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Uma trégua olímpica com um facto inédito, um visitante inesperado e um crime que não vai ser punido

A participação de atletas norte-coreanos nos Jogos Olímpicos de Inverno, que começam, esta sexta-feira, em PyeongChang (Coreia do Sul), salva um evento que ameaçava passar despercebido. Mais importante, abre a porta do diálogo a dois países desavindos há mais de 70 anos

Pista para as provas de patinagem artística, na Arena de Gelo de Gangneung POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

Dez meses antes dos Jogos Olímpicos de Seul, já lá vão quase 30 anos, um avião da Korean Air que descolara de Bagdade (Iraque) com destino à capital sul-coreana explodiu nos céus do Mar de Andamão, perto da costa oeste da Tailândia. A bordo do voo 858 seguiam 104 passageiros e 11 tripulantes, na sua esmagadora maioria cidadãos sul-coreanos. Naquele fatídico 29 de novembro de 1987, ninguém sobreviveu.

A explosão foi provocada por uma bomba deixada num compartimento de bagagem por um casal de espiões norte-coreanos, que fintou a morte desembarcando na escala em Abu Dabi, Emirados Árabes Unidos. Intercetados no Bahrain, ingeriram cianeto quando sentiram que a sua captura estava iminente. O homem morreu, a mulher sobreviveu. Numa conferência de imprensa, em janeiro de 1988 — forçada a confessar, tolhida pelos remorsos ou simplesmente dizendo a verdade —, a terrorista, Kim Hyon-hui, afirmou que aquele atentado tinha sido ordenado “pessoalmente e por escrito” por Kim Jong-il (pai do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un), e que um dos objetivos era assustar os países que tencionavam participar nos Jogos Olímpicos de Seul.

Quinze anos depois, um outro grande evento desportivo organizado pela Coreia do Sul coincidiria com mais um episódio sangrento envolvendo as duas Coreias. Com o Mundial de Futebol a decorrer — coorganizado com o Japão —, quatro marinheiros sul-coreanos foram mortos durante uma intensa batalha naval, no Mar Amarelo, envolvendo embarcações do Norte e do Sul. (Não há informação sobre vítimas do lado norte-coreano.)

“Estes eventos desportivos atraem atenção mediática e política a nível internacional, o que confere à Coreia do Norte uma oportunidade para captar a atenção da comunidade internacional e demonstrar posições de força ou de diplomacia consentâneas com o seu interesse nacional”, explica ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei (Japão). “A intenção da Coreia do Norte não é necessariamente minar eventos desportivos, apenas reafirmar o seu interesse nacional. No caso do Mundial de Futebol de 2002, essa ligação não pôde ser totalmente comprovada.”

Em PyeongChang, o “curling” será uma das modalidades em competição POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

Edição após edição, os Jogos Olímpicos, em especial, vêm sendo uma espécie de barómetro de uma relação conflituosa que dura desde o fim da Segunda Guerra Mundial — agravada por uma guerra (1950-1953) que terminou com a assinatura de um armistício, mas nunca com um tratado de paz. Nos Jogos de Inverno que começam, esta sexta-feira, na cidade sul-coreana de PyeongChang, é inequívoca a vontade bilateral numa trégua. Após meses de provocações verbais belicistas entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte — que levaram Donald Trump a prometer, nas Nações Unidas, a “destruição total da Coreia do Norte” e Pyongyang a ameaçar os EUA com “um mar de fogo inimaginável” —, a Coreia do Norte substituiu a retórica do confronto pela do diálogo e anunciou a sua participação nos Jogos de PyeongChang.

Haverá em competição 10 atletas norte-coreanos, mais 12 hoquistas que integrarão a equipa conjunta feminina de Hóquei no Gelo, que participará sob bandeira da Coreia Unificada — um facto inédito na História dos Jogos Olímpicos e do conflito coreano.

Um par de patinadores norte-coreanos treina na Arena de Gelo de Gangneung POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

Igualmente sem precedentes, na delegação norte-coreana irá um membro da família Kim, que governa o país desde 1948 ao estilo de uma república dinástica. Kim Yo-jong, 28 anos, a irmã mais nova do líder norte-coreano e sua discreta assessora, será o primeiro membro da família a atravessar o paralelo 38, a fortificada fronteira entre as duas Coreias.

“A presença da irmã de Kim Jong-un confere uma importância acrescida à delegação norte-coreana”, refere Rui Saraiva. “E permitirá, mais facilmente, a abertura de canais diplomáticos formais e informais entre a Coreia do Norte e os líderes de várias nações que vão estar presentes no evento.”

Para a “festa” coreana que se projeta, na quarta-feira atravessou a fronteira um dos maiores grupos de norte-coreanos em tempos de paz. Nele vieram “cheerleaders”, desportistas, jornalistas, representantes do comité olímpico e o ministro dos Desportos, Kim Il-guk, num total de 280 pessoas. Na véspera, chegou de “ferry” uma orquestra de 137 músicos, que vai atuar durante os Jogos.

Da delegação norte-coreana, faz parte um grupo de “cheerleaders”, com a missão de animar as bancadas em PyeongChang e mostrar a beleza, juventude e felicidade de quem vive a norte

No plano diplomático ou militar, a Coreia do Norte tem sempre uma mesma linha condutora — “a sobrevivência do regime”, diz o docente da Universidade de Hosei. “A política externa norte-coreana guia-se por considerações pragmáticas ou realistas. Aliás o pragmatismo é, no meu entender, um ‘princípio’ comum dos países da Ásia Oriental. Nos próximos anos, o Ocidente vai surpreender-se mais com o que une estes países do que com aquilo que os separa.”

Mas há algo de que Pyongyang não abdica — “o princípio da não intervenção nos seus assuntos internos por parte de outros Estados”, acrescenta o professor português. “Enquanto os outros atores relevantes num possível processo de diálogo não aceitarem esta condição, esse processo estará condenado ao fracasso.”

A Coreia do Sul acolhe os Jogos Olímpicos pela segunda vez, 30 anos após os de Seul POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

A curto prazo, porém, a relação intracoreana está destinada ao sucesso. “Antes da decisão da participação da Coreia do Norte, a curiosidade dos sul-coreanos em relação ao evento era muito baixa”, diz ao Expresso Lee Dae-teak, professor de Convergência de Engenharia Desportiva, na Universidade Kookmin, Seul. “Com essa decisão, os Jogos podem ser verdadeiramente designados de ‘Olimpíadas da Paz’.”

Para que assim seja, a Coreia do Sul está disposta a fazer cedências… Em PyeongChang, será — conscientemente — ignorada uma lei de 1948 que visa “restringir atos contra o Estado que ponham em perigo a segurança nacional”, tais como… acenar com bandeiras norte-coreanas. Em contexto de desanuviamento, como o que se pretende em PyeongChang, tudo é relativo. Nos sítios de competição, a bandeira norte-coreana ondulará ao lado das dos restantes 92 países participantes — Portugal compete com Ke Quyen Lam, em Esqui Cross Country, e Arthur Hanse, em Esqui Alpino —, içada não por militares sul-coreanos, mas por voluntários. E em caso de vitória, subirá no mastro com glória, ao som do hino nacional.

Em PyeongChang, as duas Coreias competirão separadas, mas, sexta-feira, na cerimónia de abertura, desfilarão juntas, atrás da bandeira da Coreia Unificada — como já aconteceu nos Jogos de Sydney (2000) e de Atenas (2004). O desporto a dar o exemplo à política.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 8 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui

Sonho distante

A reunificação da península coreana está refém do desinteresse dos jovens e do abismo entre um Norte fechado e obcecado com o nuclear e um Sul moderno e desenvolvido. Reportagem na Coreia do Sul

É noite escura na praia de Gyeongpo e há fogo de artifício no ar. Nada de especial se celebra nesta cidade sul-coreana, Gangneung, mas é hábito entre os seus habitantes lançarem-se foguetes durante os passeios noturnos no areal. Um jovem casal faz um piquenique frugal próximo da linha de mar. Mais adiante, uma família delicia-se com as corridas de uma criança pequena com um palito de fogo de artifício na mão.

Não muito longe dali, no paredão de frente para a ponte iluminada, cinco rapazes estão em silêncio junto a tantas outras canas de pesca. No chão, um smartphone vai debitando uma suave música ambiente. Há também garrafas de refrigerante abertas e uma frigideira sobre um fogareiro para uma patuscada mais dali a pouco. São amigos e todos eles estudantes de língua e cultura alemã na Universidade de Gangwon. Aquela pescaria é a melhor forma de iniciarem as férias de verão.

Portugal fica longe, mas estes jovens não ficam indiferentes à nacionalidade de quem os interpela. “Oooh, Cristiano Ronaldooooo”, dizem vários descompassadamente. Começam a disparar conhecimentos sobre o futebol português, mas não se ficam pela bola. “Há tempos vi um filme sobre Portugal. Gostei muito”, diz um deles. Não se lembra do nome, mas é ágil a procurar a resposta no telemóvel. No ecrã surge o trailer de “Comboio Noturno Para Lisboa”.

Os jovens revelam mais interesse em falar de Portugal do que do futuro do seu país. E não se mostram especialmente entusiasmados perante a ideia da reunificação com o norte da península. “Não gosto dos norte-coreanos”, atira um de pronto, logo interrompido por outro: “São a nossa cultura! Mas são um bocado malucos, não confio neles”. Um terceiro faz a síntese: “Nós queremos a união, mas há uma grande diferença entre um país e o outro. Não funciona.”

Bibliografia sobre a Coreia do Norte, numa livraria de Seul MARGARIDA MOTA

Norte e sul-coreanos vivem separados há praticamente 70 anos. Hoje quase só os mais velhos sentem essa distância como uma ferida no coração. Para as gerações mais novas, a reunificação é um assunto longínquo, histórias de família que ouviram contar, mas que pouco ou nada mexem com as suas emoções. “É verdade que os mais jovens não se importam com a reunificação. Esse assunto interessa sobretudo aos mais velhos”, diz Kwan-Sei Lee, vice-diretor do Instituto de Estudos do Extremo Oriente, da Universidade de Kyungnam. “A educação e sensibilização dos mais jovens para a questão da reunificação tem sido uma preocupação. Para os mais jovens, o mais importante é irem para a universidade, formarem-se e arranjarem empregos bem remunerados.”

O ‘divórcio’ entre Norte e Sul iniciou-se em 1948 quando a península coreana, ocupada pelo Japão desde 1910, pagou a fatura da derrota nipónica na II Guerra Mundial e foi dividida em dois — a República Popular Democrática da Coreia (Norte) e a República da Coreia (Sul). Esse afastamento acentuou-se dois anos depois, com a Guerra da Coreia (1950-1953), que mergulhou a península no caos e condenou muitas famílias à separação total — nalguns casos, marido e mulher, proibidos de trocarem cartas, de se falarem ao telefone, mais ainda de se encontrarem cara a cara.

Corrida contra o tempo

Outrora 130 mil, hoje são pouco mais de 60 mil os sul-coreanos que, segundo o Ministério da Unificação, fazem parte de famílias divididas. Aguardam por um contacto com alguém que está no Norte ou, tão-somente, pela possibilidade de lá irem visitar a campa de um familiar que já partiu. Desses 60 mil, 63% têm mais de 80 anos. Anualmente, morrem à volta de 3000, o que torna esta questão uma corrida contra o tempo.

No passado, Norte e Sul já organizaram vários encontros de famílias divididas. São sempre momentos fortemente emotivos que indiciam um bom momento na relação entre os dois países. Talvez por isso, desde que Kim Jong-un foi entronizado Líder Supremo da Coreia do Norte, em finais de 2011, nenhum encontro se realizou. Desde 1948 que os Kim governam a Coreia do Norte ao estilo de uma república dinástica. O poder vai passando de pai para filho e o mandato só termina com a morte do titular: primeiro Kim Il-sung (de 1948 a 1994), depois Kim Jong-il (até 2011) e agora Kim Jong-un.

No país do qual pouco se sabe, mas que no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU de 2016 surge com uma esperança média de vida à nascença de 70,5 anos (contrastando com os 82,1 da Coreia do Sul), o poderio militar é cada vez mais sofisticado e ameaçador. “Kim Jong-un tem uma postura bastante diferente da do pai e do avô. Enquanto estes tinham alguma margem para negociar, ele acabou com a ambiguidade do programa nuclear norte-coreano reafirmando-o como um fim em si e não como uma moeda de troca”, explica Ko Yunju, vice-diretor-geral do Gabinete dos Assuntos do Nuclear Norte-Coreano, do Ministério dos Negócios Estrangeiros sul-coreano.

“Na revisão constitucional de 2012, Kim Jong-un introduziu a frase de que a Coreia do Norte é um ‘Estado com armamento nuclear’. Na carta do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, também estipulou a Linha Política Byung-Jin que busca, simultaneamente, o desenvolvimento económico e a defesa nuclear. Ele está a acelerar o programa nuclear e a aproximar-se da fase final do desenvolvimento de armas nucleares.”

Quem anda pelas ruas de Seul à procura de um ambiente de tensão ou de indícios de um conflito iminente corre o risco de achar que se enganou no país. Não há outdoors com mensagens bélicas a demonizar o Norte nem avisos com instruções de “como agir” na eventualidade de Pyongyang disparar um míssil na direção do Sul. Mais depressa se encontram propostas de viagem até à fronteira com a Coreia do Norte.

Nos escaparates de uma pequena agência turística perto da Praça de Seul, não faltam brochuras de tours até à zona desmilitarizada (DMZ), a “terra de ninguém” com quase 250 quilómetros de comprimento (de costa a costa) e quatro quilómetros de largura e que é o símbolo do único país dividido e tecnicamente em guerra à face da Terra — entre Norte e Sul apenas foi assinado o armistício de Panmunjom, nunca um tratado de paz.

A partir de 38 dólares (32 euros), os programas proporcionam visitas, por exemplo, ao 3º Túnel, escavado pelos norte-coreanos após o armistício a pensar num ataque surpresa contra o Sul. Nalguns pontos, recorrendo a binóculos, é possível avistar o misterioso país com algum pormenor. Aquela que é a fronteira mais militarizada do mundo é um verdadeiro museu a céu aberto para turistas, com observatórios, túneis, memoriais, checkpoints e povoações com importância histórica. Desembolsando um pouco mais, há a possibilidade de alguns tours serem feitos na companhia de um desertor norte-coreano.

Se o leitor ficou curioso, o YouTube disponibiliza um vídeo da visita do comediante norte-americano Conan O’Brien à DMZ. Pesquise por “Conan Stars In North Korea’s First Late Night Talk Show”. Especialmente hilariante é a visita à sala de conferências na Zona de Segurança Conjunta, onde norte e sul-coreanos se encontram sempre que necessário e possível, e onde a linha de fronteira — o paralelo 38 — passa pelo centro da mesa colocada no meio da sala.

No exterior, separados por escassos metros, militares dos dois lados, falantes da mesma língua, não trocam palavra nem olhar. Numa cultura onde, como diz o professor Kim Seong-Kon, ex-reitor da Universidade Nacional de Seul, “se chora por tudo e por nada” — de felicidade, de tristeza, de raiva, de gratidão —, os sul-coreanos usam óculos escuros para esconder as emoções. E intimidar os do Norte.

Pensar numa Coreia unificada implica arranjar fórmula para ultrapassar o abismo Norte-Sul em matéria de dinâmica política e desenvolvimento social. Se, em Pyongyang, criticar as autoridades ou clamar por liberdades pode condenar quem o faz a trabalhos forçados, em Seul protesta-se “por tudo e por nada”.

No centro da capital sul-coreana, a Avenida Sejong é uma passarela para manifestações sobre os mais diversos assuntos, umas individuais outras coletivas, umas mediáticas outras mais discretas. Junto à estátua do rei Sejong — o monarca que reinou entre 1418 e 1450 e criou o hangeul, o alfabeto coreano —, um homem está só no seu protesto. Sentado no chão, não fala uma palavra que não seja coreano. “Não a Trump. Não ao THAAD”, lê-se num cartaz em inglês ao seu lado.

Para que a mensagem passe com clareza, puxa de um caderno e abre numa folha onde um texto manuscrito em inglês diz: “Os Estados Unidos deslocaram o THAAD para a Coreia do Sul ilegalmente. Dizem que é necessário para defender dos mísseis da Coreia do Norte. Mas, na verdade, visa atacar a Coreia do Norte. O THAAD provoca a guerra na Coreia. Nós queremos uma Coreia pacífica. Não queremos a instalação do THAAD”.

“Não a Trump. Não ao THAAD”, lê-se num dos cartazes deste manifestante solitário, no passeio da Avenida Sejong, em Seul MARGARIDA MOTA

THAAD é a sigla inglesa de Terminal de Defesa de Área de Alta Altitude e refere-se a um escudo antimíssil formado por radares de longo alcance e baterias de interceção de mísseis a grande altitude. Fabricado pela norte-americana Lockheed Martin, começou a ser instalado pelos EUA na Coreia do Sul no tempo da antiga Presidente Park Geun-hye (2013-2017) para defender o país de um eventual ataque do Norte.

Os sul-coreanos prezam a aliança com os norte-americanos, mas não a desejam a qualquer preço. Uma das primeiras medidas que Moon Jae-in ordenou após tomar posse como Presidente do país, a 10 de maio passado, foi suspender o processo de instalação do THAAD até à conclusão de um estudo de impacto ambiental. Porém, a recente batalha verbal entre Kim Jong-un e o homólogo norte-americano, Donald Trump, com ameaças de guerra de parte a parte, obrigou os sul-coreanos a fazerem cedências: o estudo ambiental continua, mas, dada a ameaça iminente de uma ação armada norte-coreana, o THAAD vai ser instalado na sua totalidade.

Continuando a descer a Avenida Sejong, a Praça Gwanghwamun — onde se ergue a estátua do mítico almirante Yi Sun-Sin — está ocupada por um conjunto de pequenas tendas pontiagudas que abrigam outro protesto ao estilo de uma exposição permanente. Aberta dia e noite, sete dias por semana, não deixa que uma grande tragédia recente caia no esquecimento: o naufrágio do ferry “Sewol”, a 16 de abril de 2014, onde morreram 304 pessoas, 250 das quais eram alunos e outros 11 professores na Escola Secundária Danwon, da cidade de Ansan. Iam numa viagem de férias para a ilha de Jeju.

Mais de três anos depois, há perguntas que continuam sem resposta relativas às razões do naufrágio e, sobretudo, do falhanço da operação de resgate. Jeong-yeon Lee, uma enfermeira de 50 anos, é voluntária, três dias por semana, numa das tendas da exposição. Tenta captar a atenção de quem passa e apela a que assine uma petição onde se pede uma investigação ao caso e a punição dos responsáveis. “Continuamos sem saber porque é que o ferry se afundou”, diz. “A guarda costeira resgatou a tripulação, não os passageiros. E a Presidente [Park Geun-hye] não deu qualquer ordem durante sete horas. Desapareceu!” Muitos cidadãos acusam a então chefe de Estado de obstrução às tentativas de investigação da tragédia.

Revolução das velas

Jeong-yeon Lee tem dois filhos adolescentes. “A maioria das vítimas é da idade deles. Ainda não apareceram cinco corpos. Encontrem-nos!”, exige com uma expressão de revolta. A enfermeira acredita que o novo Presidente, Moon Jae-in, um antigo advogado na área dos Direitos Humanos, vai levar o caso até às últimas consequências. “Ele prometeu!” Numa tenda ao lado, voluntários fazem pins em forma de laços amarelos, o símbolo da campanha. Noutra, forrada com as fotografias das vítimas, convida-se o visitante a entrar, a orar e a colocar uma flor sobre uma espécie de altar.

Memorial às vítimas do naufrágio do ferry “Sewol”, a 16 de abril de 2014, a esmagadora maioria delas estudantes MARGARIDA MOTA

Desde 14 de julho de 2014 que a Praça Gwanghwamun está ocupada por voluntários e familiares das vítimas do “Sewol”. Já fizeram greves de fome, marcharam até à Casa Azul (a sede da presidência sul-coreana), foram recebidos pela Papa Francisco quando da sua visita à Coreia do sul, em agosto de 2014, e alimentaram a Revolução das Velas, o maior movimento de contestação social da era democrática, que começou a “iluminar” a Coreia do Sul em finais de 2016.

Acusada de governar sob influência de uma guru e suspeita de receber dinheiro de grandes grupos industriais, a Presidente Park Geun-hye viu sair às ruas de todo o país, todos os sábados e durante semanas a fio, milhões de sul-coreanos com uma vela na mão. Acusavam a Presidente de estar a arruinar a democracia, permitindo que a sua amiga e confidente Choi Soon-sil interferisse em assuntos de Estado, e exigiam a sua demissão. Ela era também a odiada governante que falhara na gestão do naufrágio do “Sewol” e abrira as portas do país à instalação do polémico THAAD.

A contestação acabaria por levar à impugnação da Presidente no Parlamento, a 9 de dezembro de 2016, a um ano de terminar o mandato. Hoje está presa e a aguardar julgamento por abuso de poder, suborno e coerção. Se as gigantescas manifestações populares de junho de 1987 — sensivelmente a um ano dos Jogos Olímpicos de Seul — puseram fim à ditadura militar, forçando à realização de eleições democráticas, quase 30 anos depois milhões de sul-coreanos festejaram o impeachment de Park Geun-hye como um sinal de maturidade democrática.

Hoje, junto ao memorial às vítimas do “Sewol”, uma vela gigante feita de arame enfeitada com laços amarelos alude a esse movimento histórico. E inspira outras lutas sectoriais. É terça-feira e cerca de 8000 operários da construção civil seguem, avenida acima, na direção da Praça Gwanghwamun. Exigem que as empresas do sector contratem mais coreanos e não mão de obra ilegal. Vêm de todo o país. No final do dia, terminada a jornada de luta, espalham-se pelos espaços verdes e pelos passeios em cimento das imediações do Cheonggyecheon, o riacho urbanizado que atravessa o centro de Seul, e ali ficam a dormir ao relento. O regresso a casa fica para o dia seguinte.

Na Avenida Sejong, em Seul, uma vela gigante feita de arame e enfeitada com laços amarelos não deixa que a revolução das velas caia no esquecimento MARGARIDA MOTA

Quando reflete sobre a evolução democrática do seu país, o cientista político Yeonho Lee, diretor do Centro Jean Monnet, da Universidade de Yonsei, diz que lhe vem à mente a odisseia de Bartolomeu Dias por terras africanas, em busca do Preste João e do reino cristão. “O mesmo tipo de experiência se passa hoje na Ásia: os europeus estão a encontrar aqui os seus valores, o capitalismo de mercado e a democracia política”, diz.

“A Coreia do Sul conquistou a democracia e o crescimento económico num período de tempo muito curto. Só iniciámos o processo de modernização ao estilo ocidental em 1945, após libertarmo-nos da ocupação japonesa. Os valores europeus floresceram na Ásia Oriental.” No Índice de Democracia de 2015 da revista “The Economist”, a Coreia do Sul surgia em 22º lugar (Portugal era 33º). A nível económico, em 2016, tinha o 29º PIB per capita mais alto do mundo.

Arranha-céus na capital sul-coreana MARGARIDA MOTA

Em 30 anos de democracia, os primeiros 10 foram de transição. A partir de 1997, a Coreia do Sul começou a produzir bens de primeira classe e a esculpir marcas globais, como a Samsung (líder mundial no segmento dos smartphones), a KIA e a Hyundai, na área automóvel, e a LG Electronics, no sector dos equipamentos eletrónicos e eletrodomésticos. Estas marcas são a espinha dorsal de uma economia exportadora, que é membro do G20.

Internet, prós e contras

Mais do que um país que vive assustado pela iminência de um conflito com o Norte, a Coreia do Sul é um país que procura destacar-se fora de portas pela excelência. O aeroporto de Incheon foi considerado o melhor do mundo por 12 anos consecutivos. O país tem a internet mais rápida de todo o planeta e WiFi sem interrupções nas carruagens de metro. Em Seul, a existência de um Centro de Prevenção de Dependência da Internet revela, porém, que aceder à net com tanta facilidade e rapidez pode também ser fonte de problemas…

Se o leitor tem ativadas, no seu “smartphone, as notificações da CNN é possível que, em julho, tenha recebido uma sugestão de leitura intitulada “50 razões pelas quais Seul é a melhor cidade do mundo”. Da lista não constam, mas poderia, o cuidado na recolha de lixo e a disciplina dos cidadãos nas filas dos transportes públicos desta cidade onde vivem aproximadamente tantas pessoas como em Portugal.

Seis jovens viajam no metro de Seul, cada qual agarrado ao seu “smartphone” MARGARIDA MOTA

A mais de 10 mil quilómetros de distância, faltam pontes entre Portugal e a Coreia do Sul que ajudem a aproximar os povos e a esclarecer alguns equívocos, designadamente a perceção de muitos portugueses de que todos os sul-coreanos se chamam Kim… O exagero não é descabido. Segundo o professor Kim Seong-Kon, presidente do Instituto de Tradução de Literatura da Coreia e ex-reitor da Universidade Nacional de Seul, um quarto dos 50 milhões de habitantes do país chama-se, efetivamente, Kim. Há ainda muitos Lee e Park, sendo este último o nome mais comum, como é o caso do atual embaixador em Portugal, Park Chul-min.

Kim, Lee e Park são apelidos e não nomes próprios. De acordo com a tradição coreana, o nome de família vem em primeiro lugar. Colocado no fim, significa uma cedência à convenção ocidental, como é o caso de Ban Ki-moon, o ex-secretário-geral das Nações Unidas. Com o mesmo apelido, o Presidente Moon Jae-in segue a regra coreana.

Mas ainda que a questão dos nomes fique esclarecida, afinal, o que distingue verdadeiramente um coreano de um chinês ou de um japonês? “É verdade que aos olhos dos ocidentais todos os asiáticos parecem iguais”, explica o professor Kim Seong-Kon. “Para um ocidental é difícil distinguir o kung fu chinês do karate japonês ou do taekwondo coreano.

Mesmo os templos budistas dos três países parecem iguais. Nós partilhamos muitas coisas e temos muitas coisas em comum, no entanto há diferenças culturais. Diz-se, por exemplo, que a literatura chinesa é masculina, a japonesa feminina e a coreana fica no meio, metade masculina, metade feminina. Outra diferença: aquando dos protestos das velas, no centro de Seul para depor a Presidente, no ano passado, um milhão de manifestantes concentrou-se na Praça de Seul. No Japão, isso seria impensável. A sociedade coreana é muito orientada para os grupos, enquanto o Japão é um país individualista. Exemplo disso é a diferença entre os jogos solitários da japonesa Nintendo e os jogos de internet para vários jogadores em que os coreanos são muito bons.”

No início do século XX, após estalar a guerra russo-japonesa (1904-1905), o escritor e jornalista norte-americano Jack London aceitou cobrir o conflito para o jornal “San Francisco Examiner”. A passagem pela Ásia levou-o também à Coreia, onde não foi indiferente à tendência dos coreanos para os ajuntamentos: “Os coreanos parecem gostar de se reunir e assistir a espetáculos juntos. Quando há uma batalha entre as tropas japonesas e as tropas russas no seu solo, os coreanos fogem para a montanha, levando consigo magotes de refugiados. Em menos de meia hora, porém, eles voltam para assistir à batalha. Não iriam perder as cenas emocionantes.”

O Expresso viajou a convite da Korea Foundation

Artigo publicado na E, a 26 de agosto de 2017, e republicado no “Expresso Online”, a 3 de setembro de 2017. Pode ser consultado aqui

Discretos e unidos: eis os fãs portugueses do K-Pop

Com origem na Coreia do Sul, o K-Pop é um género musical que conquistou milhões de fãs em todo o mundo. Portugal não está imune ao fenómeno. Este sábado, realiza-se em Lisboa a eliminatória portuguesa do K-Pop World Festival. A competição é também um momento de convívio entre uma comunidade pequena, mas unida, diz uma participante

Pouco presente nos noticiários portugueses e a mais de 10 mil quilómetros de distância, a Coreia do Sul é, para a generalidade dos portugueses, um somatório de conhecimentos avulsos.

Os mais atentos à política internacional saberão que a península coreana parece viver permanentemente à beira de um conflito, com o Norte governado pela dinastia Kim a testar, com frequência, mísseis cada vez mais ameaçadores. E talvez também que o secretário-geral das Nações Unidas que antecedeu a António Guterres foi um sul-coreano, Ban Ki-moon.

Quem se interessa por indústria e tecnologia associará o país a marcas globais como a Samsung, a KIA ou a LG. E os amantes de desporto recordarão que foi em Seul que Rosa Mota conquistou o ouro olímpico e talvez que, não há muito tempo, passou pelo plantel portista um futebolista sul-coreano chamado Suk, do qual já terão perdido o rasto.

Para um número crescente de jovens portugueses, porém, a Coreia do Sul é bastante mais especial do que tudo isso. É a pátria do K-Pop (lê-se “Kei Pop”, ou seja, Korea Pop), um género musical que combina diferentes sonoridades e estilos musicais, elementos coreográficos, efeitos audiovisuais e eleva ao patamar de ídolos jovens intérpretes que ditam tendências de moda.

Semanalmente, o programa interativo “After School Club”, transmitido na televisão sul-coreana Arirang, é dedicado ao mundo do K-Pop. Na imagem, os convidados são os B.I.G. MARGARIDA MOTA

Este sábado, o Museu do Oriente, em Lisboa, acolhe, pelas 17 horas, a pré-eliminatória portuguesa do K-Pop World Festival 2017. O evento, que se realiza desde 2012, visa selecionar um vencedor na categoria de Canto (há seis candidatos) e outro na de Performance (concorrem sete grupos) que, posteriormente, serão avaliados pela organização da grande final, na cidade coreana de Changwon (sudeste), a 29 de setembro próximo.

Em cinco edições já realizadas, apenas por uma vez Portugal foi escolhido para disputar a final. Em 2014, então com 19 anos, a lisboeta Filipa Cardoso venceu a categoria de Canto e, com isso, ganhou um bilhete para uma experiência inesquecível. “A vitória deu-me oportunidade para pôr os pés num lugar novo, cuja cultura (para além da música pop) muito aprecio e de fazer algo com que sempre sonhei — pisar um palco e cantar num estádio, com 25 mil pessoas a assistir!” (Veja abaixo o vídeo da atuação de Filipa Cardoso em Changwon.)

Filipa conheceu a K-Pop em 2011 quando “passeava” pelo Youtube. “Na coluna das recomendações surgiu um vídeo de umas raparigas com umas calças muito coloridas”, as Girls’ Generation. “Atraída pelas cores e pela curiosidade, abri o vídeo e gostei imenso da música e do conceito — música pop animada, estilo hiper-feminizado, coreografia. Nunca tinha visto um grupo com tantos membros (algo muito comum no K-Pop) e isso também me fascinou.”

Filipa tinha alguns conhecimentos musicais, tinha tido aulas de guitarra e cantava num coro. Sozinha, cantava apenas em casa — até conhecer o K-Pop e decidir-se a aventurar no festival português. “Hoje em dia, continuo a cantar K-Pop, mas não tanto como na fase da descoberta. Oiço K-Pop mas ao contrário do pop extremo, colorido, mega comercial que me aliciou no início, agora ouço artistas mais ‘folk’/‘indie’, que se aproximam mais do que gostaria de fazer caso tivesse oportunidade de ser artista.” Ouve principalmente AkmuLim Kim e Eddy Kim.

As portuguesas E-DEN, vencedoras do K-Pop Festival Portugal em 2016 na categoria Performance EMBAIXADA DA REPÚBLICA DA COREIA EM PORTUGAL

Vencedoras no ano passado na categoria Performance — mas sem direito a ir à final na Coreia —, as E-DEN não desistem desse sonho. “Termos ganho foi das melhores sensações de sempre. Lutamos pelo título desde 2013 e, apesar de altos e baixos, finalmente conseguimos um dos nossos objetivos”, conta Natacha Costa, 23 anos. “Mas ainda falta outro… Portugal não foi apurado para a final na Coreia. Este ano vamos mesmo tentar que seja!”

Natacha é a “Sasha” deste grupo de quatro amigas e a única com formação em dança. Acompanham-na a Susana (23 anos), a Cathia (22) e a Mariah (20). Conheceram-se num evento em Odivelas, em agosto de 2012, “numa espécie de matiné/discoteca de K-pop”, e ali se inspiraram para um grupo de “covers”.

“Foi algo criado com base numa amizade super espontânea” e do interesse despertado pelos animes [animações japonesas] que passavam na televisão. “Os animes ajudaram bastante os curiosos a irem mais longe e a acompanharem também o J-pop [pop japonês] e a chegarem ao K-Pop e à restante cultura da Coreia.”

A língua é uma barreira? Nem por isso

Uma das características do K-Pop é a existência de pequenas frases em inglês no meio das letras em coreano. Os trechos ajudam à internacionalização das músicas, mas em pouco facilitam a vida de quem as quer interpretar do princípio ao fim. Mas arranhem ou não o coreano, nenhum fã português do K-Pop encara a língua como uma barreira intransponível.

“Nunca aprendi coreano e não foi por isso que deixei de desfrutar da música”, diz Filipa Cardoso. “Gostava do K-Pop não pelo significado das palavras em si (que nunca soube, a maior parte das vezes) mas pelo conceito como um todo. É extremamente pop. Nenhum outro país explorou este género desta maneira. São as cores, os cenários, o estilo, a batida, as coreografias… Sempre me preocupei mais em sentir a batida e aprender as coreografias. Quando tinha muito interesse em saber o significado das letras, ia ao Google. Mas era raro. Mais depressa pesquisava simplesmente a versão romanizada do hangeul (alfabeto coreano). Resultado: acabava por ter uma pronúncia ótima sem fazer a mínima ideia do que estava a dizer.”

Foto de conjunto do K-Pop Festival Portugal, no ano passado, no Teatro Maria Matos, em Lisboa EMBAIXADA DA REPÚBLICA DA COREIA EM PORTUGAL

Se Filipa chegou ao K-Pop pelos vídeos na internet e Natacha pelos animes japoneses na televisão, o cantor e ator Rui Andrade — o apresentador do espetáculo pelo segundo ano consecutivo — mergulhou nesse mundo por força da curiosidade artística. “Como músico e como curioso, já conhecia algumas canções, mas não propriamente o mundo K-Pop. Quando fiz a pesquisa para apresentar o evento, fiquei completamente rendido”, diz o artista, que aprecia, em especial, a cantora Ailee e o grupo 2NE1.

“As músicas são muito apelativas e os instrumentais muito sonantes, mas principalmente a imagem dos vídeos é extremamente cuidada, têm muita qualidade. É isso que caracteriza o k-Pop. A nossa música pop ocidental, até mesmo a música americana das Beyoncés e Lady Gagas inspira-se no K-Pop.”

Rui Andrade nunca teve um projeto nesta área, mas já teve um contacto com um produtor coreano. “A primeira coisa que ele me perguntou não foi se eu sabia cantar… foi qual era a minha altura! E explicou-me que seria muito difícil encontrar bailarinos com a minha altura para fazerem parte de vídeoclips…”

Captura de ecrã do vídeoclip “Gangnam Style”, de Psy

Há cinco anos, um artista de K-Pop arrebatou o nº 1 das listas de músicas mais ouvidas em todo o mundo: o rapper Psy, com o tema “Gangnam Style”. (Por curiosidade, Gangnam é um bairro chique de Seul.) O sul-coreano correu mundo e foi convidado por Barack Obama para atuar num evento natalício na Casa Branca. Foi o expoente máximo daquilo que muitos artistas K-Pop são, na realidade, a todo o tempo: embaixadores da Coreia do Sul um pouco por todo o mundo.

Não por acaso, a final do K-Pop World Festival é organizada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros sul-coreano e as eliminatórias nacionais, realizadas em mais de 60 países, pelas missões diplomáticas sul-coreanas.

Jin Sun Lee, assessora cultural na Embaixada da República da Coreia em Portugal, diz que os participantes no festival português têm vindo a aumentar “em quantidade e em qualidade”. E que “o objetivo do evento é divertir os fãs do K-Pop em Portugal”. A repetente Natacha confirma que assim é: “Apesar de serem eventos discretos, o K-pop vai tendo os seus momentos nesta comunidade pequena mas unida!”

(Foto principal: Girls’ Generation é um dos mais populares grupos femininos sul-coreanos de K-Pop KOREA.NET / KOREAN CULTURE AND INFORMATION SERVICE (JEON HAN) / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Online, a 29 de julho de 2017. Pode ser consultado aqui

Os novos ‘muros da vergonha’

Crescem em todo o mundo para impedir a circulação humana. Travam terroristas, ilegais e dividem populações

Há quem diga que, com os seus 6352 quilómetros de comprimento, a Grande Muralha da China é a única construção humana visível a partir da Lua. Nunca um astronauta o confirmou, mas tal não belisca o estatuto daquela fortaleza histórica, construída ao longo de 14 séculos. Em 1987, a UNESCO consagrou-a património da Humanidade — algo impensável em relação aos muros que hoje crescem um pouco por todo o mundo. À sombra de argumentos antiterroristas ou anti-imigração ilegal, ou em nome de reivindicações políticas, erguem-se autênticos ‘muros da vergonha’.

Esta semana, numa conferência realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, intitulada ‘A União Europeia e a Imigração’, o vice-presidente da Comissão Europeia, Franco Frattini, afirmou: “Não imagino uma Europa fortaleza”, defendendo que a “Europa tem de estar mais próxima de África”. Ora, é impossível ignorar que, em matéria de imigração, a relação Europa-África tem esbarrado contra muros, nomeadamente em Ceuta e Melilla. Mas como comentou ao “Expresso” o ex-comissário europeu António Vitorino: “A imigração ilegal não se combate com nenhum tipo de muro. Isso não significa que não tenha que haver mecanismos de controlo das fronteiras. Os espaços têm um limite à capacidade de integração de pessoas que vêm de fora”. Os muros são “uma parte de uma política mais geral de controlo dos fluxos migratórios. Por si só, não pode resolver tudo”, acrescentou.

Mas 17 anos após a queda do Muro de Berlim (ícone da Guerra Fria que dividiu fisicamente a Europa e ideologicamente o mundo), o Velho Continente continua a enfrentar a necessidade de derrubar tais obstáculos. Na Irlanda do Norte, sobretudo em Belfast e em Derry, cerca de 40 barreiras separam protestantes e católicos. Ironicamente chamam-se Linhas de Paz.

MÉXICO-EUA: GRANDE MURALHA ÀS PORTAS DO ‘EL DORADO’

A cidade mexicana Tijuana e a norte-americana San Diego estão separadas por uma vedação metálica, onde, do lado do México, pregadas cruzes (umas identificadas, outras anónimas) que homenageiam migrantes que morreram ao tentar atravessar a fronteira TOMAS CASTELAZO / WIKIMEDIA COMMONS

Ainda que muitas muralhas se estendam mar adentro, como é o caso do Muro da Tortilla — o maior dos vários pedaços de vedação espalhados ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México —, nem sempre conseguem conter a criatividade humana. Do histórico deste muro, erguido para travar a imigração ilegal entre Tijuana e San Diego, consta o feito de um acrobata que, certo dia, com o passaporte na mão, se meteu dentro de um daqueles canhões usados pelos homens-bomba no circo e, tal qual um duplo no cinema, voou para o lado de lá do muro.

A proeza não fez escola, mas ainda hoje cavar túneis é uma técnica popular para quem arrisca entrar clandestinamente nos EUA: já foram descobertos túneis pavimentados, com trilhos férreos e até com electricidade. Mas não são os túneis a maior preocupação da Casa Branca. A 26 de Outubro passado, o Presidente George W. Bush assinou o Decreto Vedação Segura (Secure Fence Act), que prevê a construção de novos 1125 quilómetros de vedação.

Os obstáculos criados pelo muro, equipado com um sofisticado sistema de vigilância, têm levado cada vez mais candidatos a imigrantes a contornar dificuldades atravessando zonas inóspitas, tais como o Deserto Sonoran e a Montanha Baboquivari, no Arizona. Em alguns casos, percorrem 80 quilómetros antes de encontrar a primeira estrada. Mas há quem nunca a alcance.

Também Melilla se tornou um território mais blindado após o drama humano do Verão de 2005. Na sequência de sucessivas avalanchas de subsarianos que tentaram saltar a dupla cerca metálica de 11 quilómetros que percorre a fronteira entre aquele enclave espanhol e Marrocos, as autoridades de Madrid introduziram alterações físicas e tecnológicas para tornar a vedação mais eficaz e… mais humana. Ordenaram então a construção de uma terceira vedação, tridimensional, que, além de retardar o tempo que o clandestino demora a superar os obstáculos, impede que se lesione.

ISRAEL-CISJORDÂNIA: TÃO POLÉMICO QUANTO O CONFLITO

Os receios terroristas em relação ao vizinho do lado são os alicerces de alguns muros. Israel, Índia, Marrocos e Arábia Saudita ergueram barreiras em nome da segurança interna

Grafiti do misterioso artista britânico Banksy no chamado “muro da Cisjordânia”. Intitulado “Balloon Debate”, foi desenhado num troço da vedação em Ramallah MARGARIDA MOTA

Nenhum outro muro provocou tanta polémica como o que Israel está a construir, desde 2003, junto ao território palestiniano da Cisjordânia. Para Israel, esta “vedação anti-terrorista” visa a protecção dos seus cidadãos ante a infiltração de bombistas suicidas; para os palestinianos, trata-se de um ‘muro’ que dificulta a vida na Palestina ao expropriar milhares de hectares agrícolas fundamentais à subsistência de muitas famílias palestinianas.

Projectado com 720 quilómetros, o muro faz várias incursões em território palestiniano, violando a fronteira anterior à guerra de 1967. Há dois anos, o Tribunal Internacional de Justiça considerou-o ilegal. Mas para Israel construir a cerca em cima da Linha Verde seria descurar as reais necessidades de segurança dos israelitas em prol de uma mera declaração política.

Também na Índia, a ameaça terrorista levou à construção de muros nos dois lados da fronteira. A oeste, junto ao Paquistão, uma vedação de 550 quilómetros, em arame, electrificada e equipada com sensores de movimento estende-se ao longo da Linha de Controlo, na disputada região de Cachemira.

A leste, junto ao Bangladesh, está em curso a construção de uma outra cerca, com 3286 quilómetros de comprimento e três metros de altura. Visa não só impedir a infiltração de terroristas como também de contrabandistas e de imigrantes ilegais.

Tanto num lado como no outro, a afectação de terras férteis, que as autoridades indianas justificam com a necessidade de criar uma ‘terra de ninguém’ junto às vedações, gerou protestos por parte dos agricultores locais, subitamente privados do principal meio de subsistência.

Neste caso, contra números não há argumentos. Segundo as autoridades indianas, esta política reduziu em 80% a entrada de terroristas. Igualmente, em Israel, a redução drástica do número de atentados parece dar razão aos defensores do muro.

Distante das atenções da comunidade internacional está o muro do Sara Ocidental — tão distante quanto o próprio conflito o está das agendas dos políticos. Construído nos anos 80, consiste em 2720 quilómetros de barreiras de pedras e areia com três metros de altura, artilhadas com bunkers, cercas e minas.

Na ausência de qualquer tipo de diálogo entre Marrocos e a Frente Polisário — que reclama a independência do Sara Ocidental —, as autoridades marroquinas apostam nesta muralha defensiva para conter as incursões dos guerrilheiros sarauis.

Preocupações terroristas, bem como a prevenção de movimentações não-autorizadas de pessoas e bens através da fronteira, estiveram na base da construção de uma vedação entre a Arábia Saudita e o Iémen. Já este ano, Riade apresentou um projecto multimilionário de construção de uma barreira de segurança ao longo dos 900 quilómetros de fronteira com o Iraque.

COREIAS: A ÚLTIMA FRONTEIRA

Conflitos latentes ou mal resolvidos transformaram algumas fronteiras em locais de grande tensão. Na península coreana e na ilha de Chipre há dois exemplos que perduram

“Zona tampão” administrada pelas Nações unidas, em Nicósia, e proibida a “veículos militares e pessoais” MARGARIDA MOTA

O ex-Presidente americano Bill Clinton afirmou tratar-se do “lugar mais assustador à face da Terra”. A apreciação pode ser subjectiva, mas a fronteira entre as duas Coreias é seguramente o sítio mais patrulhado do mundo. Cerca de dois milhões de militares concentram-se nos dois lados da vedação de 248 quilómetros, repleta de sensores, torres de vigia, arame farpado, minas, artilharia automática, armadilhas para tanques e armamento pesado. A cerca divide, desde 1953, a península coreana pela metade e é tida como a última fronteira da Guerra Fria.

Igualmente, em Chipre subsiste uma demarcação em arame com mais de 30 anos. Com quase 180 quilómetros, a chamada Linha Verde separa, desde 1974, as partes turca e grega da ilha. Até 2003, era uma fronteira inultrapassável. Hoje, há cinco pontos de passagem.

(Imagem de abertura: PIXY)

Artigo publicado no Expresso, a 25 de novembro de 2006