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Neste país, em vez de boletins em papel, usa-se berlindes para votar: um sistema colonial que o povo quer manter

A Gâmbia tem um sistema de votação único no mundo. Em vez de boletins em papel, os eleitores votam com recurso a berlindes. O sistema não é perfeito, mas é altamente popular. Porém, à medida que a democracia se consolida neste país da África Ocidental, após 22 anos de ditadura, organizar eleições torna-se um crescente pesadelo logístico

Na Gâmbia, as ‘urnas de voto’ são bidões personalizados para cada candidato SALLY HAYDEN / GETTY IMAGES

Na esmagadora maioria dos países, um berlinde é um objeto recreativo, usado tanto em jogos tradicionais como em brincadeiras de criança. Na Gâmbia, porém, é um assunto de Estado.

É com berlindes que os cidadãos votam nas eleições. Em vez de usarem boletins de voto em papel ou terminais para voto eletrónico, os gambianos colocam berlindes em bidões metálicos personificados para cada candidato.

É assim há mais de 60 anos, “para todo o tipo de eleições, até mesmo referendos”, diz ao Expresso Sait Matty Jaw, professor de Ciência Política na Universidade da Gâmbia. “É um sistema altamente fiável e bem compreendido pelas pessoas, por isso utilizamo-lo para todas as eleições.”

Eleitores esperam para votar, numa assembleia em Banjul, a capital da Gâmbia SALLY HAYDEN / GETTY IMAGES

Concebido para facilitar a vida às pessoas analfabetas no exercício dos seus direitos democráticos, este sistema de votação remonta aos tempos coloniais. “Foi introduzido pelos britânicos em 1962. A Gâmbia estava dividida entre uma colónia e um protetorado”, entre 1821 e 1965, quando obteve a independência, acrescenta o académico gambiano.

“De um lado, havia pessoas formadas, mas a maioria da população que vivia no protetorado não tinha formação. Portanto, precisávamos de um sistema que as pessoas pudessem compreender facilmente e depois votar. Criou-se uma plataforma igual para todos.”

Como se vota na Gâmbia?

Em cada assembleia de voto, são colocados bidões que funcionam como ‘urna de voto’. Cada recipiente tem colados a fotografia e o nome de um candidato e o logótipo do seu partido. O bidão é pintado com a cor do partido em causa para facilitar a identificação.

O bidão está fechado com um tampo, o qual está perfurado por um pequeno tubo com um buraco. As latas são colocadas num compartimento (‘a cabine de voto’) para garantir a privacidade do ato eleitoral.

Depois de validar a elegibilidade do eleitor, a mesa entrega-lhe um berlinde. Ele dirige-se à cabine de voto e, escolhido o candidato, insere a pequena esfera pelo buraco aberto no tubo inserido no tampo.

No final da jornada eleitoral, os bidões e o tubo no tampo são selados YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

No interior do latão, há um mecanismo equipado com um pequeno sino, que toca assim que é atingido pelo berlinde. O som assemelha-se ao toque da campainha de bicicleta e é audível não só para o eleitor como para quem está de serviço na mesa de voto.

Para não haver barulhos a interferir com o som do sino, no fundo dos bidões é colocada areia ou serragem. E, no dia das eleições, não é autorizada a circulação de bicicletas nas imediações dos locais de voto.

O tilintar do sino indica à assembleia que mais um voto foi depositado. Para o eleitor, aquele “tlim” assegura-lhe que o seu voto entrou. É também uma garantia de segurança para os escrutinadores já que, na eventualidade de alguém, à socapa, tentar inserir vários berlindes no latão, é de imediato descoberto.

Uma desvantagem deste sistema é não permitir que os eleitores votem em branco sem que seja do conhecimento público. Ou seja, se o sino não se ouvir, indica regra geral a quem espera no exterior que quem está dentro não escolheu qualquer candidato.

Outro senão deste sistema é não conseguir impedir a tempo que um eleitor mal intencionado tente destruir os selos do bidão, na privacidade do gabinete de voto.

Concluída a votação, funcionários da Comissão Eleitoral Independente preparam-se para contar os berlindes (votos) YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

“Terminada a votação, os votos são contados na hora, no local. Os berlindes são despejados para tabuleiros [personalizados para o efeito] e todos podem ficar de pé a assistir à contagem. Por isso, é muito difícil roubar”, diz Sait Matty Jaw.

Contar berlindes é mais rápido do que escrutinar votos em papel. O risco de erro é menor, como menores são os custos da organização, uma vez que, ao contrário dos boletins em papel, os berlindes são aproveitados de umas eleições para as outras. Ao gerar menos lixo, o escrutínio com berlindes é também mais amigo do ambiente.

Terminada a contagem, os berlindes voltam para dentro do bidão, não vá haver necessidade de recontagem. Depois, lata e tubo são selados.

Tabuleiro usado na contagem de votos YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

“Desde 1962, isto faz parte da nossa cultura política, da evolução política do país e, por isso, há um apego a este sistema com berlindes. As pessoas estão habituadas e sabem que é único, por isso a maioria dos gambianos quer mantê-lo, apesar da origem colonial”, diz Sait Matty Jaw, que é também diretor executivo do Center for Research and Policy Development (CRPD).

Este think tank gambiano foi fundado em 2018, para responder à crescente necessidade de investigação, advocacia e formação, num contexto pós-autoritário. “Focamo-nos na governação democrática, nos direitos humanos e na justiça social”, lê-se no site da organização.

“As pessoas sentem-se confortáveis com este sistema. É altamente fiável porque o país usa-o desde 1962. E não importa se o eleitor tem formação ou não, toda a gente pega num berlinde e coloca-o no barril. Tem algum tipo de significado cultural para as pessoas, uma vez que é aquilo a que estão habituadas.”

Nas instalações da Comissão Eleitoral Independente, em Serekunda, um funcionário pinta os bidões YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

Em determinados círculos gambianos, discute-se, no entanto, a hipótese de se substituir este sistema pelo mais universal voto em papel. “Tem havido discussões. Penso que serão defendidas sobretudo pela Comissão Eleitoral Independente (CEI), para quem o sistema de berlindes é um pesadelo em termos logísticos, dada a quantidade de bidões necessários”, explica o professor da Universidade da Gâmbia.

“Mas não é só uma questão logística. O país está a abrir-se, a democracia está a fazer o seu caminho e há cada vez mais pessoas a participar na política. Por exemplo, nas últimas eleições presidenciais [a 4 de dezembro de 2021], tivemos seis candidatos. E temos atualmente cerca de 20 partidos políticos. Então, imagine se todos estes partidos políticos apresentarem candidatos às eleições…”, diz.

Os preparativos são um grande fardo. Por isso, tanto a CEI como um grande número de partidos políticos são a favor dos boletins de voto em papel. Mas resta saber como se convence as pessoas de que os boletins são mais seguros… Para já, elas preferem o sistema de berlindes.”

À medida que mais candidatos participam nas eleições, a logística torna-se mais complicada YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

A democracia na Gâmbia foi restabelecida em 2016, após 22 anos de ditadura. Nesse ano, Yahya Jammeh, o líder autoritário, sujeitou-se a eleições e perdeu para Adama Barrow, o atual Presidente (reconduzido pelas eleições de 2021), num desfecho que a BBC qualificou de “resultado eleitoral chocante”. Neste país, o Presidente é eleito à primeira para um mandato de cinco anos.

O ditador Jammeh recusou aceitar o resultado e acabou por seguir para o exílio na Guiné Equatorial, onde Teodoro Obiang, que tem 82 anos, é Presidente há 45. Desde então, a Gâmbia tem pela frente o desafio da consolidação democrática.

“Estamos a fazer a transição de 22 anos de ditadura para a democracia”, conclui Sait Matty Jaw. “Já passaram oito anos e ainda não conseguimos uma nova Constituição. Existe um projeto no Parlamento, mas tem havido problemas em chegar a acordo. Isso está a criar problemas à nossa transição efetiva para a democracia.”

Neste contexto, uma reforma eleitoral está longe de ser uma prioridade. “Agora que vamos a caminho das eleições presidenciais de 2026, não creio que vá haver qualquer medida para mudar o sistema de voto. No futuro próximo, ainda teremos o berlinde.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Mais de um quarto da população mundial vai a votos em oito países asiáticos: em quase todos, a democracia derrapa

Num aparente sinal de vitalidade democrática, pelo menos 64 países realizam eleições nacionais no decurso de 2024. Na Ásia, o continente com a maior concentração de dinastias políticas e onde vive 60% da população mundial, há razões de preocupação. Nalguns países, o exercício do direito ao voto pode resultar na consagração de poderes autocráticos. Foi assim, esta semana, no Bangladesh

Este será um ano de importantes definições políticas em todo o mundo. Pelo menos 64 países realizam eleições legislativas ou presidenciais, entre os quais sete dos dez países mais populosos do mundo: Bangladesh, Paquistão, Indonésia, Rússia, Índia, México e Estados Unidos, por ordem cronológica. Portugal terá a sua quota de atenção com legislativas a 10 de março.

Esta ampla jornada eleitoral terá um impacto particular no continente asiático, onde vive cerca de 60% da população mundial e os sistemas de governo são muito marcados por dinastias políticas.

Do Irão à Indonésia, um total de 13 atos eleitorais permitirão uma avaliação às tendências políticas regionais e, alguns casos serão verdadeiros testes à democracia. Oito casos merecem especial atenção.

174 milhões de habitantes

Este país da Ásia do Sul foi a votos no domingo passado 7 de janeiro, com um vencedor anunciado à partida. Aos 74 anos, Sheikh Hasina — que preside à Liga Awami (partido de centro-esquerda) e está no poder, de forma ininterrupta, desde 2009 — foi reeleita para um quarto mandato consecutivo como primeira-ministra do Bangladesh. (Exerceu um primeiro mandato entre 1996 e 2001.)

A previsibilidade do resultado, a detenção de centenas de opositores nos meses que antecederam as eleições e o boicote decretado pelo Partido Nacionalista do Bangladesh (centro-direita), o outro partido dominante no país, afastaram eleitores das urnas. A taxa de afluência ficou-se pelos 40% — nas últimas eleições, em 2018, tinha sido de 80,2%. A primeira-ministra desvalorizou o boicote e disse:

“Cada partido político tem o direito de tomar decisões, a ausência de um partido nas eleições não significa que a democracia esteja ausente”

Sheikh Hasina é filha de Sheikh Mujibur Rahman, o homem que declarou a independência do país, em 1971. Pioneira nessa luta, a Liga Awami conquistou agora 222 dos 300 lugares no Parlamento.

No ranking “Varieties of Democracy” — que agrupa os países em “democracias liberais”, “democracias eleitorais” (como Portugal), “autocracias eleitorais” e “autocracias fechadas” —, o Bangladesh surge no terceiro grupo.

“Estamos perante um caso que resvalou claramente para a autocracia, com a preocupação adicional de, neste país, assistirmos a uma crescente violência”, diz ao Expresso Luís Tomé, professor na Universidade Autónoma de Lisboa.

“Quando os mecanismos institucionais — que, neste caso, deveriam ser democráticos, mas são-no apenas de fachada — não funcionam, o risco é o aumento da violência. A oposição e muitos cidadãos entendem que a única alternativa de demover o poder instituído é por um golpe.”

Adeus, multipartidarismo!

No hemisfério político ocidental do planeta, há receios cada vez mais vocais de que, aos 53 anos de vida, o Bangladesh esteja a caminho de se tornar um Estado de partido único.

“Os Estados Unidos partilham a opinião de outros observadores de que estas eleições não foram livres ou justas e lamentamos que nem todos os partidos tenham participado”, reagiu Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado norte-americano.

As dúvidas são partilhadas por outros países ocidentais, mas não por Rússia e China. Esta quarta-feira, os embaixadores destes dois países marcaram presença numa cerimónia de felicitações à primeira-ministra, na sua residência oficial, em Daca.

24 milhões de habitantes

As eleições presidenciais e legislativas na República da China (também conhecida como Taiwan ou Formosa), a 13 de janeiro, serão mais uma oportunidade de clarificação política relativamente ao sentimento prevalecente na ilha — de aproximação ou de afastamento — relativamente à República Popular da China.

Esta divisão dura desde o fim da guerra civil, em 1949, quando os nacionalistas (derrotados) se refugiaram naquele território insular, que se governa de forma autónoma, a cerca de 160 quilómetros da costa chinesa.

“A concretização da reunificação completa com a pátria é um curso inevitável de desenvolvimento, é justo e é o que o povo deseja. A pátria deve e será reunificada”

Xi Jinping
Presidente da República Popular da China, a 26 de dezembro, dia do 130.º aniversário do nascimento de Mao Tsé-Tung, o fundador do país

A integração de Taiwan na China Continental por via eleitoral “é o sonho de Xi Jinping e dos chineses de China Continental, que preferem a reunificação pacífica”, continua o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

“A partir do momento em que Taiwan avançou para uma plena democracia, nos anos 1990, Pequim teve sempre a expectativa de poder incluir Taiwan na mãe pátria, na lógica de ‘um país, dois sistemas’. E sempre interferiu, direta ou indiretamente, nos processos eleitorais em Taiwan, para que os candidatos que fossem mais abertos a essa possibilidade saíssem vencedores”, diz.

O precedente Hong Kong

“Mas sobretudo a partir da imposição da Lei de Segurança Nacional em Hong Kong, em 2019, a esmagadora maioria da população de Taiwan, e não apenas o tradicional partido independentista [Partido Democrático Progressista (DPP, na sigla em inglês)], deixou de acreditar na possibilidade de Pequim vir a respeitar as particularidades democráticas do sistema de Taiwan no caso de uma unificação.”

Em setembro passado, a China desvendou um plano de 21 medidas destinadas a potenciar o “desenvolvimento integrado” de Taiwan e de Fujian, a província costeira chinesa mais próxima à “província renegada”, como Pequim rotula Taiwan. O plano visa “fazer de Fujian o destino de primeira escolha de residentes e empresas de Taiwan para buscarem desenvolvimento no continente”.

Mas paralelamente, a China não pára de mostrar as garras a Taiwan. “Pequim tem muita dificuldade em gerir a lógica do bastão e da cenoura, como se vê à medida que se aproximam as eleições em Taiwan. Ao mesmo tempo que oferece algo de positivo para que os taiwaneses vejam aquilo que poderão ganhar com a reunificação da China, mantém uma enorme pressão militar, com ameaças, exercícios e declarações no sentido de que, no fundo, os taiwaneses vão ter que decidir entre a paz e a guerra”, continua Luís Tomé.

De uma solução acordada à reunificação pela força, “o relógio está a contar”, acrescenta. “O Presidente Xi Jinping disse que a questão de Taiwan vai ser resolvida no seu tempo, o que coloca uma enorme pressão no calendário.” Em 2027, será o centenário da criação do Exército de Libertação Popular, uma efeméride que pode ser aproveitada por Pequim para concretizar pela força o sonho há muito adiado.

243 milhões de habitantes

De crise em crise, o Paquistão tem eleições para a Assembleia Nacional marcadas para 8 de fevereiro, embora o Senado já tenha votado o seu adiamento. A decisão, não vinculativa, foi justificada com as “condições de segurança prevalecentes” no país.

A mais recente vaga de instabilidade decorre do afastamento do poder de Imran Khan, um antigo jogador de críquete que se tornou o político mais popular do país. Destituído do cargo de primeiro-ministro após uma moção de confiança, em abril de 2022, está atualmente preso, condenado por corrupção.

“O grande receio é que o Paquistão descambe numa guerra civil porque esta não será uma disputa política convencional em contexto democrático”, analisa o especialista em Relações Internacionais.

Trocar os EUA pela China

“Nos últimos tempos, tem acontecido de tudo um pouco ao país. Imran Khan, que era um indivíduo prestigiado e um pouco fora do sistema político, estava a fazer algumas reformas bem sucedidas. O problema é que começou a querer jogar a alta política internacional. Um dos seus maiores erros foi colocar o Paquistão demasiado na alçada da China e afastá-lo do outro aliado tradicional, os Estados Unidos. Desde os anos 1950, o Paquistão tem a particularidade de ter como aliados, em simultâneo, a China e os EUA.”

Imran Khan aproximou o Paquistão também da Rússia. Na véspera da invasão russa da Ucrânia, a 23 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin recebeu o chefe do Governo paquistanês no Kremlin, em Moscovo. “Essa foi uma das razões pelas quais depois foi feito o voto de desconfiança” a Khan.

Paralelamente à instabilidade política, o Paquistão enfrenta uma das suas piores crises económicas, resultante de opções políticas erradas, condições globais adversas, a pandemia de covid-19 e as inundações catastróficas de 2022 que submergiram um terço do país. “O Paquistão é uma soma de múltiplas crises”, diz Luís Tomé.

Este caos generalizado, combinado com tentativas externas de influência, a presença no território de grupos radicais terroristas com ligações a grupos como a Al-Qaeda, o Daesh e os talibãs, confluem para “uma situação delicada que pode degenerar numa guerra civil. E a preocupação maior resulta não só de ser um país com quase 250 milhões de habitantes, mas porque é um país com armas nucleares, com disputas com a Índia. O Paquistão está num momento perigoso e as eleições podem não facilitar”, alerta o académico.

279 milhões de habitantes

Com o Presidente Joko Widodo impedido de se recandidatar, dado já ter exercido dois mandatos, as eleições presidenciais indonésias de 14 de fevereiro estão transformadas num verdadeiro ‘negócio de família’.

Um dos três candidatos é o atual ministro da Defesa que escolheu para seu vice-presidente Gibran Raka, o filho mais velho do atual chefe de Estado. Raka tem 36 anos, quando a idade legal para concorrer ao cargo era de 40. A lei foi alterada à medida pela mão do presidente do Supremo Tribunal, que é cunhado do Presidente e tio de Raka.

“Quando Jokowi [como também é conhecido o atual Presidente] foi eleito em 2014, era um outsider político. Era um empresário da área do mobiliário que, aparentemente, rompia com a lógica das dinastias políticas, muito consolidada no Sudeste Asiático. Ele próprio escreveu, na sua autobiografia: ‘Tornar-me Presidente não significa canalizar o poder para os meus filhos’. Agora tem o filho a concorrer e ainda por cima com o ministro da Defesa que é, ele próprio, genro do antigo ditador Suharto”, alerta Luís Tomé.

O mal menor

A importância do exemplo indonésio transcende o próprio país. “Neste momento, a Indonésia é o medidor daquilo que acontece na região, e não só. Por um lado, há quem defenda que esta lógica das dinastias políticas é uma forma de, mesmo em democracia, sustentar algum equilíbrio. Ou seja, é preferível que as democracias funcionem em torno de algumas dinastias, porque mantêm a estabilidade do sistema político democrático. Outros discordam e defendem que isto é uma forma de certas famílias manterem privilégios que o resto da população não tem”, com consequências sociais de risco.

“Isto pode desiludir a população e levá-la a entender que a democracia não é um processo que permita a ascensão social, económica e política. E se o povo considerar que a democracia não serve, vai procurar alternativas. Isto acontece no Sudeste Asiático, que é uma das regiões onde mais se sente a pressão da China, que tenta dar ao mundo um modelo alternativo à democracia liberal — um modelo de regime autocrático, com desenvolvimento económico.”

89 milhões de habitantes

A 1 de março, os iranianos escolherão, simultaneamente, os seus representantes em dois órgãos: o Parlamento (Majlis) e a Assembleia de Peritos, esta última responsável pela nomeação do Líder Supremo.

“As eleições no Irão, em regra, têm uma faceta de grande liberdade. Os eleitores podem escolher os candidatos e não há propriamente manipulação de resultados. O condicionamento vem do papel do ayatollah [o Líder Supremo]. Na lógica xiita, aquilo que ele diz não é contestável.”, explica o investigador do IPRI.

“O condicionamento vem dos candidatos que podem constar no boletim. O regime seleciona os candidatos que o povo pode escolher e afasta muitos potenciais democratas que querem acabar com a Revolução Islâmica e que está fora de questão.”

No Irão, os partidos políticos não são muito relevantes. A dinâmica política gira em torno de dicotomias que se manifestam mais em contextos de tensão: conservadores versus reformistas, ortodoxos versus moderados, teóricos versus pragmáticos.

Na presente conjuntura, apesar das cíclicas vagas de protestos populares antigovernamentais, a tensão internacional permanente em que o Irão se encontra envolto — alvo de sanções, aliado da Rússia na guerra da Ucrânia e instigador do “eixo de resistência” no Médio Oriente (apoiando grupos armados como o palestiniano Hamas e o libanês Hezbollah) — tende a favorecer uma das fações.

“No contexto atual, os ortodoxos, que dominam neste momento a cena política iraniana, têm condições para se manter. Embora, economicamente, tenham sofrido quando os Estados Unidos aplicaram sanções, a apoiar o Irão ao nível económico têm estado a China, que se tornou o seu maior parceiro, e a Rússia”, vaticina Luís Tomé, especialista na região da Ásia-Pacífico.

52 milhões de habitantes

Esta democracia consolidada — apesar dos graves problemas de corrupção ao mais alto nível da política, com três dos últimos Presidentes condenados a penas de prisão — escolhe a próxima Assembleia Nacional a 10 de abril.

Paralelamente às questões económicas e sociais, a ferida aberta na península da Coreia desde 1953 — ano em que terminou a guerra entre as duas Coreias, que carece ainda da assinatura de um tratado de paz — é tema obrigatório em quaisquer eleições legislativas ou presidenciais. Que estratégia seguir em relação ao Norte?

Por um lado, há “uma linha tendente à unificação, mais apaziguadora com a Coreia do Norte, para minimizar tensões, introduzir laços, a pensar nas famílias de um lado e do outro do paralelo 38, e até a nível empresarial, para evitar o colapso no Norte e tentar, com tempo, levar as coisas a bom porto”, diz o professor da Universidade Autónoma.

Por outro, há a abordagem na linha do atual Presidente Yoon Suk-yeol “que entende que é preciso reagir de igual forma e, portanto, se a Coreia do Norte ameaça, a Coreia do Sul não se fica e ameaça de seguida”.

26 milhões de habitantes

No mesmo dia em que os sul-coreanos vão a votos (10 de abril), também os coreanos do norte farão escolhas. Em causa está a eleição da Assembleia Popular Suprema da República Popular Democrática da Coreia (vulgarmente chamada Coreia do Norte), órgão que exerce o poder legislativo.

Se a Ásia é o continente com a maior concentração de dinastias políticas, a lógica de sucessão familiar é levada ao extremo na Coreia do Norte. O país é governado desde a sua fundação pela mesma família e, apesar de ter apenas 40 anos — completados esta semana —, Kim Jong-un vai dando indicações de quem é hipótese para lhe suceder.

Boatos e especulações

Segundo as últimas especulações — ou não fosse a Coreia do Norte o país mais fechado do mundo —, Kim poderá passar o poder à sua filha, Kim Ju-ae, que terá, neste momento, 11 anos. “Mas à frente desta solução está a irmã [Kim Yo-jong]”, recorda Luís Tomé.

“Agora fala-se na filha, porque não sendo habitual, Kim Jong-un tem-na mostrado publicamente, e porque o poder tem passado de pai para filho. Numa lógica dinástica, quase monárquica, já se discute quem lhe sucederá. E ainda por cima, correm boatos de que Kim Jong-un, há dois anos, teve sérios problemas de saúde. Aquela que, aparentemente, é a sua preferida é a irmã, que é, muitas vezes, o rosto da sua política externa. O que se assume é que a irmã será a sucessora e que, a longo prazo, será a filha. Agora, por alguma razão, ele quer mostrá-la.”

1435 milhões de habitantes

A Índia é, desde o ano passado, o país mais populoso do mundo. Sempre que há eleições universais neste país organizado socialmente em função de um sistema de castas, o escrutínio decorre durante semanas. Este ano, será assim entre abril e maio próximos, quando os indianos forem eleger os 543 lugares no Lok Sabha, a câmara baixa do Parlamento.

O Partido Bharatiya Janata (conservador, nacionalista hindu), do primeiro-ministro Narendra Modi, é o favorito à vitória, na senda da grande popularidade do seu líder, que, aos 73 anos, busca um terceiro mandato consecutivo de cinco anos no poder.

Todos contra Modi

Numa espécie de “todos contra Modi”, uma coligação de quase 30 formações políticas, entre as quais o histórico Congresso Nacional Indiano, da dinastia Gandhi, uniram-se na Aliança Inclusiva para o Desenvolvimento Nacional Indiano.

Na língua inglesa, a sigla desta formação é INDIA, “julgo que para dar um significado nacionalista indiano e não hindu. Não sei se será suficiente para impedir nova vitória dos nacionalistas hindus e de Modi”, duvida Luís Tomé.

No Ocidente, “agrada-nos considerar a democracia indiana enquanto tal, porque é o país mais populoso do mundo e gostamos de ter um contrapeso à China. Tanto os Estados Unidos como a União Europeia têm procurado melhorar relações estratégicas com a Índia. Mas, na verdade, sob qualquer padrão, a democracia indiana tem deixado muito a desejar”, conclui Luís Tomé.

“Desde logo, em termos dos direitos das crianças, direitos laborais, direitos das mulheres e direitos das minorias, incluindo a minoria muçulmana de mais de 200 milhões de pessoas. A pretexto do problema do terrorismo e das tensões com o Paquistão, há regiões da Índia onde a Internet é bloqueada durante seis meses. Num regime democrático, isto não é muito abonatório”, critica.

“Enquanto nacionalista hindu, Modi tem progressivamente marginalizado os muçulmanos. Nenhuma democracia permitiria o que ele fez ao autorizar que imigrantes possam adquirir cidadania indiana, mas não imigrantes muçulmanos. É uma desigualdade flagrante. Modi está a criar uma situação escaldante.”

(IMAGEM FACEBOOK ASIA ELECTS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

País autocrático, repressivo e cleptocrático: eis a Rússia de Putin à luz dos relatórios internacionais

O maior país de todo o mundo não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. A constatação resulta da análise dos principais relatórios internacionais das áreas políticas e sociais. Da paz aos direitos humanos, da democracia à corrupção

Vladimir Putin é Presidente da Federação Russa desde 2012 WWW.KREMLIN.RU / WIKIMEDIA COMMONS

Ainda a guerra na Ucrânia fervilhava apenas na cabeça de Vladimir Putin e o mundo debatia-se com duas emergências à escala global: os efeitos das alterações climáticas e a pandemia de covid-19. Na busca de respostas imediatas, os países esboçaram uma união de esforços e acorreram a participar em duas iniciativas.

Na frente climática, rumaram a Glasgow, na Escócia, para participarem na 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), considerada a última oportunidade para a obtenção de um compromisso sério que salve o planeta da irreversibilidade da degradação ambiental.

Na batalha da pandemia, sob o chapéu da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi gizado o mecanismo Covax, que possibilita o acesso gratuito de mais de 90 países subdesenvolvidos a vacinas para a covid-19. A Rússia não participou em nenhuma das duas.

COP-26 e Covax são apenas dois exemplos que revelam um posicionamento muito particular da Rússia no mundo. Aquele que é o maior dos países, em termos geográficos, não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. Comprova-o uma análise a vários relatórios internacionais de áreas políticas e sociais.

A paz é uma miragem

A guerra na Ucrânia — que consiste na invasão de um Estado soberano por outro — é a demonstração mais recente da utopia que a paz global continua a ser. Revela também que, neste domínio, a Rússia contribui ativamente para que tal aconteça.

Segundo a última edição do “Índice Global da Paz”, compilado pela organização Vision of Humanity (Austrália), que se propõe “medir a paz num mundo complexo” com base em três critérios — ‘Conflitos em curso’, ‘Segurança e Proteção’ e ‘Militarização’ —, a Rússia surge em 154.º lugar, num total de 163 países. Numa classificação em que Portugal ocupa o 4.º lugar, a Rússia tem por companhia países como Afeganistão, Síria, Coreia do Norte e Venezuela.

A Rússia é “a nação menos pacífica da região [da Eurásia]” e “um dos países menos pacíficos do mundo”, lê-se no relatório, elaborado antes da presente invasão da Ucrânia. “No entanto, apesar da sua baixa classificação no Índice, a paz na Rússia melhorou nos últimos anos. Este é o segundo ano consecutivo em que a Rússia regista uma melhoria ao nível da paz. O país melhorou tanto ao nível dos ‘conflitos em curso’ como da ‘militarização’, mas registou uma deterioração quanto à ‘proteção e segurança’. Houve degradação em manifestações violentas e instabilidade política.”

Para tal, contribuem episódios de agitação social como as manifestações populares, reprimidas com violência pelas forças governamentais, que se seguiram ao envenenamento e posterior detenção do opositor ao regime Alexei Navalny. O relatório fala de mais de 8500 detenções.

No final de 2021, uma das organizações internacionais mais atentas aos conflitos no mundo, o International Crisis Group (Bélgica), elaborou um documento sobre “dez conflitos a ter em conta em 2022”. Num exercício quase premonitório, destacou em primeiro lugar a Ucrânia como país com maior potencial de conflito, numa altura em que já era assediada por um crescente número de tropas russas na sua fronteira.

“Apesar da ameaça do Presidente russo Vladimir Putin à Ucrânia, os Estados raramente entram em guerra uns com os outros”, lê-se no documento. Até para os olhos mais habituados a antecipar conflitos, a invasão russa da Ucrânia foi uma surpresa, ainda que o International Crisis Group admita, na sua análise, que “descartar a ameaça [russa à Ucrânia] como um bluff seria um erro”. Como se está a ver.

Democracia nem no papel

“Os líderes da China, Rússia e de outras ditaduras conseguiram mudar os incentivos globais, comprometendo o consenso de que a democracia é o único caminho viável para a prosperidade e a segurança, ao mesmo tempo que encorajam abordagens de governação mais autoritárias.”

Esta constatação está expressa no relatório “Liberdade no Mundo 2022”, produzido pela organização Freedom House (Estados Unidos), com o subtítulo “A expansão global dos regimes autoritários”.

À semelhança do “Índice Global da Paz”, também no “Índice da Democracia”, elaborado pela Economist Intelligence Unit (Reino Unido), a Rússia está nos últimos lugares: surge na posição 124, numa lista com 167 países (Portugal é 28.º).

A lista assenta em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo (onde a Rússia obtém a avaliação mais fraca), funcionamento do Governo, cultura política, liberdades civis e participação política (onde a Rússia tem melhor registo).

Neste relatório, que divide os regimes políticos em “democracias completas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários”, a Rússia é um exemplo da última categoria. Igual rótulo é aplicado à Rússia no “Relatório Global sobre o Estado da Democracia”, do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Suécia), que defende que o país regrediu de uma “democracia retrógrada” para um “regime autoritário”.

Dois factos recentes sustentam a caracterização da Rússia como “regime autoritário”. Por um lado, a realização de um referendo constitucional, entre 25 de junho e 1 de julho de 2020, que garantiu a Putin a possibilidade de se deixar ficar no poder até 2036. Seguiu-se-lhe uma campanha de repressão dos dissidentes, que incluiu a detenção do crítico mais vocal do Kremlin: Alexei Navalny, a 17 de janeiro de 2021.

Por outro lado, a 23 de dezembro de 2020, foi aprovada uma alteração legislativa, na câmara baixa do Parlamento (Duma), para silenciar opositores, jornalistas, bloggers, ativistas e outras vozes críticas de Putin, rotulados de “agentes estrangeiros”.

Noticiar só o que é possível

Uma das áreas diretamente visadas pela legislação “dos agentes estrangeiros” é a da informação. Essa designação passou a penalizar repórteres como os que cobriram as grandes manifestações de Khabarovsk, no extremo leste da Rússia, entre julho de 2020 e setembro de 2021, em solidariedade com o governador local, que fora preso.

Muitas vezes, os jornalistas são presos e obrigados a pagar multas pesadas. O caso de Ivan Golunov, que investiga casos de corrupção, revela outra dimensão do cerco à imprensa: em junho de 2019, foi preso pela polícia de Moscovo e acusado de “produção ou venda ilegal de drogas”. O caso tornou-se mediático, originou protestos de rua e tornou-se um exemplo dos abusos da polícia. O repórter acabaria por ser libertado e cinco ex-polícias foram acusados de terem forjado a sua incriminação.

No último “Índice Mundial sobre a Liberdade de Imprensa”, dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF, França), a Rússia surge no 150.º lugar, num total de 180 países. O relatório descreve uma “atmosfera sufocante para jornalistas independentes”, com “leis draconianas, o bloqueio de sites, cortes na Internet e os principais meios de comunicação controlados ou estrangulados”.

Em partes do território russo, como a Crimeia (península ucraniana anexada pela Rússia em 2014) ou a Chechénia (república no Cáucaso cujas ambições de independência foram esmagadas pela Rússia em guerras recentes) são autênticos “buracos negros” em matéria informativa.

A guerra na Ucrânia e o crescente isolamento a que a Rússia está sujeita vieram dar relevância a um objetivo já anunciado do Kremlin: soberania digital, ou seja, criar uma Internet paralela que permita à Rússia desligar-se da rede global. Uma lei federal de 13 de março de 2019 — a Lei da Internet Soberana — não só dá cobertura legal a ações de vigilância digital como atribui competências ao Governo para separar a Rússia da Internet global.

“Como os principais canais de televisão continuam a inundar os telespectadores com propaganda, o clima tornou-se muito opressivo para quem questiona o novo discurso patriótico e neoconservador, ou para quem apenas tenta manter um jornalismo de qualidade”, lê-se no relatório dos RSF.

Esse espírito repressivo está presente numa nova lei, aprovada a 4 de março, já com a invasão da Ucrânia em curso, segundo a qual a publicação de informação “falsa” ou “mentirosa” sobre as forças armadas russas é punível com pena de até 15 anos de prisão. Pertencendo ao Kremlin o critério sobre o que é informação verdadeira ou falsa, sobra muito pouco espaço para os media independentes.

Há duas semanas, o popular canal televisivo Dozhd anunciou a suspensão das suas emissões por tempo indeterminado justificando a decisão com a pressão sentida relativamente à cobertura da guerra na Ucrânia. A decisão foi tomada numa reunião dos funcionários. É apenas um caso.

Corrupção endémica

Na Rússia, o combate à corrupção, como a mera denúncia de casos por órgãos de informação, tornou-se ainda mais perigoso desde a adoção da lei dos “agentes estrangeiros”. “As autoridades invadiram casas e escritórios de jornalistas e ativistas que investigavam a corrupção do Governo e declararam-nos ‘agentes estrangeiros’ sujeitos a relatos financeiros onerosos e restrições de publicação”, denuncia o último “Índice de Perceção de Corrupção”, da organização Transparência Internacional (Alemanha).

Nesse relatório, a Rússia surge na 136.ª posição, em 180 países. É o país europeu mais abaixo no ranking. Portugal está no 62º lugar. Segundo a Transparência Internacional, “a corrupção é endémica na Rússia”, onde “as instituições públicas estão quase completamente nas mãos do Governo, o que faz falhar a responsabilização de quem tem o poder”.

Quando a guerra na Ucrânia rebentou, a organização tomou posição, recordando a cumplicidade das economias desenvolvidas no crescimento da cleptocracia russa. “Não devia ter sido necessária uma tragédia desta escala para levar os governos do Ocidente a despertarem para os perigos de permitirem a cleptocracia”, defendeu a Transparência.

“Estamos a ver as suas consequências devastadoras, agora na Ucrânia. Para evitar sofrimento futuro, os decisores nas economias avançadas precisam de acelerar com urgência políticas anticorrupção importantes. Muitas deveriam ter sido adotadas há muito tempo.”

Ordem para perseguir

Em regimes autocráticos, como a Rússia, os direitos humanos estão entre as primeiras vítimas da repressão associada ao seu modus operandi. Um dos casos mais recentes do cerco à luta pelos direitos humanos no país foi a dissolução da organização não-governamental Memorial International, decretada pelo Supremo Tribunal.

Fundada na década de 1980, na era da perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência), impulsionadas pelo Presidente soviético Mikhail Gorbachev, a Memorial teve entre os seus fundadores o dissidente Andrei Sakharov (prémio Nobel da Paz em 1975). Era a organização de direitos humanos mais antiga da Rússia.

Nos relatórios de organizações globais, como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional, outras denúncias contribuem para um retrato negro da Rússia na área dos direitos humanos.

“Em 2021, as autoridades continuaram a empregar uma variedade de instrumentos para assediar defensores dos direitos humanos e impedir o seu trabalho”, lê-se no relatório da Human Rights Watch.

O documento descreve dezenas de casos envolvendo sobretudo advogados de defesa de participantes em protestos ou que litigam casos contra a Rússia em instâncias jurídicas internacionais, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Cidadãos estrangeiros a trabalhar na área, tornados ameaças à segurança nacional, recebem muitas vezes ordem de expulsão do país. Algumas organizações são consideradas “extremistas” e encerradas.

A 5 de outubro de 2021, a ONG Mães de Soldados de São Petersburgo, que defende os direitos dos recrutas no exército russo há mais de duas décadas, encerrou atividades alegando “sérias restrições” impostas pelas autoridades. A decisão seguiu-se à divulgação de uma lista de 60 tópicos que passou a ser proibido abordar em público, por exemplo, divulgar informação sobre o estado de espírito dos militares.

relatório da Amnistia detalha outros problemas com grupos da sociedade alvo de leis e das forças da ordem: discriminação contra a comunidade LGBTI, aumento da perseguição a Testemunhas de Jeová, inação legislativa perante o aumento de casos de violência doméstica, tortura e maus-tratos (com impunidade para os agressores).

A Amnistia destaca ainda o aproveitamento da pandemia de covid-19 como pretexto para abortar manifestações de rua, incluindo os protestos solitários, de uma pessoa só, um tipo de protesto a que os russos recorrem para contornar a dificuldade em obter autorizações para se manifestarem.

Já durante a guerra na Ucrânia, foi notícia a detenção de Yelena Osipova, conhecida artista e ativista russa que sobreviveu ao cerco nazi a Leninegrado, durante uma manifestação contra a guerra, na mesma cidade, que hoje se chama São Petersburgo. Tinha 77 anos e visíveis dificuldades de locomoção.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de março de 2022. Pode ser consultado aqui. A tradução do artigo para língua russa pode ser consultada aqui

Golpes na democracia

O retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi faz temer a transformação do país numa autocracia

os meandros das relações internacionais, a referência à “maior democracia do mundo” não carece de explicação, já que se tornou sinónimo de Índia. Mas se “maior” é adjetivo incontestável para o caso, dada a dimensão do país onde vive quase um quinto da população mundial (1300 milhões) e onde cada ato eleitoral dura vários dias, já o carácter democrático do seu sistema de governo é cada vez mais questionável.

A perceção de uma certa degradação acentua-se perante casos como o que envolveu Disha Ravi, ativista de 22 anos detida, faz amanhã duas semanas, após ter divulgado um “kit para protestos” publicado na rede social Twitter pela ambientalista sueca Greta Thunberg. O documento alertava para a luta dos agricultores indianos, há meses em pé de guerra com o Governo devido a três novas leis que os farão perder rendimentos em detrimento das grandes empresas. Ravi sugeria formas de luta.

A vaidade ferida do governo

Neta de agricultores, a ativista conheceu desde o berço as dificuldades de quem vive da terra, agravadas ano após ano pelas alterações climáticas que danificavam as colheitas com secas ou chuvas abundantes. Levada pela polícia da casa onde vive com a mãe, em Bangalore, Ravi — que trabalhava num restaurante vegan e esteve na origem da versão indiana das Sextas-Feiras pelo Futuro iniciadas por Thunberg — foi acusada de sedição.

Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias, as autoridades optam por punir os críticos

Terça-feira passada, um tribunal de Nova Deli libertou-a após considerar haver “provas escassas e incompletas” de sedição nas suas ações. O juiz criticou também a atuação das autoridades, por serem ágeis a deter quem discorda das políticas governamentais. “Mesmo os nossos pais fundadores concederam o devido respeito à divergência de opinião, reconhecendo a liberdade de expressão como direito fundamental inviolável”, disse o magistrado Dharmender Rana. “O direito à dissidência está firmemente consagrado no artigo 19 da Constituição da Índia.” O juiz acrescentou que “a sedição não pode ser invocada para servir a vaidade ferida do governo”.

Dissidentes como terroristas

“A repressão da dissidência pacífica é extremamente preocupante”, comenta ao Expresso Meenakshi Ganguly, diretora para a Ásia do Sul da Human Rights Watch. “As autoridades indianas estão a fazer acusações contra críticos ao abrigo de leis draconianas de contraterrorismo ou antissedição.”

Casos como o de Ravi expõem ameaças quotidianas às liberdades civis, como a criminalização da dissidência e da liberdade de expressão, que têm levado a Índia a perder posições nas classificações internacionais que avaliam a qualidade da democracia no mundo. Divulgado há três semanas, o último Índice da Democracia elaborado pela The Economist Intelligence Unit coloca a Índia no 53º lugar. Em 2014, quando Narendra Modi foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, o país estava na 27ª posição.

“As normas democráticas estão sob pressão desde 2015”, diz o relatório, que justifica a queda consistente com “um retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi”, apologista do nacionalismo hindu. “A crescente influência da religião sob o Governo de Modi, cujas políticas fomentaram o sentimento antimuçulmano e os conflitos religiosos, prejudicou o tecido político do país.”

Minoria de quase 200 milhões

Uma medida que incendiou as sensibilidades e gerou confrontos violentos foi a aprovação de uma emenda à Lei da Cidadania, a 10 de dezembro de 2019, que facilita a obtenção da cidadania indiana a pessoas oriundas de um conjunto de países e que professem determinadas religiões, mas não a muçulmana. Na Índia, os muçulmanos são uma minoria de quase 200 milhões, visados pela nova lei e pela atitude discriminatória e o discurso de ódio que ela normalizou. Em fevereiro de 2020, confrontos entre hindus e muçulmanos em Nova Deli provocaram 53 mortos.

“É a agenda política do partido nacionalista hindu [Bharatiya Janata], no poder, que muitas vezes demoniza as minorias religiosas”, denuncia Meenakshi Ganguly. “Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias ou por causa de ataques violentos realizados por apoiantes do Governo, infelizmente, as autoridades optam por punir os críticos. Vemos um padrão de preconceito na atuação contra o discurso dos críticos do Governo, acusando-os de serem antipatriotas ou de causarem inimizade entre as comunidades, enquanto os apoiantes do Governo que incitam abertamente ao ódio e à violência são protegidos.”

Há duas semanas o jornal norte-americano “The Washington Post” recuperou um caso com três anos que mancha a credibilidade da Índia enquanto Estado de direito. Era 1 de janeiro de 2018 e na aldeia de Bhima Koregaon, no ocidente da Índia, comemorava-se o 200º aniversário da batalha com o mesmo nome, que os dalits (“intocáveis”, a casta mais baixa da sociedade indiana) sentem como vitória sobre um adversário de casta superior. A celebração originou atos violentos entre hindus e dalits e levou à detenção de ativistas defensores dos mais desprivilegiados, acusados de conspirar para derrubar o Governo de Modi.

Segundo a investigação do jornal americano, os ativistas — alguns dos quais estão presos há mais de dois anos sem julgamento, ao abrigo de legislação antiterrorista — foram incriminados por informação colocada no portátil de um deles durante um ciberataque. A descoberta foi feita por uma empresa digital forense dos Estados Unidos, que analisou uma cópia do computador a pedido do advogado do ativista. Solicitado pelo jornal, as conclusões foram depois revistas por três peritos em malware, que as validaram.

Casos como este tornam as conclusões de outro barómetro internacional da democracia pouco surpreendentes. Segundo o Instituto Variedades de Democracia (V-Dem), da Suécia, a Índia integra o top 10 das democracias que mais depressa se estão a transformar em autocracias.

OPINIÃO

Três revoluções em curso

Ademocracia indiana está em contínuo desenvolvimento com múltiplos desafios, como todas as outras, incluindo a portuguesa e a americana. Mas ao contrário das democracias ocidentais, a indiana é bem mais jovem. Em termos formais, comemora 75 anos em 2022, marcando o fim do colonialismo britânico em 1947. Na prática, a democracia indiana é um processo revolucionário em curso, marcado por três ruturas desde os anos 90: uma revolução demográfica, com a maior população jovem do mundo e uma média de idades de 27 anos, naturalmente ambiciosa e impaciente; uma revolução económica, com a abertura do mercado e aceleração das reformas a reduzirem drasticamente a pobreza; e uma revolução social e política, com a ascensão de castas e classes tradicionalmente marginalizadas por via das quotas e outras garantias constitucionais. No seu conjunto, esta transição puxa para dois sentidos opostos: uma Índia menos anglófona e elitista com a expansão da participação democrática, por via da mobilização hindu, nacionalista e identitária, o que coloca crescente pressão sobre instituições, minorias e liberdades. O paradoxo é que a Índia está mais jovem e democrática do que nunca, mas também menos liberal e cosmopolita.

Constantino Xavier, investigador no Centro para o Progresso Social e Económico, de Nova Deli

(ILUSTRAÇÃO DEVIANTART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

A democracia vai sobreviver?

Dos ataques cibernéticos aos locais onde é regime estabelecido, à dificuldade em singrar nas paragens que ainda não a abraçaram, a democracia parece ameaçada neste final de década. Mas será que os reais perigos que enfrenta são aqueles de que mais se fala?

Demagogos, populistas, extremistas. Pós-verdade, factos alternativos, desconfiança dos políticos. Eis as ameaças que pesam sobre a democracia liberal, a tal que num período entre há 30 e 25 anos parecia rumar à conquista do mundo. Certo? Talvez não. “A pós-verdade não é necessariamente má”, afirma ao Expresso o académico americano Steve Fuller. Professor de Ciências Sociais na Universidade de Warwick, autor de “Post-Truth: Knowledge as a Power Game” (Anthem, 2018), compreende os receios de hoje relativos ao efeito da desinformação — mormente via redes sociais — sobre os processos democráticos, mas vê-los como “dores de crescimento” de uma nova forma de democracia.

“Com o aumento da educação e do acesso à internet há mais fontes de informação, e isso ajuda ao processo de democratização. Se queremos mais democracia, é de esperar que aceitemos que se questionem as autoridades estabelecidas. Levanta imensos problemas, mas sobretudo às elites, àqueles que no passado eram fontes de conhecimento reconhecidas”, diz Fuller, durante uma conferência sobre inteligência artificial, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Reconhece que “há muito mais material na internet” e que “pode ser usado para minar a democracia”, mas não crê que as pessoas olhem para ele cegamente e julga que há mais risco de esse material aprofundar crenças já estabelecidas, no efeito conhecido como “bolha de filtro”, do que propriamente para espalhar persuasão geral sobre algo que é falso. “Podemos estar num período de transição, mas à medida que se vai percebendo como a informação é propagada, é possível consumi-la com espírito crítico”, acrescenta. Comenta que os que tiverem más intenções não precisam sequer de grande sofisticação. “Os maiores ataques às democracias têm vindo da Rússia, que não é o país mais avançado do mundo em muitos outros aspetos, e cujos hackers podem causar danos a nível global, sem precisarem sequer de ser diretamente comandados por Vladimir Putin.”

Fuller preocupa-se com a desresponsabilização das redes sociais pelos conteúdos que nelas circulam. “O problema do Facebook é afirmar-se como plataforma neutra. Futuramente terá de decidir o que é ou não apropriado, o que é ou não falso, e não me parece que esteja preparado para isso.” Insiste, porém, que é mais democrático haver “produtores e consumidores de informação em números semelhantes, ao passo que outrora havia poucos emissores para muitos recetores, e estes não tinham possibilidade de dar feedback. Ora, o fluxo de informação deve ser livre”.

Quando o centro se esvazia

“Há um risco para a democracia quando se constroem identidades muito fortes e todo o sistema tende para a polarização”, alerta, em declarações ao Expresso, a politóloga holandesa Catherine De Vries. Impressionada com dados que indicam que “nos Estados Unidos um apoiante do Partido Democrata confia mais num criminoso do que em alguém do Partido Republicano, ou vice-versa”, vê nesta falta de confiança — que as redes sociais alimentam — um obstáculo a qualquer compromisso que permita aos países avançar. Exemplifica com as tensões que o processo de saída da União Europeia (UE) tem criado no Reino Unido, com subsequente degradação do discurso público e falsidades propaladas “de ambos os lados”.

Especialista em euroceticismo, De Vries indica “os vetos cruzados” como impedimento a que os cidadãos consigam perceber o bem que a UE lhes faz. “Isso muitas vezes não se vê”, afirma, citando pesquisas que sugerem que “os partidos nacionais não falam muito do contributo da UE, porque isso seria assumirem que não são tão poderosos”. Recorda que a maioria das forças políticas europeias nasceu a nível nacional, de fricções sociais e económicas não centradas na pertença ou não a um projeto comum. A seu ver, “a única forma de a UE amadurecer é debater-se a si mesma”. Se a maioria dos seus 500 mil cidadãos se sente oriundo do país onde vive ou onde nasceu, e não “cidadão da UE”, tal deve-se à falta de cariz emocional desta última. “Vê-se a UE como algo com quem se tem uma transação, aceita-se se de lá vierem coisas boas, mas a cada coisa má vem logo a tentação de deitar tudo fora”. E aí é preciso refletir: “Queremos mesmo tornar-nos paus-mandados da Rússia, da China ou dos Estados Unidos?”

Aponta como momento crítico para a democracia na UE a crise do euro, os “ralhetes” de Bruxelas às opções democráticas dos países (sobretudo dos intervencionados). Frisa, porém, que desde então vários partidos “do centrão” ganharam eleições — em Portugal, Áustria e Dinamarca, por exemplo — e nota que “os populistas definem-se mais por aquilo a que se opõem, sendo anti-imigração, anticapitalistas ou anti-UE, em vez de serem a favor de algo. “E o povo quer é ver os políticos a fornecerem soluções”, razão pela qual “muitos demagogos, ao chegarem ao poder, caem antes do fim do mandato”.

Direitos dos androides?

Se De Vries fala da democracia representativa, Fuller considera-a em “transição para a democracia direta” e acha que isso é bom: “A democracia representativa é, na melhor das hipóteses, o último nível do paternalismo.” O estudioso americano não sabe dizer como será isso viável à escala de um país ou mais, mas “é para aí que o mundo vai”. “Há visões que se dividem entre, por exemplo, pensar que Trump é uma aberração e que quando ele se for embora volta tudo ao normal, ou pensar que isto é o novo normal. Tendo a acreditar na segunda”, afirma.

Fuller admite que, embora a maioria das pessoas não veja no processamento de dados e na inteligência artificial ameaças à democracia, as diferenças no acesso à informação possam criar novas tensões. “Tal como o marxismo nasceu em reação à revolução industrial, podemos assistir a uma reação ao facto de o capitalismo não ter libertado toda a gente.”

A outra vertente da transformação tecnológica com grande impacto na forma como somos governados, prognostica, será a nível do trabalho. As máquinas já substituem muita gente em empregos administrativos médios, “incluindo tarefas de alguns médicos e advogados”, afirma Fuller, para quem o destino do ser humano é “passar a ser o valor acrescentado à máquina”. “Hoje podemos comprar uma mesa do IKEA, barata e produzida em série, ou uma bonita mesa sem igual que só um artesão sabe fazer”, ilustra.

Mas o docente tem visões mais desafiadoras no que diz respeito à presença da tecnologia nas nossas vidas, a curto e médio prazo. “A questão dos direitos dos androides e máquinas vai colocar-se”, antevê. “Não vão tomar conta do mundo”, descansa os que tiverem visões distópicas de uma Humanidade escrava. “Mas à medida que se integram na nossa vida e confiamos cada vez mais no juízo de robôs e outros aparelhos, os humanos tenderão a vê-los cada vez mais como iguais.” Fala da assistência a pessoas idosas e incapacitadas como campo onde esse avanço vai dar-se mais depressa. “Se calhar um dia acontece com as máquinas o que aconteceu com as raças, torna-se inaceitável discriminar.”

Água mole em pedra dura

Até aqui temos falado de problemas “do primeiro mundo”, isto é, do sentimento de que a democracia não é o “fim da História” que até Francis Fukuyama já renegou. Mas é bom ver, e este ano foi nisso generoso, que essa História não chega a todo o lado ao mesmo tempo nem da mesma forma. Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos.

Indo ao berço da nossa espécie, a maioria dos africanos quer democracia, mas não vive em regimes democráticos. África é um mosaico de 54 países que nem a divisão em sub-regiões — África Oriental, Ocidental, do Norte, Austral — permite homogeneizar. Tem uma história de democratização recente de 30 ou 40 anos, se a entendermos como processo que visa atingir a democracia. Esta deve implicar, em África, muito mais do que a importação do modelo ocidental e a sua análise não pode ignorar os séculos de escravatura e colonialismo de que o Ocidente foi o grande beneficiário.

Em abril de 2019 o mundo viu cair o regime autoritário do Sudão, chefiado por Omar Al-Bashir, seguindo-se o acordo entre o conselho militar de transição e os líderes da contestação, que permitiu pôr em funções um primeiro Governo a 5 de setembro. A sua principal tarefa é abrir caminho ao poder civil e a eleições democráticas no prazo de três anos. Há não muito tempo, o Sudão seria dos países menos prováveis para palco de protestos populares consequentes. A realidade provou, todavia, que não era impossível criar um horizonte político com vista a uma abertura democrática e civil, a reivindicação exigida pelos manifestantes.

Há cada vez mais atos eleitorais no continente africano. A Freedom House conta 21 democracias plenas ou quase entre os 54 países, enquanto uma perspetiva mais conservadora, como a da Economist Intelligence Unit — que avalia o estado da democracia em 167 Estados, classificando-os como “democracias plenas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários” —, considera que apenas nove governos africanos estão no primeiro grupo, o equivalente a 12% da população do continente. Um estudo do Institut for Security Studies conclui que a democracia plena teria um impacto muito positivo no desenvolvimento individual dos países, porém, a maioria dos Estados é pobre, a robustez das instituições fraca e os partidos no poder controlam, em muitos casos, os processos eleitorais, comprometendo os seus resultados.

Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos

Os parâmetros são díspares e as histórias nacionais são únicas. Depois de uma transição presidencial considerada democrática por todos os padrões, a Zâmbia acaba de legalizar a produção de marijuana para exportação para fins medicinais, ao mesmo tempo que pretende expulsar o embaixador dos Estados Unidos no país por defender os direitos de um casal homossexual, condenado a 15 anos de prisão. Yoweri Museveni liderou a libertação do Uganda, mas perpetua-se no poder há décadas com uma mão cada vez mais pesada sobre a oposição e os direitos cívicos dos cidadãos. Porém, é o país de África mais aberto ao acolhimento de migrantes numa região — Grandes Lagos — flagelada por conflitos endémicos.

Mesmo países como a África do Sul, que beneficiam de uma Constituição e de instituições democráticas sólidas e propositadamente projetadas para avançarem para longe do passado de abuso de que foram objeto pelo regime de Apartheid, extinto em 1994, veem-se enredados em situações de captura do Estado por grupos económicos que foram favorecidos pela conivência do ex-Presidente Jacob Zuma, entretanto deposto.

Ao contrário do que é muitas vezes defendido, os países têm os seus mecanismos internos e a capacidade de forjar alianças para o desenvolvimento. A crescente influência da China e, mais recentemente, da Rússia, no continente preocupa parceiros tradicionais, que equivalem, ainda em muitos casos, às zonas de influência pós-coloniais. O desafio do continente é o crescimento da sua população, que terá duplicado em 2050 relativamente ao presente para 2400 milhões de habitantes, metade dos quais com menos de 25 anos, segundo projeções das Nações Unidas. Em 2018, 60% destes jovens estavam desempregados.

O gigante chinês

Na Ásia, a democracia é ainda, na esmagadora maioria dos países, um projeto. No supracitado índice Economist de 2018, a maior parte dos países asiáticos integra o bloco dos regimes autoritários. Um caso extremo é a Coreia do Norte, país hermético, apostado na autossuficiência económica e liderado, desde há 70 anos, por uma mesma família — os Kim — ao estilo de uma república dinástica em que o poder vai passando de pai para filho. No polo oposto estão exceções como o Japão, a Coreia do Sul ou a Índia, com democracias consolidadas e funcionais, ainda que posicionados no grupo das “democracias imperfeitas”, onde está também Portugal (com nota baixa no critério da “participação política”).

Ao longo de 2019, uma importante batalha pela democracia tem-se travado no interior de um dos maiores gigantes asiáticos: a República Popular da China, onde no ano passado o “Pensamento de Xi Jinping”, o atual líder, ganhou estatuto de nova doutrina política oficial, inserida na Constituição. Essa batalha está a acontecer em Hong Kong, região autónoma especial cuja soberania transitou, em 1997, do Reino Unido para a China. Protestos populares de massas, que chegaram a envolver dois milhões de pessoas, estão nas ruas desde 9 de junho, sem indícios de que o fim esteja para breve.

Espoletada inicialmente pela contestação a uma polémica nova lei da extradição — que os locais sentiam como o estender do braço autoritário de Pequim sobre a autonomia de que ainda gozam —, a contestação evoluiu no sentido de reivindicações mais políticas. Entre as exigências que os incansáveis manifestantes querem ver concretizadas a curto prazo, para saírem das ruas, está a eleição do chefe do governo local por sufrágio direto e universal, o que não acontece atualmente.

A longo prazo, está em causa a manutenção das liberdades de que hoje usufruem e que não são possíveis na China continental, na secreta esperança de que, chegados a 2047 — fim do período de transição de 50 anos—– tenha germinado na China a semente democrática que em Hong Kong tanto querem preservar.

Tão ou mais persistentes do que os habitantes de Hong Kong, este ano, só os argelinos que têm saído às ruas todas as sextas-feiras desde 22 de fevereiro. Apesar de a chamada “primavera árabe”, em 2011, ter resultado num rotundo fracassado — a queda dos ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen não trouxe a democracia —, na Argélia o povo parece apostado em repetir a fórmula. Já conseguiram impedir que o Presidente Abdelaziz Bouteflika, que vive preso a uma cadeira de rodas, se recandidatasse a um quinto mandato. Mas insistem numa total substituição do regime, uma verdadeira revolução.

Os pedidos de “fim do regime” fazem-se ouvir noutros países árabes, como o Líbano e a Jordânia, onde queixas relativas à qualidade de vida das populações e à corrupção que domina o aparelho do Estado têm levado milhares às ruas. Noutras latitudes o povo também protesta — Irão, Iraque, Chile, Bolívia, ou Equador —, seja por motivos domésticos seja por causas transversais, como a mudança climática. Se há lição das décadas que vivemos desde o fim da Guerra Fria, é que a História teima em não acabar, seja nos locais onde julgámos a democracia indestrutível, seja onde não imaginávamos que pudesse germinar.

Texto escrito com Cristina Peres e Pedro Cordeiro.

Artigo publicado na Revista E do “Expresso”, a 11 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui