cooperação tecnológica nas áreas biológica, nuclear, cibernética e espacial e a parceria Coreia do Sul-EUA-Japão.”

O desejo de ser parte ativa no Quad insere-se na vontade de Yoon de projetar o país como “Estado-pivô global”, não exclusivamente focado na Coreia do Norte. Isso terá impacto na relação com a China — o maior parceiro comercial da Coreia do Sul, que absorve mais de 25% das suas exportações —, já que o Quad (EUA, Austrália, Índia e Japão) visa conter a influência de Pequim na região. “É inquestionável que [Coreia do Sul e China] não podem negligenciar-se ou ignorar-se”, disse Yoon ao “The Washington Post”. “Ao nível da política e da segurança, a China tem uma aliança com a Coreia do Norte, e nós com os EUA. Mas há 40 divisões militares ao longo da DMZ [zona desmilitarizada entre as Coreias]. É essa a nossa realidade no terreno.”

Versão integral do perfil aqui.

Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui

A Coreia do Sul tem novo Presidente. Yoon Suk-yeol debutou na política há menos de um ano

A décima maior economia do mundo tem, a partir desta terça-feira, um político inexperiente aos seus comandos. Yoon Suk-yeol trabalhou toda a vida no sector da justiça e acumulou prestígio no combate à corrupção. Para este conservador, os trabalhadores sul-coreanos devem poder trabalhar 120 horas por semana. E a relação com a Coreia do Norte e com a China é para endurecer

Yoon Suk-yeol, na cerimónia de tomada de posse como Presidente da Coreia do Sul, a 10 de maio de 2022 FLICKR REPUBLIC OF KOREA

Coreia do Sul pertence a uma minoria de países que, tendo adotado o sistema presidencialista como forma de governo, apenas permite que chefe de Estado desempenhe um mandato de cinco anos, sem reeleição. A regra radica na Constituição de 1987, que pôs termo à ditadura militar.

“O mandato único foi fundamental para a obtenção de um compromisso político. Havia muito medo que de que o Presidente em exercício não perdesse a reeleição” e se eternizasse no cargo. “Um mandato único garantia a mudança ao fim de cinco anos”, explica ao Expresso Jong Eun Lee, professor adjunto na Universidade Americana, Washington DC.

Esta terça-feira, a Coreia do Sul inaugura um novo capítulo na sua jovem democracia de 35 anos. Toma posse um novo Presidente, de seu nome Yoon Suk-yeol.

Estando o Presidente Moon Jae-in, do Partido Democrático da Coreia (centro liberal, maioritário no Parlamento), impossibilitado de se recandidatar, os eleitores escolheram novo rumo. O país depositou confiança no candidato do Partido do Poder Popular (direita), formação que tem liderado a oposição.

Yoon Suk-yeol venceu as eleições de 9 de março com 48,56% dos votos. O candidato derrotado, Lee Jae-myung, do Partido Democrático, ficou a menos de 1%. A diferença entre ambos foi de 247.077 votos, num universo de mais de 44 milhões de eleitores.

Esta vantagem exígua — num escrutínio que ficou conhecido como “eleições squid game” (por analogia com uma série sul-coreana violenta de grande sucesso na Netflix), dado o nível de agressividade entre os candidatos — revelou quão dividida está a sociedade na 10.ª maior economia do mundo.

Yoon Suk-yeol é um novato da política. Nascido em Seul a 18 de dezembro de 1960, a um casal de professores universitários, foi no sector da justiça que trabalhou toda a vida. Formou-se em Direito na Universidade Nacional de Seul e só entrou na Ordem dos Advogados… à nona tentativa. Os anos como promotor de justiça contribuíram para construir a imagem de homem destemido, que não vacila na hora de enfrentar pesos-pesados da política e magnatas dos negócios.

“Passei muitos anos da minha carreira a morar sozinho, enquanto trabalhava como promotor em gabinetes locais e regionais. Então, passei a cozinhar muito para mim e gostei. Julgo que aprendi habilidades naturalmente, a observar a minha mãe na cozinha quando eu era jovem”, disse a 14 de abril, numa entrevista ao jornal norte-americano “The Washington Post”, desvendando, desta forma, um dos seus prazeres particulares: a cozinha. As suas especialidades são kimchi jjigae, uma espécie de ensopado, e bulgogi, conhecido como “churrasco coreano”.

Cruzada anticorrupção

Em 2016, o prestígio de Yoon Suk-yeol disparou quando passou a liderar uma equipa de investigação a um escândalo de corrupção e abuso de poder envolvendo a então Presidente do país. Park Geun-hye acabaria por ser impugnada e condenada a 25 anos de prisão. Foi indultada e libertada a 31 de dezembro passado.

Entre 2019 e 2021, Yoon desempenhou o cargo de procurador-geral do país. Expôs casos de corrupção que implicavam membros do Governo de Moon Jae-in, o que foi determinante para ter sido escolhido pelos conservadores para candidato à presidência. Aderiu ao Partido do Poder Popular a 30 de julho de 2021 — a sua entrada oficial na política —, após ter anunciado a intenção de concorrer como independente.

Durante a campanha eleitoral, Yoon, que se opõe ao intervencionismo económico do Estado, prometeu combater a estagnação económica, os altos preços das casas e o desemprego persistente entre os jovens. Defendeu também a abolição do salário mínimo e a semana laboral de 52 horas, defendendo que “os trabalhadores devem poder trabalhar 120 horas”.

Numa promessa eleitoral que causou polémica, Yoon comprometeu-se a abolir o Ministério da Igualdade de Género e Família e culpou o aumento do feminismo pela baixa taxa de natalidade no país.

Batizado na fé católica, em 2012 casou-se com Kim Kun-hee, mais nova 12 anos, atual presidente de uma empresa especializada na organização de exposições de arte. O casal não tem filhos e não esconde o seu amor por animais: vive com quatro cães e três gatos.

Quebrando uma prática de décadas, o novo Presidente vai instalar o seu gabinete não na tradicional Casa Azul, a norte de Seul, mas no complexo do Ministério da Defesa, na zona de Yongsan, no centro da capital.

A nível interno, as prioridades da Administração Yoon serão “a resposta ao impacto da pandemia de covid-19 e o mercado imobiliário”, prevê Jong Eun Lee. “Como é que a Coreia vai recuperar-se da pandemia e que compensações serão dadas, especialmente aos pequenos empresários? O Governo conseguirá controlar o aumento do preço da habitação e/ou aumentar a oferta de novas casas? Eis as principais prioridades dos eleitores sul-coreanos. E, uma vez que haverá eleições locais a 1 de junho, o Executivo irá dar preferência a essas agendas.”

A pensar nesse desafio eleitoral, o novo Presidente — cujo partido só tem garantido o apoio de 113 dos 300 deputados da Assembleia Nacional — realizou recentemente uma volta ao país: visitou 29 cidades em 50 dias.

Desnuclearização é pré-requisito

O académico ouvido pelo Expresso refere outra prioridade doméstica: o apoio à inovação tecnológica (a Revolução Industrial de 4ª Geração) visando o crescimento económico e a criação de emprego, sobretudo para os jovens. “A inovação tecnológica e o crescimento impulsionado pelo mercado parecem ser uma marca registada da governação de Yoon.”

Por último, o reforço da segurança nacional e a paz na península coreana. Se o seu antecessor se empenhou pessoalmente num processo de diálogo intercoreano — Moon Jae-in protagonizou três cimeiras com o homólogo norte-coreano, Kim Jong-un —, Yoon já identificou um pré-requisito para se envolver em mais iniciativas: a completa desnuclearização da Coreia do Norte.

“Yoon prometeu continuar os esforços no sentido de um envolvimento diplomático com a Coreia do Norte e apoiou o envio de ajuda humanitária. Ao mesmo tempo, defendeu o fortalecimento da [relação de] dissuasão entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos contra as ameaças/provocações da Coreia do Norte e a continuação das sanções internacionais até que Pyongyang registe uma desnuclearização substancial”, diz Jong Eun Lee.

“Enquanto a Coreia do Norte continuar com uma série de testes com mísseis, é provável que a Administração Yoon adote uma atitude de linha-dura, em parte para contrastar com o Governo anterior. Provavelmente, Yoon responderá com iniciativas com vista ao fortalecimento do sistema de defesa antimíssil da Coreia do Sul e a realização de exercícios de defesa em larga escala com os Estados Unidos.”

Durante a campanha eleitoral, Yoon defendeu ataques preventivos contra a Coreia do Norte como única forma de conter o perigo dos novos mísseis hipersónicos, testados com êxito por Pyongyang em janeiro deste ano. E disse que iria pedir aos EUA que estacionassem no país armas nucleares táticas, em caso de ameaça por parte do Norte.

Em alguns dias, Yoon ficará a saber o que pensa o homólogo norte-americano da sua estratégia. Entre 20 e 24 de maio, Joe Biden visitará a Coreia do Sul e o Japão, naquele que será o seu primeiro périplo pela Ásia. Os dois Presidentes têm uma cimeira agendada para o dia 21.

Ajudar a conter a China

Jong Eun Lee antecipa “o fortalecimento da aliança entre os dois países”, que têm uma relação tão antiga quanto o próprio país (formalizada em 1949, após a divisão da península).

“Procurando dar um passo em frente, a Administração Yoon é apologista de uma ‘aliança estratégica abrangente’, que passa pela expansão das áreas de cooperação com os EUA, em específico a participação na estrutura de segurança da região do Indo-Pacífico — como o Diálogo de Segurança Quadrilátero (Quad, na sigla inglesa) —, a cooperação tecnológica nas áreas biológica, nuclear, cibernética e espacial, e a parceria trilateral Coreia do Sul-EUA-Japão.”

O desejo de ser parte ativa no Quad insere-se na visão de Yoon de querer projetar a Coreia do Sul como “Estado pivô global”, não exclusivamente focado na Coreia do Norte. Isso terá impacto na relação com a China — o maior parceiro comercial da Coreia do Sul, que absorve mais de 25% das suas exportações — já que o Quad, aliança composta por EUA, Austrália, Índia e Japão, foi criado para conter a crescente influência de Pequim na região.

“É inquestionável que os dois países [Coreia do Sul e China] não podem negligenciar-se ou ignorar-se”, explicou Yoon a “The Washington Post”. “Ao nível da política e da segurança, a China tem uma aliança com a Coreia do Norte, e nós temos uma aliança com os EUA. Mas há 40 divisões militares colocadas ao longo da DMZ [zona desmilitarizada entre as Coreias]. É essa a nossa realidade no terreno.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui

Viragem na presidência após campanha para esquecer

Yoon Suk-yeol venceu as eleições por menos de 1%. Ex-procurador-geral, propõe política mais dura com a Coreia do Norte

A democracia sul-coreana assinala, este ano, 35 anos de vida. Quarta-feira, o país foi a votos para escolher novo Presidente e, a atentar no perfil dos principais candidatos que disputaram as eleições até ao último voto, talvez não seja exagerado dizer que os sul-coreanos estão fartos de políticos. Pela primeira vez na era democrática, nenhum dos candidatos mais votados tem experiência parlamentar ou governamental.

O nome a memorizar é Yoon Suk-yeol. Representante do Partido do Poder Popular (conservador), até agora na oposição, recebeu mais de 16,4 milhões de votos (48,56%). Em segundo lugar ficou Lee Jae-myung, do Partido Democrático (liberal, no poder) e veterano da administração pública (até há pouco, governador da província de Gyeonggi). Foi o preferido de 16,1 milhões de eleitores (47,83%). A afluência foi de 77,1%, entre 44 milhões de eleitores.

Os dois candidatos terminaram a corrida à Casa Azul separados por menos de 1% dos votos. Na Coreia do Sul, o chefe de Estado só pode exercer um mandato de cinco anos e as presidenciais ficam concluídas numa volta só, ou seja, ganha o candidato mais votado, independentemente da robustez do seu resultado. “Considerarei a unidade nacional a minha prio­ridade de topo”, disse o vencedor.

O novo Presidente, de 61 anos, dedicou 26 à justiça, onde exerceu como promotor. Entre 2019 e 2021, Yoon Suk-yeo foi procurador-geral do país, tendo ganho prestígio ao liderar investigações relativas a escândalos de corrupção que implicavam assessores do Presidente Moon Jae-in.

Durante a campanha eleitoral, Yoon ganhou fama de ser antifeminista, depois de ter dito que a discriminação de género não existe no país de forma estrutural, e de prometer abolir o Ministério da Igualdade de Género e da Família.

Votar no “mal menor”

Esta foi uma de muitas polémicas, escândalos e insultos que marcaram o período pré-eleitoral. Os dois principais aspirantes atacaram a esposa um do outro, Lee acusou Yoon de ser bêbado e denunciaram “xamãs” (pessoas com poderes especiais) na campanha adversária. A alta taxa de reprovação de ambos levou a que este escrutínio fosse visto como a escolha “do mal menor” ou rotulado de “eleição desagradável” ou “eleição ‘Squid Game’” (por analogia com uma violenta série sul-coreana de grande sucesso na Netflix), pelo nível de agressividade entre os principais nomes em liça. Numa reportagem do jornal “Korea Times” realizada junto de jovens que votavam pela primeira vez, um deles afirmava: “Alguns candidatos parecem umas cabeças ocas, a julgar pelas suas palavras e ações.”

Na hora da vitória, Yoon prometeu “prestar atenção aos meios de subsistência das pessoas”, “fornecer serviços de bem-estar aos necessitados”, acabar com a corrupção e fazer o máximo para que a Coreia do Sul “sirva como membro orgulhoso e responsável da comunidade internacional e do mundo livre”.

A estratégia de Yoon à frente da quarta maior economia da Ásia (a seguir à China, Japão e Índia) passa por redefinir a relação com a China e endurecer a posição do país para com a Coreia do Norte. Nos últimos meses, Pyongyang lançou um número recorde de mísseis.

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de março de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui