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Os guardiães muçulmanos do túmulo de Jesus

O local que abriga o túmulo de Cristo é, desde há séculos, protegido por duas famílias muçulmanas. Os Joudeh guardam as chaves do Santo Sepulcro e os Nusseibeh estão encarregados de abrir e fechar a porta exterior do templo. Ao Expresso, Adeeb Joudeh explica todo o ritual

Em época pascal, o Santo Sepulcro torna-se o centro da cristandade. Localizado no bairro cristão de Jerusalém — cidade santa também para judeus e muçulmanos —, o templo abriga os locais onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo foi crucificado e sepultado.

Diariamente, a alta e pesada porta de madeira que dá para o exterior, e por onde entram todos os anos milhões de peregrinos e turistas, abre-se pelas quatro da manhã — um pormenor, não fosse o fiel depositário das chaves daquela importante igreja cristã ser… um muçulmano.

“As chaves foram entregues à minha família no ano de 1187 quando o grande líder [muçulmano] Saladino libertou Jerusalém dos cruzados”, conta ao Expresso Adeeb Jawad Joudeh Alhusseini, 52 anos, que detém o pomposo título “Depositário das Chaves do Santo Sepulcro & Titular do Selo do Túmulo Sagrado”. É ele que, a cada madrugada, atravessa a pé as estreitas ruelas da parte velha de Jerusalém levando consigo duas velhas chaves de ferro fundido usadas para abrir a porta do Santo Sepulcro.

Adeeb Joudeh segura uma das chaves, no pátio junto à entrada do Santo Sepulcro ADEEB JOUDEH

Em sua posse, além das chaves, a família Joudeh tem mais de 165 decretos reais emitidos pelos sucessivos sultões que reinaram sobre Jerusalém. Os documentos comprovam a história da família e autenticam o seu papel no ritual de abertura daquele importante templo cristão.

“O Santo Sepulcro é a minha segunda casa”, diz Adeeb. “Sinto a história dos meus antepassados em cada canto deste santuário.”

As duas chaves necessárias para abrir o Santo Sepulcro, sobre um decreto real que atesta o papel da família Joudeh ADEEB JOUDEH

Os zeladores muçulmanos do Santo Sepulcro não se esgotam, porém, nos Joudeh. Uma outra família educada no Islão — os Nusseibeh — é “a porteira” da igreja. Adeeb explica como ambas são indispensáveis para abrir o templo. “Diariamente, eu, na qualidade de guardião das chaves, entrego-as a Wajeh Nusseibeh, o atual porteiro, que, por sua vez, sobe a uma escada para destrancar a fechadura de cima, depois desce e destranca a fechadura de baixo. No fim devolve-me as chaves.”

Na hora de fechar o Santo Sepulcro ao público, pelas 21h, basta bater a porta — após três batidas na aldrava espaçadas meia hora — pelo que apenas os Nusseibeh são chamados a participar.

“Os Joudeh e os Nusseibeh são das famílias mais antigas de Jerusalém”, explica Adeeb. “Têm uma excelente relação entre si, mas cada qual tem a sua própria tarefa.”

Rivais dentro da mesma fé

Durante as épocas festivas — como a Páscoa —, o Santo Sepulcro abre e fecha várias vezes ao dia, mediante solicitação das seis igrejas cristãs representadas no seu interior: ortodoxos gregos, ortodoxos arménios, católicos romanos (franciscanos), coptas, siríacos e etíopes. Monges de todas elas garantem que, diariamente, terminado o horário de visitas para fieis e turistas, a vida dentro do Santo Sepulcro nunca páre.

Rivais dentro da mesma fé, as várias igrejas disputam espaço — capelas, túneis e grutas — e tempo, definindo com rigidez os horários das celebrações de cada comunidade religiosa. Nos sítios mais importantes do Santo Sepulcro — o Calvário, onde Jesus Cristo foi crucificado, e o Edículo, a construção em madeira que envolve o túmulo onde foi sepultado —, as responsabilidades são partilhadas pelas igrejas maiores: ortodoxos gregos, arménios e católicos.

Dentro do Santo Sepulcro estão assinaladas as últimas quatro estações da Via Sacra, o trajeto percorrido por Jesus carregando a cruz. O Edículo, que protege o túmulo de Cristo, é a última WIKIMEDIA COMMONS

A coexistência entre as várias igrejas é regulada pelo “Status Quo” — uma coleção de tradições históricas, normas e leis que definem as relações, atividades e movimentações no interior do Santo Sepulcro. Mas nem sempre o convívio é pacífico… Os monges protegem ferozmente os seus direitos de acesso às várias partes do santuário e o simples direito a limpar determinada superfície, por exemplo, pode originar situações um litígio.

Por vezes, os monges chegam mesmo a vias de facto… A 9 de novembro de 2008, religiosos gregos e arménios envolveram-se em confrontos físicos quando os arménios — que se preparavam para realizar uma cerimónia própria — tentaram colocar um dos seus padres à entrada do Edículo. A rixa obrigou mesmo a polícia israelita a entrar no Santo Sepulcro para apartar as hostes.

Notícia no sítio do jornal britânico “The Telegraph” de 9 de novembro de 2008 sobre confrontos entre monges no interior do Santo Sepulcro, que obrigaram à intervenção da polícia israelita. Foram detidos dois religiosos de cada lado

“O que se passa dentro da igreja são assuntos internos nos quais não interferimos”, diz Adeeb. “O nosso trabalho é proteger as chaves e a igreja. Qualquer conflito entre os monges é uma questão interna com a qual eles próprios têm de lidar.”

Responsabilidade em tenra idade

Adeeb tinha oito anos quando o pai lhe entregou as chaves do Santo Sepulcro pela primeira vez. Aos 13 anos, aprendeu como se sela o túmulo sagrado. “Foi uma sensação muito boa. Transmitiu-me o sentido de responsabilidade e o orgulho da continuação da história dos meus antepassados”, diz Adeeb. “Ser-nos confiadas as chaves de uma das igrejas mais sagradas do mundo é uma grande honra para a família Joudeh AlHusseini em particular e para a comunidade muçulmana em geral.”

Neste cargo, Adeeb já conheceu quatro Papas — três católicos (João Paulo II que visitou a Terra Santa em 2000, Bento XVI em 2009 e o Papa Francisco em 2014) e um copta (Tawadros II de Alexandria, em 2015). “Todos eles elogiaram-nos por este trabalho honroso que vimos a desempenhar há mais de oito séculos. O Papa João Paulo II até nos deu presentes. E o Papa Tawadros partilhou um artigo na sua página do Facebook sobre o papel da nossa família na Igreja.”

Adeeb Joudeh cumprimenta o Papa Francisco, durante a visita do chefe da Igreja Católica à Terra Santa, em maio de 2014 ADEEB JOUDEH

Casado e pai de uma rapariga e de três rapazes, Adeeb tem no filho mais velho, Jawad, o seu sucessor na tarefa da abertura da porta do Santo Sepulcro e da segurança das chaves. “Elas estão protegidas num local muito seguro, não há preocupações.”

(Foto principal: Adeeb Joudeh junto à porta do Santo Sepulcro perante o interesse de uma equipa de filmagens ADEEB JOUDEH)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 13 de abril de 2017, e republicado no “Expresso Online”, a 16 de abril de 2017. Pode ser consultado aqui e aqui

“Estamos expostos à morte o dia inteiro”

Sacerdotes, bispos, religiosas e leigos relataram à Fundação Ajuda à Igreja que Sofre casos de violência que testemunharam nos quatro cantos do mundo. “Perseguidos e Esquecidos?” é o título do relatório que compila esses relatos, divulgado terça-feira em todo o mundo

No verão de 2014, a tomada de Mossul e Nínive, no Iraque, pelo autodenominado Estado Islâmico (Daesh) forçou 120 mil cristãos ao êxodo. Pela primeira vez em 1800 anos, não houve missa dominical em Mossul.

No coração da região onde nasceu o Cristianismo, as populações cristãs estão à beira da extinção. “Numa altura em que o número de deslocados e refugiados atingiu máximos históricos, grupos islâmicos têm levado a cabo uma limpeza étnica de cristãos por motivos religiosos, designadamente em regiões de África e do Médio Oriente”, denuncia o relatório “Perseguidos e Esquecidos?”, divulgado, esta terça-feira, pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS).

“Como consequência deste êxodo, o Cristianismo está em vias de desaparecer do Iraque, possivelmente no prazo de cinco anos, a menos que seja disponibilizada ajuda de emergência a nível internacional numa escala massiva cada vez maior.”

Cristianismo, essa importação colonial

O documento avalia pressões sobre cristãos católicos, ortodoxos e protestantes em países com regimes autoritários, como a Arábia Saudita, o Irão e a China, e em Estados onde estão em alta grupos radicais islâmicos, como Nigéria, Sudão, Quénia e Tanzânia.

Em países devastados pela guerra — como Síria e Iraque —, aos cristãos não resta alternativa a não ser (tentar) fugir. “Estamos expostos à morte o dia inteiro”, testemunha Jean-Clement Jeanbart, arcebispo católico grego melquita, da diocese de Alepo (Síria).

Menos mediáticas do que as perseguições em contextos de guerra, as ameaças aos cristãos decorrem também da afirmação de movimentos nacionalistas muçulmanos (Paquistão), hindus (Índia), budistas (Sri Lanka) e judeus (Israel). Muitos desses movimentos “veem o Cristianismo, cada vez mais, como uma importação estrangeira colonial”, continua o relatório da AIS. “Os cristãos são olhados com suspeição e são vistos como estando ligados ao Ocidente, que é considerado corrupto e explorador.”

“Perseguidos e Esquecidos?” debruça-se sobre a situação nos 22 países que registaram mais violações à liberdade religiosa entre outubro de 2013 e julho de 2015. A fotogaleria que acompanha este texto dedica duas fotos a cada país selecionado pela AIS, organização dependente da Santa Sé.

“Vemos hoje os nossos irmãos perseguidos, decapitados e crucificados por causa da sua fé em Jesus, perante os nossos olhos e muitas vezes com o nosso silêncio cúmplice”, alertou o Papa Francisco, em abril de 2015.

ARÁBIA SAUDITA — O país onde nasceu o Islamismo, há cerca de 1400 anos, e que abriga as principais cidades santas muçulmanas (Meca e Medina), é dos mais intolerantes em matéria de outros cultos religiosos. O sistema legal saudita baseia-se na “sharia” (lei islâmica) e prevê a aplicação da pena de morte a quem trocar o Islão por outra religião. Entre as acusações que condenaram o “blogger” saudita Raif Badawi a dez anos de prisão e 1000 chicotadas em público está um “like” que fez numa página do Facebook para árabes cristãos. Livros escolares fornecidos pelo Governo descrevem os cristãos como “suínos” e “as piores criaturas” que “habitarão no fogo do inferno”. (A foto retrata um muçulmano durante a peregrinação a Meca.) AHMAD MASOOD / REUTERS
ARÁBIA SAUDITA — A construção de igrejas é proibida, tal como a exibição da cruz e o enterro de não-muçulmanos. Também é proibido importar a Bíblia. Em março passado, o Grande Mufti Sheikh Abdul Aziz bin Abdullah apelou, pela terceira vez, à destruição de todas as igrejas construídas na Península Arábica. Em 2008, no Qatar, fora inaugurada a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (católica) — sem cruz nem sino exterior —, num terreno doado pelo Emir Hamad bin Khalifa. Foi a primeira igreja cristã em território sunita waabita. Estima-se que, na Arábia Saudita, vivam cerca de 1,5 milhões de cristãos, a maioria imigrantes filipinos, como Omar e Khalid (na foto), saudados por sheikhs sauditas, em Riade, após converterem-se ao Islão. ALI JAREKJI / REUTERS
BIELORRÚSSIA — Maioritariamente ortodoxo oriental, é o país da Europa de Leste com maior proporção de católicos (na foto, uma igreja católica na aldeia de Staraelnya, sudoeste de Minsk). Porém, é necessária autorização estatal para se realizar atividades religiosas, sendo que os grupos não reconhecidos arriscam-se a ver as suas propriedades invadidas e os bens apreendidos. “Há uma grande necessidade de construção de pequenas igrejas e capelas para novas comunidades”, diz Magda Kaczmarek, da Ajuda à Igreja que Sofre, que visitou o país em novembro de 2014. “Uma questão que permanece sem resposta prende-se com a restituição de propriedades confiscadas pelo Estado após a II Guerra Mundial.” VASILY FEDOSENKO / REUTERS
BIELORRÚSSIA — Isolado, este país eslavo conserva a aura de décadas de domínio comunista, em que a Igreja era perseguida. Então, locais de culto foram transformados em cinemas, armazéns e pavilhões desportivos. No poder desde 1994, Alexander Lukashenko foi reeleito, no passado domingo, para um quinto mandato, com 83,5% dos votos, o seu melhor resultado de sempre. Fora de portas chamam-lhe “o último ditador europeu”. VASILY FEDOSENKO / REUTERS
CHINA Celebração pascal numa igreja católica de Shenyang, província de Liaoning, na China SHENG LI / REUTERS
CHINA Desde janeiro deste ano, a Christian Solidarity Worldwide já registou mais de 650 incidentes na província de Zhejiang, incluindo a demolição total ou parcial de igrejas ou de edifícios geridos pela Igreja (alguns aprovados pelo Governo), modificações ou coberturas da cruz, ferimentos, detenções e penas de prisão. Em 2014, os crentes chineses sofreram a mais dura perseguição em mais de uma década, com 449 líderes religiosos detidos, por comparação com 54, em 2013. (Na foto, um coro canta canções de Natal, numa igreja católica de Shenyang, província de Liaoning.) SHENG LI / REUTERS
COREIA DO NORTE À frente de um dos países mais isolados na cena internacional, a dinastia Kim, que governa o país desde 1953, pune o culto religioso, com a mesma determinação com que incentiva o culto da personalidade do líder. Campanhas de violência e outras formas de intimidação contra os fiéis inserem-se na estratégia de repressão a toda e qualquer dissidência. Notícias publicadas em órgãos de informação sul-coreanos, em março de 2014, dão conta da execução de 33 cristãos norte-coreanos após contactarem com missionários do sul. O regime acusou-os de espionagem. (Na foto, Hyeon Soo Lim, líder de uma congregação canadiana detido pelas autoridades de Pyongyang, “confessa” a participação em crimes visando derrubar o Estado.) REUTERS
COREIA DO NORTE Estima-se que pelo menos 10% dos cerca de 400 a 500 mil cristãos norte-coreanos estão detidos em campos de trabalhos forçados. Ali são sujeitos a tortura, assassínio, violação, experimentação médica, aborto forçado e mesmo execução. Os prisioneiros religiosos recebem, habitualmente, tratamento mais duro. (Na foto, Karen Short mostra uma imagem do marido, o missionário australiano John Short, preso na Coreia do Norte, acusado de distribuição de panfletos cristãos num comboio e num templo budista. Short seria libertado e expulso do país.) SIU CHIU / REUTERS
EGITO Em fevereiro passado, um grupo leal ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh) decapitou 20 egípcios coptas que trabalhavam na Líbia (na foto). A execução, filmada e posta a circular na Internet, aconteceu junto à costa mediterrânica. Treze das vítimas eram oriundas da aldeia de El-Aour (província de Minya), maioritariamente cristã. Entre eles, estava Abanub Ayyad Atiyyah, 22 anos, licenciado em administração e gestão de empresas. “Eu dependia dele para ajudar com as despesas da casa e os custos da educação do irmão”, testemunhou o pai. Bushra Fawzi também reconheceu o filho, Shenouda, entre os que se ajoelhavam, de fato laranja, junto aos carrascos: “É o meu primeiro filho e o mais velho, a minha primeira alegria e felicidade. Quero o seu corpo de volta. Se eles o deitaram ao mar, quero-o de volta. Se o queimaram, quero o seu pó.” O Papa Ortodoxo Copta Tawadros II anunciou que as vítimas serão formalmente reconhecidas mártires da Igreja. REUTERS
EGITO Em junho de 2014, Kerolos Shouky Attallah, um cristão copta egípcio de 29 anos, foi condenado a seis anos de prisão por clicar “gosto” numa página do Facebook considerada crítica do Islamismo. Kerolos não fez qualquer publicação e retirou o seu “gosto” quando percebeu que alguns muçulmanos consideravam a página ofensiva. Foi acusado de blasfémia, por explorar a religião divina no sentido do incitamento à rebelião. A gravidade da sua pena chocou os cristãos coptas e constituiu um alerta para os utilizadores do Facebook no Egipto. REUTERS
ERITREIA Cristãos e outras minorias religiosas estão a abandonar a Eritreia em grande número, em virtude não só da opressão governamental como também do aumento da atividade de grupos radicais islâmicos. (A foto mostra uma igreja improvisada no campo de refugiados de Calais, França, frequentada por migrantes etíopes e eritreus.) Em junho passado, 86 eritreus cristãos foram raptados pelo Daesh quando tentavam atravessar a Líbia. Após mandarem parar os carros onde os eritreus seguiam, os extremistas fizeram perguntas sobre o Alcorão para apanhar em falso os cristãos. PASCAL ROSSIGNOL / REUTERS
ERITREIA Estima-se que cerca de 3000 eritreus, a maioria cristãos, estejam atualmente presos em virtude das suas crenças religiosas. Antigos prisioneiros descreveram atos de tortura e outros abusos físicos bem como as difíceis condições de sobrevivência em celas sobrelotadas, sem condições sanitárias nem ventilação. As relações Igreja-Estado azedaram após uma carta assinada por quatro bispos católicos eritreus, em junho de 2014, afirmando que as políticas governamentais eram, em parte, responsáveis pela migração em massa, acusação que irritou as autoridades de Asmara. PASCAL ROSSIGNOL / REUTERS
ÍNDIA Em março de 2015, a polícia indiana foi acusada de recorrer à violência para dispersar uma manifestação pacífica contra o aumento dos ataques contra igrejas e cristãos, por parte de extremistas hindus. (Na foto, indianas protestam contra a “destruição de cruzes”, em Bombaim.) DANISH SIDDIQUI / REUTERS
ÍNDIA Em alguns países, como a Índia, uma certa elite religiosa radicalizada, cada vez maior e mais influente, considera o Cristianismo ofensivo, não só pela fé que defende como também pelas suas ligações ao período colonial. O cardeal Telesphore Toppo, arcebispo de Ranchi, recebeu ameaças de morte. Vários relatos sugerem que movimentos nacionalistas hindus atuam no pressuposto de que a vitória eleitoral do primeiro-ministro nacionalista hindu Narendra Modi, em 2014, significou um relaxamento das autoridades em relação aos ataques feitos em nome da religião mais identificada com o Estado-nação. DANISH SIDDIQUI / REUTERS
INDONÉSIA É um dos nove países onde ganhou expressão uma clara violência anticristã: os outros são Irão, Iraque, Quénia, Nigéria, Paquistão, Arábia Saudita, Sudão, Síria. A Indonésia é o país muçulmano mais populoso do mundo, com mais de 200 milhões de crentes em Allah. Nalgumas áreas, populações cristãs estão sujeitas às leis da “sharia” (lei islâmica). (A indonésia da foto usa uma máscara para se proteger do fumo dos incêndios que invade aquela igreja de Palangkaraya.) REUTERS
INDONÉSIA Num dos últimos ataques conhecidos, em inícios de julho, extremistas islâmicos atacaram um acampamento de milhares de escoteiros organizado por uma associação protestante, em Yogyakarta, na ilha de Java. Os radicais disseram que os protestantes não tinham autorização para organizar aquele evento público e que, estando a decorrer o Ramadão, atividades do género violavam a natureza sagrada daquele mês. (Na foto, indonésios ameaçados pela erupção do vulcão Sinabung buscam refúgio dentro de uma igreja.) RONI BINTANG / REUTERS
IRÃO A natureza confessional da República Islâmica do Irão e o poder de órgãos de segurança internos como os “pasdaran” e os “basiji” colocam o país na dependência das autoridades religiosas xiitas, com graves repercussões para as minorias religiosas. O crime de apostasia renúncia ou abandono de uma crença religiosa surge como um dos principais obstáculos à liberdade religiosa no país. A conversão de um muçulmano a outra religião não é explicitamente proibida na Constituição, mas tradicionalmente é tratada como crime. (Na foto, um religioso passa junto às campas de iranianos arménios mortos durante a guerra Irão-Iraque, numa igreja no centro de Teerão.) MORTEZA NIKOUBAZL / REUTERS
IRÃO A maior parte dos 0,5% de iranianos que professam o Cristianismo são protestantes. A Igreja Católica está presente em seis dioceses, entre as quais Ahwaz (caldeia), Isfahan (arménia) e Teerão (caldeia). Em janeiro de 2014, Davoud Alijani, pastor numa igreja de Ahwaz, foi libertado da prisão de Karoon. Tinha sido detido durante as celebrações natalícias de 2011. O número de cristãos presos quase duplicou durante o ano de 2014, apesar das promessas do Governo no sentido de promover a tolerância religiosa. (A foto regista uma missa de Ano Novo, na Igreja de Saint Serkis, no centro de Teerão.) MORTEZA NIKOUBAZL / REUTERS
IRAQUE O ano passado foi catastrófico para os cristãos do Iraque. Quando, em junho, o Daesh tomou de assalto a segunda cidade, Mossul, apresentou aos “nazarenos” uma escolha: ou iam embora ou tinham de converter-se ao Islão e pagar o imposto da “jizya”. A alternativa era… a espada. Quando, depois, o Daesh retirou a opção da “jizya”, quase toda a comunidade cristã fugiu com a roupa que trazia no corpo. (Na foto, católicos iraquianos entram na Igreja do Sagrado Coração, em Bagdade, protegida por seguranças.) AHMED SAAD / REUTERS
IRAQUE “Durante longos séculos, nós, cristãos do Iraque, vivemos muitas dificuldades e perseguições. Mas o que vivemos agora são os piores atos de genocídio na nossa terra”, alertou, em fevereiro passado, o arcebispo caldeu Bashar Warda, de Erbil. “Enfrentamos a extinção do Cristianismo como religião no Iraque.” Os cristãos iraquianos não vão além dos 275 mil. A Ajuda à Igreja que Sofre estima que o Cristianismo poderá desaparecer do Iraque no prazo de cinco anos. Será o fim de uma presença contínua de 1800 anos. (Na foto, funeral do cristão Tareq Aziz, ministro dos Negócios Estrangeiros de Saddam Hussein, a 13 de junho passado, em Amã, Jordânia.) MUHAMMAD HAMED / REUTERS
ISRAEL A 17 de junho passado, extremistas judeus atearam fogo à Igreja da Multiplicação dos Pães, em Tabgha, na Galileia, norte de Israel (na foto). No local, foram encontrados graffitis em hebraico denunciando o culto de “falsos ídolos”. A igreja atacada assinala, para os cristãos, o local onde Jesus realizou o “milagre dos cinco pães e dois peixes”, referido nos quatro Evangelhos. Milhares de peregrinos visitavam esta igreja todos os anos. Este foi o segundo ataque àquela igreja: em abril de 2014, extremistas judeus profanaram cruzes e um altar no local. BAZ RATNER / REUTERS
ISRAEL É o único país do Médio Oriente com uma população cristã em expansão. O recente ataque à Igreja da Multiplicação dos Pães (foto) marca um padrão emergente, denunciam líderes religiosos locais. Ouvido pela AIS, o bispo auxiliar William Shomali, do Patriarcado Latino de Jerusalém, diz recear que o extremismo judeu esteja a “aumentar em número e no grau de intolerância”. BAZ RATNER / REUTERS
NIGÉRIA — Para muitos cristãos no país mais populoso de África, a vida está diretamente ameaçada pelos terroristas do Boko Haram que pretendem erradicar o Cristianismo na Nigéria. Estima-se que os cristãos ascendam a 49,3% da população e os muçulmanos a 48,8%. Os extremistas têm visado, sobretudo, aldeias, igrejas e escolas, raptando raparigas e matando rapazes. Ataques à diocese católica de Maiduguri (nordeste), em maio passado, provocaram a destruição de 350 igrejas e colocaram em fuga 100 mil católicos. (Na foto, uma missa católica em Port Harcourt.) AFOLABI SOTUNDE / REUTERS
NIGÉRIA — Ruínas de uma igreja em Baga, cidade situada no nordeste da Nigéria, tomada por combatentes do Boko Haram em janeiro deste ano JOE PENNEY / REUTERS
PAQUISTÃO Neste protesto, na cidade de Lahore, pede-se a libertação de Asia Bibi, uma paquistanesa cristã, condenada à morte por blasfémia MOHSIN RAZA / REUTERS
PAQUISTÃO — Neste país muçulmano, cristãos têm sido enforcados e queimados vivos às mãos de extremistas, que aproveitam um certo relaxamento das autoridades de Islamabad em responder a atos violentos contra minorias religiosas. Aparentemente, diz a Ajuda à Igreja que Sofre, as instituições legais têm cedido à pressão colocada por grupos conservadores, que crescem em poder e popularidade. Em março passado, ataques à bomba contra duas igrejas de Lahore mataram 17 pessoas. (Na foto, interior da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, nessa cidade.) MOHSIN RAZA / REUTERS
QUÉNIA — País esmagadoramente cristão, o Quénia consagra o direito à liberdade religiosa na sua Constituição. Todas as novas Igrejas têm de ser registadas e, pontualmente, a legislação permite a intervenção de tribunais islâmicos em processos relacionados com casamento, divórcio e herança. Populações muçulmanas queixam-se de discriminação e esquecimento por parte das autoridades, razões que têm facilitado a recruta por parte de jihadistas. (Na foto, Margaret Ngesa, da Missão da Igreja Africana da Legião de Maria, na sua casa, em Nyang’oma Kogelo, aldeia da família de Barack Obama.) THOMAS MUKOYA / REUTERS
QUÉNIA — A 2 de abril de 2015, homens armados invadiram a Universidade de Garissa, leste do país, e mataram 147 pessoas. Durante o ataque, selecionaram criteriosamente os reféns: libertaram os muçulmanos e executaram cristãos e outros não-muçulmanos. Os terroristas afirmaram serem membros do Al-Shabaab, grupo jihadista sedeado na Somália com ligações à Al-Qaeda, e justificaram o ataque à instituição dizendo estar situada em território muçulmano colonizado por não-muçulmanos. NOOR KHAMIS / REUTERS
RÚSSIA — A liberdade religiosa melhorou no país desde os anos do comunismo, mas legislação relativa a encontros ilegais, manifestações, procissões e protestos têm visado diretamente cristãos que se reuniam em cafés, cinemas, centros culturais, ruas, parques infantis e praças públicas. Há mesmo casos de crentes que foram processados por se reunirem em casas privadas. Alguns centros geridos por cristãos foram acusados de “atividade ilegal”. (A foto regista uma vigília em frente a uma igreja católica, em Krasnoyarsk, na Sibéria.) ILYA NAYMUSHIN / REUTERS
RÚSSIA — A Constituição de 1993 declara que o Estado russo é não-confessional e consagra a liberdade religiosa, desde que isso não interfira com a ordem pública. Mas na prática, a legislação restringe esta liberdade. De acordo com a Lei da Liberdade de Consciência e Associações Religiosas de 2007, o Estado apenas reconhece o Cristianismo Ortodoxo Oriental, o Judaísmo, o Islamismo e o Budismo como “religiões tradicionais” da Rússia. Paralelamente, ignora o papel histórico da Igreja Católica e das comunidades protestantes. (Na foto, o primeiro-ministro russo, Dmitry Medvedev, discursa numa capela russa, em Vrsic, Eslovénia, em 26 de julho.) SRDJAN ZIVULOVIC / REUTERS
SÍRIA — Diz a tradição cristã que São Paulo foi convertido na Síria e batizado, crismado e ordenado pela Igreja em Damasco. Hoje, a região não podia ser mais agreste para com os cristãos. “Na minha diocese de Alepo, no norte da Síria, estamos na linha da frente deste sofrimento”, testemunha Jean-Clement Jeanbart, arcebispo católico grego melquita. “A minha própria catedral foi bombardeada seis vezes e agora não a podemos usar. A minha casa também foi atingida mais de dez vezes.” Tanto na Síria como no Iraque, as comunidades cristãs e outras minorias vulneráveis estão indefesas contra as investidas do Daesh. “Somos de facto tratados como ovelhas destinadas ao matadouro.” (Na foto, tropas curdas junto a uma igreja assíria, em Tel Jumaa.) RODI SAID / REUTERS
SÍRIA — Em abril de 2014, um sacerdote jesuíta holandês de 75 anos que vivia e trabalhava na Síria há quase 50 anos (na foto) foi assassinado. O padre Frans van der Lugt tornara-se um defensor dos pobres e necessitados, independentemente da sua religião. Durante três anos, permaneceu no bairro cristão da Cidade Velha de Homs, promovendo ações de reconciliação entre diferentes grupos, enquanto a cidade esteve cercada. Recusou ofertas para ser retirado dali. O padre Frans van der Lugt era um dos recetadores da assistência encaminhada pela fundação Ajuda à Igreja que Sofre para a Síria. YAZAN HOMSY / REUTERS
SRI LANKA — Embora o Budismo seja visto como uma religião de paz, um ramo mais militante deste credo aliou-se a correntes nacionalistas que o consideram a religião legítima de países como o Sri Lanka e Myanmar (antiga Birmânia). O ódio e violência daí decorrentes tem visado populações cristãs e muçulmanas. Muitas igrejas foram destruídas e encerradas às mãos de budistas extremistas. (Na foto, a Igreja de St. James, em Jaffna.) REUTERS
SRI LANKA — Em 2014, cerca de 60 igrejas e capelas foram atacadas no Sri Lanka, ainda assim uma acentuada redução em relação às 105 do ano anterior. Num dos casos, 11 monges budistas lideraram uma multidão de 250 pessoas que atacaram a Igreja da Sagrada Família, em Asgiriya, arrastando o pastor e a mulher para fora de casa para serem agredidos. (A foto mostra um protesto em Colombo contra os ataques a locais de culto.) DINUKA LIYANAWATTE / REUTERS
SUDÃO — A redução do número de cristãos no Sudão é diretamente proporcional ao reforço da agenda islâmica do Presidente Omar al-Bashir. No poder desde 1989, é o único chefe de Estado em funções a ser alvo de um mandado de captura emitido, em 2009, pelo Tribunal Penal Internacional, acusado de genocídio no conflito do Darfur. (A foto mostra muçulmanos em oração, em Cartum.) MOHAMED NURELDIN ABDALLAH / REUTERS
SUDÃO — Em 2014, uma sudanesa grávida de oito meses foi presa e condenada à morte por adultério e apostasia. Mariam Ibrahim tinha casado com um cristão, atrevimento que levou a família a denuncia-la à polícia. Filha de uma ortodoxa etíope, que a batizou quando era bebé, e de um muçulmano, que a abandonou com pouca idade, Mariam viu um tribunal decidir que devia ser educada na fé do pai. A sua condenação à morte captou as atenções internacionais, originando grande pressão sobre as autoridades de Cartum. Foi libertada e autorizada a viajar para os EUA (na foto, à chegada a um aeroporto de New Hampshire, a 31 de julho de 2014), onde vive com o marido, o filho e a pequena Maya, nascida na prisão. A caminho dos EUA, foi recebida em Roma pelo Papa Francisco. BRIAN SNYDER / REUTERS
TURQUEMENISTÃO — Um novo código administrativo introduzido em janeiro de 2014 aumentou as punições para os grupos religiosos “ilegais”, ou seja não registados. A Igreja Católica conseguiu registar-se como comunidade religiosa apenas em março de 2010 — o primeiro pedido tinha sido entregue em 1997, quando chegaram a Ashgabat (na foto) os dois primeiros sacerdotes católicos. Muitos cristãos são forçados a prestar culto em segredo. REUTERS
TURQUEMENISTÃO — Fechado ao escrutínio independente, permanece como um dos países mais repressivos do mundo. Os órgãos de informação e as liberdades religiosas estão sujeitas a restrições draconianas e os defensores dos direitos humanos enfrentam ameaças constantes de represálias por parte do Governo do Presidente Kurbanguly Berdymukhamedov (na foto). Esmagadoramente muçulmano, acolhe as celebrações muçulmanas sunitas como festas nacionais. REUTERS
TURQUIA — O recente atentado sangrento (97 mortos) em Ancara, atribuído ao Daesh, vem confirmar os receios que apontam para um aumento do Islamismo radical no seio da sociedade turca. Oficialmente um Estado laico — um legado do primeiro Presidente Mustapha Kemal Ataturk —, a Turquia é politicamente dominada pelo AKP, um partido islamita moderado (sunita). Os judeus e duas comunidades cristãs (Patriarcado Ecuménico de Constantinopla e Patriarcado Apostólico Arménio) são oficialmente reconhecidas como “minorias protegidas”. Os alauitas, um ramo do Islão xiita, apenas são reconhecidos em termos culturais, apesar de ter entre 15 e 20 milhões de seguidores. (Na foto, missa na Igreja Patriarcal Surp Asdvadzadzin (arménia), em Istambul.) MURAD SEZER / REUTERS
TURQUIA — Museus que, originalmente, tinham sido igrejas são hoje utilizadas como mesquitas. Um pedido semelhante foi feito em relação à mundialmente famosa Hagia Sophia (na foto), em Istambul, uma antiga igreja que, desde 1935, tem o estatuto de museu. No início de 2015, as autoridades turcas autorizaram a construção de uma igreja para a pequena minoria siríaca, em Istambul, a primeira desde a implantação da República, em 1923. Erol Dora, o primeiro e único deputado turco siríaco, afirmou: “A escala da discriminação torna-se óbvia quando notícias sobre a primeira nova igreja a ser construída num século são saudadas como um acontecimento monumental”. MURAD SEZER / REUTERS
UCRÂNIA — A liberdade religiosa tem-se ressentido de toda a instabilidade política que tem afetado o país, palco de uma recente intervenção militar por parte da Rússia. “O facto das dioceses ortodoxas estarem a ser confiscadas pela força na Ucrânia e de os ortodoxos ucranianos sofrerem discriminação é uma surpresa desagradável para nós”, denunciou, a 2 de outubro passado, o chefe da Igreja Ortodoxa Polaca, após um encontro com um representante da Igreja Ortodoxa Ucraniana. “Onde estão as autoridades? Porque não protegem o povo e defendem os seus direitos religiosos? A Ucrânia quer ser um Estado democrático, mas em democracia tem de haver ordem.” (Na foto, uma procissão perto do sítio onde se despenhou o avião MH17 da Malaysia Airlines, na aldeia de Hrabove, região de Donetsk.) REUTERS
UCRÂNIA — Desde que a Crimeia passou para soberania russa, na sequência do referendo de 16 de março de 2014, que a proibição de literatura religiosa “extremista” foi alargada àquela antiga região ucraniana. Todos os livros catalogados nesta categoria tiveram de ser entregues às autoridades até ao final de 2014. (Na foto, uma imagem de Jesus Cristo danificada pela guerra, numa igreja na região de Donetsk.) MARKO DJURICA / REUTERS
VIETNAME — O Governo continua a controlar as atividades religiosas e a reprimir os grupos que desafiam a sua autoridade, com graves sanções para os crentes que não obedecem às restrições oficiais. Ao abrigo do Decreto 92, introduzido a 1 de janeiro de 2003, grupos que desejem organizar “encontros religiosos” têm de obter autorização. Também prevê que os sacerdotes sejam obrigados a frequentar cursos sobre a história do Vietname e sobre legislação e obriga-os a submeter pedidos formais sempre que quiserem viajar para o estrangeiro ou entre regiões vietnamitas. (Na foto, uma missa católica numa paróquia pobre dos arredores de Hanói.) NGUYEN HUY KHAM / REUTERS
VIETNAME — Após uma diretiva de 2012 do Comité de Assuntos Religiosos do Ministério do Interior, grupos de cristãos protestantes do noroeste e das terras altas centrais do Vietname enfrentaram situações de repressão. Em três províncias do norte, os governos locais recusaram reconhecer a Igreja Católica como entidade legal, contrariando assim uma determinação do poder central. (A imagem regista uma cerimónia de batismo, numa igreja católica de Hoa Binh.) NGUYEN HUY KHAM / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui e aqui

Mundo esquece cristãos do Oriente

No Parlamento Europeu, o Papa denunciou “o silêncio vergonhoso” face à perseguição aos cristãos no Médio Oriente

Placa toponímica assinalando o bairro cristão na Cidade Velha de Jerusalém MARGARIDA MOTA

“Não podemos resignar-nos a pensar o Médio Oriente sem os cristãos, onde durante dois mil anos confessaram o nome de Jesus.” O alerta foi dado recentemente pelo Papa Francisco, confrontado com lancinantes pedidos de ajuda vindos das minorias cristãs do Médio Oriente — sobretudo as comunidades das áreas conquistadas pelos extremistas do Estado Islâmico, no Iraque e na Síria.

O Cristianismo nasceu nessa região — Jesus Cristo nasceu na atual Palestina, São Paulo na atual Turquia, Abraão no atual Iraque. Mas hoje, sobretudo após a erupção da ameaça jihadista, muitos cristãos são forçados a negar a sua fé para sobreviverem. “É uma ironia do correr da História. Mas o mais irónico e dramático é que desde há 10 a 12 anos há instituições a apontar essa situação sem que quase ninguém tenha tomado iniciativa alguma”, diz ao “Expresso” Paulo Mendes Pinto, responsável pela área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.

“Foi preciso que, depois de morrerem milhares de cristãos locais, morressem uns escassos ‘ocidentais’ para que a questão fosse colocada nas agendas. Mais do que a ironia do Cristianismo estar a ser perseguido na região onde nasceu, é essa ainda mais estranha ironia dos cristãos do resto do mundo não terem ligado aos seus irmãos, apesar de todos os apelos.”

As feridas do século XX

Antes da sua viagem à Turquia, o Papa Francisco discursou no Parlamento Europeu, na terça-feira, onde não esqueceu o drama dos cristãos e de outras minorias vítimas de “atos bárbaros” — “despejados de suas casas e das terras onde nasceram, vendidos como escravos, mortos, decapitados, crucificados ou queimados vivos, perante o silêncio vergonhoso e a cumplicidade de tantos”.

A verdade é que os problemas dos cristãos do Médio Oriente — de onde o Cristianismo se difundiu para se tornar a religião com mais fiéis em todo o mundo — não começaram com o Estado Islâmico. “Chegámos ao século XX, na herança do Império Otomano, com um leque relativamente vasto de minorias religiosas no Médio Oriente. As hierarquias locais e regionais seguiam a política do sultanato de integrar a diversidade. Contudo, o século XX teve profundas feridas regionais”, explica Paulo Mendes Pinto, embaixador do Parlamento Mundial das Religiões, cuja próxima sessão será em setembro de 2015 em Salt Lake City, nos Estados Unidos.

“Olhamos para as duas grandes guerras como quase exclusivamente europeias, mas no Médio Oriente, começando pelo mundo otomano (atual Turquia), as identidades regionais foram esmagadas pelo colonialismo que se instalou no quadro da I Grande Guerra. Com o fim do califado, do Império Otomano e dos equilíbrios regionais e com o crescente peso das potências europeias, as minorias tornam-se o elo mais fraco.” Sobreviveram às ditaduras, mas viram a sua condição agravar-se dramaticamente após a fragmentação dos poderes autoritários, especialmente no pós-Saddam.

Artigo publicado no Expresso, a 29 de novembro de 2014

Papa continua a lançar pontes, desta vez na Turquia

O Papa Francisco chega sexta-feira à muçulmana Turquia. O líder da Igreja Católica vai encontrar-se com o patriarca ortodoxo de Constantinopla, numa altura em que os cristãos correm o risco de desaparecer do Oriente

O Papa Francisco chega na sexta-feira à Turquia — onde 98% dos 74 milhões de habitantes são muçulmanos — para cumprir a sua quinta visita ecuménica. O líder da Igreja Católica tem previsto um encontro com o ortodoxo Bartolomeu I, Patriarca de Constantinopla, numa altura em que as minorias cristãs no Médio Oriente sofrem perseguições generalizadas — as mais graves das quais às mãos do “Estado Islâmico”, no Iraque e na Síria.

Estima-se que mais de 100 mil cristãos, ameaçados pelos extremistas, tenham sido forçados a fugir da província de Nínive, no norte do Iraque. Em agosto, o Sumo Pontífice admitiu que o uso da força contra o autodenominado Estado Islâmico “pode justificar-se”.

O avião papal aterra no aeroporto de Ancara na sexta-feira à tarde, onde Francisco terá à sua espera o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Na capital, o Papa visitará o túmulo de Mustafa Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna (país herdeiro do Império Otomano), promotor de uma identidade nacional secular cada vez mais posta em causa por medidas de caráter islamizante impulsionadas pelo Presidente.

Sábado será o dia dedicado a Istambul e ao encontro com o representante da igreja ortodoxa. Francisco visitará também a Basílica de Santa Sofia (Hagia Sophia), construída no século VI para ser a Catedral de Constantinopla e convertida em mesquita após a conquista muçulmana da cidade, em 1453. Hoje, o templo é um museu.

Francisco será o quarto líder católico a visitar a Turquia – após Paulo VI (1967), João Paulo II (1979) e Bento XVI (2006). O início do diálogo entre estas duas igrejas cristãs remonta a janeiro de 1964, ano em que o Patriarca Grego Ortodoxo Atenágoras I de Constantinopla e o Papa Paulo VI se encontraram em Jerusalém. Foi o primeiro encontro ecuménico ao mais alto nível desde o Grande Cisma do século XI. 

Discurso no Parlamento Europeu
Antes da sua deslocação à Turquia, o Papa Francisco viajou até Estrasburgo. Na terça-feira, falou no Parlamento Europeu — o último Papa a discursar naquele hemiciclo foi João Paulo II, em 1988, ainda o Muro de Berlim estava intacto.

“É necessário enfrentarmos juntos a questão migratória. Não se pode tolerar que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério!”, alertou o Papa, cuja primeira viagem oficial, em julho de 2013, foi à ilha italiana de Lampedusa, ponto de chegada de milhares de imigrantes africanos em busca de trabalho na Europa.

“Nos barcos que chegam diariamente às costas europeias, há homens e mulheres que precisam de acolhimento e ajuda. A falta de apoio no seio da União Europeia arrisca-se a incentivar soluções particulares para o problema que não têm em conta a dignidade humana dos migrantes, promovendo o trabalho servil e contínuas tensões sociais.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de novembro de 2014. Pode ser consultado aqui

Rivais dentro da mesma fé

Seis igrejas cristãs disputam o espaço à volta da tumba de Jesus, no Santo Sepulcro. Como não se entendem, dois clãs muçulmanos guardam o templo

Todos os dias, pelas quatro horas da madrugada, Wajeeh Nuseibeh cumpre o mesmo ritual: atravessa a Cidade Velha de Jerusalém na direcção do bairro cristão e abre a pesada porta de madeira da Igreja do Santo Sepulcro — o mausoléu mais venerado pelos cristãos, que no próximo domingo celebram a ressurreição de Cristo. Ao pôr-do-sol, cumpre a tarefa inversa: após dar três pancadas num batente de ferro, a espaços de meia hora, fecha à chave o templo que encerra o local da crucificação e o túmulo de Jesus.

Seria uma tarefa igual a tantas outras não fosse Wajeeh Nuseibeh… um muçulmano. Há mais de 800 anos que os Nuseibeh são os guardiães do Santo Sepulcro e aqueles que deitam “água na fervura” quando as seis igrejas cristãs que disputam as capelas, os túneis e as grutas no seu interior — católicos, gregos ortodoxos, arménios ortodoxos, coptas, sírios ortodoxos e egípcios ortodoxos — se envolvem em conflitos.

Entrada do Santo Sepulcro, no bairro cristão da Cidade Velha de Jerusalém MARGARIDA MOTA

Desde 1852 que os direitos de propriedade no interior do Santo Sepulcro, que abriga as últimas cinco estações da Via Dolorosa e é visitada por peregrinos desde o século IV, estão regulados por um statu quo estabelecido pelo sultão otomano Abdul Majid. Os gregos ortodoxos, os católicos romanos e os arménios dividem responsabilidades nos sítios mais importantes do Santo Sepulcro — o Calvário, o sítio onde Cristo foi crucificado, e o Edículo, a construção em madeira que envolve o túmulo —, cabendo aos gregos a parte de leão.

Mas, por vezes, surgem tensões relativas ao direito de limpar determinada superfície ou de rezar numa qualquer área. No passado mês de Novembro, monges gregos e arménios chegaram a vias de facto quando os gregos tentaram colocar um dos seus padres à entrada do Edículo durante uma procissão dos arménios. A rixa foi sangrenta, obrigando a polícia israelita a entrar no Santo Sepulcro para apartar as hostes.

“Como todos os irmãos, eles têm problemas. Nós ajudamo-los a resolver as disputas. Somos neutrais. Somos as Nações Unidas. Ajudamos a preservar a paz neste lugar sagrado”, disse Nuseibeh, de 55 anos, ao diário norte-americano “San Francisco Chronicle”.

No interior da basílica do Santo Sepulcro, esta edícula, uma construção em madeira, envolve o túmulo de Jesus Cristo MARGARIDA MOTA

Uma vez por ano, as três maiores igrejas cristãs — gregos ortodoxos, católicos romanos e arménios — renovam publicamente o seu pedido aos Nuseibeh para serem os “zeladores e porteiros” do Santo Sepulcro. Mas a guarda do templo não se esgota neles. Uma outra família muçulmana — os Judeh — é responsável por guardar a chave da porta do templo durante a noite.

À semelhança das igrejas cristãs no interior do Santo Sepulcro, também os dois clãs muçulmanos não evitam a rivalidade na hora de esclarecer qual dos dois tem o papel mais importante. Os Judeh têm a chave e acham que os rivais não são ninguém sem ela; os Nuseibeh abrem a porta e consideram que os outros não passam de assistentes ao seu trabalho.

A guarda muçulmana do Santo Sepulcro é tão antiga quanto a conquista islâmica de Jerusalém, no século VII. Na época, os Nuseibeh foram encarregados de proteger os lugares cristãos da Cidade Santa. Em 1099, a família foi expulsa pelos Cruzados, recuperando o estatuto 88 anos depois, quando o lendário Saladino reconquistou Jerusalém para o Islão. Desde então, os dois clãs garantem a paz dentro do Santo Sepulcro.

DOZE MOMENTOS NA VIDA DE JESUS CRISTO

1 ANÚNCIO
“Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus”. No local onde, segundo o Evangelho de S. Lucas, o arcanjo Gabriel anunciou a maternidade a Maria, ergue-se hoje uma moderna igreja católica — a Basílica da Anunciação, concluída em 1969. Este projecto do arquitecto italiano Giovanni Muzio concretizou-se sobre as ruínas de cinco igrejas que existiram no local entre 356 e 1955. O templo situa-se na cidade israelita de Nazaré, nas colinas da região da Galileia, onde se estima que Jesus tenha passado os seus primeiros anos de vida. Nazaré tem 65 mil habitantes, a maioria dos quais são cidadãos israelitas de cultura árabe — um quinto da população de Israel é árabe. Para a comunidade católica local (cerca de 7000 pessoas), a Basílica da Anunciação é a sua igreja matriz.

2 NASCIMENTO
Imperava o romano César Augusto na região quando foi publicado um édito obrigando cada pessoa a recensear-se na sua cidade de origem. José da Galileia pôs-se ao caminho até Belém, a cidade de David, de onde era natural a sua família, com Maria, a esposa grávida. Segundo Marcos, “ao estarem eles ali, completaram-se os dias de ela dar à luz; e deu à luz o seu filho primogénito, e envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles no alojamento”. A gruta onde Jesus terá nascido está situada no subterrâneo da Basílica da Natividade, na cidade palestiniana de Belém (Cisjordânia), uma igreja com origem no ano de 332. Desde 1852, a custódia do templo é partilhada por católicos (que celebram o Natal na noite de 24 de Dezembro) e ortodoxos gregos e arménios (que o vivem, respectivamente, a 6 e 18 de Janeiro). Na gruta, uma estrela de prata incrustada no chão de mármore assinala o local do nascimento. Sobre a estrela, 15 lâmpadas estão permanentemente acesas: seis são ateadas pelos gregos, cinco pelos arménios e quatro pelos católicos.

3 FUGA PARA O EGIPTO
Num sonho, um anjo alerta José para a sentença de morte emitida por Herodes contra os primogénitos. “Levanta-te, toma o menino e a sua mãe, e foge para o Egipto, e fica lá até que eu te diga; porque Herodes procurará o menino para o matar”, relata S. Mateus. Crê-se que um dos locais onde a Sagrada Família pernoitou foi Gaza, onde outrora morrera o mítico Sansão. Do Egipto, os três só regressariam a Nazaré após a morte de Herodes.

4 BAPTISMO
Aos 27 anos Jesus foi baptizado por João Baptista, em “Betânia, do outro lado do Jordão”. Pensa-se que o ritual aconteceu no actual território jordano, onde escavações iniciadas em 1996 revelaram mais de 20 igrejas, grutas e tanques romanos e bizantinos. Na margem israelita do Jordão, Yardenit — onde se realizam baptismos colectivos — disputa a autenticidade do local.

5 JEJUM NO DESERTO
Após o baptismo, Jesus retirou-se para o deserto para jejuar e rezar durante “40 dias e 40 noites” — tendo sido, por três vezes, tentado por Satanás. A tradição diz que o episódio aconteceu no Monte Quarntal, a noroeste da cidade palestiniana de Jericó. Em 1895, os gregos-ortodoxos construíram o Mosteiro da Tentação, envolvendo o local onde, acreditam, Jesus esteve sentado durante o jejum.

6 PRIMEIRO MILAGRE
Nos mapas, surge como Kafr Kanna, mas esta cidade árabe do Norte de Israel é mais conhecida pelo nome com que é referida na Bíblia — “Canã da Galileia”. Foi aqui que, julga-se, Jesus fez o seu primeiro milagre, durante um casamento, onde comparecera acompanhado pela mãe e por discípulos. Ao ver que o vinho acabara, Jesus ordenou aos criados que enchessem “jarras com água”. Quando o líquido foi servido aos convidados, nos copos caiu vinho. Em 1883, em Kafr Kanna, foi consagrada a Igreja do Milagre, construída pelos franciscanos. No seu interior, estão expostas jarras supostamente usadas no banquete bíblico. E nas bancas de recordações da cidade, não faltam, à venda, garrafas de “vinho do casamento”.

7 MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES E DOS PEIXES
A Bíblia diz apenas que aconteceu num “lugar isolado”, mas é em Tabgha, junto ao Mar da Galileia, que mais se celebra o milagre da multiplicação. Certo dia, quando Jesus seguia de barco, com os discípulos, foi seguido por uma multidão que o queria escutar. Sem comida suficiente, Jesus pegou nos cinco pães e dois peixes que iam no barco e reproduziu-os em abundância. A pedra onde a refeição terá sido servida jaz, hoje, debaixo do altar da Igreja da Multiplicação, reconstruída em 1982, em Tabgha, como uma réplica da igreja original. Junto à pedra, um mosaico datado do século V mostra dois peixes e um cesto de pães.

8 ENTRADA EM JERUSALÉM
Montado num burro e acolhido por uma multidão que agitava folhas de palmeira, Jesus entra triunfalmente em Jerusalém para cumprir a derradeira fase da sua vida. O Domingo de Ramos mais não é do que a celebração desse dia. Crê-se que Jesus entrou pela Porta Dourada, a única das oito portas da Cidade Velha de Jerusalém que, actualmente, está encerrada. Segundo a tradição judaica, é por essa porta que o Messias entrará na Cidade Santa. Para o impedir, em 1541, o Sultão Suleiman I mandou selá-la. Paralelamente, os muçulmanos começaram a enterrar os seus mortos do lado de fora do portão convencidos de que o Antigo Testamento proíbe o Messias de contactar com mortos. Com um cemitério à entrada da Porta Dourada, a profecia não se cumprirá, pensam.

9 ÚLTIMA CEIA
Os evangelhos dão poucas pistas, mas pensa-se que o momento celebrizado pela pintura de Leonardo Da Vinci tenha ocorrido no Monte Sião. A tradição cristã aponta o Cenáculo como o local onde Jesus partilhou a sua última refeição com os 12 apóstolos. Estima-se, porém, que essa sala tenha sido construída no período das Cruzadas, o que contraria essa autenticidade.

10 VIA DOLOROSA
Para muitos cristãos em visita à Cidade Velha de Jerusalém, a expressão máxima da sua fé é percorrer a Via Dolorosa — o caminho que Jesus fez desde a condenação de Pilatos até à crucificação. Composta por 14 estações, espalhadas ao longo de 500 metros, a Via Sacra inicia-se no bairro muçulmano, estando a primeira estação localizada no interior de uma madrassa (escola islâmica). Por isso, muitos peregrinos optam por começar na segunda estação, junto ao Mosteiro da Flagelação, de onde todas as sextas-feiras, às 15 horas (quando morreu Jesus), os franciscanos encabeçam uma procissão. Porém, durante a caminhada, a meditação chega a ser impossível. A Via Dolorosa atravessa o bairro árabe e algumas estações estão paredes-meias com lojas e bancas ambulantes do suq Khan al-Zeit. O percurso acaba dentro do Santo Sepulcro.

12 ASCENSÃO
No alto do Monte das Oliveiras, em frente a Jerusalém, ergue-se a Capela da Ascensão, venerada por muçulmanos e cristãos. No interior deste pequeno templo, convivem um mihrab, que aponta a direcção de Meca, e uma pegada numa pedra, que a tradição identifica como aquela deixada por Jesus no momento em que subiu aos céus. Assim termina o evangelho de S. Lucas: “Depois, levou-os até junto de Betânia e, erguendo as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, separou-se deles e elevava-se ao Céu. E eles, depois de se terem prostrado diante dele, voltaram para Jerusalém com grande alegria. E estavam continuamente no templo a bendizer a Deus”.

Artigo publicado no Expresso, a 10 de abril de 2009