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17 respostas para 2023: da guerra na Ucrânia aos protestos na China e no Irão, passando por epidemias e acordos globais

Podemos prever o futuro? Provavelmente não, tal como não escapamos a apostar no desenvolvimento dos temas que acompanhamos ao longo do ano. Aqui ficam as respostas da equipa do Internacional às perguntas que colocaram por si, leitor

1 A Guerra na Ucrânia vai acabar?
Sem vontade de procurar uma solução diplomática, a guerra só pode terminar no terreno com uma conquista suficientemente esmagadora (ou, no caso da Ucrânia, uma reconquista) que obrigue o outro lado a capitular ou a aceitar negociações de paz. O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, diz que a paz pressupõe que a Rússia entregue a Kiev todos os territórios anexados desde 2014, o que é pouco realista. Do lado russo continuam os ultimatos e ameaças. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, disse que a Ucrânia tem de completar o processo de “desnazificação e desmilitarização”, ou “o assunto será resolvido pelo exército russo”.

2 A próxima COP (28) conseguirá um acordo de redução dos combustíveis fósseis?
O elefante no meio da sala das conferências globais das Nações Unidas para o Clima permanece a ausência de acordo para a redução das emissões de gases com efeito de estufa de modo a impedir que o aumento da temperatura média do planeta ultrapasse os 1,5º, o que já é uma irrealidade em si. A vitória da COP27 foi o reconhecimento das “perdas e danos” e “falar-se” em indemnizações para os países mais prejudicados pelas ondas de calor prolongadas, secas agudas prolongadas, subida do nível da água do mar, acidificação dos oceanos, incêndios selvagens, inundações bíblicas e extinção de espécies no chamado Sul global. O lóbi dos combustíveis fósseis não perdeu ainda terreno.

3 Lula da Silva vai governar o Brasil à esquerda?
O homem que, pela terceira vez, toma posse como Presidente a 1 de janeiro tem de privilegiar as políticas sociais e ambientais para cumprir as promessas feitas na campanha eleitoral. O grande desafio do novo Governo é conseguir atribuir verbas para a Cultura, Educação, Saúde e Ambiente – sobretudo no combate ao desmatamento da Amazónia – e manter o equilíbrio das contas públicas para evitar uma escalada inflacionista. A resposta executiva passa, em boa parte, pelo trabalho dos futuros titulares da pasta da Fazenda, Fernando Haddad, e da pasta do Planeamento, Simone Tebet.

4 Cyril Ramaphosa é destituído da presidência da África do Sul?
Em 13 de dezembro, Cyril Ramaphosa sobreviveu a um voto de destituição na Assembleia Nacional pedido pelos partidos da oposição. O Presidente da República e do ANC, que sucedeu a Jacob Zuma após escândalos de corrupção sem precedentes e captura do Estado, prometeu voltar a pôr o país nos eixos. Porém viu-se envolvido num processo cujas acusações combate ainda em tribunal, o qual pode vir a acusar Ramaphosa de “má conduta e violação da Constituição”. Ainda que tenha vencido até agora, o ANC, tem perdido eleitores em cada eleição desde 1994. Por enquanto, Ramaphosa conta com o apoio do ANC para limpar o seu nome sem perder a credibilidade política. Até quando, se 2023 é ano de eleições gerais?

5 Como vai acabar a revolta no Irão?
Os protestos já contam mais de 100 dias e as imagens que nos chegam do Irão mostram que as pessoas continuam a acorrer às ruas apesar dos castigos aplicados serem cada vez mais severos. Pelo menos 506 pessoas já perderam a vida e outras 40 aguardam execução, segundo uma investigação da CNN. Sem liderança coesa e com este nível de repressão, tortura, prisão e morte é pouco provável que a liderança dos aiatolas venha a ser derrubada, porém os iranianos dizem que algumas mudanças já são visíveis nas ruas. Um exemplo é a recusa de muitas mulheres em usar o lenço sobre os cabelos.

6 O regime chinês vai ceder aos protestos?
Semanas depois de o Presidente Xi Jinping assumir um terceiro mandato na liderança do Partido Comunista da China emergiram protestos em várias cidades do país contra a política de ‘zero casos’ de covid-19. Foram a maior demonstração pública de descontentamento desde o massacre de Tiananmen em 1989. A ida à rua parece ter resultado. Várias medidas foram relaxadas no seu seguimento e demonstrou a capacidade da população em manifestar-se apesar da censura existente no país. No entanto, é incerto quais são as políticas estatais que podem vir a gerar oposição com esta capacidade de mobilização.

7 As pandemias e vírus assustadores vieram para ficar?
O risco de novas epidemias é certo e os especialistas alertam os Estados para que tenham respostas enérgicas. Tal como os tsunamis, a covid-19 convenceu da necessidade de sistemas de alerta que permitam detetar os problemas de forma a controlá-los. Antes da Sars-cov-2, a década de 1980 conheceu a sida. Porém, foi “a partir do ano 2000 que se assistiu a uma série de acontecimentos que traduzir a emergência inesperada de fenómenos epidémicos de natureza zoonótica”, como lembra Francisco George, ex-diretor-geral de Saúde de 2005 a 2017, referindo-se a doenças que têm origem em agentes infecciosos que têm animais como reservatório.

8 Erdogan perde a presidência da Turquia?
É possível. Porém não se sabe ainda se é provável, uma vez que a oposição, grande parte dela unida com o único propósito de derrotar Erdogan, ainda não apresentou candidato. As sondagens, contra um opositor desconhecido, dão ao incumbente cerca de 34% das intenções de voto, o mesmo valor atribuído ao seu partido, Justiça e Desenvolvimento (AKP), nas eleições parlamentares, também em 2023, o ano do centenário do país. Não chega para a vitória. O declínio da economia vai ser o tema principal da campanha. Resta saber a quem vai o povo atribuir a culpa.

9 A Itália de Giorgia Meloni vai continuar nas boas graças de Bruxelas?
Giorgia Meloni – líder do partido de extrema-direita Irmãos de Itália – foi eleita primeira-ministra de Itália em setembro. A postura de euroceticismo gerou preocupação, porém Meloni tem procurado acalmar a esfera internacional assumindo um discurso mais moderado. Perante o Parlamento repudiou o fascismo e mostrou oposição a “qualquer forma de racismo”; em viagem a Bruxelas afirmou querer uma defesa dos interesses nacionais “dentro da dimensão Europeia”. A reação foi positiva, com a Presidente da Comissão Europeia a agradecer Meloni pelo “forte sinal” ao escolher Bruxelas como a primeira viagem enquanto líder do governo italiano.

10 A Índia vai continuar a comprar petróleo à Rússia?
É provável. A Rússia tornou-se o principal fornecedor de petróleo da Índia em novembro, com importações a chegarem aos 908 mil barris por dia. As declarações de figuras do governo indiano não sugerem mudanças de rumo. Em dezembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros deu a entender que se a Europa pode priorizar as suas necessidades energéticas, não deve pedir à Índia para nao priorizar as suas também. Em outubro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou numa resolução a condenar os referendos ilegais de anexação realizados pela Rússia em territórios da Ucrânia. A Índia foi um dos 35 países a absterem-se.

11 O regime talibã vai ser reconhecido internacionalmente?
Não é de esperar. Os talibãs estão há mais de um ano no poder, o tempo suficiente para que algum país os reconhecesse como governo legítimo. Na década de 1990, quando governaram pela primeira vez, foram reconhecidos por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão. Decisões como a recente proibição do acesso das mulheres afegãs às universidades tornam embaraçoso o reconhecimento do regime. A medida foi criticada de forma generalizada, inclusive por países muçulmanos: a Arábia Saudita expressou “espanto e desapontamento” e a Turquia considerou a decisão “nem islâmica nem humana”.

12 O conflito no Nagorno-Karabakh voltará a escalar?
É inevitável. Não há um processo de paz digno desse nome neste conflito que opõe dois países tornados independentes após o desmembramento da União Soviética: a cristã Arménia e o muçulmano Azerbaijão. De um lado e do outro, há apoios importantes que conferem a este conflito, que se arrasta desde finais da década de 1980, uma dimensão geopolítica: a Rússia apoia os arménios e a Turquia os azeris. Esta disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh, no sul do Cáucaso, que oscila entre períodos de guerra aberta e outros de tensão latente, ressente-se muito do estado da relação entre estes dois países.

13 O embargo dos EUA a Cuba vai terminar?
Não é provável, ainda que as razões que sustentam o bloqueio económico à ilha sejam cada vez mais indefensáveis. O embargo dura há décadas basicamente por uma questão de política interna dos EUA. É ponto de honra da imensa comunidade cubana que vive na Florida, que odeia o regime cubano e que, a cada ato eleitoral, vota em função da posição dos partidos / candidatos em relação a Cuba. A eleição de Joe Biden, que não venceu na Florida, prova que o voto cubano não é imprescindível. A nível internacional, os EUA estão praticamente isolados nesta questão: na ONU apenas Israel vota ao seu lado.

14 Ron DeSantis vai entrar na corrida presidencial?
É muito possível. A menos de dois anos das presidenciais de 2024, ele é visto como o republicano melhor posicionado para bater o pé a Donald Trump, que já anunciou que irá disputar as primárias do partido do elefante. O potencial de Ron DeSantis decorre da reeleição como governador da Florida, em novembro, derrotando o candidato democrata com quase 60% dos votos. Entre os republicanos, também o antigo vice-presidente de Trump, Mike Pence, dá cada vez mais sinais de querer aventurar-se na corrida à Casa Branca: lançou um livro e tem-se desdobrado em viagens pelo país, discursos e entrevistas.

15 Isabel dos Santos pode ir parar à prisão?
Desde que a investigação do Luanda Leaks começou a ser divulgada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, no início de 2020, a filha do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, tem confiado nos melhores escritórios de advogados dos vários países europeus onde os negócios que ali fazia se transformaram em problemas. Autoridades de Portugal e da Holanda arrastaram contas bancárias, imobiliário e participações em empresas e, mais recentemente, o Supremo Tribunal de Angola autorizou o arresto preventivo dos bens da empresária Isabel dos Santos no valor de mil milhões de dólares, a pedido do Ministério Público. As múltiplas camadas usadas nos negócios ainda a protegem, porém, o cerco aperta-se.

16 A China vai invadir Taiwan?
A China afirma que Taiwan é “uma questão interna” e “a primeira linha vermelha que não deve ser cruzada” nas relações com os Estados Unidos. A aliança internacional que os EUA e a União Europeia mostraram contra a Rússia pode levar a China a ser mais cautelosa nos passos para uma reunificação com Taiwan, mas as tensões têm-se vindo a agravar e mantêm-se os receios de um escalar da situação. No Congresso do Partido Comunista da China, o líder Xi Jinping afirmou que o objetivo é uma reunificação pacífica ainda que o país não renuncie ao uso da força. Em outubro, o almirante americano Mike Gilday alertou que pode ocorrer uma invasão até 2024.

17 Irá Donald Trump ser acusado formalmente pelo Departamento de Justiça norte-americano?
Há vários indicadores nesse sentido, sim. Porém o caso é muito sensível uma vez que Trump já apresentou a candidatura à Casa Branca e levá-lo a tribunal poderia ser considerado um ato desenhado especificamente para o impedir de voltar à presidência, e provocar uma divisão ainda maior no país. No entanto, o homem que neste momento dirige as investigações, Jack Smith, já enviou diversas intimações para depor a várias pessoas que estiveram em contacto com Trump durante as suas tentativas para interferir com o resultado das presidenciais de 2020.

Texto escrito com Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares e Salomé Fernandes.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Nas Nações Unidas, 185 países votaram pelo fim do embargo a Cuba. Então porque não acaba?

O bloqueio económico imposto pelos Estados Unidos a Cuba dura há 12 presidentes. Republicanos ou democratas, de John F. Kennedy a Joe Biden, nenhum se atreveu a contrariar a sensibilidade dos cubanos exilados em Miami. “Democratas como Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Os democratas não têm hipótese de ganhar”, diz ao Expresso um estudioso norte-americano da América Latina. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos”

As garras do Tio Sam envolvem a ilha de Cuba CARLOS LATUFF / CANADIAN DIMENSION

Há 124 anos, por esta altura, Cuba saboreava os primeiros dias como país independente. A 10 de dezembro de 1898, terminara a terceira guerra contra o colonizador espanhol, em que os cubanos contaram com a preciosa ajuda de tropas norte-americanas.

Nas décadas seguintes, a ilha caribenha ficou na dependência económica dos Estados Unidos. Quando, a 1 de janeiro de 1959, a revolução socialista de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara triunfou sobre a ditadura de Fulgencio Batista, para muitos cubanos isso significou a libertação de outro tipo de colonialismo.

A nacionalização de dezenas de empresas norte-americanas, decretada pelo novo regime, levou Washington a impor restrições comerciais à ilha. Numa primeira fase, ficaram de fora alimentos e medicamentos (Administração Eisenhower); posteriormente, um embargo afetou todo o comércio (Administração Kennedy).

Esse bloqueio económico dura até hoje. Desde 1992, por iniciativa de Cuba, a Assembleia-Geral das Nações Unidas vota, anualmente, a resolução “Necessidade de acabar com o embargo económico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba” — em 2020, devido à pandemia, a votação não se realizou.

Estados Unidos quase isolados

A resolução não é juridicamente vinculativa, mas permite tirar o pulso à opinião mundial sobre o assunto. Na primeira resolução, em 1992, apenas 59 países votaram a favor; hoje, há quase unanimidade contra o embargo. É isso que espelha a última votação, a 3 de novembro passado:

▪ 189 Estados-membros votaram;
▪ 185 votaram a favor do fim do embargo;
▪ 2 votaram contra: Estados Unidos e Israel;
▪ 2 abstiveram-se: Brasil e Ucrânia.

ISRAEL — “O voto de Israel não parece ser surpreendente. É um firme aliado dos Estados Unidos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui. Na Assembleia -Geral da ONU — onde os votos dos países têm todos o mesmo peso —, o Estado judeu tem sido o único a replicar cegamente a posição dos Estados Unidos.

BRASIL — “O Brasil de Jair Bolsonaro tem uma relação fria com o Governo de Joe Biden e mantém boas relações com a Rússia de Vladimir Putin. Provavelmente, se Lula da Silva já fosse Presidente teria votado contra o embargo”, acrescenta Labaqui. De 1992 a 2018, o Brasil votou sempre a favor do fim do embargo; em 2019 (o primeiro ano de Bolsonaro no Palácio do Planalto) votou contra e desde então tem-se abstido.

UCRÂNIA — Kiev tem optado pela abstenção desde 2019. No atual contexto de guerra, o voto ucraniano não será alheio à necessidade de ajuda militar e de mais sanções à Rússia. Até então, com uma única exceção em 1993 (em que se absteve), os ucranianos votaram sempre contra o embargo.

E Portugal?

Portugal tem votado pelo fim do embargo desde 1995, ano em que António Guterres se tornou primeiro-ministro. Entre 1992 e 1995, quando o Governo era chefiado por Aníbal Cavaco Silva, Portugal absteve-se na resolução apresentada por Cuba.

Da votação na ONU resulta um quase total isolamento dos Estados Unidos nesta questão. Ronn Pineo, historiador norte-americano e especialista na área da América Latina, recua aos primórdios da democracia norte-americana para explicar o porquê de sucessivos governos — ora republicanos ora democratas — insistirem no embargo.

“O sistema político dos Estados Unidos é altamente disfuncional. Aspetos importantes antiquados foram concebidos há muito tempo para proteger interesses económicos poderosos de épocas passadas. Este sistema foi elaborado por fazendeiros ricos e donos de escravos para frustrar qualquer possibilidade de uma verdadeira democracia. Este sistema perdura”, diz ao Expresso.

“É justo criticar o sistema político dos Estados Unidos como algo em funcionamento para assegurar a lei de uma minoria fechada. Os Estados Unidos não têm uma democracia funcional.”
Ronn Pineo

O peso eleitoral da Florida

“Uma característica deste sistema político injusto é a estranha alocação de poder político indevido a swing states, estados que ora podem cair para os democratas, ora para os republicanos, nas eleições presidenciais. A Florida é um desses estados.”

Na Florida vive a maior comunidade de cubano-americanos do país. Tem origem no êxodo de cubanos em fuga às lideranças dos irmãos Castro, que mandaram em Cuba durante quase seis décadas — Fidel entre 1959 e 2008, Raúl entre 2008 e 2018. “Ao criar raízes na Florida, estes cubano-americanos notabilizaram-se por uma característica constante no seu comportamento eleitoral: votam em função de um assunto único.”

“A única coisa com que os cubano-americanos se importavam era punir os Castro e usar todo o poder dos Estados Unidos contra a revolução cubana.”
Ronn Pineo

“Nos Estados Unidos, todos os candidatos presidenciais sentem que têm de ganhar na Florida se quiserem vencer no colégio eleitoral, e a única forma de vencer nesse estado é obter o voto fundamental dos cubano-americanos. Manter o bloqueio económico a Cuba foi essencial para conquistar esse voto. Para os candidatos presidenciais e para os presidentes não houve penalização política pela continuação do bloqueio. E não há nenhum grupo de eleitores americanos que considere o levantamento do bloqueio assim tão importante.”

Além da influência do lóbi cubano de Miami, Ignacio Labaqui identifica outra razão que dificulta o levantamento do embargo. “O embargo surgiu por um decreto presidencial da Administração Kennedy. Manter ou levantar o embargo era uma decisão presidencial. Isso mudou na década de 1990 com a lei Helms-Burton [de 1996], que, entre outras coisas, converteu o embargo numa decisão legislativa”, passando a reforçar o papel do Congresso nesta questão.

Guerra Fria acabou, embargo continuou

Originalmente, o embargo foi uma decisão vinculada à lógica da Guerra Fria. Hoje, isso faz pouco sentido. O embargo mostrou ser ineficaz para conseguir o objetivo que presidiu à sua criação: provocar a queda do castrismo através de sanções económicas”, acrescenta Labaqui.

“Desde a aplicação do embargo, passaram-se 61 anos e 12 presidentes norte-americanos, e a ditadura cubana ainda lá está.”
Ignacio Labaqui

“Por outro lado, a Guerra Fria acabou há mais de 30 anos, pelo que o argumento a favor do embargo de que Cuba é uma ameaça estratégica para a segurança dos Estados Unidos não é sustentável. O embargo continua porque é difícil conseguir maiorias legislativas [no Congresso] para o levantar e por causa da influência dos grupos mais anticastristas do exílio cubano.”

Na Assembleia-Geral da ONU, só em 2016 os Estados Unidos não votaram contra o fim do embargo, optando pela abstenção. Israel acompanhou na abstenção e 191 países votaram a favor do levantamento do bloqueio económico à ilha. O inquilino da Casa Branca era Barack Obama que, em março desse ano, fizera história ao tornar-se o primeiro Presidente norte-americano a visitar Cuba em 88 anos — a última viagem realizara-se em 1928, por Calvin Coolidge.

O degelo ensaiado por Obama na relação bilateral com Cuba não produziu raízes. No ano seguinte, os Estados Unidos recuperaram o tradicional “não” e, assim que Donald Trump se tornou Presidente, os cubanos de Miami voltaram a respirar de alívio.

“Democratas como o Presidente Joe Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Esse cálculo político está errado. Os democratas não têm hipótese de ganhar este estado”, diz Pineo. O atual chefe de Estado foi eleito sem precisar de vencer na Florida, aliás.

“Podem ignorar com segurança os cubano-americanos que insistem em prosseguir com o bloqueio económico e, em vez disso, podem considerar apenas fazer a coisa certa”, diz o perito. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos.”

Florida, um feudo republicano

A eleições para o Congresso (midterms) de novembro passado confirmaram o domínio generalizado e amplo dos republicanos na Florida:

Ron DeSantis obteve 59,4% dos votos, sendo reeleito governador — é apontado como o mais forte candidato a desafiar Trump nas primárias republicanas para as presidenciais de 2024.
Para o Senado, Marco Rubio, de ascendência cubana, foi reeleito com 57,7%.
E para a Câmara dos Representantes, os eleitores da Florida elegeram 20 republicanos e oito democratas.

Nas Nações Unidas, o número máximo de países que votaram simultaneamente “não” foi quatro — aconteceu cinco vezes. Além de Israel, votaram ao lado dos Estados Unidos, em diferentes anos, Roménia, Albânia, Paraguai, Usbequistão, Ilhas Marshall, Brasil e Palau.

Um aliado chamado Palau

Ronn Pineo particulariza o caso deste microestado no Oceano Pacífico, com cerca de 20 mil habitantes, para expor a fragilidade de alguns apoios recebidos por Washington. “O Palau procurou defender o seu voto como ato de profunda consciência, contra a tirania socialista, mas esse voto é visto como resultado direto da dependência total da pequena nação em relação à assistência económica americana para a sua própria sobrevivência.”

“As nações que votam com os Estados Unidos são países que dependem profundamente da ajuda militar norte-americana. Os republicanos no Congresso poderiam acabar com a assistência militar americana se esses países, sobretudo Israel e a Ucrânia, votassem a favor de suspender o bloqueio económico dos Estados Unidos a Cuba.”

“O embargo terminará quando houver mudanças políticas efetivas ou de regime político em Cuba ou quando uma nova geração de cubanos ou de cubano-americanos entenda que deve terminar.” Nancy Gomes, diretora do polo em Portugal da Fundação Universitária Ibero-Americana (FUNIBER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

A Rússia não está isolada no seu ataque à Ucrânia: estes são os seis países que estão solidários com Moscovo

A condenação generalizada à invasão russa de território da Ucrânia não teve repercussão num conjunto de países. A maioria deles é castigada, há anos, por sanções económicas aplicadas pelos Estados Unidos

BIELORRÚSSIA

A entrada de tropas russas na Ucrânia concretizou-se por três frentes, uma das quais a partir de território bielorrusso. O país liderado por Aleksandr Lukashenko, que está no poder desde 1994 — longevidade que lhe vale o epíteto de “o último ditador da Europa” —, é um sólido aliado da Rússia.

Entre 10 e 20 de fevereiro, a realização de exercícios militares entre forças russas e bielorrussas contribuiu fortemente para a escalada da tensão na região. E com razão, já que no dia depois de terminarem, Moscovo reconheceu a independência das repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, ao que se seguiu a invasão da Ucrânia.

A permanência das tropas russas em território bielorrusso terminadas as manobras militares conjuntas indiciava o pior. A Bielorrússia deve lutar pela “sua independência” e contra a “ditadura”, apelou então a líder da oposição Svetlana Tikhanovskaya — tida pelo Ocidente como a vencedora das presidenciais de 2020 e que vive exilada —, considerando que a soberania do seu país estava ameaçada pela presença militar russa.

No próximo domingo, poderá ser dado mais um passo no crescente domínio de Moscovo sobre Minsk. Os bielorrussos estão convocados para se pronunciarem num referendo sobre alterações à Constituição e entre os assuntos em questão está a possibilidade de o Presidente Lukashenko autorizar a instalação de armas nucleares russas naquela antiga república soviética.

VENEZUELA

“A Venezuela está com Putin e com a Rússia, está com as causas corajosas e justas do mundo, e vamo-nos aliar cada vez mais”, reagiu, de forma inequívoca, Nicolás Maduro, às notícias da invasão russa da Ucrânia. O Presidente venezuelano acrescentou que a NATO e os Estados Unidos querem acabar militarmente com a Rússia por estarem “habituados a fazer o que querem no mundo”.

Na semana passada, quando da passagem por Caracas do vice-primeiro-ministro russo Yuri Borisov, os dois países assinaram um acordo de cooperação militar. Maduro defendeu que este compromisso “confirmou o caminho para uma poderosa cooperação militar entre Rússia e Venezuela para defender a paz e a soberania”.

As relações entre Moscovo e Caracas estreitaram-se sobretudo com Hugo Chávez, o antecessor de Maduro que ocupou o Palácio de Miraflores entre 1999 e 2013. Então, o venezuelano aproveitou o boom do petróleo, de que a Venezuela é produtora, e comprou aos russos centenas de milhões de dólares em armamento e equipamentos militares.

Para a Venezuela, a Rússia é um mercado que permite contornar o efeito das sanções internacionais decretadas ao país. Este alinhamento entre os dois países já se fez sentir noutras crises. Em 2008, a Venezuela foi dos poucos países a reconhecer a independência das regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul, em território da Geórgia.

SÍRIA

O grande aliado da Rússia na conturbada região do Médio Oriente tornou-se o segundo Estado em todo o mundo a reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk. A decisão confirma a solidez da relação entre estes dois países.

É na Síria — em Tartus — que Moscovo tem a sua única base militar que lhe permite o acesso aos mares quentes (no caso o Mediterrâneo) e por isso navegáveis. A conservação deste local estratégico, num país que está em guerra desde 2011, justifica o apoio direto e incondicional da Rússia a Bashar al-Assad, que deve a Vladimir Putin a sua permanência no poder.

No atual contexto, foi a vez do regime sírio colocar-se ao lado das opções belicistas de Moscovo. “A Síria apoia a decisão do Presidente Vladimir Putin de reconhecer as repúblicas de Luhansk e Donetsk”, afirmou Faisal Mekdad, o ministro sírio dos Negócios Estrangeiros. “O que o Ocidente está a fazer contra a Rússia é igual ao que fizeram contra a Síria durante a guerra terrorista.”

À semelhança da Venezuela, também a Síria reconheceu, no passado, as ex-repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul como Estados independentes.

NICARÁGUA

Daniel Ortega, na presidência da Nicarágua desde 2007, esteve com a Rússia desde a primeira hora desta crise. “O Presidente Putin deu hoje um passo com o qual o que fez foi reconhecer algumas repúblicas que, desde o golpe de 2014, não reconheceram os governos golpistas [na Ucrânia] e estabeleceram o seu governo e lutaram”, disse na segunda-feira, na sequência do reconhecimento russo da independência de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia.

Ao mencionar o golpe de 2014, Ortega referia-se à deposição do então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, na sequência das manifestações populares que duraram meses e que ficaram conhecidas como Euromaidan. Este protesto saiu, pela primeira vez, às ruas de Kiev na noite de 21 de novembro de 2013, após a decisão do Governo de suspender a assinatura de um Acordo de Associação entre a Ucrânia e a União Europeia (UE). Hoje, Yanukovych vive exilado na Rússia.

Para o líder da Nicarágua, a UE e os Estados Unidos “vêm cercando e ameaçando a Rússia” desde 2014. “A Ucrânia está a procurar uma maneira de entrar na NATO, e entrar na NATO é dizer: vamos à guerra com a Rússia. Isso explica porque a Rússia age do jeito que age. Está simplesmente a defender-se.”

A boa relação entre a Rússia e a Nicarágua decorre muito da experiência guerrilheira de Daniel Ortega, na década de 1980, nas fileiras da Frente Sandinista (marxista). Na cadeira do poder, continua a verbalizar a sua oposição à influência dos Estados Unidos na América Central e — como o revela o problema da Ucrânia — em todo o mundo.

Os EUA, por seu turno, consideraram fraudulentas as eleições presidenciais de 7 de novembro do ano passado, na Nicarágua — que oficialmente Ortega venceu com 76% dos votos — e impuseram sanções a representantes do Estado.

CUBA

É outro país castigado por sanções internacionais, que vive sob embargo dos Estados Unidos desde 1958. Já com a ofensiva russa sobre a Ucrânia em curso, uma delegação parlamentar da Rússia, encabeçada pelo presidente da Duma (Parlamento), Vyacheslav Volodin, realizou uma visita de dois dias à ilha que é governada pelo Partido Comunista há mais de 60 anos.

“A determinação dos Estados Unidos em impor a progressiva expansão da NATO até às fronteiras da Federação Russa constitui uma ameaça à segurança nacional deste país e à paz regional e internacional”, defendeu o Ministério cubano dos Negócios Estrangeiros, num comunicado divulgado pouco antes da chegada dos políticos russos. “Cuba defende uma solução diplomática através do diálogo construtivo e respeitoso.”

https://twitter.com/cubaminrex/status/1496694614954237958

A visita à ilha caribenha foi facilitada por uma decisão, esta semana, da câmara baixa da Duma, no sentido de adiar para 2027 o pagamento devido por Havana de algumas tranches da dívida cubana. Em causa está uma verba de 2300 milhões de dólares (2000 milhões de euros), concedidos pela Rússia a Cuba entre 2006 e 2019, para investimentos nas áreas da energia, dos metais e em infraestruturas de transportes.

NAURU

Antes de qualquer explicação, impõe-se localizar este país no mapa-mundo. Independente do Reino Unido desde 1968, Nauru é uma ilha do Pacífico que, em 1999, aderiu às Nações Unidas. Nesta organização, Nauru representa também os interesses da Ossétia do Sul, uma ex-república separatista da Geórgia que autoproclamou a sua independência em 2008, prontamente reconhecida pela Rússia.

A relação privilegiada entre Nauru e a Ossétia do Sul começou a ganhar forma em 2009 quando a pequena ilha seguiu a posição de Moscovo e também procedeu ao reconhecimento da soberania desse território, e também da Abecásia.

Hoje, esse precedente faz com que Nauru seja apontado como já tendo reconhecido a independência das regiões secessionistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, embora não haja conhecimento de qualquer declaração governamental nesse sentido.

A expectativa surge em função da relação próxima que Nauru tem desenvolvido com a Rússia. Para um território com poucos recursos, qualquer assistência económica é sempre bem-vinda e gera consequências políticas — foi o que aconteceu entre os dois países. O início desta proximidade terá sido uma conferência de doadores, em 2005, organizada pelas autoridades de Nauru para apresentação da sua Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável e angariação de financiamento. A Rússia correspondeu como nenhum outro país.

A relação foi sendo sucessivamente alimentada com outros cheques. Segundo o jornal russo “Kommersant”, em 2009 — pouco antes da ilha reconhecer a independência das duas repúblicas do Cáucaso —, Moscovo desembolsou 50 milhões de dólares (45 milhões de euros) em ajuda humanitária a Nauru.

(FOTO Visita de Vladimir Putin e Bashar al-Assad, Presidentes da Rússia e da Síria, à Catedral Ortodoxa de Damasco, a 7 de janeiro de 2020, na Síria KREMLIN)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Cuba abdicou da corrida às vacinas: arregaçou as mangas e está quase a ter a sua

As autoridades cubanas confiam que até ao fim do ano conseguirão imunizar toda a população contra a covid-19. Para tal, contam com pelo menos quatro vacinas em desenvolvimento nos seus laboratórios. É a última conquista de um país pobre, mas eficiente ao nível da saúde pública, apesar das sanções do gigante vizinho setentrional. “O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos”, defende ao Expresso um historiador norte-americano

Cuba está no lote dos países que ainda não administraram qualquer dose de qualquer vacina contra a covid-19. No entanto, as autoridades de Havana esperam ter os seus mais de 11 milhões de cidadãos imunizados até ao fim do ano. O “milagre” é fácil de explicar: o país abdicou de disputar a ‘corrida internacional à vacina’ e lançou-se a produzir o seu próprio fármaco.

Neste momento, há quatro vacinas em desenvolvimento nos laboratórios cubanos: a Soberana 01 e a Soberana 02, do Instituto de Vacinação Finlay, e ainda a Abdala e a Mambisa, do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia. A última tem a particularidade de ser administrada por via intranasal e não intramuscular. A 3 de março, o Presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, anunciou uma quinta candidata.

Até ao final do ano, Cuba espera produzir 100 milhões de doses, o que lhe permitirá atender às necessidades internas e exportar o restante. Esta meta coloca a ilha entre a elite dos países com capacidade científica no domínio da saúde pública.

“Era expectável que Cuba tivesse uma vacina para a covid-19 na fase de ensaios clínicos. Cuba avançou na biomedicina durante décadas. Os Estados Unidos opuseram-se com ferocidade a esses avanços, rotulando falsamente as instalações cubanas de laboratórios de armas biológicas”, comenta ao Expresso o historiador norte-americano Ronn Pineo, especialista na área da América Latina.

“Cuba já exportava vacinas para países em desenvolvimento necessitados, sem procurar lucro. E exportará esta nova vacina se ela se mostrar segura e eficaz, o que parece muito provável. No entanto, o bloqueio dos Estados Unidos está a dificultar o fornecimento de suprimentos, como frascos de vidro, por exemplo, na quantidade necessária.”

As dificuldades decorrentes do embargo acicatam o orgulho nacional implícito nos nomes patrióticos dados às vacinas: além das “Soberana”, “Abdala” é nome de um poema escrito pelo herói revolucionário José Martí e “Mambisa” é referência a guerrilheiros independentistas cubanos que combateram Espanha, no século XIX.

As vacinas mais adiantadas são a Soberana 02 e a Abdala, que avançaram, este mês, para a fase III dos testes clínicos, a última antes da aprovação para uso. A eficácia do fármaco está a ser avaliada em mais de 85 mil voluntários em Havana, Santiago de Cuba e Guantánamo e noutras 50 mil pessoas… no Irão.

Aliança Cuba-Irão

Esta colaboração é ditada por razões geopolíticas, já que Cuba e Irão são alvo de sanções dos Estados Unidos que penalizam também os sectores da saúde. Para o Teerão, um dos países do Médio Oriente mais atingidos pela covid-19, que já começou a vacinar com a russa Sputnik V, Cuba afigura-se como uma porta de saída do pesadelo.

“O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos. Qualquer que seja a justificação que os decisores políticos americanos erradamente pensaram existir durante a Guerra Fria, é óbvio que isso já não se aplica há mais de três décadas”, critica o professor da Universidade de Towson, Maryland (EUA).

No decorrer da pandemia, uma doação de máscaras, kits de testes rápidos e ventiladores feita pelo empresário chinês Jack Ma, fundador da empresa Alibaba, não conseguiu chegar a Cuba. A empresa de transporte norte-americana contratada para o efeito recusou-se a fazer o frete, escudando-se no Helms-Burton Act, que reforçou o embargo à ilha.

Noutro exemplo, duas empresas que habitualmente forneciam equipamentos médicos a Cuba — a IMT Medical AG e a Acutronic — terminaram a sua relação comercial com a ilha após serem compradas pela norte-americana Vyaire Medical Inc., em 2018.

Estes obstáculos obrigaram Cuba a procurar provisões em mercados mais distantes, como a China, a ter mais custos com o transporte e a sofrer demoras desnecessárias.

A pandemia de covid-19 deu relevância a outra vertente da política de saúde de Cuba que não cede ao peso das sanções: o envio de missões médicas para países em situações de emergência. Durante a primeira vaga, quando Itália era o epicentro da catástrofe, Cuba enviou 52 médicos para a região da Lombardia.

“Cuba tem sido muito generosa na ajuda a países em desenvolvimento por todo o mundo, fornecendo profissionais de saúde. Cuba vai aonde é convidada, independentemente da política do país anfitrião”, diz o professor Ronn Pineo. “Hoje, a ilha continua a mostrar um dos melhores rácios médico-população do mundo. Cuba não sofre com a falta de médicos ao enviá-los para o estrangeiro. Tem excedente de médicos.”

Um “exército de batas brancas”

Segundo o Banco Mundial, o rácio de Cuba é mesmo o melhor do mundo, com uma média de 8,4 médicos por mil habitantes (dados de 2018). Portugal tem 5,1 (dados de 2017).

Esse “exército de batas brancas”, como lhe chamou o líder cubano Fidel Castro, nasceu após a Revolução de 1959. A primeira missão foi enviada para o terreno em 1960, para o Chile, depois de um sismo na cidade de Valdivia ter provocado milhares de mortos.

400.000
profissionais de saúde cubanos já foram destacados para missões no estrangeiro, em pelo menos 164 países, para responder a crises de curto prazo, desastres naturais e, atualmente, à pandemia de covid-19

Em 2005, Fidel Castro batizou estes contingentes médicos de “Brigadas Henry Reeve”, em homenagem a um jovem norte-americano que combateu pela independência de Cuba, no século XIX. À época, o furacão Katrina tinha devastado, em particular, Nova Orleães. O histórico líder cubano ofereceu ajuda aos Estados Unidos, recusada pelo então Presidente George W. Bush.

Desde então, as “Brigadas” já proporcionaram ajuda em contextos de sismo (Paquistão e Indonésia), erupção vulcânica (Guatemala, 2018) ou emergências de saúde pública, como o surto de cólera no Haiti (2010) e a epidemia de Ébola na África Ocidental (2014).

Hoje, as missões médicas cubanas são um poderoso instrumento diplomático de soft power e uma das principais fontes de receita e de reconhecimento internacional para Cuba.

Para cada país beneficiário das suas missões médicas, Cuba celebra um acordo diferente. No caso da Venezuela, por exemplo, a ilha caribenha recebeu petróleo.

Muitas vezes, os médicos cubanos são encarados como uma espécie de guarda avançada do regime de Havana e, consequentemente, alvo de retaliações. No Brasil, após a eleição de Jair Bolsonaro, milhares de médicos cubanos que trabalhavam no Programa Mais Médicos receberam guia de marcha de regresso a casa. O mesmo ocorreu na Bolívia e no Equador após a saída do poder dos presidentes Evo Morales e Rafael Correa, respetivamente.

“Regras draconianas” nas missões médicas

Em julho do ano passado, a Human Rights Watch denunciou que o Governo cubano impõe “regras draconianas” aos médicos destacados nas missões, que “violam os seus direitos fundamentais”. “Os governos interessados em receber apoio de médicos cubanos deviam pressionar o Governo cubano para rever este sistema orwelliano, que dita com quem os médicos podem viver, apaixonar-se ou conversar”, defendeu então José Miguel Vivanco, diretor da organização para o continente americano.

“Uma forma de avaliar as condições dos profissionais de saúde cubanos nas missões no exterior é tentar averiguar quantos desses trabalhadores abandonam o programa. Quase nenhum o faz”, contrapõe o professor Pineo. “Aqueles que deixaram as missões expressaram, muitas vezes, descontentamento com as condições. As autoridades cubanas deviam fazer mais para levar a sério essas preocupações expressas. Todos os cubanos devem gozar do direito político de expressar as suas opiniões, seja em Cuba ou em missões médicas no estrangeiro.”

Em Cuba, o lema parece ser ‘fazer muito com pouco’. “É um modelo para muitos países”, disse o anterior secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, quando visitou Cuba em 2014, elogiando o sistema de saúde local.

“Cuba teve um êxito notável nas medidas sanitárias mais importantes. Embora tenha um rendimento per capita de cerca de um décimo do dos Estados Unidos, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é bem mais baixa”, conclui o historiador norte-americano. “O foco de Cuba na saúde pública e na medicina preventiva, por oposição à medicina curativa, começa a explicar as suas conquistas na área da saúde.”

(IMAGEM As várias vacinas para a covid-19 produzidas em Cuba FACEBOOK DE JOSÉ ANGEL PORTAL MIRANDA, MINISTRO DA SAÚDE DE CUBA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Adeus a um dos símbolos da Revolução: Cuba prepara-se para acabar com a caderneta de racionamento

Faz parte dos domicílios cubanos há quase 60 anos, mas está de saída. O pequeno “caderno de abastecimento”, com que os cidadãos adquirem produtos básicos a preços subsidiados, tem fim anunciado. Um economista cubano explica ao Expresso qual parece ser a futura estratégia do regime de Havana: subsidiar pessoas e não produtos

Ultrapassada a era dos Castro, Cuba continua a trilhar o caminho da mudança. Sem data concreta na agenda, as autoridades de Havana preparam-se para acabar com um dos principais símbolos da Revolução comunista de 1959 — a libreta de abastecimiento.

Este pequeno caderno, que nas últimas décadas é presença constante nas casas cubanas, garante a cada família o acesso a um cabaz básico de produtos subsidiados pelo Estado, a esmagadora maioria deles importada.

“O caderno de abastecimento foi criado em 1962, dura há muito tempo. No princípio, foi uma coisa justa e creio que sim, ajudou a distribuir entre todos os produtos que o Estado podia produzir ou importava”, explica ao Expresso o economista cubano Omar Everleny. “Mas na realidade é um símbolo da escassez do Estado, que teve de subsidiar os produtos que ali se vendem, durante muito tempo.”

Na lista de produtos comparticipados há arroz, ovos, açúcar, frango, massa, sal, azeite, café, leite, pão, dietas especiais para crianças, grávidas e doentes. Estima-se que o Estado cubano gaste anualmente cerca de 1000 milhões de dólares (850 milhões de euros) com este sistema, no qual estão inscritas quase quatro milhões de famílias, e que já não colhe a unanimidade de outros tempos.

À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento
À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

“Hoje a libreta é também um símbolo de desigualdade, já que se entrega o mesmo a um aposentado do Estado, com poucos rendimentos, e a uma pessoa que tem um negócio e vai de férias para o estrangeiro”, comenta Everleny, antigo professor catedrático na Universidade de Havana. “Por isso, acredito que o Estado passe a uma fase em que prefira subsidiar pessoas e não produtos.”

Durante a presidência de Raúl Castro (2008-2018), o irmão de Fidel qualificou o mecanismo de obsoleto. Para reduzir subsídios, cortou alguns artigos do cabaz básico — batata, grão-de-bico, cigarros, charutos, sabonetes e pasta dos dentes —, que passaram a ser vendidos apenas no mercado livre. Raúl considerava que o mecanismo, “com os anos, tornou-se uma carga insuportável e um desincentivo ao trabalho”.

Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba
Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O fim da caderneta foi abordado na quinta-feira passada pelo atual Presidente cubano, no programa televisivo “Mesa Redonda”, criado por Fidel Castro. Miguel Díaz-Canel esclareceu que a libreta deixará de existir após a conclusão da anunciada reforma monetária que o regime de Havana tem em vista, visando eliminar uma das duas moedas oficiais que circulam na ilha.

No território, coexistem o peso cubano (CUP) e o peso convertível (CUC). O CUP é a moeda em que os cubanos recebem salários e pensões e equivale, atualmente, a quatro cêntimos do dólar. O CUC é a moeda usada pelos turistas e por quem trabalha no sector do turismo, a galinha dos ovos de ouro da economia cubana. Criado em 1994, o CUC é paritário ao dólar norte-americano e não é aceite em muitas lojas e farmácias. Havana quer acabar com o CUC e ficar com o CUP como moeda única de Cuba.

Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo
Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O Presidente cubano garantiu que a reforma monetária não irá pôr em causa a continuidade de grandes conquistas da Revolução, como a saúde e a educação universal gratuitas. Díaz-Canel assegura que nenhum cubano ficará desamparado: “Se alguém ficar numa situação de vulnerabilidade, o Governo procurará forma de apoiá-lo”.

Comenta o economista Everleny: “Cuba vive uma das crises mais profundas da sua história e não tem recursos financeiros para continuar a usar essa variável universalista”, como é a libreta. “Mas será um processo gradual, não será uma decisão repentina, não creio que seja este ano, talvez em meados do próximo”.

Paralelamente ao défice crónico na balança de pagamentos, o país acumula dificuldades em virtude da pandemia de covid-19, que afastou os turistas da ilha caribenha, da diminuição das remessas enviadas pela diáspora e também das sanções comerciais e financeiras impostas pelos Estados Unidos. A escassez de alimentos, produtos de higiene e medicamentos nas prateleiras dos espaços comerciais é a consequência mais visível desta crise.

Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis
Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

Instituída pela Lei 1015, de 12 de março de 1962, a caderneta de abastecimento foi criada por Fidel Castro para enfrentar a falta de alimentos que derivou do embargo económico decretado pelos Estados Unidos, principal parceiro comercial à época.

Ainda que o cabaz básico não fosse suficiente para alimentar uma família, era uma ajuda substancial para muita gente. “O cabaz básico, que se entregava mensalmente, garantia menos de 12 dias das necessidades alimentares da população. O resto tinha de ser adquirido a preços de mercado, ou mais altos do que os do cabaz, especialmente os produtos agrícolas”, explica o economista Everleny.

“Hoje a sociedade cubana não é a mesma: 33% do emprego está no sector privado ou cooperativo, ou seja, sem os salários fixos e baixos pagos pelo Estado. Outra parte importante recebe remessas do exterior e outro grupo importante mora no exterior, ou seja, a população não é tão homogénea como nos anos 80.”

Conclui Omar Everleny: “Acredito que parte da população, uns 25%, não esteja preparada nem consiga aguentar o cancelamento da libreta de abastecimiento. O Estado deve mostrar a capacidade necessária para criar mecanismos financeiros que compensem a população que tenha de adquirir os bens do velho cabaz subsidiado, aos preços que esses produtos atinjam”.

(Uma cubana de Santiago de Cuba mostra a sua ‘libreta’, a caderneta de racionamento que lhe permite comprar mantimentos a baixos preços, graças aos subsídios do Estado AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui