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Afeganistão, uma sepultura a céu aberto

Mais um domingo sangrento no Afeganistão revela uma ‘competição pelo terror’ entre grupos talibãs e os jiadistas do Daesh

Poucas horas após um atentado suicida ter devastado a capital do Afeganistão — esta segunda-feira de manhã as vítimas mortais subiram para 57 —, pelo menos 16 agentes das forças de segurança foram mortos no domingo à noite, em dois ataques talibãs, numa das províncias mais calmas do país, Badghis, no noroeste.

Nove soldados morreram na sequência de uma investida dos “estudantes” contra um posto de controlo, na cidade de Qala-e-Naw. Num outro ataque semelhante, sete polícias foram mortos na região de Qads.

Os mais recentes ataques visaram símbolos do poder de Cabul — um centro de recenseamento eleitoral (atacado pelo Daesh) e “checkpoints” das forças de segurança (alvejadas pelos talibãs). Revelam também uma “competição” pelo terror entre os dois grupos, num país massacrado por décadas de guerra.

Segundo a agência noticiosa afegã Khaama Press, no domingo à noite as forças armadas afegãs bombardearam túneis e esconderijos do Daesh, na província de Nangarhar (leste) — o principal bastião dos jiadistas no Afeganistão —, na fronteira com o Paquistão.

Derrotado na Síria e no Iraque, o Daesh parece ter encontrado no Afeganistão um porto seguro para realizar as suas atrocidades. Esta segunda-feira, vários órgãos de informação afegãos e internacionais dão conta da decapitação de três irmãos, este fim de semana, às mãos de militantes extremistas.

Viviam na área de Chaparhar, precisamente na província de Nangarhar, e todos estavam ligados à área da medicina: o mais velho, Nisar Tareliwal, de 27 anos, era médico numa clínica privada, o do meio, Nayeem, de 24, trabalhava para uma campanha de vacinação e o mais novo, Abdul Wahab, de 19, estudava medicina.

O pai dos três jovens tinha sido executado pelo Daesh, no ano passado. Os jiadistas acusaram-no — como aos três filhos — de ligações ao Governo e às instituições de segurança.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2018. Pode ser consultado aqui

Al-Qaeda versus Daesh

Comparação dos dois grupos que disputam a liderança do terrorismo global

Os atentados de Paris trouxeram para primeiro plano o terrorismo levado a cabo por ultrarradicais islâmicos. Estes não tardaram a ser reivindicados pelas duas grandes centrais mundiais desta área: a Al-Qaeda, herdeira de Bin Laden, e o seu recente concorrente, o Daesh (acrónimo árabe para Estado Islâmico), promotor de um “califado” sírio-iraquiano.

Mas será de facto assim? Há 1500 anos, o general chinês Sun Tzu escreveu em “A Arte da Guerra”, que o objetivo desta não é necessariamente a destruição física do inimigo, mas sim levá-lo a agir de acordo com os nossos interesses. Tomar como credíveis tais reivindicações é fazer o jogo dos promotores do terrorismo, reconhecendo-lhes uma capacidade de organizar e teleguiar grupos extremistas na Europa que estão longe de ter.

É verdade que qualquer elemento de um grupo europeu pró-Jihad, fanatizado pela internet, recrutado nos bairros mal-afamados dos subúrbios ou regressado da Jihad na Síria ou no Iraque, toma como referência suprema a visão retrógrada e primária do Islão veiculada por aquelas duas centrais. Como também faz seu o apelo à luta armada contra os infiéis de lá emanados. Contudo, os circuitos de doutrinação, organização, financiamento e armamento destes grupos são autónomos, diversificados e regionais e não meros tentáculos da Al-Qaeda ou do Daesh.

Ainda assim, para compreendermos melhor os atentados de Paris e a operação policial de anteontem em Bruxelas, durante a qual foi desmantelada uma célula armada que preparava um atentado, vale a pena comparar ambas as organizações do ponto de vista dos seus métodos de atuação, estratégias de combate, zonas de influência e doutrina. São os grupos terroristas mais temidos do mundo e partilham o mesmo objetivo: estabelecer um califado global e converter a humanidade ao Islão por meios não necessariamente amigáveis. No entanto, ao compararem-se ambas, ficam patentes as profundas diferenças que levaram à cisão de meados do ano passado.

Texto escrito em colaboração com Ricardo Silva e Rui Cardoso

TÃO IGUAIS, TÃO DIFERENTES E TÃO PERIGOSOS

Uma análise comparada da Al-Qaeda e do Daesh, versando as suas táticas de combate (guerrilha, terrorismo e guerra convencional), as suas redes de alianças, as zonas do mundo onde estão implantados, como e onde se financiam e quais são os seus principais pontos doutrinários.

ESTRATÉGIA

AL-QAEDA Possui uma visão de longo prazo, assente numa atuação global em que a clandestinidade é condição essencial da sobrevivência. A sua lógica passa por atacar o Ocidente de modo a debilitar o seu apoio aos regimes árabes inimigos e assim facilitar a queda destes. A tática principal passa pelos grandes atentados contra alvos ocidentais (como o 11 de Setembro de 2001 e as bombas nas embaixadas dos EUA no Quénia e Tanzânia em 1998).

DAESH A estratégia do Daesh é a oposta da Al-Qaeda. Atua de forma regional e numa ótica de curto e médio prazo, tendo por objetivo primordial conquistar território para declarar rapidamente um califado. O esforço inicial passava por derrotar os regimes árabes, e só depois declarar guerra ao Ocidente, mas os seus planos acabaram gorados quando se iniciou, no Iraque e Síria, a campanha aérea liderada pelos Estados Unidos.

ESTRUTURA

AL-QAEDA Gerida de forma descentralizada, a Al-Qaeda é liderada por um emir que recebe o apoio de um conselho, a shura, competindo a execução da sua estratégia a vários comités que, por sua vez, se subdividem em células espalhadas por todo o mundo, quase à maneira de uma multinacional e seus “franchises”.

DAESH Segue uma lógica distinta da organização de Bin Laden. Começou como um grupo de guerrilha semiclandestino, mas evoluiu para uma estrutura similar à de um exército convencional, com unidades equipadas com carros de combate, artilharia e até sistemas de defesa antiaérea. Copiou a capacidade administrativa evidenciada pelo arqui-inimigo xiita, o Hezbollah libanês, nas áreas que ocupa.

APOIOS

AL-QAEDA Organiza-se em pequenas unidades que atuam integradas junto dos grupos jiadistas aliados e mantêm uma coesão ideológica que por vezes choca com os interesses de cada região. Delega nos grupos aliados locais o esforço militar contra os regimes muçulmanos ou africanos que pretendem abater.

DAESH Atua em distintas frentes de combate e domina um largo território no leste da Síria e no norte do Iraque, incluindo campos petrolíferos. A colaboração com outros grupos tem-se revelado insustentável e encontra-se em conflito aberto com praticamente todas as forças que operam na Síria e no Iraque.

OBJETIVOS MILITARES

AL-QAEDA No Afeganistão, os talibãs conquistaram o território que serviu de base à expansão da Al-Qaeda e à preparação do 11 de Setembro. Com este atentado, conseguiu aliados em todo o mundo. Na Somália, as suas células colaboram com as milícias do Al-Shabaab. No Iémen, aliou-se à Ansar al-Sharia e às forças tribais sunitas, proclamando um emirado. Na Síria, a Al-Nusra combate em nome da Al-Qaeda e alberga o Khorasan, cuja função é organizar grandes atentados contra alvos ocidentais.

DAESH Além do uso eficiente de armamento convencional (artilharia, blindados e mísseis) recorrem ao terror, usando veículos armadilhados ou bombistas suicidas contra posições inimigas. Fazem ação psicológica macabra na internet, encenando matanças rituais. A campanha bombista contra bairros xiitas iraquianos e a perseguição a cristãos e iazidis levou o Ocidente a antecipar a guerra aérea ao Daesh. Os excessos contra muçulmanos de outras confissões levaram à cisão com a Al-Qaeda.

IDEOLOGIA

AL-QAEDA Al-Qaeda e Daesh disputam a liderança da comunidade sunita, partilhando a mesma interpretação integrista do Islão, a doutrina waabita, que é a ideologia oficial do reino da Arábia Saudita. Ambos defendem a instituição de um califado, liderado por um califa que mais não é do que o sucessor do profeta e habitado por “verdadeiros crentes”, podendo este pressuposto justificar o extermínio de muçulmanos que não se comportem como tal.

DAESH Após conquistar vastas extensões da Síria e do Iraque, o Daesh antecipou-se à Al-Qaeda e decretou o califado. As leis impostas à população têm raízes na obra “Kitab al-Tawhid”, uma coleção de “hadith” (exemplos de vida do profeta) usados nas escolas sauditas e consagrados também pela Al-Qaeda. Nas terras ocupadas pelo Daesh, populações muçulmanas xiitas e outras minorias religiosas pagam com a vida a recusa em submeter-se.

POLÍTICA EXTERNA

AL-QAEDA Osama bin Laden declarou guerra aos EUA e ao Ocidente “por oprimir o Islão” e passou à ação. Nova Iorque, Madrid, Londres sofreram grandes atentados que traumatizaram todo o mundo. O Daesh não descarta a possibilidade de atacar os EUA, mas até que o concretize, a Al-Qaeda continuará a ser reconhecida como a organização líder do movimento jiadista.

DAESH Concentrado na administração interna do seu Estado, o Daesh não revela, para já, qualquer ímpeto expansionista, parecendo mais interessado em consolidar a sua lei nas populações que controla. Porém, em vários artigos publicados na revista “Daqib”, órgão de comunicação do Daesh, têm surgido apelos à realização de ataques no Ocidente por parte de lobos solitários.

FINANCIAMENTO

AL-QAEDA Osama bin Laden era um multimilionário saudita e disso beneficiou a Al-Qaeda, nomeadamente no planeamento do 11 de Setembro. Na região do Sahel, por exemplo, o ramo local da Al-Qaeda recorre a raptos para se financiar. Interessados na defesa do sunismo, por oposição ao xiismo do vizinho Irão, os ricos países do Golfo apoiam quer a Al-Qaeda quer o Daesh.

DAESH O Daesh não dirá que não a um chorudo cheque passado por um xeque do Golfo, mas tem jogado pelo seguro e rentabilizado as infraestruturas de que se apoderou na Síria e no Iraque. Hoje, recorrendo a preços competitivos, o Daesh vende petróleo no mercado negro tanto ao regime de Bashar al-Assad como à Turquia.

RECRUTAMENTO

AL-QAEDA Inicialmente localizado nas montanhas afegãs, o núcleo da liderança da Al-Qaeda sempre defendeu alianças com outros grupos jiadistas, que levaram à formação de braços regionais da organização. Mantendo cada qual a sua identidade, trabalhariam para um objetivo comum. O surgimento do Daesh, e de métodos de recrutamento voltados para os jovens, levaram a deserções na Al-Qaeda.

DAESH O facto de ter nascido durante duas guerras (Iraque e Síria) deu ao Daesh uma capacidade de recrutamento pragmática, atraindo sectores locais ostracizados, como exbaasistas (sunitas), marginalizados pela maioria xiita no poder em Bagdade. O estilo de combate do Daesh e o facto de controlar território aproxima-o de um exército convencional, ao contrário da Al-Qaeda, difícil de localizar até para quem queira aderir.

COMUNICAÇÃO

AL-QAEDA Em contraste com o Daesh, a Al-Qaeda não precisou nunca de publicitar os seus próprios feitos. A aposta em atentados espetaculares garantiu-lhe mediatismo e tempo de antena nos órgãos de informação de todo o mundo. De tempos a tempos, a voz de Osama bin Laden fazia-se ouvir em gravações áudio enviadas para os órgãos de informação, mais para provar que continuava vivo do que qualquer outra coisa.

DAESH Obcecado em recrutar jovens, o Daesh apostou nas redes sociais e na comunicação através da internet. A importância desta estratégia de comunicação ficou exposta quando começou a publicar no YouTube vídeos encenados das decapitações de prisioneiros e de muçulmanos considerados inimigos, como soldados, por exemplo. O Ocidente apercebeu-se, então, da presença de nacionais seus entre os carrascos.

Artigo publicado no Expresso, a 17 de janeiro de 2015