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Moon foi ao Norte, Kim irá ao Sul

Juntos pela terceira vez este ano, os líderes coreanos avançaram na desnuclearização e relançaram o diálogo com os EUA

Cerca de 80 milhões de coreanos — do Norte e do Sul, sem distinção — iniciam amanhã uma época festiva. Durante três dias, as famílias reúnem-se para celebrar o Chuseok, dia de ação de graças. Recuperam-se tradições gastronómicas e histórias antigas e, em especial, recordam-se os antepassados com saudade e respeito.

Na zona de Lisboa a comunidade coreana agendou esta comemoração para o próximo sábado, dia 29, com um piquenique, pelo meio-dia, no Parque Municipal do Cabeço de Montachique, em Loures. A viver em Portugal há mais de 30 anos, Byung Goo Kang, de 60, não faltará ao convívio. Além de celebrar a sua cultura, será um momento para partilhar com conterrâneos o que lhe vai na alma sobre as notícias que chegam da Península Coreana.

“Estou muito esperançado”, confidencia ao Expresso. “Esta cimeira presidencial entre as duas Coreias foi bastante diferente das anteriores, em 2000 e 2007. As partes esforçaram-se muito por criar e manter um ambiente de confiança e compromisso para que a paz chegue, por fim, à Península. Claro que na Coreia do Sul há partidos políticos que não estão de acordo com aquilo que o Governo diz ter alcançado. Pessoalmente, quero acreditar nos bons resultados.”

Kim Jong-un e Moon Jae-in, respetivamente líderes das Coreias do Norte e do Sul, reuniram-se esta semana, durante três dias, em Pyongyang, a capital norte-coreana. A terceira cimeira intercoreana do ano confirmou a vontade de um futuro unido e — ao serem acordadas novas medidas no sentido da desnuclearização da Península — contribuiu para aliviar a tensão que vinha minando a aproximação entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte.

DESNUCLEARIZAÇÃO: Medidas práticas, como exige Trump

Pela primeira vez, do diálogo intercoreano saíram passos concretos com vista à desnuclearização da Península. A Coreia do Norte comprometeu-se a encerrar, de forma permanente, o recinto de testes e a plataforma de lançamento de mísseis de Dongchang-ri, “sob a observação de peritos de países relevantes”, diz a Declaração de Pyongyang. Igualmente neutralizadas serão instalações nucleares em Yeongbyeon, se “os EUA tomarem medidas correspondentes de acordo com o espírito da declaração conjunta de 12 de junho”, assinada em Singapura por Kim Jong-un e Donald Trump. O documento não concretiza, mas sabe-se que, para a Coreia do Norte, é prioritário um tratado de paz que se sobreponha ao armistício assinado no fim da Guerra da Coreia (1950-53) e que garanta a segurança do país. “Concordamos em libertar a Península Coreana dos medos da guerra”, afirmou Moon Jae-in. “A Coreia sem nuclear não está longe.”

DESMILITARIZAÇÃO: Aliviar a tensão é a palavra de ordem

As Coreias partilham uma fronteira de quase 250 quilómetros, fortemente vigiada e militarizada. Num acordo complementar à Declaração de Pyongyang, assinado pelos ministros da Defesa, foram adotadas medidas para reduzir a tensão junto à fronteira e criar confiança entre os dois lados. Entre elas está a expansão da Zona Desmilitarizada dos atuais quatro para dez quilómetros de largura. Para prevenir incidentes aéreos, foi estabelecida uma zona de exclusão de 40 quilómetros de largura na zona ocidental da Península e 80 quilómetros a leste. Ficou decidido também o estabelecimento de uma zona-tampão marítima, para impedir confrontos navais, e ainda uma área de pesca conjunta. Os dois países decidiram parar com os exercícios militares perto da Linha de Demarcação Militar (fronteira efetiva) e retirar alguns postos de vigia fronteiriços. Estima-se que, desde a assinatura do Armistício de Panmunjom (1953), norte e sul-coreanos já se tenham envolvido em trocas de fogo 96 vezes. Dias antes da cimeira, Seul e Pyongyang lançaram outra ponte: acabaram com a comunicação por telefone e fax e abriram um escritório de ligação na cidade norte-coreana fronteiriça de Kaesong. Ali funcionários de Norte e Sul falam todos os dias, de olhos nos olhos.

COOPERAÇÃO: Pôr as famílias em contacto e organizar os Jogos Olímpicos

O drama das famílias separadas pela guerra não foi esquecido nesta cimeira. O Presidente sul-coreano é, ele próprio, filho de refugiados do Norte. As Coreias acordaram a abertura de uma “instalação permanente para encontros familiares” e a concretização de um sistema de comunicação através de vídeo para as famílias, impedidas de comunicar por meios próprios. Kim e Moon prometeram arregaçar as mangas para desenvolver ligações terrestres e ferroviárias até ao fim do ano, projetos industriais e turísticos e uma candidatura conjunta aos Jogos Olímpicos de 2032.

REUNIFICAÇÃO: Regresso a um passado com 5000 anos

A Declaração de Pyongyang refere uma única vez a palavra “reunificação”, mas não deixa margem para equívocos em relação ao que as duas Coreias pretendem: “Os desenvolvimentos em curso nas relações intercoreanas levarão à reunificação”, como é “aspiração e esperança de todos os coreanos”. Num discurso de sete minutos no Estádio 1º de Maio, perante 150 mil norte-coreanos, Moon abriu o coração e abordou o assunto: “Vivemos juntos durante 5000 anos e temos vivido separados durante apenas 70 anos. Peço a todos que acabem com essas hostilidades e deem um grande passo na direção da reunificação”, disse, emocionado, o sul-coreano, quarta-feira à noite, após assistir a um megaevento desportivo que envolveu mais de 100 mil participantes. “O Presidente Kim Jong-un e eu trabalharemos de mãos dadas para construir um novo país, com 80 milhões de pessoas na Coreia do Norte e do Sul. Avancemos juntos no sentido de uma nova era.” Moon foi ovacionado de pé. No mesmo dia, já Kim Jong-un anunciara que “em breve” visitará Seul, decisão tomada pelo próprio, que o homólogo sul-coreano encorajou. A confirmar-se, será a primeira visita de um líder da Coreia do Norte ao Sul.

WASHINGTON VOLTA A ABRIR PORTAS A PYONGYANG

Há apenas um ano, quando debutou na Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas, Donald Trump ameaçou “destruir completamente a Coreia do Norte”. Uma guerra entre duas potências nucleares parecia iminente e a forma como o Presidente dos Estados Unidos desprezava Kim Jong-un — chamando-lhe “little rocket man” — não tornava previsível o encontro histórico entre ambos, meses depois, em Singapura. Na maratona de discursos que vai marcar o arranque da 73ª AG da ONU, que começa na próxima terça-feira, a intervenção de Trump será necessariamente diferente. “Recebemos notícias muito boas” das Coreias, reagiu o Presidente dos EUA, conhecida a Declaração de Pyongyang. “Reuniram-se e tivemos grandes respostas. Estamos a fazer avanços tremendos em relação à Coreia do Norte.” Em Nova Iorque, à margem da AG, a questão coreana merecerá importantes diligências diplomáticas: terça-feira, têm encontro marcado Trump e o sul-coreano Moon Jae-in; no dia seguinte o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, reúne-se com o seu homólogo norte-coreano, Ri Yong-ho. Se na frente intercoreana o processo de paz flui lento mas contínuo — com abraços cada vez mais fortes e sorrisos cada vez mais abertos entre Moon e Kim —, a presença dos EUA nesta negociação, motivada por razões históricas, pode pôr tudo em causa. Basta um tweet de Trump para deitar tudo por terra.

Artigo publicado no Expresso, a 22 de setembro de 2018

Cimeira de Pyongyang. Conversas coreanas para Trump ouvir

Os líderes das duas Coreias estão reunidos em Pyongyang para uma cimeira de três dias. Mais uma oportunidade para Kim Jong-un e Moon Jae-in tentarem desbravar caminho no sentido da desnuclearização da Península e recordarem ao mundo que a Coreia é uma só nação, dividida por dois sistemas políticos

Kim Jong-un e Moon Jae-in reuniram-se, esta terça-feira, pela terceira vez em quase cinco meses. Mas se nos dois breves encontros anteriores — a 27 de abril e a 26 de maio, na zona desmilitarizada entre as duas Coreias — bastou que os líderes norte e sul-coreanos apertassem a mão para que as cimeiras fossem um sucesso, desta vez os três dias reservados ao diálogo, em Pyongyang, indiciam que Kim e Moon têm sobre a mesa algo mais desafiador… e que precisam de mais tempo para tentar tirar do caminho obstáculos que estão a bloquear o processo de paz na Península da Coreia.

“Anteriormente, apenas o facto de termos um encontro entre os dois líderes coreanos significava um avanço político notável. Havia um valor simbólico que era fundamental para iniciar o aprofundamento das relações entre as duas Coreias”, diz ao Expresso Rui Faro Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei, em Tóquio (Japão). “Assegurada alguma confiança mútua, e depois do encontro entre Kim e o Presidente dos EUA [na Cimeira de Singapura, a 12 de junho], agora há espaço para uma reunião mais alargada.”

Espaço e urgência, já que apesar do diálogo fluir na frente intercoreana, o processo de aproximação entre Coreia do Norte e Estados Unidos marca passo. Esse é um dos dossiês que estão em discussão na Cimeira de Pyongyang, juntamente com a desnuclearização da Península e a cooperação Norte-Sul.

Quebrado o gelo após sete décadas de costas voltadas, EUA e Coreia do Norte têm, porém, expectativas diferentes em relação ao passo seguinte. Washington quer que Pyongyang aplique medidas concretas no sentido do desmantelamento do seu programa nuclear. Já a Coreia do Norte — para quem a implosão do sítio de testes nucleares de Punggye-ri, em maio, foi uma demonstração de boa fé — quer ver assinado um tratado de paz que substitua o armistício de 1953, que ponha um ponto final à Guerra da Coreia e afaste de vez da Península o fantasma do conflito.

A falta de entendimento, levou Trump a cancelar a viagem a Pyongyang do seu secretário de Estado, Mike Pompeo, prevista para finais de agosto. “A prioridade desta cimeira é perceber quais os passos específicos que devem ser dados para que se chegue a um terreno comum entre o Norte e os EUA”, disse Moon Jae-in, antes de partir para Pyongyang. “Temos de conciliar a exigência do Norte sobre o fim da relação hostil com os EUA e aquilo que os EUA podem oferecer em termos de garantias de segurança como condição para a desnuclearização.”

Moon, o mediador

Independentemente do que conseguir negociar com o homólogo norte-coreano, o Presidente da Coreia do Sul tem já um encontro apalavrado com Donald Trump, ainda este mês, à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, onde irá pô-lo ao corrente da margem para cedências de Kim Jong-un. “Nesta cimeira, Moon Jae-in funciona como uma espécie de mediador entre EUA e Coreia do Norte, particularmente no que toca ao tema da desnuclearização”, diz Rui Faro Saraiva. “Mas não podemos reduzir o seu papel a um mero interlocutor ou mediador. Os problemas que se discutam nesta cimeira afetam diretamente os coreanos do Norte e do Sul, que partilham a mesma língua, a mesma cultura e a mesma história até 1945. É bom não esquecer que a Coreia é uma nação dividida em dois sistemas políticos.”

Esta terça-feira, à chegada a Pyongyang, cerca das 9h50 da manhã (mais oito horas do que em Portugal Continental), Moon Jae-in tinha o seu homólogo à espera, na pista do Aeroporto Internacional de Sunan. Ultrapassados os cerimoniais militares, entraram num Mercedes preto e, com os corpos de fora do tejadilho, desfilaram por Pyongyang, saudados nas bermas por milhares de pessoas sorridentes, vestidas com trajes coloridos, acenando com bandeiras da Coreia do Norte e da Coreia Unificada. Pelas 3h45 da tarde, começaram as conversações formais, que continuarão na quarta-feira.

Olhos nos olhos, todos os dias

“As Coreias pretendem continuar a atenuar tensões militares e chegar a um acordo que estabeleça a confiança entre os dois Estados e previna confrontos a nível militar”, acrescenta o académico português. Nesse sentido, na sexta-feira passada, os dois países acabaram com a comunicação bilateral por telefone e fax e abriram um gabinete junto à fronteira, na cidade norte-coreana de Kaesong — em cujo complexo industrial os sul-coreanos já colaboram —, onde cerca de 20 funcionários de cada lado passarão a estar diariamente, olhos nos olhos, em constante comunicação.

“Para além da centralidade de questões militares, a dimensão económica é muito importante para Pyongyang”, recorda Rui Faro Saraiva, “por isso Moon Jae-in levou, na sua comitiva, executivos de conglomerados empresariais” — os chamados “chaebol”, um conjunto de negócios em torno de uma empresa-mãe, normalmente controlada por famílias. A presença, na Coreia do Norte, de gestores da Samsung, LG, Hyundai e do grupo SK, será do agrado de Kim Jong-un que suspira pelo fim das sanções ao seu país.

“A presença destes executivos é um gesto simbólico, uma vez que o alívio de sanções económicas internacionais, que é vital para o aprofundamento da cooperação económica entre as Coreias, depende da resolução ou do progresso da questão da desnuclearização da Península — e da ‘boa-vontade’ dos Estados Unidos. É um conjunto de promessas importantes para serem servidas à mesa das negociações onde o ‘prato principal’ é a desnuclearização e outras questões militares.”

Enquanto os dois líderes se empenhavam nas negociações políticas, as primeiras-damas — a norte-coreana Ri Sol-ju e a sul-coreana Kim Jung-sook — cumpriram um programa paralelo que as levou ao Hospital Infantil Okryu e ao Conservatório Kim Won Gyun, um lugar especial para ambas. No passado, Ri cantou, como solista, na Orquestra Unhasu e Kim estudou Canto e fez parte do Coro Metropolitano de Seul — experiências que lhes permitem perceber que, política à parte, norte e sul-coreanos podem cantar a mesma canção.

Artigo publicado no Expresso Online, a 18 de setembro de 2018. Pode ser consultado aqui

“Jogos de guerra” suspensos, decretam Seul e Washington

Os exercícios militares conjuntos previstos para agosto entre sul-coreanos e norte-americanos não se irão realizar. As partes querem demonstrar boa fé nas negociações sobre a desnuclearização da Coreia do Norte

Coreia do Sul e Estados Unidos suspenderam a realização do exercício Ulchi Freedom Guardian, agendado para o próximo mês de agosto. A decisão foi justificada com a necessidade de apoiar o diálogo em curso com o regime de Pyongyang.

“Consideramos as negociações sobre a desnuclearização da Coreia do Norte cruciais”, afirmou Choi Hyun-soo, porta-voz do ministério da Defesa da Coreia do Sul. “Por isso, enquanto essas negociações continuarem, a decisão dos Governos da Coreia do Sul e Estados Unidos manter-se-á.”

O exercício em causa simula um cenário de invasão da Coreia do Sul por parte do vizinho do Norte, para grande desconforto de Pyongyang. No ano passado, o treino decorreu durante 11 dias e envolveu 17.500 soldados norte-americanos e 50.000 sul-coreanos. Participaram também tropas de países que apoiaram o Sul na Guerra da Coreia (1950-53), nomeadamente Austrália, Reino Unido, Canadá e Colômbia.

Na recente cimeira de Singapura entre Donald Trump e Kim Jong-un, faz esta terça-feira uma semana, o Presidente norte-americano admitiu planos para parar com os “jogos de guerra” que considerou “provocadores, inadequados e caros”.

Dana White, porta-voz do Departamento de Defesa dos EUA, disse que a suspensão visa os exercícios de agosto, mas que não foi tomada qualquer decisão relativamente a outros treinos com a Coreia do Sul. Igualmente, mantêm-se os exercícios militares previstos com o Japão.

O ministro japonês da Defesa, Itsunori Onodera, disse compreender a suspensão dos exercícios entre Seul e Washington, que considerou “pilares importantes” na manutenção da paz e estabilidade regionais.

Enquanto a política tarda em marcar pontos na península coreana, o desporto continua a mostrar o caminho a seguir. Na segunda-feira, as duas Coreias concordaram em desfilar em conjunto, sob bandeira da Coreia Unificada, nas cerimónias de abertura e encerramento dos Jogos Asiáticos, que decorrerão entre 18 de agosto e 2 de setembro, nas cidades indonésias de Jacarta e Palembang.

Reunidas em Panmunjom, a chamada “aldeia da trégua” junto ao paralelo 38, delegações dos dois países acordaram também a realização de torneios de basquetebol, primeiro em Pyongyang, em julho, e mais tarde em Seul.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2018. Pode ser consultado aqui

Norte e Sul cumpriram. A palavra aos EUA…

Seul e Pyongyang querem assinar um tratado de paz e desnuclearizar a península. A cimeira entre Trump e Kim dirá se é sonho ou realidade

A cimeira de Panmunjom foi um passo importante no sentido da paz definitiva na península coreana, mas o ponto final no conflito que permanece em aberto desde 1953 não pode ser colocado sem a concordância dos Estados Unidos, signatários do Armistício, em representação das Nações Unidas. Daí que o histórico encontro, ontem, entre Moon Jae-in e Kim Jong-un tenha ficado aquém daquilo que ambos os líderes desejariam — o enterro do machado de guerra através da assinatura de um tratado de paz.

“Durante este ano em que se assinala o 65º aniversário do Armistício, Coreia do Sul e Coreia do Norte concordaram em procurar ativamente encontros a três, envolvendo as duas Coreias e os Estados Unidos, ou encontros a quatro, envolvendo as duas Coreias, os Estados Unidos e a China, com vista à declaração do fim da guerra e ao estabelecimento de uma paz permanente e sólida”, consagra a “Declaração de Panmunjom para a Paz, Prosperidade e Unificação na Península Coreana”, assinada por Kim e Moon.

Tal como o Presidente sul-coreano desejara há dias, a cimeira — a terceira de sempre, ao mais alto nível, entre Norte e Sul — é, acima de tudo, um trampolim para um desejado encontro entre Estados Unidos e Coreia do Norte — esse, sim, inédito —, o único fórum com autoridade política para ditar decisões sobre os grandes diferendos.

O maior deles é a desnuclearização da península. Sobre o assunto, a “Declaração de Panmunjom” — dirigida a “80 milhões de coreanos”, sem distinção de Norte e Sul — confirmou “o objetivo comum” de uma “completa desnuclearização” do território. A interpretação do que isso significa, em termos práticos, é uma frente da próxima batalha diplomática entre Washington e Pyongyang: os norte-americanos serão tentados a pensar que desnuclearizar a península é acabar com o arsenal nuclear norte-coreano, à semelhança do que aconteceu com a Líbia de Kadhafi. “Devíamos insistir que se o encontro se realizar deve ser similar às discussões que tivemos com a Líbia há 13 ou 14 anos: como arrumar o programa de armas nucleares deles e levá-lo para [o Laboratório Nacional de] Oak Ridge, no Tennessee”, defendeu recentemente John Bolton, conselheiro de Trump para a Segurança Nacional.

Sem data nem local, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor legado: a vontade comum do início de uma nova era

Já os norte-coreanos, que sentem há décadas a presença militar dos Estados Unidos na Coreia do Sul como uma ameaça direta, poderão exigir o regresso a casa dos cerca de 28 mil militares norte-americanos estacionados no Sul. Num comunicado surpresa, a 20 de abril, durante uma reunião do Partido dos Trabalhadores da Coreia, Kim Jong-un anunciou a suspensão dos testes nucleares e de mísseis balísticos intercontinentais e o desmantelamento das instalações usadas para os exercícios nucleares, em Punggye-ri, no norte do país. No Twitter, Donald Trump saudou a “muito boa notícia para a Coreia do Norte e para o mundo — um grande progresso! Aguardo a nossa cimeira”.

A CIA em Pyongyang

Com um fuso horário de 13 horas entre Washington D.C. e Seul, o staff da Casa Branca manteve-se acordado madrugada fora, reagindo como parte interessada às imagens que chegavam de Panmunjom e que faziam notícia em todo o mundo. Num comunicado, a Presidência desejou que as conversações progridam no sentido de “um futuro de paz e prosperidade em toda a península” e desejou “a continuação de discussões robustas na preparação do planeado encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un”.

Na sua conta oficial no Twitter, a Casa Branca aproveitou a confirmação, no Congresso, de Mike Pompeo como novo secretário de Estado para publicar duas fotos de um recente encontro, em Pyongyang, entre o então diretor da CIA e o líder da Coreia do Norte. Pompeo “fará um excelente trabalho ajudando o Presidente Trump a liderar os nossos esforços no sentido da desnuclearização da Península Coreana”, diz o post.

Sem data nem local anunciados, a cimeira Trump-Kim recebe de Panmunjom o melhor dos legados — sorrisos e uma vontade comum de iniciar uma nova era entre as Coreias. Mas o imprevisível Trump não tem o feitio do conciliador Moon. “Se quando eu lá estiver o encontro não for frutuoso”, já avisou o Presidente dos EUA, “levanto-me respeitosamente e abandono a sala”.

QUEM É MOON JAE-IN?

O encontro entre Moon Jae-in e Kim Jong-un foi, para o sul-coreano, muito mais do que uma questão de Estado — foi também um assunto do coração. Nascido a 24 de janeiro de 1953, a meio ano do fim da Guerra da Coreia, Moon Jae-in é filho de um casal oriundo do norte da península. Em fuga ao regime comunista de Kim Il-sung — avô do atual líder norte-coreano, que assumiu as rédeas do país em 1948 —, os pais deixaram Hungnam e fizeram-se ao mar durante três dias, no convés de um navio norte-americano repleto de refugiados. Desembarcaram na ilha de Geoje, no sul da península, onde passaram a viver e onde Moon Jae-in nasceu. Foi o primeiro de cinco filhos.

Naquela ilha, a família lutou para escapar à pobreza. Quando a mãe ia vender ovos, o filho ia amarrado às costas. Na sua autobiografia, lançada em 2011, Moon escreveu: “Quando a reunificação [coreana] pacífica chegar, a primeira coisa que quero fazer é pegar na minha idosa mãe e levá-la à sua terra natal.” “Moon Jae-in: O Destino” foi lançada em 2011, quando o autor ainda não tinha carreira política — fora apenas assessor do Presidente Roh Moo-hyun (2003-2008), de quem era amigo. Mas Moon já levava décadas de combate. Primeiro como líder estudantil, contra a ditadura militar, o que levaria a que fosse expulso da Universidade Kyung Hee, em Seul, onde estudava Direito, e fosse preso. E, posteriormente, na barra dos tribunais, com Moon a exercer advocacia na área dos direitos humanos e civis.

O suicídio de Roh, em 2009, afetado por um escândalo de corrupção que envolvia familiares do ex-Presidente — que Moon sentiu de forma particular —, foi o tiro de partida para se aventurar na política. Foi deputado entre 2012 e 2016 e líder do Partido Democrático (liberal). Aos poucos foi construindo a imagem de um político pragmático, que tocava os mais jovens e em quem se podia confiar. Perdeu as presidenciais da primeira vez que foi a votos, em 2012, para Park Geun-hye, a primeira mulher na Casa Azul, que seria destituída e condenada a 24 anos de prisão por corrupção. Cinco anos depois foi Moon Jae-in que o povo escolheu para virar essa página negra.

Na presidência, este católico, casado com a cantora Kim Jung-sook (que conheceu na universidade) e pai de um rapaz e de uma rapariga, sempre defendeu a aproximação aos norte-coreanos, mesmo quando de Pyongyang, em vez de palavras conciliatórias, só se ouviam ordens de lançamento de mísseis cada vez mais ameaçadores. “Não acho que seja desejável para a Coreia do Sul sentar-se no banco de trás e observar as discussões entre os Estados Unidos e a China e os diálogos entre a Coreia do Norte e os EUA”, defendeu numa entrevista ao jornal “The Washington Post” por alturas da sua eleição. Ontem, o lugar da frente foi seu, ao ser o anfitrião, pela primeira vez na História, de um líder da Coreia do Norte.

(Foto: Kim Jong-un e Moon Jae-in, a 27 de abril de 2018, em Panmunjom CASA AZUL (CHEONGWADAE) / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 28 de abril de 2018

Cenas de ficção no lugar mais tenso do mundo

Na última fronteira da Guerra Fria, soldados norte e sul-coreanos ficam frente a frente num único local: a Área de Segurança Conjunta, na aldeia de Panmunjom, que esta sexta-feira acolhe uma histórica cimeira entre as duas Coreias. Ora preparados para uma guerra que parece iminente, ora fotografados por turistas em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”, mais parecem atores num parque temático

Três soldados sul-coreanos vigiam a fronteira com a Coreia do Norte, na Área de Segurança Conjunta, em Panmunjom HENRIK ISHIHARA GLOBALJUGGLER / WIKIMEDIA COMMONS

A fronteira mais fortificada do mundo — junto à qual, esta sexta-feira, terá lugar uma cimeira histórica entre as duas Coreias — é cenário digno de um filme de Hollywood. A cerca de 50 quilómetros para norte de Seul, na Área de Segurança Conjunta, militares norte e sul-coreanos ficam cara a cara em encontros de rotina e vigiam-se de forma quase teatral, trocando olhares ferozes, seguindo movimentos com binóculos e registando a atividade inimiga com máquinas fotográficas.

“Muitas vezes, os soldados sul-coreanos fazem movimentos de Taekwondo, a arte marcial coreana”, explica ao Expresso Kim Seong-Kon, professor visitante da Universidade George Washington (EUA). “Esses gestos permitem-lhes melhores posições para desembainhar a arma mais rapidamente” e reagir com eficácia a tudo o que aconteça.

Entre as “armas psicológicas” a que os sul-coreanos recorrem para tentar fragilizar os do Norte constam também… óculos de sol. Há quem diga que os sul-coreanos usam-nos para esconder as emoções e evitar contacto visual com o inimigo. “Talvez haja outras razões”, diz o professor Kim. “Pode intimidar-se os inimigos e olhar para qualquer lado sem que os soldados norte-coreanos o percebam.”

Igualmente, a forma como os militares se posicionam na Área de Segurança Conjunta dá azo a interpretações várias. Muitas vezes, os sul-coreanos colocam-se à esquina dos edifícios e os norte-coreanos de costas para o Sul. Diz-se que os sul-coreanos preocupam-se especialmente com uma possível escalada da situação. Atentos e à esquina, podem antecipar qualquer confronto e ter cobertura atrás dos edifícios no caso de serem alvejados.

Quanto aos norte-coreanos, ao virarem as costas para Sul mostram lealdade ao Norte e revelam uma preocupação maior — as deserções de militares ou civis norte-coreanos. O último caso conhecido aconteceu a 13 de novembro de 2017, quando um militar norte-coreano lançou-se na direção do Sul — primeiro de jipe e depois a correr a pé —, foi ferido a tiro pelos compatriotas e acabou por ser resgatado pelos sul-coreanos.

De um lado e do outro, gigantescos altifalantes tentam desmoralizar os guardas fronteiriços e incentivar a deserções, debitando mensagens sobre a maravilha que é viver num e noutro lado. Os do Norte difundem música marcial, os do Sul respondem com K-Pop, o estilo sul-coreano mundialmente famoso mas proibido na Coreia do Norte.

“Há uns dez anos, levei o escritor norte-americano Robert Coover, que na altura vivia na Catalunha, à zona desmilitarizada”, conta o professor Kim. “A dada altura, ele disse: ‘Isto parece uma encenação de um espetáculo político’.” Como se os soldados fossem atores num parque temático.

A Área de Segurança Conjunta é o único troço da zona desmilitarizada (DMZ, sigla em inglês) onde não há arame farpado nem minas no solo. A DMZ é uma ampla “terra de ninguém”, de 248 quilómetros de comprimento por quatro de largura, fortificada com vedações, torres de vigia e campos minados, concebida para servir de tampão a grandes concentrações de tropas e armamento pesado.

Segundo o livro “The Two Koreas — A contemporary history”, de Don Oberdorfer e Robert Carlin (2014), “atrás das fortificações estão duas das maiores concentrações militares em todo o mundo — 1,1 milhões de norte-coreanos voltados para 660 mil sul-coreanos e 28 mil norte-americanos”. Coreia do Norte e Estados Unidos são potências nucleares.

Esse “buraco” na cerca que divide os dois países fica na aldeia de Panmunjom (hoje desabitada), onde foi assinado o Armistício que pôs fim a três anos de guerra entre Norte e Sul (1950-1953). É num dos seus edifícios — a Casa da Paz — que, esta sexta-feira, se encontrarão, cara a cara, o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, e o líder norte-coreano, Kim Jong-un. Será a primeira vez que um líder norte-coreano atravessará o paralelo 38, a fronteira.

No chão da Área de Segurança Conjunta, uma linha em cimento assinala a fronteira política entre os dois países. Essa divisão tem na sua origem um episódio trágico, já lá vão mais de 40 anos. Na manhã de 18 de agosto de 1976, na borda oeste da Área de Segurança Conjunta, cinco trabalhadores sul-coreanos, protegidos por dez militares norte-americanos e sul-coreanos aproximaram-se de um álamo com o intuito de aparar os ramos que obstruíam a vista entre dois postos de vigia do Sul.

Militares norte-coreanos aproximaram-se e levantaram objeções. Um capitão americano, Arthur Bonifas, que estava a três dias de terminar missão na península coreana, ignorou o protesto, mesmo após os norte-coreanos chamarem reforços. Foi derrubado por um golpe de karaté e espancado até à morte por meia dúzia de norte-coreanos, tal como aconteceu ao tenente Mark Barrett. Foram as primeiras mortes na Área de Segurança Conjunta desde o seu estabelecimento, em 1953. Para evitar mais incidentes, as partes acordaram, então, a divisão do local por uma Linha de Demarcação Militar, que não pode ser ultrapassada.

Sobre a linha de cimento ergueram-se cinco edifícios que funcionam como salas de conferência. Pelos vidros das janelas, uns e outros observam e fotografam o que se passa no interior, especialmente em dias de visitas importantes.

Um dos edifícios sobre a linha de fronteira é a sala de Conferência da Comissão Militar de Armistício onde, pontualmente e ao sabor da conjuntura política, as partes se reúnem para discutir assuntos militares, políticos e logísticos. A mesa é atravessada pela Linha de Demarcação Militar.

Esta sala é de visita obrigatória para os muitos turistas que, vindos do Norte ou do Sul, acorrem a Panmunjom em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”. Na prática, no seu interior podem cruzar a fronteira, ainda que por pouco mais de um metro, andando apenas de um lado para o outro.

Aldeias para coreano ver

Ao longo dos anos, Panmunjom tem funcionado como um barómetro da relação entre Pyongyang e Seul. É lá que, pontualmente, se encontram emissários dos dois lados e é por lá também que têm cruzado a fronteira delegações oficiais, suprimentos de emergência (para responder a situações de fome ou catástrofes naturais, no Norte), prisioneiros entretanto libertados ou mediadores internacionais.

Nos termos do Armistício está proibida qualquer atividade civil dentro da zona desmilitarizada, exceto em duas pequenas localidades: do lado sul-coreano, Daeseong-dong, onde os moradores não pagam impostos, vivem sob rigoroso recolher obrigatório e saem para os arrozais com escolta armada; e, do lado norte-coreano, Kijongdong, construída nos anos 50 para aliciar desertores, com elegantes prédios de apartamentos, mas onde não vive vivalma. Os do Sul dizem tratar-se de uma “aldeia de propaganda”.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 26 de abril de 2018 e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui