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Samuel foi decapitado. Nadine foi degolada. Por que razão alguns terroristas atacam de forma bárbara?

Nalguns atentados terroristas o atacante age motivado não só pela vontade de matar como também de profanar o corpo. Há razões históricas e religiosas que explicam o recurso à decapitação ou à degola como forma de execução. Um estudioso da Ciência das Religiões diz ao Expresso que é mais provável que, nos dias de hoje, se trate de um fenómeno de imitação dos métodos do Daesh

Pintura de Matthias Stom (séc. XVII) alusiva à decapitação de São João Baptista, a mais importante do mundo ocidental. Exigida por Salomé, a cabeça do pregador foi entregue numa bandeja à neta de Herodes WIKIMEDIA COMMONS

Em outubro passado, dois atentados em solo francês assumiram contornos particularmente cruéis. No dia 16, na cidade de Conflans-Sainte-Honorine, Samuel Paty, professor de 47 anos, foi decapitado por um refugiado de 18 anos de origem chechena. Numa aula sobre liberdade de expressão, o docente havia mostrado caricaturas do profeta Maomé, desencadeando a ira do radical islâmico.

A 29 seguinte, um cidadão tunisino esfaqueou mortalmente três pessoas no interior da Basílica de Notre-Dame de l’Assomption, em Nice. Nadine Devillers, uma mulher de 60 anos, foi degolada, mas a intenção do atacante era decapitá-la.

Uma facada certeira teria sido suficiente para tirar a vida a qualquer das vítimas, mas estes agressores investiram de forma deliberada com a intenção de cortar-lhes a cabeça.

Várias razões explicam uma motivação dessa natureza, desde logo a propaganda que resulta de um ato tão bárbaro. “Quando o ISIS [o autodenominado ‘Estado Islâmico’, também conhecido pelo acrónimo Daesh] degolava pessoas, filmava a execução e punha as imagens a circular nas redes sociais, havia no gesto uma dimensão de propaganda. Degolar é uma imagem tão brutal que induz um medo terrível”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.

“Ainda hoje, no Ocidente, nos nossos códigos penais, temos o crime de profanação de cadáver. Ou seja, uma coisa é matar alguém, que é um crime; outra coisa é, além de matar, profanar o cadáver, criar uma destruição no corpo que o torne irreconhecível.”

Demonstração de poder

Em várias civilizações milenares, há toda uma herança associada ao ato de decapitar como demonstração de poder. “Nas civilizações mais antigas do Médio Oriente, a decapitação surge como uma forma não propriamente usual, mas das mais brutais e das mais usadas em termos icónicos para se mostrar que se dominou alguém”, diz Paulo Mendes Pinto.

Na Paleta de Narmer, por exemplo, que é uma placa com inscrições e relevos representando a unificação do Antigo Egito, o monarca surge junto a uma fila de guerreiros inimigos mortos, deitados no chão lado a lado e com as respetivas cabeças cortadas entre os pés. Também no império Assírio-Babilónico há copiosa iconografia que mostra o rei a contar os corpos de uma batalha: num monte há corpos, noutro cabeças.

Vazar o corpo do líquido da vida

Numa outra componente deste fenómeno, degolar surge como forma mais comum de sacrificar um animal, sangrando-o pelo pescoço. Num ser humano, passar uma lâmina no pescoço é garantia de morte eficaz, nenhum inimigo sobrevive. Matar com recurso à degola tem o intuito de “vazar o corpo do líquido da vida”, explica Mendes Pinto.

Há ainda uma dimensão espiritual no ato de decapitar. “Há muitas visões do fim do mundo, do fim dos tempos, em que se dará a ressurreição final de todos aqueles que foram vivos”, explica o professor. “Há muitos movimentos religiosos que acreditam que para esse juízo final poder ter lugar, o corpo tem de estar inteiro.”

Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição essencial para que no dia do Juízo Final possa haver um novo tempo. Logo, separar a cabeça do resto do corpo é uma forma de impedir que o defunto ganhe a Eternidade.

Uma forma de “morte digna”

Com maior ou menor teatralização, decapitar inimigos é uma técnica que atravessou a História, desde foram forjadas as primeiras espadas. Nas suas crónicas sobre as Cruzadas, Fulquério de Chartres, capelão do exército de Balduíno de Bolonha, conta como os cristãos decapitaram 10 mil judeus e árabes na conquista de Jerusalém (1099).

Na Europa, tornou-se uma forma de “morte digna” para a nobreza — rápida e supostamente indolor —, por oposição ao infame enforcamento, reservado ao povo. O método generalizou-se com a Revolução Francesa e, com o passar do tempo, a guilhotina passou das praças públicas para o interior das prisões.

Para Mendes Pinto, o grau de consciência de todos estes aspetos por parte de quem, nos dias de hoje, realiza este tipo de ataques será reduzido. “Alguém, fundamentalista islâmico, viu as imagens há quatro, cinco anos de gente a ser degolada pelo ISIS e, quanto mais não seja, faz exatamente o mesmo por imitação.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui