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Dia Internacional da Educação: Em Gaza, os livros são usados para acender fogueiras onde as pessoas cozinham e se aquecem

Na Faixa de Gaza, não há razões para celebrar o Dia Internacional da Educação, que se assinala esta sexta-feira. Escolas e universidades são alvos de guerra e, pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano. Asma Mustafa, uma professora de inglês que já se deslocou oito vezes, tenta contrariar as adversidades

Asma Mustafa é professora de inglês na Faixa de Gaza desde 2008 CORTESIA ASMA MUSTAFA

A guerra está a tornar a escola uma memória cada vez mais longínqua para centenas de milhares de jovens da Faixa de Gaza. Pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano.

A esmagadora maioria das escolas e universidades foram arrasadas e as que se aguentaram de pé deixaram de ser centros de estudo e transformaram-se em abrigos para deslocados.

Na ausência de educação formal, o conhecimento continua a transmitir-se graças a pessoas determinadas como Asma Mustafa. Esta professora de inglês de 38 anos, que até ao início da guerra trabalhava numa escola pública para raparigas, no norte de Gaza, desenvolveu uma iniciativa ao estilo de “primeiros socorros educativos”.

“A educação parou desde o 7 de Outubro e ninguém se preocupou mais com as crianças de Gaza. Fiquei muito inquieta pelo facto de os alunos ficarem sem aulas pelo segundo ano consecutivo. É algo muito difícil de aceitar para uma mãe e professora”, diz ao Expresso Asma Mustafa, mãe de duas meninas pequenas.

“Ao mesmo tempo, comecei a olhar à minha volta, nos abrigos e nos acampamentos de deslocados… As crianças estavam perdidas. Segui o meu coração e o meu dever, enquanto professora e mãe para com as crianças deslocadas que me rodeiam, e decidi tornar-me a escola delas”, partilha. “Assumi a responsabilidade de começar a ensiná-las de forma espontânea.”

A professora improvisa salas de aula em todos os locais para onde é deslocada
CORTESIA ASMA MUSTAFA

Cerca de um mês após o início da guerra, a professora empreendeu uma iniciativa educativa a que chamou “Uma História Por Dia”.

“Conto histórias às crianças, histórias com uma lição de vida ou uma mensagem. Histórias que lhes deem força e transmitam ensinamentos sobre a vida. Quero que essas histórias as levem a ter melhores comportamentos e a saber como solucionar problemas. Foco-me muito na resolução de problemas e nas competências para a vida.”

Além das histórias, Asma transmite-lhes conhecimentos básicos de inglês, árabe e matemática. Cria jogos, põe-nas a pintar e a desenhar, organiza atividades de grupo, dá-lhes dicas de higiene pessoal (quando doenças se espalham pelos acampamentos) e promove brincadeiras, para que as crianças façam alguma descarga emocional e lidem menos mal com a sua condição de deslocados.

“Às vezes, reúno-as à volta do meu leitor de MP3. Fico feliz quando elas saltam e começam a bater palmas. Sinto os seus batimentos cardíacos”, diz. Asma ensina-as a dançar a Dabkha, a dança tradicional palestiniana, inscrita, em 2023, na lista da UNESCO de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Tudo contribui para as ajudar a lidar com o trauma da guerra. “Elas ficam felizes por encontrar alguém que as possa ajudar, alguém que é líder, como um professor. Elas acreditam nos professores.”

As sessões são importantes para alhear as crianças do som das bombas, do zumbido dos drones, da omnipresença da guerra, dia e noite. Permitem também que convivam entre si, criem uma rotina e alimentem a esperança de que um dia possam voltar à escola.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

“Nas sessões, também as escuto”, acrescenta a professora. “Os meus alunos estão cheios de histórias e, nas tendas, os pais não têm tempo para os ouvir”, ocupados que estão a arranjar meios de sobrevivência.

As próprias crianças não são poupadas às tarefas de emergência. As horas que deviam passar na escola, são usadas a procurar lenha para as fogueiras, a carregar jerricãs de água ou à espera de comida em pontos de distribuição.

Muitas ficaram órfãs e passam a ser ‘mãe ou pai’ de irmãos mais novos. São obrigadas a tornarem-se adultos à força.

As “turmas” de Asma são compostas por crianças que vivem nas tendas em redor da sua. À semelhança da esmagadora maioria dos habitantes de Gaza, também ela teve de fugir da casa onde vivia, no norte do território. Fala ao Expresso a partir do campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza.

“Já me desloquei por oito vezes: duas para abrigos e seis para tendas. Já me desloquei quatro vezes dentro da mesma zona humanitária, como lhe chama Israel”, diz. “Já testemunhei sete guerras antes desta, mas nunca antes tive de sair de casa, a não ser no dia 7 de outubro de 2023.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

A cada nova etapa rumo ao desconhecido, Asma leva, junto com os pertences, o material educativo que consegue arranjar, por vezes comprado a preços elevados. Chegada a um novo destino, monta “a sua escola”.

“A vida é miserável. Perdemos as casas, perdemos tudo. Agora, para cozinhar, usamos lenha, papéis, tudo o que se consegue arranjar. Povos do mundo, acordem, em Gaza cozinhamos com fogo! Os livros que havia em Gaza foram queimados para as pessoas fazerem fogueiras e poderem cozinhar alimentos”, alerta a professora.

“Mas o mais importante para mim é continuar com as crianças à minha volta. Enquanto for viva, irei ensinar, haja ou não quadro, giz, papel ou lápis. O professor é a escola. O professor é o livro. O professor é a caneta.”

Os números da destruição

Segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), com data de 14 de janeiro, este é, até ao momento, o impacto da guerra no sector da educação:

  • 658 mil alunos não têm educação formal;
  • 12.241 estudantes e 503 funcionários educativos, incluindo professores, foram mortos;
  • 88% dos edifícios escolares (496 de um total de 564) foram destruídos ou parcialmente danificados;
  • 51 edifícios universitários foram destruídos e 57 danificados.

A 18 de abril de 2024, 25 relatores especiais das Nações Unidas expressaram grande preocupação com o padrão dos ataques a escolas, universidades, professores e estudantes, o que parecia configurar, nas suas palavras, “a destruição sistémica do sistema educativo palestiniano”.

Israel sempre rejeitou as acusações, acusando o Hamas de usar os estabelecimentos de ensino para atividades terroristas e a população estudantil como refém.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

Quaisquer que sejam as adversidades, e em Gaza são muitas, Asma Mustafa mantém um compromisso diário com a educação, por meio de métodos de ensino originais e inovadores.

No seu website, por exemplo, ela disponibiliza “45 estratégias inovadoras de ensino de inglês como língua estrangeira”. Nos tempos da pandemia de covid-19, promoveu a iniciativa “Teachers Behind Screens” (Professores atrás de ecrãs), para treinar professores para o ensino de forma virtual.

Com o projeto “I Believe I Can Fly” (Acredito que posso voar), pôs os alunos em contacto com dezenas de países. “As crianças não estão autorizadas a viajar devido ao cerco imposto a Gaza. Estão a perder a comunicação com todo o mundo.”

Em 2020, esta professora foi distinguida com o Global Teacher Award, atribuído pela organização privada indiana AKS (Alert Knowledge Services), que se dedica ao reconhecimento de “educadores excecionais pela eminência e eficácia do seu ensino, pela sua liderança especializada e pelo seu envolvimento com a comunidade”. Em 2022 foi considerada a melhor docente na Palestina.

Formada pela Universidade Islâmica de Gaza, Asma entrou para os quadros do Ministério da Educação em 2008, quando o Hamas já controlava o território.

“Dediquei-me a ensinar as crianças por meio de uma aprendizagem ativa. Quero ajudá-las a pensar de forma crítica e profunda e não apenas a receber informação dos professores, como acontecia comigo quando estudava. Achei que precisava de mudar o método tradicional com que recebi educação. Adoro ensinar com recurso a jogos e acredito nesse tipo de ensino. Quero que os cérebros dos meus alunos estejam frescos e capazes de pensar e repensar.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

O contexto em que se vive em Gaza nos últimos anos — sob bloqueio desde 2007 e, desde então, sob intensos bombardeamentos de Israel, por várias ocasiões —, condena as crianças e jovens a uma carência particular. “Há uma necessidade massiva dos alunos terem mais um amigo do que um professor”, diz Asma. “Decidi ser amiga deles. Em Gaza, as crianças acreditam nos professores.”

No ano em que Asma começou a trabalhar como professora, em 2008, Gaza passou por uma guerra com Israel. “Eu era jovem, tinha 21 anos e era muito próxima dos meus alunos. Após 21 dias de guerra, voltámos às escolas e foi pedido aos professores que se dedicassem à descarga emocional dos alunos. Jogamos, brincamos, deixamos as crianças fazer desenhos e contar as suas histórias para expressarem os sentimentos.”

A mesma tarefa parece agora ser mais difícil de concretizar. “Eu não esperava que a guerra durasse 15 meses. Ninguém esperava”, admite. Por todo o mundo, crises mostram que quanto mais tempo as crianças ficam fora da escola, maior é o risco de não regressarem.

Estima-se que, na Faixa de Gaza, mais de 40% da população tenha até 14 anos. Se continuarem privados de educação, um grande segmento da sociedade fica com o futuro em risco. “Deixar de estudar durante algum tempo torna-se um grande problema. Se a guerra continuar, também o futuro da Palestina ficará perdido.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Um drama dentro do drama na fronteira entre Estados Unidos e México

Umas chegam acompanhadas por familiares, muitas outras seguem sozinhas. Há cada vez mais crianças a entrar ilegalmente nos Estados Unidos, vindas de países da América Central. O agravamento da crise migratória após a entrada de Joe Biden na Casa Branca obrigou o Presidente a recuperar as infames “gaiolas” que tantas críticas valeram a Donald Trump

Nunca houve tantas crianças ao deus-dará junto à fronteira entre os Estados Unidos e o México. Estatísticas do Serviço de Proteção das Alfândegas e Fronteiras dizem que só em março foram detetadas 18.890 crianças desacompanhadas, um recorde absoluto no contexto da crise migratória.

O anterior máximo acontecera em maio de 2019, quando foram registados 11.475 menores junto à fronteira. No total, só em março, foram detidas mais de 172 mil pessoas após entraram nos EUA de forma ilegal.

As chamadas “caravanas de migrantes”, alimentadas por gente em fuga à pobreza, à violência do crime organizado e mesmo a desastres naturais, como furacões, intensificaram-se após a chegada de Joe Biden à Casa Branca. Partem do chamado Triângulo Norte da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador).

“Não venham”, pede Biden

No seu primeiro dia em funções, o novo Presidente reverteu várias medidas da política migratória de Donald Trump. Suspendeu a construção de novos troços do muro, na fronteira com o México, e introduziu legislação com vista à legalização de quase 11 milhões de pessoas que já vivem no país.

A vontade de Biden de lidar com a pressão migratória de uma forma mais digna fez disparar rumores nos países de origem dos candidatos a migrantes, e criou a ilusão de que as fronteiras dos Estados Unidos estavam escancaradas.

“Ouvi no outro dia que eles estão a vir porque sabem que eu sou um bom tipo e que não vou fazer o que Trump fez. (…) ‘Não venham.’ (…) ‘Não abandonem a vossa cidade ou comunidade.”
(Joe Biden, em entrevista à ABC News, a 16 de março, dirigindo-se aos potenciais migrantes)

Pressionadas pelas dificuldades quotidianas, milhares de pessoas ignoraram os apelos de Biden e continuaram a fazer-se à estrada, a pé ou à boleia, muitas vezes colocando as suas vidas nas mãos de traficantes, na esperança de viverem o sonho americano.

Sem ter onde alojar tantos menores desacompanhados que seguem nessas caravanas, a Administração Biden reativou centros de instalação temporários, geridos pelo Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras, que tantos protestos provocaram durante a Administração Trump.

As paredes em plástico substituíram o gradeamento, mas o conceito de detenção é o mesmo, e o espaço continua a ser exíguo.

Durante a era Trump, por força de uma política de tolerância zero à imigração ilegal, os EUA passaram a criminalizar quem entrava à socapa no país. Os adultos eram detidos em estabelecimentos federais que não admitiam crianças e estas eram separadas das famílias e ficavam a viver em jaulas de arame.

Em junho de 2018, o próprio Trump assinou um decreto executivo e acabou com a separação das famílias. O aumento do número de menores desacompanhados revela que o problema está muito longe de estar resolvido.

FOTOGALERIA

De aspeto adoentado, a pequena Jocelyn, uma hondurenha de seis anos, é confortada pela mãe enquanto espera por transporte da polícia norte-americana. As duas, e dezenas de outros migrantes, acabaram de entrar nos EUA, em jangadas ADREES LATIF / REUTERS
Esta criança espera por vez para tomar um duche, nas instalações para menores desacompanhados, em Donna, no Texas DARIO LOPEZ-MILLS / AFP / GETTY IMAGES
Tem apenas quatro meses. Adormecida, a hondurenha Karli vai ao colo do pai, quando o grupo em que seguem é intercetado por uma patrulha fronteiriça, em Hidalgo, no Texas JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Muitos migrantes entram nos Estados Unidos em frágeis jangadas, através do Rio Grande, a fronteira natural entre EUA e México JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Um hondurenho carrega a filha às costas, após entrarem nos EUA. A sujidade nas vestes revela a dureza de uma longa caminhada que ficou para trás ADREES LATIF / REUTERS
Muito cansaço acumulado após uma longa caminhada que os levou da América Central aos Estados Unidos JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Um grupo de migrantes faz uma pausa, em San Pedro Sula, nas Honduras, já com a fronteira com a Guatemala à vista, antes de retomar a marcha a pé a caminho dos EUA WENDELL ESCOTO / AFP / GETTY IMAGES
Têm ambos um ano de idade e nasceram na Guatemala. Marvin e Brando seguem às cavalitas das mães a caminho do ‘sonho americano’ ADREES LATIF / REUTERS
Oscar segue só. Tem 12 anos, partiu da Guatemala e acabou de atravessar o Rio Grande, que separa México e Estados Unidos ED JONES / AFP / GETTY IMAGES
Um grupo de migrantes aguarda, num campo do Texas, que a polícia norte-americana os recolha e os leve para centros de acolhimento ADREES LATIF / REUTERS
Após entrar nos EUA, muitos migrantes procuram a polícia para se entregarem e pedir asilo JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS
Muitos migrantes são oriundos das Honduras. De Tegucigalpa, a capital, até território norte-americano são mais de 2500 quilómetros JOHN MOORE / GETTY IMAGES
O descanso possível após muitos quilómetros nas pernas ADREES LATIF / REUTERS
Chegados aos Estados Unidos, vindos da Guatemala, pai e filho esperam que o seu pedido de asilo seja apreciado JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Uma menina rasga um pedaço de papel higiénico, num ginásio de Ciudad Juarez, no México, convertido num centro de acolhimento de migrantes expulsos dos EUA PAUL RATJE / AFP / GETTY IMAGES
Depois da longa aventura da viagem, começa a espera pela conclusão do processo burocrático, em solo americano ADREES LATIF / REUTERS
Esta mulher, com um filho pequeno ao colo, foi largada na margem do Rio Grande. Os perigos que enfrenta são múltiplos JOHN MOORE / GETTY IMAGES
A hondurenha Jennifer e o seu filho Carlos, de seis anos, descansam entre o feno, num campo texano, após entrar nos Estados Unidos ADREES LATIF / REUTERS
Francisco e Megan, pai e filha. Dois entre milhares de nomes que partiram das Honduras a caminho dos Estados Unidos ADREES LATIF / REUTERS
Crianças contra o “muro”, uma batalha impossível de vencer JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS
De mão dada à mãe, Taznari, uma pequena hondurenha de três anos, prossegue caminho ADREES LATIF / REUTERS
O carinho possível no seio de uma família guatemalteca, em Penitas, Texas JOHN MOORE / GETTY IMAGES
O sonho terminou para estas crianças e respetivas famílias, sentadas num parque público de Reynosa, no México, após serem expulsas dos Estados Unidos DANIEL BECERRIL / REUTERS
A noite foi passada a tentar dormitar, encostados ao gradeamento de um campo de beisebol, em La Joya, Texas ADREES LATIF / REUTERS
Pequenas mãos “espreitam” por entre as lâminas do “muro” entre os Estados Unidos e o México ADREES LATIF / REUTERS
Um agente da polícia de fronteira dos EUA ajuda um insuflável que transporta migrantes a atracar, no fim da travessia do Rio Grande GO NAKAMURA / REUTERS
Para esta criança e sua mãe, a viagem chegou ao fim. A polícia americana deixou-os numa paragem de autocarro entre Brownsville, no Texas, e a cidade mexicana de Matamoros, para que regressem a casa CHANDAN KHANNA / AFP / GETTY IMAGES
Este pai e o seu filho bebé foram deportados dos EUA. Este repouso, num centro de acolhimento mexicano, não está isento de preocupações JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS
Não é este o caso, mas há cada vez mais crianças desacompanhadas a chegar aos Estados Unidos ADREES LATIF / REUTERS
Após atravessarem o Rio Grande pela calada da noite, estes migrantes escutam as instruções da polícia. Começa a batalha pela legalização GO NAKAMURA / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

Cólera infeta uma criança por minuto

O alerta foi dado esta quarta-feira pela organização Save the Children que fala num surto “fora de controlo” no Iémen. Para além da pobreza crónica, três anos de guerra destruíram centros de saúde e degradaram os sistemas de saneamento e de fornecimento de água potável. As crianças são as principais vítimas

A guerra não pára de abrir frentes no Iémen. Atualmente, a cada minuto que passa, pelo menos uma criança é infetada com cólera, denunciou esta quarta-feira a organização não governamental Save the Children.

A taxa de infeção triplicou nas últimas duas semanas, afetando especialmente menores de 15 anos — que correspondem a 46% dos cerca de 5470 novos casos diários de cólera e de diarreia líquida aguda. Até 13 de junho (terça-feira), em 20 das 22 províncias iemenitas, já tinham morrido 942 pessoas.

Na origem da escalada deste surto “fora de controlo” estão situações de penúria alimentar — mais de dois milhões de crianças sofrem de subnutrição grave — e a destruição provocada por quase três anos de conflito, sobretudo ao nível das infraestruturas de saúde, do fornecimento de água potável e do saneamento básico.

Nas palavras de Grant Pritchard, diretor da ONG no Iémen, o Iémen está “à beira do colapso total”. Palavras semelhantes foram usadas, no início do mês, pelo representante da UNICEF no Iémen. “A cólera surgiu numa altura em que o sistema está prestes a colapsar, a pobreza está a aumentar e a subnutrição está em alta”, disse Meritxell Relaño. “Imagine-se como fica uma criança que já é muito fraca, e cujo sistema imunitário está nos mínimos, quando tem diarreia. Crianças com seis meses pesam apenas 2,5 kg.”

O Iémen é o mais pobre dos países árabes — 168º lugar no último Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (188 países) — e tem uma guerra em curso que vai a caminho do seu terceiro ano. Segundo a ONU, 18,8 milhões de iemenitas (cerca de 70% da população total) necessitam de assistência humanitária — incluindo 10,3 milhões de crianças.

O conflito acentuou-se a partir de março de 2015, quando o país começou a ser alvo de bombardeamentos por parte de uma coligação de países da região.

Oficialmente, a ofensiva liderada pela Arábia Saudita, o gigante árabe sunita do Médio Oriente, visa devolver o poder ao Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi, deposto em setembro de 2014 pelos rebeldes huthis — xiitas e próximos do Irão (país persa), o grande rival dos sauditas.

Na semana passada, a Arábia Saudita expulsou o Qatar desta coligação militar, na sequência do corte de relações de quatro países árabes (Bahrain, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) em relação ao pequeno emirado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de junho de 2017. Pode ser consultado aqui

Uma criança morre a cada 10 minutos no Iémen

É o país mais pobre do Médio Oriente, assolado por um conflito que vai caindo no esquecimento e coloca as crianças, cada vez mais, na linha da frente da mortalidade. No Iémen, perto de meio milhão de crianças está em perigo de morrer à fome

A cada hora que passa, morrem seis crianças no Iémen de doenças já erradicadas noutras zonas do planeta, infeções respiratórias e subnutrição. “A violência e o conflito fizeram reverter ganhos significativos na última década ao nível da saúde e nutrição das crianças iemenitas”, alertou Meritxell Relaño, representante interina da UNICEF no Iémen. “Doenças como a cólera e o sarampo aumentaram e, com poucas infraestruturas de saúde funcionais, esses surtos estão a penalizar muito as crianças.”

Segundo aquela agência especializada das Nações Unidas, 2,2 milhões de crianças sofrem de subnutrição — na província de Sa’ada (norte), junto à fronteira com a Arábia Saudita, oito em 10 crianças sofrem de subnutrição crónica. Cerca de 462 mil correm mesmo o risco de morrer à fome — um aumento de 200% desde 2014.

“A subnutrição no Iémen está em alta e a aumentar”, acrescentou a espanhola Meritxell Relaño. “O estado de saúde das crianças no país mais pobre do Médio Oriente nunca foi tão catastrófico como hoje.”

Unificado desde 1990, o Iémen tem enfrentado anos de pobreza generalizada, escassez alimentar e um sistema de saúde deficiente. O Relatório de Desenvolvimento Humano Árabe de 2016, divulgado a 29 de novembro passado, descreve “uma das piores crises humanitárias” em todo o mundo. “Em dezembro de 2015, estimava-se que 21,2 milhões de pessoas — o que corresponde a 82% da população iemenita — necessitava de ajuda humanitária”, lê-se na página 129 do documento.

“Menos de um terço da população do país tem acesso a tratamentos médicos”, complementa a UNICEF. “Menos de metade das infraestruturas de saúde estão operacionais. Profissionais de saúde não recebem salário há meses e agências de ajuda humanitária lutam para trazer suprimentos para salvar vidas em virtude do impasse político entre as partes em conflito.”

A situação no Iémen degradou-se acentuadamente a partir de março de 2015, quando o país começou a ser alvo de bombardeamentos por parte de uma coligação de países da região. Oficialmente, a ofensiva liderada pela Arábia Saudita (país árabe), o gigante sunita do Médio Oriente, visa devolver o poder ao Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi, deposto em setembro de 2014 pelos rebeldes huthis — xiitas e próximos do Irão (país persa), o grande rival dos sauditas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2016. Pode ser consultado aqui

Cada vez mais menores combatem no Iémen

No mesmo dia em que entrou em vigor uma trégua humanitária de cinco dias, a Human Rights Watch denuncia que os rebeldes houthis têm cada vez mais crianças nas suas fileiras. Trabalham como batedores, guardas, estafetas e combatentes e são pagas em géneros

Os rebeldes houthis estão a recrutar crianças para as hostilidades no Iémen. A denúncia foi confirmada esta terça-feira pela Human Rights Watch (HRW), após no mês passado a UNICEF ter divulgado que um terço dos combatentes nesse conflito são menores.

Desde que tomou a capital iemenita, em setembro, a milícia tem “intensificado o recrutamento, treino e destacamento de crianças, em violação ao direito internacional”, lê-se num comunicado da organização humanitária.

As crianças são usadas como batedores, guardas, estafetas e combatentes. A HRW refere também que, para além dos houthis, também milícias tribais e islamitas assim como a Al-Qaeda na Península Arábica usam crianças nas ações de combate.

Quando a família incentiva à guerra

As conclusões da organização baseiam-se em testemunhos de jornalistas e ativistas no país e também em entrevistas a crianças e recrutadores houthis. Um deles, na casa dos 30 anos, entrevistado pela HRW em março, na região de Amran (50 km a noroeste de Sanaa) confessou ter recrutado ativamente para os houthis durante mais de um ano.

Explicou que crianças sem treino militar não participam nos combates e que a maioria fica de guarda ou no transporte de munições e alimentos para a linha da frente. Também são usadas para recuperar cadáveres e combatentes feridos e prestar primeiros socorros.

Outras entrevistas realizadas pela HRW apuraram o modus operandi do recrutamento dos houthis. Durante pelo menos um mês, dão educação ideológica, seguida de treino militar. As crianças não recebem dinheiro, mas antes alimentos e “qat”, uma planta que pode ser mascada (funcionando como um estimulante suave) e que constitui uma instituição cultural no Iémen.

Ibrahim, de 16 anos, testemunhou à HRW que a família o encorajou a juntar-se aos houthis e que lhe ofereceu uma Kalashnikov. As munições ficaram por conta dos rebeldes. Baleado numa perna, participa agora nas patrulhas entre Amran e Sufyan, juntamente com cinco amigos da sua idade.

Cessar-fogo em vigor

As denúncias da HRW são conhecidas no mesmo dia em que entrou em vigor uma trégua de cinco dias proposta pela Arábia Saudita, que lidera a coligação que está a atacar o país, e aceite pelos rebeldes houthis para que seja prestada assistência humanitária. 

Os bombardeamentos aéreos duram desde 26 de março, visando punir os houthis e as forças leais ao ex-Presidente Ali Abdullah Saleh e restaurar a autoridade do Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi.

Num balanço feito a 24 de abril, a UNICEF informou que pelo menos 115 crianças já tinham sido mortas e 172 feridas nos bombardeamentos aéreos e combates em terra. 

Segundo o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, que o Iémen assinou, a idade mínima aceitável para participação em conflitos armados, nas fileiras quer de forças armadas nacionais quer de grupos armados não-estaduais é de 18 anos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de maio de 2015. Pode ser consultado aqui