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Uma promessa por cumprir

População vasta e jovem não garante à Índia o estatuto de potência global que hoje tem a China, o outro colosso demográfico

SANJAY KANOJIA / AFP / GETTY IMAGES

A Índia está num momento-chave da sua história. O rápido crescimento continuará, provavelmente, e até vai acelerar”, vaticina a prestigiada “Foreign Affairs”. “Trabalhadores da Índia, tendes a atenção do mundo”, diz a respeitada “The Economist”. “A Índia desperta”, prevê a consagrada “Time”. “Alimentada por um crescimento de alta octanagem [resistente à pressão], a maior democracia do mundo está a tornar-se uma potência global. Pelo que o mundo nunca mais será o mesmo.”

Qualquer destas análises ao momento da Índia foi feita… há quase 17 anos. Já em 2006 a projeção internacional daquele país era uma certeza anun­ciada. Chegados a 2023, essa promessa continua por cumprir, mas o potencial continua a alimentar o mesmo tipo de expectativa. “Será este o ‘século indiano’?”, perguntava, há dias, o influente “The New York Times”.

Sem certezas quanto ao dia exato, 2023 ficará na História como o ano em que a Índia ultrapassou a China, tornando-se o país mais populoso do mundo, com mais de 1425 milhões de habitantes. Este marco não resulta de um crescimento demográfico exponencial — na Índia, a taxa média de fecundidade é de dois filhos por mulher —, antes do declínio populacional da China, após décadas de restrições à natalidade impostas pelo Governo de Pequim. Hoje, uma chinesa tem, em média, 1,2 filhos.

“O problema com a população na Índia é que milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza [$2,15/€2 por dia, segundo o Banco Mundial]”, diz ao Expresso o investigador Amit Singh, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Estima-se que em 2019 mais de 600 milhões de indianos (cerca de 45% da população) viviam com menos de 3,65 dólares (€3,30) por dia. “O Governo atual não cuida da população marginalizada, que pode ser um ativo mas também pode tornar-se um fardo.”

Amit Singh é natural do Estado de Utar Pradexe, o mais populoso. No mundo, só quatro países — China, Estados Unidos, Indonésia e Paquistão — têm mais habitantes do que essa região do Norte da Índia.

A força da juventude

“Por si só, o crescimento demográfico não é necessariamente sinónimo de outros tipos de crescimento”, acrescenta ao Expresso Paulo Duarte, professor de Relações Internacionais nas Universidades do Minho e Lusófona. “Pode até ser paradoxal no aumento de maiores riscos, porque nem sempre o crescimento da população é acompanhado pelo aumento de empregos, e isso pode gerar tensões.”

As expectativas em torno do crescimento da Índia assentam noutro registo impressionante. O país tem uma das populações mais jovens do mundo, com uma média de idades a rondar os 29 anos. “Chegou a hora. O mundo inteiro olha para a Índia e a maior razão para isso é a juventude. Yuva Shakti [poder da juventude] é a força motriz da jornada de desenvolvimento da Índia”, empolgou-se o primeiro-ministro, Narendra Modi, em janeiro passado, num discurso perante o Corpo Nacional de Cadetes, em Nova Deli.

A Índia tem uma das populações mais jovens do mundo, com uma média de idades a rondar os 29 anos

Para que o país agarre a oportunidade proporcionada por uma população vasta e jovem e destrone a China também a nível económico, contudo, há investimentos urgentes a fazer a nível do capital humano. “Em circunstân­cias normais, ter uma população e uma força de trabalho jovens pode ser um boom para qualquer nação”, diz Amit Singh. “Mas para o Governo indiano a educação não tem sido prioridade, bem como a criação de emprego para os jovens. O desemprego é o mais alto de sempre, em 2023 anda à volta dos 7,5%. É o maior desde a independência”, declarada a 15 de agosto de 1947.

A Índia é independente há 76 anos, mas só há pouco mais de 30 funciona numa lógica de mercado. Os recentes protestos de agricultores, que se prolongaram durante mais de um ano, são sintoma do descontentamento gerado pela aplicação de reformas económicas num sector que dependia de subsídios e de preços fixos estabelecidos pelo Executivo.

Dinheiro sem valor do dia para a noite

“Na Índia há uma falta de visão a curto, médio e longo prazos”, segundo Paulo Duarte. “Não há planos quinquenais, como na China, que é um país comunista mas onde o capitalismo é cada vez mais omnipresente e selvagem. Na China produz-se e projeta-se a longo prazo desde tempos milenares. No próprio Partido Comunista, que tem mais de 90 milhões de militantes, tudo é projetado no tempo e no espaço de forma holística. Esta é uma diferença importante em relação à Índia”, prossegue o académico, a comparar os dois gigantes.

Amit dá como exemplo da falta de planeamento do Governo de Modi — que está no poder há nove anos — o caó­tico 8 de novembro de 2016, quando, sem aviso prévio, o primeiro-ministro comunicou na televisão que à meia-noite daquele dia as notas de 500 e 1000 rupias (€5,50 e €11 ao câmbio atual), as de maior montante, deixariam de ter valor de circulação e teriam de ser depositadas no banco.

Num país onde a esmagadora maioria das transações se faz em dinheiro vivo, Modi justificou a medida com a necessidade de combater a economia paralela e a circulação de dinheiro ilícito e falsificado. “O dinheiro negro e a corrupção são os maiores obstáculos à erradicação da pobreza”, explicou. Ao não acautelar as consequências, porém, o anúncio originou uma corrida às notas de baixo valor. De um dia para o outro, milhões de indianos viram-se sem trocos para pagar a despesa na padaria.

“Isto teve impacto no sector manufatureiro e efeitos devastadores ao nível da pequena e média indústria”, diz o investigador indiano. “Claro que a Índia está a crescer, mas os benefícios desse crescimento económico vão apenas para ricos e para a elite.”

Estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) preveem que em 2023 a economia indiana seja a que mais cresce em todo o mundo, na ordem dos 5,9%. Ainda que de forma involuntária, há aqui dedo da China. “A pandemia e a guerra comercial [entre EUA e China] mostraram que não pode estar quase tudo localizado na ‘fábrica do mundo’. É impensável, caso surja outra pandemia, estar-se dependente de um único país”, defende Paulo Duarte.

Aptidão para as tecnologias

Várias multinacionais reconheceram que colocar os ovos todos no cesto da China foi má estratégia. Marcas como as desportivas Nike e Adidas ou as tecnológicas Apple e Samsung já começaram a deslocalizar estruturas de produção. Dado a aptidão dos indianos para a área das tecnologias, a Índia surge como alternativa natural.

Dhruva Jaishankar, diretor da Observer Research Foundation America, em Washington, não crê que os indianos tenham características inatas para essa área. “Uma explicação possível é a combinação da ênfase dada ao ensino STEM [modelo de aprendizagem focado em Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemáticas] nos sistemas escolar e universitário indiano, combinada com uma educação básica em inglês, que torna os indianos empregáveis no exterior”, afirma ao Expresso.

“É notável que haja um número tão grande de engenheiros e profissionais de ciência e tecnologia indianos a trabalhar em todo o mundo, muitas vezes com grande procura.” Ao mais alto nível, são exemplos disso os CEO Satya Nadella (Microsoft), Sundar Pichai (Google), Indra Nooyi (PepsiCo), Arvind Krishna (IBM) e Raj Subramaniam (FedEx), nascidos na Índia.

A 18 de abril, Tim Cook inaugurou, em pessoa, a primeira loja da Apple na Índia, em Mumbai, a capital financeira. A gigante americana já instalou unidades de produção de iPhones nos Estados de Tâmil Nadu e Carnataca, cuja capital é Bangalore, a “Silicon Valley” indiana. Num relatório envia­do a clientes em outubro de 2022, analistas do banco JPMorgan previram que até 2025 um em cada quatro iPhones seja fabricado na Índia.

UMA DIMENSÃO ÚNICA

86 mil

crianças nascem na Índia, em média, todos os dias. Na China, esse número ronda os 49.400. A taxa de natalidade indiana é de dois filhos por mulher, enquanto na China caiu para 1,2

100

smart cities [cidades inteligentes] serão desenvolvidas por toda a Índia no âmbito de um programa de renovação e modernização urbana lançado pelo Governo em 2015. Utar Pradexe é o Estado com mais projetos (14)

23%

das indianas realizam um trabalho pago, diz o Banco Mundial. No vizinho Bangladeche esse número é de 37%, e na China de 63%. Na Índia, as mulheres são ainda pressionadas a não trabalhar fora de casa

ÍNDIA PRECISA DE ‘FILHOS ÚNICOS’?

Em 1979, a braços com um crescimento exponencial da sua população e receios de que o país não produzisse o suficiente para alimentar tantas bocas, a China impôs o limite de um filho por casal. Em 2016, a restrição passou a dois filhos e em 2021 foi abolida. Hoje, Pequim contabiliza os custos dessa política, que levou a esterilizações, abortos forçados, feminicídios e retirou sentido às palavras “irmã” e “irmão”. “A Índia não precisa de medidas restritivas centradas no controlo, como a política do filho único. O seu percurso demonstra que o declínio da fertilidade pode ocorrer sem coerção. O programa de planeamento familiar é voluntário e alcançou o nível de fertilidade de reposição [dois filhos por mulher] sem quaisquer medidas coercivas”, assegura ao Expresso Poonam Muttreja, diretora-executiva da Fundação da População da Índia. Esta responsável rejeita o cenário de “explosão” demográfica. Salienta que o país está no caminho da estabilização, após ter mudado de paradigma: “A ênfase era o controlo populacional”, agora está em “melhorar a qualidade de vida como meio de alcançar uma população estável”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

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China autoriza três filhos por casal. E assim reconhece que algo vai mal no país mais populoso do mundo

Seis anos apenas após acabar com a política do filho único, autorizando os casais a terem um segundo filho, o Governo de Pequim permite agora o nascimento de um terceiro. A população chinesa está a envelhecer e a classe trabalhadora a diminuir. A medida, que revela “urgência”, indicia também a “tarefa hercúlea” que a China tem pela frente, diz ao Expresso a especialista em Assuntos Asiáticos Raquel Vaz-Pinto

Uma pintura de propaganda promove a ideia da família com um só filho WIKIMEDIA COMMONS

O país mais populoso do mundo está a envelhecer rapidamente e as autoridades que o governam já não escondem a preocupação com essa tendência demográfica. Esta segunda-feira, Pequim anunciou uma importante alteração na sua política de controlo da natalidade e decretou que os casais chineses podem ter um terceiro filho.

Trata-se da última manifestação da ‘engenharia social’ com que o regime chinês, desde há décadas, procura controlar o planeamento familiar dos seus cidadãos, que até há meia dúzia de anos estava limitado a um filho só.

“A assertividade com que a política do filho único foi concretizada levou não só a uma quebra em termos geracionais, como fez com que, tendo em conta os custos com a educação, seja muito difícil para os chineses terem um segundo filho, quanto mais um terceiro”, explica ao Expresso Raquel Vaz-Pinto, professora de Estudos Asiáticos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “É, no fundo, uma contabilidade que muitas famílias fazem nas próprias sociedades desenvolvidas.”

Suportar as despesas com a educação de uma criança, incluindo atividades extracurriculares, e também a preocupação em tornar possível o acesso a uma boa universidade (na expectativa posterior de um bom emprego), é algo que os chineses não encaram de ânimo leve, em especial os que vivem nas cidades, onde o custo de vida é sobrecarregado pelo preço da habitação, da alimentação e dos transportes.

O relaxamento da política de controlo demográfico, que foi agora anunciado, após uma reunião do Politburo — o órgão de cúpula do Partido Comunista Chinês, presidido pelo Presidente Xi Jinping —, surge na sequência do apuramento das conclusões do último censo nacional, conhecidas há três semanas. A China atualiza o seu recenseamento todas as décadas.

Entre 2010 e 2020, o número de chineses aumentou para mais de 1410 milhões, mas o ritmo de crescimento ao ano é inferior a 1%. Nesse período, a população da China aumentou em média 0,53% ao ano, enquanto na década anterior (2000-2010), esse crescimento tinha sido de 0,57%.

Durante cerca de 35 anos, a China procurou conter o rápido crescimento da sua população impondo uma política de filho único. Mas nos últimos anos, a estratégia oficial de controlo da natalidade já reverteu por duas ocasiões.

DATAS-CHAVE

1979

Entra em vigor a política de filho único

2016

Os casais chineses passam a poder ter um segundo filho. Quem arrisca ter o terceiro pode ser multado

2021

Pequim autoriza a procriação do terceiro filho

O fim da política do filho único revelou-se, porém, insuficiente para garantir um crescimento demográfico sustentado. Pelo contrário, a aceitação de um terceiro filho escassos seis anos após admitir um segundo é “uma consciência clara de uma situação de urgência”, afirma Vaz-Pinto.

“O espaço de tempo entre 2016 e 2021 é muito curto. Quer se queira quer não, acaba por ser a confirmação de que há um problema. Há um conjunto de reformas que são necessárias internamente, ainda que nunca se venha a reconhecer que o Partido se calhar foi longe demais neste tipo de política”, diz a investigadora.

“Esta medida que foi anunciada, no fundo, vem tarde”, continua. “E tem de ser englobada num pacote que torne atrativa a concretização prática desta política. Será que vão mexer na idade das reformas?”

Estudiosos da evolução demográfica chinesa preveem que o número total de habitantes possa começar a diminuir já em 2022. Espera-se também que, em 2026, a Índia ultrapasse a China como país mais populoso do mundo.

Em Pequim, na primeira linha das preocupações relativas estão o rápido envelhecimento da população — que coloca a China ao nível de sociedades com grandes percentagens de idosos, como a japonesa ou a italiana — e a diminuição da classe trabalhadora.

Segundo o último censo, na última década, a população ativa (dos 16 aos 59 anos) diminuiu em cerca de 45 milhões de pessoas, enquanto o número de chineses com mais de 60 anos subiu para 264 milhões, correspondendo a 17% do total da população. Presentemente, a taxa de fertilidade das chinesas é de 1,3 filhos por mulher.

“Esta medida denota sobretudo uma preocupação com a própria situação económica da China”, comenta a professora. Mas “para que esta nova decisão seja acolhida e confirmada pelos cidadãos chineses — já que a medida de 2016 não teve grande efeito — deve ser acompanhada por um pacote de reformas que vão da educação, aos preços da habitação e ao apoio aos mais velhos”.

“O índice de fertilidade que a China tem hoje está em linha com as preocupações do conjunto das economias desenvolvidas”. Porém, “não existe ainda na China uma rede de proteção, de segurança social que encontramos nas sociedades desenvolvidas”, prossegue Raquel Vaz-Pinto.

“A China tem uma tarefa hercúlea pela frente. Isso implica fazer reformas, que serão muito duras porque a geração que está agora a reformar-se e que trabalhou a vida toda tem expectativas. Há um conjunto de factores que tornam estas decisões ainda mais difíceis mesmo tratando-se de uma ditadura tão forte quanto a do Partido Comunista Chinês.”

Segundo a agência Reuters, numa sondagem promovida pela agência noticiosa chinesa Xinhua na rede social Weibo, em que era perguntado se os chineses estavam dispostos a ter três filhos, cerca de 29 mil dos 31 mil participantes responderam que “jamais pensariam nessa possibilidade”. Esse inquérito acabou por ser retirado da Internet.

Conclui Vaz-Pinto: “Seria interessante que a China pudesse, com humildade — já que a sua política externa tem sido de enorme assertividade, nos últimos anos —, aprender um pouco mais com as sociedades que já lidam e têm de gerir estes dilemas em matéria de equilíbrios entre sociedade, economia e até mesmo investimentos”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Uma bomba prestes a detonar

A tendência demográfica e o impasse no conflito com os palestinianos confrontam Israel com um desafio à sua identidade enquanto Estado. A prazo, sem uma Palestina independente, terá de optar se quer conservar a sua maioria judaica ou ser uma democracia

“O ventre da mulher árabe é a minha arma mais forte.” A máxima do líder histórico palestiniano, Yasser Arafat, soa como uma maldição em Israel, onde uma “bomba” bate silenciosamente, em contagem decrescente para a explosão — a demografia. Atualmente, entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão — abarcando Israel e os territórios palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza —, existe praticamente uma paridade entre judeus e árabes.

“Ainda não há uma paridade real, mas está-se a aproximar disso. Há uma pequena maioria de judeus, digamos de 51% contra 49% de árabes”, diz ao Expresso o italiano Sergio DellaPergola, um dos maiores especialistas mundiais em demografia israelita e judaica.

O número de judeus na Terra Santa ronda os 6.900.000 — 400.000 deles vivem em colonatos na Cisjordânia; os árabes são cerca de 6.500.000 — incluindo 1.500.000 com cidadania israelita. Porém, “a população árabe está a crescer mais rapidamente do que a judaica”, alerta este professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém. “Por isso, algures no futuro, num horizonte de 15 a 20 anos, é possível que se chegue a uma paridade real. A tendência é muito clara.”

Esta constatação coloca a demografia no coração do processo de paz israelo-palestiniano. “A questão é fundamentalmente política”, diz Sergio DellaPergola. “Se considerarmos apenas Israel e a Cisjordânia [sem a Faixa de Gaza], que é a situação ‘de facto’ atualmente, a maioria de judeus é de pouco mais de 60%. Se retirarmos da equação a população palestiniana da Cisjordânia, então a maioria de judeus chega quase aos 80%.”

Isto significa que a solução política que daria a Israel uma ampla maioria de judeus no seu Estado é aquela que o Governo de Benjamin Netanyahu (direita nacionalista) mais se tem empenhado em destruir: a de dois Estados para dois povos. Com a contínua expansão dos colonatos judeus na Cisjordânia, a aplicação de um bloqueio por terra, mar e ar à Faixa de Gaza, com as negociações entre as partes estagnadas e o tradicional mediador, Estados Unidos, a tomar parte por Israel — reconhecendo Jerusalém como sua capital —, uma Palestina independente é cada vez mais inviável.

Por essa razão, entre os palestinianos, há cada vez mais vozes a defenderem um Estado único, binacional. Esse cenário coloca Israel num dilema: ser um Estado judeu ou ser uma democracia? “Para ser um Estado judeu, Israel tem de ter uma forte maioria de judeus e, para tal, tem de abdicar de territórios e da população não judaica que aí vive”, explica o especialista. “Se Israel quiser manter os territórios, mas não quiser dar às populações não judaicas direitos cívicos e participação em eleições livres então será um Estado judeu mas não será democrático.”

“Se não acordarmos das ilusões da anexação [da Cisjordânia], perderemos a maioria judaica. É simples”, afirmou, recentemente, a ex-ministra israelita dos Negócios Estrangeiros e atual deputada Tzipi Livni, apologista da fórmula de dois Estados.

Os milagres da imigração

Se hoje Israel tem 8.500.000 habitantes, à época da criação do Estado não ia além dos 850.000. “Em 70 anos, a população cresceu dez vezes”, constata Sergio DellaPergola. “Mais de 3.500.000 deve-se à entrada de imigrantes, um contributo muito significativo para o aumento da população.”

Em 1950, apenas dois anos após a criação do Estado, Israel aprovou a Lei do Retorno que confere a “todos os judeus” o direito de irem para Israel com garantia imediata de cidadania. Fazer a “aliyah” — a viagem para Israel com o intuito de lá ficar — tornou-se, na mente de judeus de todo o mundo, um imperativo moral para alimentar o sonho sionista.

O impacto da imigração no Estado de Israel tem sido crucial para as estatísticas mas também para a qualidade da mão de obra que tem construído o país ao longo de décadas. “A imigração para Israel não foi seletiva, não mobilizou apenas as camadas mais baixas, mas todos os sectores sociais. Foi uma imigração muito motivada por situações negativas que afetaram todos os judeus independentemente do sítio onde viviam e sem distinção entre ricos e pobres, inteligentes e estúpidos”, defende Sergio DellaPergola. “Entre aqueles que foram para Israel, muitos eram peritos em tecnologia, sobretudo vindos da União soviética, e especialistas em muitas outras áreas, o que enriqueceu muito o capital humano de Israel. O país fez um progresso sócio-económico tremendo devido à imigração e à assimilação dos imigrantes.”

Rodeado de países árabes, o desafio de Israel começa dentro de portas, onde um quinto da população é árabe. “A taxa de fertilidade [número de filhos] de judeus e árabes não é muito diferente: os judeus têm em média 3,1 filhos e os árabes à volta de 3,2. Há uma motivação muito grande para se ter filhos, e não apenas junto dos sectores religiosos.”

Mas a maioria de judeus tende a sofrer uma erosão a cada ano que passa. “A população árabe é bastante mais jovem do que a judaica, logo há mais árabes que podem ter filhos. O crescimento anual dos judeus anda à volta de 1,5% a 1,8% e os árabes crescem a um ritmo de 2,5% a 2,8%. A diferença é de um ponto percentual, mas imaginemos que vamos a um banco e depositamos 100 euros a uma taxa de 1,5% ao ano e outros 100 a 2,5%? Ao fim de 10 anos, a diferença é considerável.”

O Expresso pergunta a Sergio DellaPergola se acha que o Governo de Benjamin Netanyahu é sensível às questões demográficas. O professor solta uma gargalhada antes de responder: “Não tenho a certeza. A atitude deles é dizerem que sabem que há um problema e que é importante, mas que há outros mais importantes, como o Irão, a Síria, o Líbano, Gaza. Por isso, dirão: ‘O melhor, por enquanto, é não se falar muito de demografia. Pensemos nisso noutro dia’.”

(Imagem: Um árabe e um judeu disputam o território entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão GEORGRAPHY.MRDONN.ORG)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 14 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

População cresce muito e rapidamente

A humanidade demora cada vez menos tempo a somar 1000 milhões de pessoas às que já vivem no planeta. Estima-se que a população mundial tenha chegado aos 1000 milhões em 1804 e que tenha demorado 123 anos a atingir a fasquia dos 2000 milhões. Porém, foram necessários apenas 12 anos para passar de 6000 milhões para os atuais 7000 milhões.

Recentemente, as Nações Unidas reviram as suas previsões e concluíram que a Índia vai ultrapassar a China como o país mais populoso do mundo mais cedo do que se julgava. Por volta do ano 2022, ambos terão cerca de 1400 milhões de habitantes. Depois, a Índia continuará a crescer e a China estabilizará.

Os dois países estão, porém, confrontados com desafios tão gigantescos quanto a sua população: na China, a política do filho único tem contribuído para o envelhecimento da população; na Índia, o exponencial crescimento da população não tem sido acompanhado por progresso social. No último Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, a Índia surge apenas no 135º lugar entre 187 países; a China está em 91º.

As previsões da ONU indicam também que, cerca de 2050, a Nigéria ultrapassará os EUA no terceiro lugar e que um terço da população da Europa terá mais de 60 anos.

Pela mesma altura, os habitantes da Terra (hoje 7300 milhões) serão 9700 milhões; e 11.200 milhões em 2100, altura em que dez países africanos, como Angola, terão cinco vezes mais pessoas do que hoje.

As regiões subdesenvolvidas serão o grande motor deste crescimento. “A concentração do crescimento [populacional] nos países mais pobres tornará mais difícil a erradicação da pobreza, o combate à fome e a expansão dos sistemas de saúde e educativos”, alerta John Wilmoth, chefe da Divisão de População da ONU.

“A Índia é um país cheio de oportunidades com 65% da população abaixo dos 35 anos”, NARENDRA MODI, primeiro-ministro indiano

“A maior mudança do nosso tempo? África vai crescer dos 1000 milhões para 4000 milhões de pessoas!”, HANS ROSLING, professor de Saúde Global, Instituto Karolinska, Suécia

1979

Entrou em vigor na China a política do filho único, para reduzir o crescimento populacional. Em 2013, a lei foi flexibilizada, possibilitando um segundo filho aos casais em que um dos cônjuges é filho único. Ficaram isentados também as minorias étnicas reconhecidas oficialmente e os casais das áreas rurais com um primeiro filho menina ou deficiente.

DUAS PERGUNTAS A JOSEPH BISH,
RESPONSÁVEL DO POPULATION MEDIA CENTER

1. É urgente estabilizar o número de pessoas na Terra?

A estabilização da população não é uma ‘varinha mágica’ que garanta, por si só, a sustentabilidade global, mas tem impacto. Aceitar a necessidade de estabilização da população e o subsequente declínio é um ponto de viragem mental importante que nos leva a adotar uma conceção mais humilde do lugar da humanidade no todo planetário. O nosso pensamento deixa de se centrar apenas nas necessidades e desejos do ser humano e fica consciente de toda a ecoesfera e do direito à existência das outras espécies.

2. O planeta chega para todos?

A Terra está a passar por um aumento incrível da população. Em 1967, a taxa de crescimento era de 2,11% numa população de 3400 milhões, o que originou um crescimento anual de 73 milhões de pessoas. Agora o crescimento global caiu em 50% mas aplica-se a uma população de 7300 milhões. Isto resulta em mais 80 milhões de pessoas por ano, 1,5 milhões por semana, 220 mil por dia, 9000 por hora, 150 por minuto e quase três por segundo. Esperamos que a Terra forneça automaticamente os recursos para todos. É um pedido exagerado para um planeta finito.

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de agosto de 2015

Cerco silencioso ameaça judeus

O tempo corre contra o Estado judaico: as populações árabes vizinhas crescem mais depressa. Mas uma Palestina independente ajudaria

Alunos de uma “yeshiva”, escola religiosa especializada no estudo dos textos sagrados dos judeus, na Cidade Velha de Jerusalém, a 3 de setembro de 2008 MARGARIDA MOTA

O Presidente do Irão quer ‘varrer’ Israel do mapa. Hizbullah e Hamas dispõem de capacidade bélica para atingir território israelita assim que o entendam. No Médio Oriente, o ódio a Israel é generalizado e motivador de atitudes violentas contra os judeus. As ameaças à existência de Israel são múltiplas, mas a sentença de morte do Estado judaico, tal como hoje o conhecemos, pode ser ditada por algo mais discreto — a demografia.

Estará Israel a caminho de se transformar num Estado árabe? A manterem-se a tendência demográfica e o impasse na resolução do conflito israelo-palestiniano a possibilidade é real. Entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, há hoje praticamente uma paridade entre árabes e judeus. “Em Israel, somos cerca de seis milhões de judeus. E há outros seis milhões de não-judeus, a maioria árabes, a viver na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em Israel”, explica ao Expresso Arnon Soffer, que dirige o departamento de Geografia da Universidade de Haifa.

Há décadas que o professor tem vindo a alertar as autoridades israelitas para o desafio que o país enfrenta. Em 1987, publicou uma análise prevendo uma revolução demográfica para 2010, ano em que, em Israel e nos territórios ocupados, o número de árabes superaria o de judeus. “O ventre da mulher árabe é a minha arma mais forte”, dizia, então, o líder palestiniano Yasser Arafat.

Chegados a 2010, a previsão de Soffer fica aquém do projetado por uma única razão: com a retirada dos colonos da Faixa de Gaza (2005), Israel reduziu a sua área de envolvimento, que hoje se circunscreve ao seu território e à Cisjordânia, onde vivem cerca de 300 mil colonos judeus e 2,5 milhões de árabes.

Ilha judia num oceano islâmico

Rodeado por 200 milhões de árabes, o desafio de Israel começa dentro de portas — cerca de 20% da população israelita são árabes. “Há uma grande maioria de judeus, mas o ritmo de crescimento das populações não-judias que falam árabe é o dobro das judias: as árabes crescem 2,5% ao ano e as judias 1,3%. A atual maioria populacional de judeus tende a sofrer uma erosão todos os anos”, explica ao Expresso Sergio DellaPergola, da Universidade Hebraica de Jerusalém.

Uns crescem 1,3% por ano; outros 2,5%

Desde a sua fundação, em 1948, Israel tem consolidado a sua existência com base numa população maioritariamente judia. Arnon Soffer sugere três medidas para inverter a atual tendência demográfica, desfavorável a esse statu quo: “Encorajar a imigração de judeus para Israel; investir na educação das mulheres muçulmanas, porque uma mulher com formação terá menos filhos; e não permitir a anexação de territórios. Sim, temos de falar sobre a solução de dois Estados (para dois povos)!”

Dois Estados: a solução

O conflito israelo-palestiniano arrasta-se sem fim à vista e uma Palestina independente tarda em concretizar-se. DellaPergola é igualmente partidário desta solução — por contraponto à opção de um Estado binacional (um Estado para dois povos).

Dada a existência, por um lado, de 300 mil colonos judeus na Cisjordânia e, por outro, de 250 mil árabes em Jerusalém Oriental e de bolsas de maioria árabe em Israel — adjacentes à Linha Verde e implantadas na região do chamado Pequeno Triângulo, a norte —, o professor propõe um intercâmbio territorial: “A divisão não deverá recuar até aos limites anteriores à Guerra dos Seis Dias (1967), como muitos defendem. As fronteiras devem ser reavaliadas dos dois lados para que, tanto quanto possível, os judeus fiquem no Estado de Israel e o maior número possível de árabes e palestinianos fiquem do lado do Estado palestiniano”.

7,5 milhões de pessoas habitam o Estado de Israel: 75% são judeus, 20% árabes

300 mil colonos vivem na Cisjordânia

2,5 milhões de palestinianos vivem na Cisjordânia e 1,5 milhões em Gaza

4,6 milhões são refugiados palestinianos e querem voltar

Em Israel, porém, a solução de dois Estados está longe de gerar consenso. Milhares de judeus religiosos ultraortodoxos continuam a sonhar com o grande Israel. “Dizem que o berço da Bíblia é Nablus e Hebron (na Cisjordânia) e Jerusalém Oriental — e não Telavive. Por isso, lutam pela anexação da Cisjordânia (a bíblica Judeia e Samaria)”, explica Soffer. “Num cenário destes, a demografia está contra as suas pretensões. Se Israel anexar a Cisjordânia será o fim do sonho judeu sionista. Isto é pura demografia”, diz. “Tal situação seria o fim do Estado de Israel”, acrescenta DellaPergola. “A maioria dos israelitas não quer ter um Estado que inclua todos os árabes e todos os territórios palestinianos. Se o fizermos, o Estado de Israel ficará em perigo e deixará de existir. Seria uma perda não só para Israel, mas também para a democracia.”

O professor Soffer refere que o crescimento populacional dos judeus religiosos fundamentalistas está em alta. “Neste momento, tenho menos medo dos árabes do que dos judeus fanáticos”, admite. “Não sei o que vai acontecer aos meus netos… Se depender da vontade do avô, não viveremos num Estado religioso típico da Idade Média. Vamos para Portugal, para gozarmos a vida. Seria a minha solução num caso desses!”

ISRAELITAS DE CULTURA ÁRABE

Um quinto da população israelita é árabe — trata-se de cidadãos de pleno direito que, culturalmente, têm uma identidade árabe. Descendem das populações que aqui residiam antes da criação de Israel (1948) e optaram por ficar apesar do êxodo de milhões de árabes aquando da Guerra da Independência — hoje, mais de 4,6 milhões de refugiados palestinianos reclamam o retorno à sua terra ancestral. Contrariamente aos cidadãos judeus, os árabes não são obrigados a cumprir o serviço militar. Nas últimas legislativas, elegeram quatro deputados, agrupados na Lista Árabe Unida — defensora da solução de dois Estados e de Jerusalém Leste como capital de uma Palestina independente. Apontados, por vezes, como uma ‘quinta coluna’ ao serviço do interesse palestiniano no interior de Israel, vários israelitas árabes venceram o estigma e ganharam notoriedade. O futebolista Salim Tuama — cidadão israelita, de cultura árabe e religião cristã — joga na seleção nacional. Oriunda de uma família muçulmana de Nazaré, Lucy Arish tornou-se, há três anos, a primeira jornalista de origem árabe a apresentar notícias em prime-time. Em 2009, Mira Awad foi a primeira artista israelita árabe a representar o país na Eurovisão. Num dueto com a judia Noa, interpretou “There must be another way”. Algumas estrofes da canção foram cantadas… em árabe.

Artigo publicado no Expresso, a 17 de julho de 2010