A cimeira de Panmunjom vai desbravar terreno para a reunião EUA-Coreia do Norte. E talvez anunciar o fim da guerra na península
Sessenta e cinco anos depois, a Guerra da Coreia pode estar prestes a terminar — oficialmente. As armas calaram-se em 1953 e, na aldeia sul-coreana de Panmunjom, foi assinado um armistício, mas nunca as Coreias selaram a paz entre ambas com um tratado. “Com a possibilidade de uma cimeira entre Donald Trump [Presidente dos EUA] e Kim Jong-un [lí- der da Coreia do Norte], acredito que existam condições para, simbolicamente, se estabelecer o fim do conflito”, disse ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei (Japão). “Esse gesto poderá desencadear novos entendimentos e ideias sobre como as Coreias poderão coexistir pacificamente.”
Na próxima sexta-feira, as lideranças das duas Coreias regressam à chamada “aldeia da trégua”. “O armistício que se arrasta há 65 anos deve acabar. Assim que o fim da guerra for declarado, devemos procurar assinar um tratado de paz”, defendeu, na quinta-feira, o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in. Nesse dia, foi criada uma “linha direta” entre o gabinete de Moon, no Sul, e a Comissão para os Assuntos de Estado, presidida por Kim, no Norte.
A cimeira de sexta-feira será apenas a terceira, ao mais alto nível, desde a divisão da península. A primeira realizou-se em 2000, entre Kim Jong-il, pai do atual líder norte-coreano, e Kim Dae-jung, que receberia o Nobel da Paz. A segunda ocorreu em 2007, entre Kim Jong-il e Roh Moo-hyun, um dos Presidentes sul-coreanos caídos em desgraça após deixarem a Casa Azul — terminou o mandato em 2008 e suicidou-se em 2009. Ambas se realizaram na capital norte-coreana, Pyongyang, o que faz com que Kim Jong-un esteja prestes a tornar-se o primeiro líder norte-coreano a atravessar o paralelo 38.
Sob o lema “Paz, um novo começo”, a cimeira em Panmunjom será “o pontapé de saída” de um jogo cuja segunda parte será “disputada” entre Coreia do Norte e EUA. “Temos de tentar que a cimeira intercoreana seja um bom começo, para que a cimeira entre Washington e Pyongyang tenha uma boa conclusão”, defendeu o chefe de Estado sul-coreano.
Virar costas, com respeito
Kim e Trump têm uma reunião apalavrada para fins de maio, inícios de junho. “Neste momento, discute-se o possível local da cimeira”, diz Rui Saraiva. “Falou-se de Pequim, que daria protagonismo à China, ou na zona desmilitarizada, que elevaria o papel da Coreia do Sul. Uma das opções favoritas dos americanos é uma embarcação em águas internacionais. Fala-se também no terreno neutro da Suíça, onde Kim Jong-un viveu e estudou. Trump vai querer um sítio que lhe dê o centro das atenções, mas Moon Jae-in e Xi Jinping [Presidente chinês] foram fundamentais em todo este processo.”
Esta semana, Trump confirmou contactos diretos “a um nível extremamente alto” entre Washington e Pyongyang. Foi noticiada uma visita à Coreia do Norte de Mike Pompeo — o diretor da CIA que aguarda confirmação como secretário de Estado — e um encontro com Kim Jong-un. “Não é algo impensável”, diz Rui Saraiva. “Em 2000, Madeleine Albright [secretária de Estado de Bill Clinton] visitou Pyongyang e encontrou-se com Kim Jong-il.”
Quando e onde quer que a cimeira aconteça, Trump já disse ao que vai. “Nunca estivemos numa posição como esta em relação àquele regime. Se vir que não vai ser um encontro frutuoso não vamos. Se durante o encontro não houver resultados abandonarei a reunião de forma respeitosa.”
(Foto: Donald Trump e Kim Jong-un, com os penteados trocados. Grafitis do artista australiano Lush Sux, nos pilares de uma ponte, em VienaBWAG / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de abril de 2018
In just four days, a former head of state was sentenced to 24 years in prison, and another was arrested. Is South Korea a corrupt country or a mature democracy?
Since 1987, the year South Korea joined the club of democratic countries three out of eight presidents were arrested or convicted of corruption. A fourth committed suicide after being implicated together with his relatives in a corruption scandal. A fifth is awaiting trial. Lee Myung-bak (2008-2013), who had been arrested on March 26, was formally indicted for corruption last Monday. Three days earlier, her successor at the Blue House, Park Geun-Hye (2013-2017), had been sentenced to 24 years in prison, charged with abuse of power, bribery, coercion, and leaking government secrets.
“I am not sure if it can be proved that South Korea is a corrupt country at the highest level. One thing is nevertheless clear. The President, although democratically elected, has a considerable power that can be manipulated by close relatives or personal friends”, said Young-Key, professor of Korean Language and Culture at George Washington University, in the USA, to the newspaper Expresso.
This is what happened to Park Geun-hye. Daughter of the former dictator Park Chung-hee (1963-1979), the first woman to hold the presidency allowed her friend and confidante Choi Soon-sil to take advantage of her status, to ask for bribes, and to interfere in the affairs of the state. Park was impeached by the Parliament on December 9, 2016 and detained on March 31, and has now been imprisoned. As for “Rasputinesque Choi”, she is serving 20 years in prison.
“Korean society is less and less corrupt, and has been moving towards eliminating corruption and improving the human rights conditions inherited from the post-colonial and the post-war periods. For the younger generations, corruption is a great evil that should not be tolerated by democratic values. That was strongly confirmed by peaceful demonstrations by millions of people every weekend leading to the resignation of Park Geun-Hye – the so-called “candle revolution”, the biggest social protest movement in the country’s democratic era, which began at the end of 2016.
“An interesting paradox is that Park Geun-hye was probably one of the best skilled leaders” for her position, added the professor in Washington. “But she didn’t understand the South Korean expectations. During her impeachment process, it was significant how Koreans almost unanimously wished to limit the political influence of big corporations. The arrest [on Monday] of former President Myung-bak was another step in the direction of this cleanup.”
Too close links
Former mayor of Seoul between 2002 and 2006, Lee was accused of receiving bribes worth 11 billion won (€8 million), including from Samsung. The scandal involving Park also “dragged through the mud” Lee Jae-yong, the heir of the electronics giant, sentenced to five years in prison for corruption crimes. These cases expose the promiscuous relations between the political elite and the famous South Korean conglomerates (chaebol), usually controlled by families that rescued the country out of poverty. Before going into politics, former President Lee Myung-bak was the CEO of Hyundai.
“Koreans are trying to get rid of the last major obstacle to their development, eradicating corruption in all sectors, and not only in politics”, says the professor in Washington. “People are fed up with this close proximity between the Government and the big economic groups” at the expense of the smaller ones, “and of the growing gap between rich and poor.”
Ten thousand kilometers away from his home country, 60-year old South Korean Byung Goo Kang, who has been living in Portugal for the last 33 years, is following the saga of the powerful forced to be accountable to justice with a bittersweet feeling. “This phenomenon demonstrates that democracy is working. In the past, it was almost impossible to imagine powerful politicians and businessmen being tried in a court of law”, the professor of Korean Language and Culture at the Universidade Nova de Lisboa [New University of Lisbon] said to Expresso. “It is very sad to see former presidents arrested, but I am happy with the progress of democracy in Korea.”
Not all former rulers are problematic, though. Kim Dae-jung (1998-2003) was awarded the Nobel Peace Prize in 2000, and the current President, Moon Jae-in – one of the protagonists of an inter-Korean summit to be held on April 27 – may follow suit.
(Foto: Casa Azul, residência do Presidente sul-coreano, em Seul FOTO WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de abril de 2018. Tradução de Margarida Santos Lopes, a quem agradeço o profissionalismo e a amizade! O original, em português, pode ser lido aqui
Em quatro dias uma ex-chefe de Estado foi condenada a 24 anos de prisão e outro foi preso. País corrupto ou democracia madura?
Três dos oito presidentes que conduziram os destinos da Coreia do Sul desde 1987, ano em que ascendeu ao clube dos países democráticos, foram presos e condenados por corrupção. Um quarto suicidou-se quando viu o seu nome, e o de familiares, envolvido num escândalo de corrupção. Um quinto aguarda julgamento.
Preso a 26 de março, Lee Myung-bak (2008-2013), foi formalmente acusado de corrupção na segunda-feira passada. Três dias antes, a sua sucessora na Casa Azul, Park Geun-hye (2013-2017), fora condenada a 24 anos de prisão por abuso de poder, suborno, coação e divulgação de segredos de Estado.
“Não estou certa de que se possa provar que a Coreia do Sul é um país corrupto ao mais alto nível. Uma coisa é clara: o Presidente, apesar de democraticamente eleito, possui um poder considerável que pode ser explorado por parentes próximos ou amigos pessoais”, diz ao Expresso a professora Young-Key Kim-Renaud, que ensina Língua e Cultura Coreana na Universidade George Washington, nos EUA.
Foi o que aconteceu com Park Geun-hye. Filha do ex-ditador Park Chung-hee (1963-1979), aquela que foi a primeira mulher a ocupar a presidência permitiu que uma amiga e confidente, Choi Soon-sil, se aproveitasse desse estatuto para solicitar subornos e intrometer-se nos assuntos de Estado. Park foi impugnada pelo Parlamento a 9 de dezembro de 2016, presa a 31 de março seguinte e, agora, condenada. Quanto à ‘Rasputina’ Choi, cumpre 20 anos de prisão.
“A sociedade coreana é cada vez menos corrupta e tem avançado no sentido de limpar a corrupção e aperfeiçoar as condições de direitos humanos herdadas dos períodos pós-colonial e pós-guerra. As gerações jovens consideram a corrupção um grande mal, que não deve ser tolerado pelos valores democráticos. Uma forte prova foram as impressionantes manifestações pacíficas de milhões de pessoas, todos os fins de semana, que levaram à impugnação de Park Geun-hye” — a “revolução das velas”, maior movimento de contestação social da era democrática, iniciado no final de 2016.
“Um paradoxo interessante é que Park Geun-hye foi provavelmente dos titulares mais bem preparados” para o cargo, continua a professora. “Mas não compreendeu as expectativas dos coreanos de hoje. Uma questão importante, em evidência durante a sua destituição, foi o desejo quase unânime dos coreanos de controlar a influência política das grandes empresas. A prisão [segunda-feira] do ex-presidente Lee Myung-bak foi mais um passo nessa limpeza.”
Laços demasiado estreitos
Ex-presidente da Câmara de Seul entre 2002 e 2006, Lee foi acusado de ter recebido subornos no valor de 11 mil milhões de won (€8 milhões), incluindo da Samsung. O escândalo à volta de Park também arrastou “para a lama” Lee Jae-yong, herdeiro da gigante dos telemóveis, condenado a cinco anos de prisão por crimes de corrupção. Estes casos expõem a relação promíscua entre a elite política e os famosos conglomerados sul-coreanos (chaebol), normalmente controlados por famílias e que tiraram o país da pobreza. Antes de entrar na política, o ex-presidente Lee Myung-bak liderou a Hyundai.
“Os coreanos tentam livrar-se do último obstáculo importante ao seu desenvolvimento, erradicando a corrupção de todos os sectores, não apenas da política”, comenta a professora. “As pessoas estão fartas desta grande proximidade entre Governo e grandes conglomerados”, à custa dos mais pequenos, “e do fosso crescente entre ricos e pobres”.
A 10 mil quilómetros de distância, Byung Goo Kang, sul-coreano de 60 anos a viver em Portugal há 33, acompanha a saga dos poderosos a contas com a justiça com um sentimento agridoce. “Este fenómeno revela que a democracia está a funcionar. Antigamente era quase impossível imaginar políticos ou empresários poderosos a serem julgados”, diz ao Expresso este professor de língua e cultura coreanas na Universidade Nova de Lisboa. “É muito triste ver antigos presidentes presos, mas fico contente com a evolução da democracia na Coreia.”
O país não tem, porém, apenas ex-governantes problemáticos. Kim Dae-jung (1998-2003) ganhou o Nobel da Paz em 2000 e o atua líder, Moon Jae-in — protagonista da cimeira intercoreana de 27 de abril —, pode ir a caminho disso.
(Foto: Casa Azul, residência do Presidente sul-coreano, em Seul WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de abril de 2018. Pode ser lido aqui. A tradução em inglês pode ser lida aqui
O importante não é vencer, mas competir. O lema olímpico aplica-se na perfeição à participação da primeira equipa da Coreia Unida nuns Jogos Olímpicos. A equipa feminina de hóquei no gelo terminou esta terça-feira a sua participação nos Jogos de PyeongChang, só com derrotas mas com a noção do dever cumprido
Logótipo da equipa de hóquei no gelo feminina da Coreia Unida que participou nos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang WIKIMEDIA COMMONS
Cinco jogos, cinco derrotas — e as espectadores nas bancadas do centro de hóquei de Kwandong em delírio, acenando com bandeiras da Coreia Unificada e gritando “Somos Um”. Terminou esta terça-feira, desta forma festiva e emocionada, a participação da equipa feminina coreana de hóquei no gelo, nos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang (Coreia do Sul).
“A avançada sul-coreana Kim Heewon ia enxugando as lágrimas à medida que ela e as suas companheiras de equipa iam acenando aos adeptos que as ovacionavam de pé”, lê-se na reportagem da agência Associated Press. “Alguns espectadores choraram quando as atletas fizeram um círculo no centro da pista e bateram com os sticks no gelo, num ritual antes de abandonarem o ringue.”
Pela primeira vez, uma formação coreana formada por atletas dos dois lados do paralelo 38 competiu nuns Jogos Olímpicos. A equipa foi formada dias antes do início dos Jogos de Inverno organizados pela Coreia do Sul, quando a diplomacia conseguiu inverter meses de grande tensão na península coreana — provocada por sucessivos testes nucleares realizados pela Coreia do Norte que ameaçaram fazer deflagrar uma guerra no Pacífico.
Ao autorizar a participação de atletas norte-coreanos — para além das 12 hoquistas, o Norte enviou outros 10 atletas —, Pyongyang contribuiu para uma jornada conciliadora entre as duas Coreias, desavindas desde 1948.
A relevância política da participação norte-coreana ofuscou por completo o desempenho desportivo — insignificante — da equipa unida. As hoquistas coreanas somaram derrotas em todos os jogos disputados, sofrendo 28 golos e marcando apenas dois: 0-8 e 0-2 contra a Suíça, 0-8 e 1-6 frente à Suécia e 1-4 diante o Japão.
Com a sensação do dever cumprido, as norte-coreanas regressam, agora, ao seu país, sem certezas de um dia voltarem a ver ou a falar com as coprotagonistas deste episódio histórico. É que mesmo em tempos de paz os contactos entre sul e norte-coreanos estão totalmente proibidos, seja por telefone, carta ou email.
Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 20 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui
Nos anos 80, os Jogos Olímpicos de Seul foram, para a Coreia do Sul, um palco de debute internacional após décadas de ditadura. Consolidada a democracia, o país quer agora impressionar com a sua capacidade tecnológica. Os Jogos de Inverno, em PyeongChang (assim mesmo, com um ‘c’ maiúsculo pelo meio), que começam esta sexta-feira (a RTP2 transmite a abertura às 11h), são a montra
Há precisamente 30 anos, a Coreia do Sul entrava para o clube restrito dos países organizadores dos Jogos Olímpicos. Seul acolhia a 24ª edição de verão, a última dos tempos da Guerra Fria, marcada pelo fim dos boicotes políticos em larga escala que feriram os Jogos de Montreal (1976), Moscovo (1980) e Los Angeles (1984). Marcada também pelaentrada “em prova” do doping, que atiraria para fora das pistas o velocista canadiano Ben Johnson, que entrara no Olimpo precisamente em Seul.
Para os portugueses, Seul foi inesquecível pelo ouro conquistado por Rosa Mota, na maratona. Para os sul-coreanos, o evento foi, acima de tudo, uma festa de debutante para um país que acabara de conquistar a democracia, após décadas de governos autoritários, e uma montra das capacidades do seu povo.
“O principal objetivo dos Jogos de Seul foi o aumento da visibilidade global da Coreia do Sul. E uma das grandes consequências foi o acelerar da democratização da sociedade sul-coreana”, diz ao “Expresso” Alan Bairner, professor de Teoria do Desporto e da Vida Social, na Universidade Loughborough (Reino Unido). Inversamente, “os Jogos nada fizeram para melhorar as relações entre as duas Coreias e podem até ter contribuído para isolar ainda mais a Coreia do Norte e torná-la um país voltado para dentro”.
Em junho de 1987, a sensivelmente um ano dos Jogos, manifestações gigantescas por todo o país desafiaram o regime de Chun Doo-hwan que, aos olhos do povo, perdera toda a legitimidade moral desde o massacre de Kwangju, em 1980 (mais de 2000 mortos). Os protestos eram o culminar de anos de turbulência que chegaram a fazer soar os alarmes na sede do Comité Olímpico Internacional (COI), em Lausana (Suíça): se a desordem se generalizasse em Seul, os Jogos mudariam de local, alertou o presidente do COI, o catalão Juan Antonio Samaranch.
Em vésperas de ter sobre si as atenções do mundo, o regime sul-coreano acusou a delicadeza da situação e conteve-se na repressão aos protestos. A 29 de junho, chegava a tão aguardada notícia que acalmaria as ruas: ainda antes dos Jogos, haveria eleições presidenciais, por voto direto e universal.
Apresentação do país ao mundo
“Organizar os Jogos Olímpicos teve um grande efeito psicológico junto dos sul-coreanos que encararam o evento como ‘a prova do reconhecimento internacional de que a Coreia era uma nação a caminho do progresso’”, diz ao “Expresso” Lee Dae-teak, professor de Convergência de Engenharia Desportiva, na Universidade Kookmin, Seul. “O país estava, oficialmente, a ser apresentado ao mundo e a mostrar as suas capacidades. Governo e população deram o seu melhor e sentiram um grande orgulho” no que foi feito.
À semelhança do que acontecera com o Japão, o primeiro país asiático a organizar os Jogos, em 1964, que não se poupou a esforços para honrar a sua reintegração na comunidade das nações, após a derrota na II Guerra Mundial, e mostrar ao mundo o milagre económico — construindo recintos modernos e colocando a eletrónica ao serviço do desporto —, a Coreia do Sul esperava que os Jogos de 1988 confirmassem a sua maioridade democrática e o seu potencial económico. Não por acaso, quem liderou a comissão de candidatura de Seul foi Chung Ju-yung, fundador do grupo Hyundai, um dos famosos conglomerados sul-coreanos (“chaebol”), como a Samsung e a LG.
No Parque Olímpico de Seul, recordações dos Jogos de há 30 anos. Debaixo da Porta da Paz Mundial, arde uma chama MARGARIDA MOTA
“Não há tanto entusiasmo como antes. Na verdade, antes de ser anunciada a participação da Coreia do Norte, a popularidade do evento em PyeongChang era muito baixa”, continua Lee Dae-teak. “Em 1988, muitos coreanos pensavam que os Jogos eram necessários, já que nos davam uma oportunidade para aparecermos e nos afirmarmos. Com essa experiência, os coreanos abriram os olhos ao mundo e perceberam que faziam parte dele. Hoje, com PyeongChang, factores como ‘os primeiros Jogos’ ou ‘a nossa apresentação’ ou ainda ‘a competitividade da Coreia’ não são mais atrativos. Talvez o único interesse seja os Jogos de inverno em si mesmos. Julgo que estes serão os últimos Jogos que os coreanos organizam desta maneira… ou seja, ‘organizar primeiro e pensar depois’! Gastámos demais e estamos pouco conscientes de que não valem tanto como os de 1988.”
Soohorang, um tigre branco, é a mascote dos Jogos de PyeongChang. Na mitologia coreana, o tigre simboliza confiança, força e proteção
A convite da Korea Foundation, o “Expresso” visitou o Parque Desportivo de Alpensia, onde decorrerão provas de esqui. Numa apresentação para jornalistas europeus, Nancy Park, a porta-voz do evento, salientou a forte aposta na tecnologia com que PyeongChang pretende deslumbrar o mundo. “Seremos os primeiros Jogos a providenciar serviços de telecomunicações em 5G, que presentemente é 20 vezes mais rápido do que 4G”, disse.
Haverá um autocarro com acesso à quinta geração de telemóveis, realidade virtual de 360 graus (com óculos que permitem envolver num cenário virtual), visão omnidirecional a partir do ponto em que se encontram os atletas, imagens 3D sem óculos e hologramas. Robôs humanoides farão tarefas de relações públicas, prestarão informações e trabalharão como porteiros. Um robô já participou no transporte da tocha olímpica.
No plano desportivo, PyeongChang organizará provas em 15 modalidades, para atletas de 93 países — os russos competirão sob bandeira olímpica. Portugal estará presente com dois atletas: Ke Quyen Lam, em Esqui Cross Country, e Arthur Hanse, em Esqui Alpino.
Após descerem a pista de saltos, no Parque Desportivo de Alpensia, os esquiadores caem sobre o relvado do Gangwon Football Club, por estes dias coberto de neve MARGARIDA MOTA
Em Alpensia, saltam à vista alguns cuidados com os custos do evento. Com 150 metros de altura, a torre dos saltos de esqui, por exemplo, está integrada no complexo do Gangwon Football Club. Após descerem a pista de saltos, os esquiadores caem sobre o relvado daquele clube da primeira divisão sul-coreana, por estes dias sob um manto de neve.
Nancy Park refere que as infraestruturas já têm destino após o evento. “Dos 12 locais de competição, seis já existiam anteriormente, estão a ser utilizados há anos. Em relação aos outros, temos planos para todos. Os apartamentos onde vão ficar os atletas e a ‘aldeia dos media’ já foram totalmente vendidos. Depois dos Jogos, haverá gente a ocupá-los.”
Mas PyeongChang não escapa ao desperdício. Com capacidade para 35 mil lugares — na cidade vivem pouco mais de 40 mil pessoas —, o estádio olímpico será desmantelado após o evento. Servirá apenas para acolher as cerimónias de abertura e encerramento (também dos Jogos Paralímpicos, que decorrerão entre 9 e 18 de março).
“Gastamos muito orçamento, algo que não é razoável nem explicável”, diz o professor Lee Dae-teak. “Construímos várias infraestruturas novas que poderiam ter sido construídas ou reconstruídas noutras cidades” — uma possibilidade viabilizada pela Agenda 2020, do COI, que visa, entre outros, racionalizar custos com a organização dos Jogos Olímpicos. “A província de Gangwon e o Governo não aceitaram essa opção. Muitas infraestruturas não terão um uso efetivo após os Jogos. E exigirão gastos com manutenção. Decidiram construir uma nova encosta alpina para ser usada apenas cinco dias e numa montanha que era área natural protegida há 500 anos.”
Fatura emitida aos contribuintes
Nos dias que correm, organizar os Jogos Olímpicos não é mais (apenas) uma questão de orgulho e poder. O dispêndio de milhões em infraestruturas, que muitas vezes ficam depois ao abandono, e a degradação das aldeias olímpicas, que transformam locais de glória em cidades fantasma, é cada vez mais questionado pelas populações de potenciais cidades anfitriãs.
A própria ideia de que os Jogos arrastam benefícios sem fim para os municípios que os acolhem foi sendo contrariada por experiências mal sucedidas. A maioria dos países organizadores sofreu o chamado “efeito de vale”, recebendo grandes investimentos no período que antecedeu o evento e uma queda abrupta dos mesmos no período subsequente. Nalguns casos, os contribuintes foram chamados a pagar pesadas faturas durante muitos anos, como os canadianos que só em 2006 acabaram de pagar o imposto relativo aos custos dos Jogos Olímpicos de Montreal, realizados em… 1976.
GUSTAVO SILVASC / WIKIMEDIA COMMONS
No ano passado, os habitantes de Budapeste mostraram um cartão vermelho à realização dos Jogos na capital da Hungria. A cidade tinha em curso uma candidatura à edição de 2024 quando uma petição assinada por mais de 250 mil pessoas e manifestações nas ruas questionaram esse interesse. A Hungria acabaria por retirar-se da corrida, deixando o “sprint” final para Paris e Los Angeles: numa decisão inédita, a capital francesa ficou com os Jogos de 2024 e a cidade norte-americana com a edição seguinte, de 2028. Com esta fórmula de atribuição dos Jogos, o COI esquece-se, durante algum tempo, que o rol de cidades interessadas em receber o evento é cada vez mais pequeno.
“Ironicamente, um dos exemplos mais antigos de uma derrota de uma potencial cidade anfitriã em grande parte devido à oposição popular foi Nagoya, no Japão, que abriria caminho à vitória de Seul. Nagoya não se retirou mas simplesmente não tinha apoio local como Seul”, explica Alan Bairner. “É cada vez mais difícil para cidades pequenas justificar a organização de grandes eventos desportivos devido aos custos envolvidos e à necessidade de pesadas medidas de segurança. Isso pode explicar por que razão estes eventos estão, mais do que nunca, a realizar-se em países mais autoritários, como a Rússia [Jogos de inverno de 2014, em Sochi, e Mundial de Futebol de 2018] e a China [Jogos de verão de 2008 e de inverno em 2022, ambos em Pequim] que podem dar-se ao luxo de os acolher e já têm grandes operações de segurança dentro de portas.” O Mundial do Qatar em 2022 é outro exemplo.
Coreia do Sul 1 — Portugal 0
Entre as duas jornadas olímpicas, a Coreia do Sul acolheu também o Mundial de Futebol de 2002 (co-organizado com o Japão) e o Campeonato do Mundo de Atletismo, em 2011, em Daegu. Em todo o mundo, apenas mais quatro países tiveram capacidade organizativa para montar todos estes grandes eventos: Alemanha, França, Itália e Japão.
O Mundial de Futebol foi especial a vários níveis. Um misto de orgulho nacional e de dinâmica de grupo empurrou a seleção da casa até às meias finais. “Foi talvez o símbolo mais forte da nova era. O sucesso imprevisto da equipa nacional no campo correspondia à extraordinária energia dos cidadãos na demonstração do seu apoio coletivo, traduzido em multidões de pessoas nas ruas quando a seleção nacional jogava”, lê-se no livro “A History of Korea”, de Kyung Moon Hwang (Palgrave Macmillan, 2010).
Treinada pelo holandês Guus Hiddink, a equipa sul-coreana excedeu as expectativas, levando milhões a encherem praças, parques e outros espaços públicos para assistir às partidas em ecrãs gigantes. “Quando a equipa nacional, um competidor insignificante, venceu Portugal [1-0], um dos favoritos do Mundial, e avançou para os oitavos de final, essas multidões entraram em erupção, e cresceram ainda mais no jogo seguinte contra a Itália, outra potência perene”, continua o autor. A Coreia do Sul venceu a fase de grupos — deixando pelo caminho Portugal, treinado por António Oliveira —, nos oitavos derrotou a Itália de Cannavaro, Gattuso e Del Piero e nos quartos de final a Espanha de Casillas, Hierro e Raúl.
À medida que as ruas se enchiam de ansiedade e euforia, “tornava-se claro que essas grandes concentrações de pessoas iam muito além do futebol; diziam respeito a um desejo incontrolável de experimentar diretamente um novo modelo de conexão social”. A Coreia do Sul ficaria em quarto lugar (perdeu o último lugar do pódio para a Turquia) e o torneio seria ganho pelo Brasil, que conquistou o penta após derrotar a Alemanha por 2-0.
Praça de Seul lotada de adeptos, durante o Mundial de 2002, na capital sul-coreana WIKIMEDIA COMMONS
Para os sul-coreanos, estes grandes eventos são também uma forma de esclarecerem equívocos em relação à sua identidade. Quando Pyeongchang se aventurou na corrida olímpica, “o comité de candidatura decidiu transformar em maiúscula o ‘c’ do nome da cidade”, diz ao “Expresso” Songjae Lim, membro do comité organizador. A medida visou criar uma distinção, pelo menos visual, que minimizasse uma confusão recorrente entre Pyeongchang e Pyongyang, a capital norte-coreana, e acautelar que todas as delegações aterrassem na Coreia certa…
A medida não foi 100% eficaz e, ainda no ano passado, um jato empresarial da Gulfstream, transportando patrocinadores dos Jogos, foi notícia ao aterrar por engano na Coreia do Norte. “Paramos na pista e o piloto comunicou-nos o erro. Ficamos estarrecidos com o que nos poderia acontecer”, recordaria um dos oito passageiros. “Ele disse-nos que ficassemos sentados e calmos. Um tripulante de cabine abriu a porta e pudemos ver homens armados em uniforme em frente ao avião.”
Foram mandados descer do aparelho e as malas inspecionadas. O profuso “merchandising” olímpico que transportavam contribuiu para um rápido esclarecimento do equívoco. E lá seguiram viagem para a Coreia do Sul.
Pior sorte teve o queniano Daniel Olomae Ole Sapit, membro da tribo maasai, registado para participar numa conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade, em outubro de 2014, em PyeongChang. Quando o avião em que seguia iniciou a descida, começou a temer o pior ao não conseguir vislumbrar a grande e moderna cidade de Seul que tinha em mente. Aterrou em Pyongyang, foi detido durante mais de quatro horas, mas tudo se resolveu a bem. Pagou cerca de 500 dólares para garantir o regresso e assinou um documento prometendo jamais voltar a entrar na Coreia do Norte sem visto.Em declarações ao jornal “The Wall Street Journal”, diria: “Pyongyang, PyeongChang… para um africano, que diferença faz?”
(Foto principal: Durante o processo de candidatura aos Jogos, o “c” de PyeongChang foi transformado em maiúscula para que a cidade não fosse confundida com a capital norte-coreana, Pyongyang POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG)
Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 8 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.