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Paris Saint-Germain vs. Manchester City. O “dérbi do Golfo” que vai muito além do futebol

Paris Saint-Germain e Manchester City disputam, esta quarta-feira, a primeira mão das meias-finais da Liga dos Campeões. Os dois clubes são pontas de lança ao serviço de dois países do Médio Oriente empenhados em projetar poder e influência em todo o mundo: Qatar e Emirados Árabes Unidos. A vitória no relvado terá também uma dimensão geopolítica

Ambos sonham conquistar a Liga dos Campeões e os muitos milhões que têm ao seu dispor aproximam-nos dessa possibilidade. Paris Saint-Germain (PSG) e Manchester City medem forças, esta quarta-feira, na primeira mão das meias-finais da prova milionária.

Mais do que uma disputa desportiva entre dois emblemas que querem chegar ao topo do futebol europeu, os jogos desta quarta-feira, em Paris, e de 4 de maio, em Manchester, têm implícito um braço de ferro entre dois países do Médio Oriente — o Qatar (dono do PSG) e os Emirados Árabes Unidos (proprietário do City) — que rivalizam entre si e que, tendo comprado estes dois emblemas, usam-nos como arma de soft power para projetar poder e influência em todo o mundo.

Será uma partida picante a nível político e a nível popular, já que cada clube é sinónimo de uma monarquia. Como tal, muitos tenderão a olhar para este jogo como uma disputa por procuração, mesmo que não estejam assim tão interessados em futebol”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres e autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017).

1880 É fundado o Manchester City Football Club. Foi comprado pelo Abu Dhabi United Group em 2008. Joga no Etihad Stadium e o patrocinador das camisolas é a Etihad Airways, uma das transportadoras aéreas dos Emirados Árabes Unidos

1970 O Paris Saint-Germain foi criado após fusão entre o Paris Football Club e o Stade Saint-Germain. Foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011. Joga no Parque dos Príncipes e tem entre os seus parceiros premium o Turismo do Qatar e a Qatar Airways

Qatar e Emirados são antigos protetorados britânicos que conservaram o gosto pelo futebol mesmo após declararem independência, em 1971. Passados 50 anos, servem-se desse património afetivo e da sua enorme riqueza — a do Qatar vem do gás natural e a dos Emirados, do petróleo — para se afirmarem, patrocinando clubes e comprando outros.

Desde 2008 que o Man City é detido pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dabi, principal dos sete emirados que compõem o país chamado Emirados Árabes Unidos. O Abu Dhabi United Group, empresa privada que comprou o City, é também dono do Bombaim FC, do Melbourne FC e do Cidade de Nova Iorque FC, entre outros clubes por todo o mundo.

Já o PSG foi comprado em 2011, numa altura em que andava arredado dos títulos, mesmo em França. Foi adquirido pelo próprio emir do Qatar, através do Qatar Sports Investments, fundo soberano que é uma espécie de ponta de lança do país no esforço de afirmação internacional. Ao leme do PSG, o Qatar mostrou cedo ao que vinha: em 2012 contratou Zlatan Ibrahimovic, em 2013 Edinson Cavani e David Beckham e em 2017 Kylian Mbappé e Neymar.

“O PSG é enorme no Qatar, por razões óbvias”, diz David B. Roberts. “Embora o futebol inglês seja dominador, regra geral, com as notáveis exceções dos dois clubes espanhóis [Real Madrid e Barcelona] cada vez menos pessoas admitirão apoiar o Man City no Qatar!”

A estratégia do pequeno emirado — que tem uma população de três milhões e área oito vezes menor do que Portugal — terá o seu ponto alto no próximo ano, quando o Qatar acolher o Mundial de futebol, que terminará uma semana antes do Natal.

Seja ou não um bom jogo, o duelo entre PSG e City terá inevitavelmente uma dimensão geopolítica, dada a rivalidade entre Qatar e Emirados e o facto de apoiarem fações contrárias em várias contendas do Médio Oriente. Cinco exemplos:

  1. BLOQUEIO AO QATAR. Os Emirados foram um dos quatro países que a 5 de junho de 2017 impuseram um bloqueio por terra, mar e ar ao Qatar. Durou 43 meses e terminou a 5 de janeiro passado, em vésperas de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos e defender a necessidade de “recalibrar” a relação com a Arábia Saudita (primeiro país que Donald Trump visitou), outro promotor do bloqueio ao Qatar.
  2. RELAÇÃO COM O IRÃO. Apesar de Qatar e Emirados serem países muçulmanos sunitas, o Qatar tem uma relação de proximidade ao Irão (xiita) como nenhum outro país do Golfo. Para tal, não será alheio o facto de ambos partilharem o maior campo de gás do mundo. Já a relação entre Irão e Emirados tem-se pautado pela tensão, sobretudo em torno da disputa de três ilhas: Abu Musa, Grande Tunb e Pequena Tunb.
  3. INTERVENÇÃO NA LÍBIA. Neste longínquo país do Norte de África, em guerra desde o fim do regime de Muammar Kadhafi (2011), os Emirados apoiam as forças leais ao general rebelde Khalifa Haftar enquanto o Qatar alinha ao lado da Turquia em defesa do Governo de Tripoli, internacionalmente reconhecido. A relação com a Turquia — que tem uma base militar no Qatar — intensificou-se na sequência do bloqueio regional ao país.
  4. NORMALIZAÇÃO COM ISRAEL. Os Emirados foram um dos países árabes que, no ano passado, normalizaram a sua relação diplomática com Israel. Por seu lado, o Qatar é dos principais fornecedores de ajuda financeira ao território palestiniano da Faixa de Gaza (controlado pelo grupo islamita Hamas).
  5. APOIO A ISLAMITAS. Como revela a sua posição em relação à questão palestiniana, o Qatar não tem pejo em apoiar grupos islamitas — como o Hamas e, sobretudo, a Irmandade Muçulmana —, enquanto os Emirados se opõem terminantemente e os reprimem internamente.

PSG e City encontram-se na Champions num momento em que ecoa ainda o fracasso da Superliga Europeia, projeto que mereceu dos dois clubes posições contrárias: o City foi um dos fundadores e o PSG recusou participar.

“Para o PSG teve muito mais que ver com o papel mais amplo do sotf power, não tanto o dinheiro. O mesmo pode ser dito sobre o Man City e os seus proprietários”, diz Roberts. “Julgo que a diferença crucial se prende com a pressão de outras equipas inglesas sobre o Man City no sentido de aderir (por comparação à ausência de pressão em França), e com a relação muito próxima entre o PSG e a UEFA, a nível pessoal e institucional.”

Falhanços no desporto e na política

Para a história, o PSG (e o Qatar) ficou bem na fotografia, enquanto o Manchester City (e os Emirados) saiu rotulado como um dos “12 sujos”. “Para os Emirados, [o insucesso da Superliga Europeia] foi outro malogro depois de o seu bloqueio ao Qatar ter falhado por completo. Nenhuma das 13 exigências apresentadas ao Qatar em junho de 2017 foi cumprida, incluindo a exigência ridícula de fechar a Al Jazeera, cadeia noticiosa que estabeleceu novos padrões críticos para reportagens no Médio Oriente”, comenta ao Expresso Danyel Reiche, investigador na área da Política e Desporto, que lidera um projeto de investigação sobre o Campeonato do Mundo de 2022, na Universidade de Georgetown do Qatar.

“O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, foi muito esperto em não aderir à Superliga, proposta que ignorou o sentimento de uma vasta maioria de adeptos europeus, que rejeitam a americanização dos desportos europeus e a eliminação da meritocracia, com ligas fechadas sem promoções e despromoções. Creio que o PSG, e também os grandes clubes alemães, serão recompensados pela sua resistência à Superliga, ganhando o apoio de adeptos em todo o mundo. Isso é especialmente bom para o PSG, que era, até agora, sobretudo associado ao sucesso a partir de combustíveis fósseis.”

Para o PSG, a vitória neste embate significará a repetição da época passada, quando atingiu a final de Lisboa, que perdeu para o Bayern de Munique. Já para o City a chegada às meias-finais é feito inédito no palmarés do clube, numa altura em que a sua popularidade já teve melhores dias.

“Muito foi dito sobre os donos do Liverpool, que ignoraram o desejo dos adeptos. Mas para mim o desenvolvimento mais interessante foi o do Manchester City”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor de Desporto e Teoria Social na Universidade de Loughborough (Inglaterra). “No passado, muitos adeptos de outros clubes consideravam o City a sua segunda equipa, porque não era o Manchester United, era o verdadeiro clube de Manchester (o United tem sede em Salford). O City não teve muito êxito em grande parte da sua história e, no entanto, tinha adeptos locais leais. Questiono-me que pensarão os adeptos mais antigos sobre aquilo que o clube se tornou.”

A perspetiva de ganharem por fim a Liga dos Campeões talvez os leve a serem contidos em relação à liderança do clube. Para tal, o City terá de ultrapassar o PSG. Talvez nenhum outro duelo personifique atualmente o poder do dinheiro no futebol europeu.

(IMAGEM PMNEWS NIGERIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

As causas e as contradições políticas de Diego Armando Maradona

Além de um futebolista talentoso, Diego Armando Maradona foi uma personalidade política. Foi íntimo de líderes socialistas revolucionários, tomou partido por causas e tornou-se porta-voz dos mais desfavorecidos. “A trajetória de Maradona representa a encarnação de um mito popular da cultura argentina, ‘a saga do pibe de ouro’”, diz ao Expresso um antropólogo brasileiro, que ajuda a desvendar o carisma do futebolista

É consensual que Diego Maradona foi uma lenda do futebol mundial, mas o impacto da sua personalidade não se esgotou nos relvados. Fora dos estádios, o argentino abraçou causas políticas, tornou-se voz dos mais desfavorecidos e assumiu-se como ponta de lança da esquerda revolucionária latinoamericana.

Tornou-se próximo de líderes como o cubano Fidel Castro, os venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro e o boliviano Evo Morales, e adotou o seu discurso anti-imperialista. “Todas essas figuras expressam de modo coerente a atitude de ‘rebeldia contra os poderosos’ que sempre marcou a trajetória de Maradona”, comenta ao Expresso o antropólogo brasileiro Édison Gastaldo, que tem vários livros publicados na área do futebol.

“As tatuagens que fez representando Che Guevara [no braço direito] e Fidel Castro [‘o mais sábio de todos’, segundo Maradona, na sua perna esquerda, também a mais sábia] ajudam a compor esta representação mediática, vinculando-o ao atrevimento de, representando um pequeno país, desafiar as grandes potências em nome de suas crenças”, prossegue o especialista.

Com Fidel, Maradona tinha uma relação especial. Considerava-o “um segundo pai”. Ambos morreriam num 25 de novembro, separados por quatro anos. Para trás ficaram quase 30 anos de amizade improvável entre um político culto e um futebolista exagerado.

Maradona mostra a Fidel Castro a tatuagem do cubano na sua perna, durante um encontro a 29 de outubro de 2001, no Palácio da Revolução, em Havana REUTERS

Diego e Fidel conheceram-se em 1987, um ano após o futebolista liderar a Argentina na conquista do Mundial do México. A amizade criou raízes e, em 2000, três anos depois de Maradona ter arrumado as chuteiras, Fidel acolheu-o em Cuba para que se reabilitasse da dependência do álcool e da cocaína.

O argentino viveu quatro anos em Havana e, quando regressou a Buenos Aires, em 2005, experimentou a televisão, apresentando o programa semanal “La Noche del 10”, o seu número nos relvados. Fidel Castro foi um dos seus convidados.

A convivência com o ditador cubano determinou a aproximação de Maradona a outros líderes revolucionários e reforçou o seu sentimento anti-americano, que o argentino expressou de múltiplas formas. A 19 de agosto de 2007, foi convidado de Hugo Chávez no programa televisivo semanal “Aló Presidente”. “Acredito em Chávez, sou chavista. Tudo o que Fidel faz, tudo o que Chávez faz por mim é o melhor [que alguém pode fazer]”, disse. “Odeio tudo o que vem dos Estados Unidos. Odeio com todas as minhas forças.”

A 4 de novembro de 2005, Maradona surge na companhia de Hugo Chávez, com uma t-shirt onde chama “criminoso de guerra” a George W. Bush. Participavam ambos num protesto no estádio Mar del Plata, contra a realização da Cimeira das Américas, na mesma cidade argentina AFP / GETTY IMAGES

A profunda admiração do argentino por dirigentes socialistas e revolucionários tem raízes nas suas origens humildes. Diego Armando Maradona nasceu a 30 de outubro de 1960 e cresceu num barraco sem eletricidade nem água canalizada, no bairro Villa Fiorito, nos subúrbios de Buenos Aires. Era o quinto de oito lhos (e o primeiro rapaz) de Don Diego, operário, e Doña Tota, empregada doméstica. A dez dias de completar 16 anos, estreou-se na Primera División, pela equipa dos Argentinos Juniors, deixando definitivamente a escola para trás.

“Como jogador profissional desde a infância, Maradona teve poucas oportunidades de escolarização formal ou de formação política tradicional. A sua ‘escola’ foi a ‘escola da vida’”, a rma Édison Gastaldo. “Como diz o antropólogo argentino Eduardo Archetti [no livro ‘Masculinidades. Fútbol, tango y polo en la Argentina’ (2003)], a trajetória de Maradona representa a encarnação de um mito popular da cultura argentina, ‘a saga do pibe de ouro’”, uma das suas muitas alcunhas.

O truque da gambeta

“Pibe é gíria argentina para ‘garoto, ‘menino’, mas não um qualquer. O pibe é um menino pobre, que mora na periferia, anda descalço nas ruas e joga futebol num potrero [campo de terra], com uma bola feita de trapos cobertos por um pé de meia. No chão enlameado do potrero, o pibe não acredita em jogo coletivo. No jogo dos meninos, quem tem a posse da pelota é imediatamente acossado por todos os lados. Para livrar-se dos adversários, o pibe usa a gambeta, o drible, o jogo de corpo, a picardia”, continua o professor do Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

“Esta associação que Maradona construiu desde a infância com o mito do pibe gambetero (e que sempre reforçou em atitudes e declarações públicas) explica, em boa medida, as muitas inconsistências e contradições no seu posicionamento político”, conclui Gastaldo. “Um pibe age por impulso, diz o que lhe vem à cabeça, não se importa com as consequências. Coerência, se a há, é que o pibe sempre disse o que estava a pensar.”

“La casa de D10S”, onde Diego Maradona cresceu, em Villa Fiorito, um bairro de lata nos arredores de Buenos Aires TOMAS CUESTA / GETTY IMAGES

Uma das contradições políticas do astro argentino prende-se com a forma como sempre abraçou a causa palestiniana e, ao mesmo tempo, ignorou a pretensão do povo sarauí à autodeterminação. “Apoio a Palestina sem qualquer receio”, disse Maradona, que chegou a descrever-se como “fã número um do povo palestiniano”.

Em 2018, esse apoio ficou registado em vídeo, durante um breve encontro com o Presidente da Autoridade Palestiniana, em Moscovo: “Sou palestiniano de coração”, disse Maradona, ao abraçar Mahmud Abbas.

Solidário com a Palestina ocupada, Maradona trocou de campo quando, em 2015, foi convidado por Marrocos para participar num Jogo pela Paz, realizado em El Aiune, capital do Sara Ocupado. Foi durante uma visita do rei marroquino Mohammed VI ao território, antiga colónia espanhola anexada em 1975.

“O comportamento político de Maradona era errático e volúvel, a sua coerência era mais afetiva do que programática”, justifica o académico brasileiro. “Ao longo de décadas de vida pública, passou de apoiante do [ex-Presidente argentino] Carlos Menem e do seu projeto neoliberal a amigo íntimo de Fidel Castro e Hugo Chávez.”

Desobedecer para ajudar quem precisa

Maradona sempre demonstrou empatia pelos necessitados e disponibilidade para colaborar com iniciativas solidárias. A 17 de março de 2008, desafiou uma ordem da FIFA e disputou um amigável, em La Paz, contra uma equipa capitaneada pelo Presidente da Bolívia, Evo Morales. O jogo visava angariar alimentos para vítimas de inundações provocadas pelo fenómeno climático La Niña.

A FIFA proibia jogos mais de 2750 metros acima do nível do mar e a capital boliviana fica a mais de 3500. “Demonstramos à FIFA que se pode correr em La Paz”, sentenciou Maradona.

Noutra partida reveladora do seu espírito irrequieto, citada no livro do antropólogo argentino Pablo Alabarces “Fútbol y patria. El fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina” (2002), realizada a 15 de abril de 1992, Maradona disponibilizou-se a participar num jogo de homenagem a um futebolista falecido, que visava arrecadar fundos para a viúva.

O craque argentino estava suspenso dos relvados por 15 meses, apanhado nas malhas do doping. Por essa razão a FIFA ameaçava punir outros jogadores que participassem na iniciativa. O jogo foi avante com uma boa dose de criatividade e rebeldia: as equipas compuseram-se de 12 jogadores, a partida durou 82 minutos e os lançamentos laterais eram feitos com o pé. Não havia, pois, condições para a FIFA considerar a iniciativa um jogo oficial. “Gambetearam a proibição da FIFA”, comenta Édison Gastaldo.

Recém-chegado a Nápoles — onde jogou entre 1984 e 1992 —, Maradona ignorou as indicações do seu novo clube e acedeu a jogar num lamaçal para angariar fundos destinados a pagar a cirurgia de uma criança.

No pavilhão do Sportivo Pereyra de Barracas, em Buenos Aires, onde crianças jogam futebol de salão, Lionel Messi (à esquerda) e Diego Maradona recriam uma versão futebolística da obra de Miguel Ângelo “A Criação de Adão” JUAN MABROMATA / AFP / GETTY IMAGES

“No imaginário popular da Argentina, em Nápoles e em muitos outros lugares, el pibe de oro mostra-se como Robin dos Bosques ou Peter Pan, heróis jovens e rebeldes, que usam inteligência e malícia para enfrentar a força bruta dos poderosos”, explica o antropólogo brasileiro.

“Acredito que houve um ‘encaixe’ da figura pública de Maradona com um poderoso complexo cultural pré-existente. Isso fez com que muito do que ele disse ou fez fosse ‘lido’ ou ‘interpretado’ à luz desse complexo. Por isso, muitos torcedores na Argentina invariavelmente ‘compreendiam’ e ‘desculpavam’ as inúmeras recaídas de Maradona ou as suas punições por indisciplina. Afinal, os pibes são assim: intensos e inconsequentes. Mas, ao mesmo tempo, leais aos seus amigos e familiares. Pode-se acusar um pibe de muitas coisas, mas não de ingratidão.”

Porta-voz dos desfavorecidos

Quando, já retirado dos relvados, Maradona lançou a sua autobiogra a, intitulou-a “Yo soy el Diego de la gente” (2000). Autoproclamado campeão dos pobres, foi genuinamente uma voz dos desfavorecidos. Pode-se quase traçar um paralelo com Eva Perón, a primeira-dama (1946-52) de origens humildes que se proclamava defensora dos descamisados. Separadas por mais de meio século, as suas mortes geraram filas de fiéis à porta da Casa Rosada, residência oficial do Presidente argentino.

“Um ponto de relativa coerência na sua imagem pública consiste em apresentar-se como porta-voz dos desvalidos, daqueles que na Argentina são pejorativamente chamados ‘cabecitas negras’. Muitas vezes, Maradona fez uso dos fartos microfones e câmaras que o procuravam para falar em nome ‘de la gente’, do povo comum. Esse ‘tomar partido’ em público pelos pobres é uma opção bastante coerente com o mito que Maradona construiu para si.”

A 1 de setembro de 2014, Maradona foi recebido no Vaticano pelo conterrâneo Jorge Mario Bergoglio, ex-arcebispo de Buenos Aires. No mesmo dia, participou num “Jogo Interreligioso pela Paz”, organizado pelo Papa Francisco PIER MARCO TACCA / GETTY IMAGES

Ao longo da sua carreira, houve um jogo em particular que ajudou a consolidar o mito do “pibe de ouro”: o famoso Argentina-Inglaterra, nos quartos de final do Mundial do México, disputado a 22 de junho de 1986. Em quatro minutos, Maradona marcou dois dos golos mais famosos na história do futebol — a “Mão de Deus” e o “Golo do Século” — num desafio encarado como vingança dos argentinos sobre os ingleses.

Quatro anos antes, os dois países confrontaram-se durante dois meses numa guerra sangrenta pela posse do arquipélago das Malvinas (Falklands para os ingleses). Morreram mais de 600 argentinos e 250 britânicos e, no fim, as ilhas permaneceram sob a Coroa inglesa.

A 17 de agosto de 2015, durante uma visita a Tunes, para lmar um anúncio publicitário, Maradona pediu desculpa ao árbitro do jogo, o tunisino Ali bin Nasser, pela irregularidade do golo marcado com a mão. Porém, nunca pediu desculpa aos ingleses. Ainda em abril deste ano reivindicou a soberania argentina sobre as Malvinas, homenageando os veteranos numa publicação no Instagram: “A honra e a glória é tudo para vocês, rapazes. Ainda temos orgulho. As Malvinas são argentinas”.

O aperto de mão antes do início do jogo, entre Maradona e Peter Shilton, o guarda-redes inglês a quem o argentino iria marcar dois golos, no Mundial de 1986 DAVID CANNON / GETTY IMAGES

“Todos sabiam que aquele jogo era a chance de ‘desforra’ dos argentinos pela humilhante derrota militar nas Malvinas. Uma ‘desforra’ simbólica, mas uma humilhação verdadeira”, diz Édison Gastaldo.

Segundo o antropólogo Pablo Alabarces, Maradona declarou que, na ocasião, estavam todos instruídos para dizer que era apenas um jogo de futebol e que a partida nada tinha que ver com a guerra. No balneário, o sentimento que existia era de procura da vingança dos soldados argentinos (outros pibes como eles…) abatidos numa guerra estúpida.

No documentário “Maradona by Kusturica” (2008), o futebolista não se furtou a descrever o seu golo batoteiro: “Foi como roubar a carteira a um inglês”. Já no segundo, em que atravessou endiabrado mais de metade do campo até meter a bola na baliza, parecia estar a fintar meio exército britânico.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

(FOTO PRINCIPAL Socialista, terceiro-mundista e sobretudo fidelista, Maradona foi, além de um futebolista talentoso, uma personalidade política MARCELO ENDELLI / GETTY IMAGES)

No Líbano, o sectarismo político também entra nos campos de futebol

Num país pequeno e tão fragmentado em termos religiosos como é o Líbano, o futebol não escapa à rivalidade entre fações. Nos últimos anos, o clube dominante é apoiado pela comunidade xiita e pelo Hezbollah

Futebol de rua em Beirute por entre a destruição causada pelas explosões no porto, que devastaram parte da capital do Líbano, a 4 de agosto AFP / GETTY IMAGES

Num dos raros textos que dedicou ao desporto, George Orwell não foi brando nas palavras. “O desporto à séria não tem nada que ver com jogo limpo. Está ligado ao ódio, ao ciúme, à arrogância, ao desrespeito por todas as regras e ao prazer sádico de testemunhar a violência: por outras palavras, é a guerra sem o tiroteio”, escreveu o escritor inglês num artigo intitulado “O espírito desportivo”.

Publicado no semanário “Tribune” em dezembro de 1945, o texto foi escrito na sequência de uma digressão a Inglaterra da equipa de futebol do Dínamo de Moscovo. A Segunda Guerra Mundial terminara, havia feridas abertas e amizades por consolidar. Dentro das quatro linhas, o périplo saldou-se por ‘um passeio’ dos soviéticos, que saíram invictos da ‘pátria do futebol’. “Se uma visita como esta teve algum efeito nas relações anglo-soviéticas, só pode ter sido torná-las um pouco piores do que já eram”, concluiu Orwell.

Num artigo de 2011, Danyel Reiche, estudioso do desporto em contexto político, recuperou a tese de Orwell para descrever o panorama desportivo libanês. “Os clubes desportivos profissionais desempenham um papel único no sistema sectário libanês. Não há outro sector com tanta competição, não só dentro das fações, como acontece na política, mas também entre fações. Não há outro campo com tanto confronto direto entre os diferentes grupos sectários e políticos como o desporto. No Líbano, o desporto pode ser descrito usando uma citação de George Orwell: é ‘a guerra sem o tiroteio’.”

A tese central deste professor da Universidade Americana de Beirute é a de que no Líbano o desporto é usado para dividir (ainda mais) a sociedade. O Expresso perguntou-lhe se no atual contexto de crise generalizada, em que o sectarismo é apontado como estando na origem da fragilidade do país, o desporto — e o futebol em particular — pode contribuir para a unidade nacional.

“A situação no Líbano é dramática: a crise económica, a covid-19 e a recente explosão [no porto de Beirute, a 4 de agosto]. Acredito fortemente que o futebol (e também o basquetebol, que é muito popular no país) tem potencial para contribuir para a união. Se o Líbano se qualificar pela primeira vez para um Campeonato do Mundo, em 2022, isso pode dar alguma esperança às pessoas nestes tempos difíceis”, diz o coautor do livro “Sport, Politics, and Society in the Middle East”, de 2019.

Orgulho na seleção

“A seleção nacional é fonte de orgulho para os libaneses e até um sinal do potencial para uma comunidade libanesa unida”, acrescenta ao Expresso Yehuda Blanga, professor na Universidade Bar-Ilan (Israel).

Em novembro passado, em plena Revolução de Outubro, como os libaneses chamam aos grandes protestos antigovernamentais só interrompidos pela pandemia, a seleção libanesa recebeu a Coreia do Sul, de Paulo Bento (dia 14), e a Coreia do Norte (19) em jogos à porta fechada por receio de contágio dos protestos às bancadas do Estádio Camille Chamoun.

Ao estilo de uma trégua, a Praça dos Mártires, principal centro das manifestações, fez uma pausa nas reivindicações para assistir às partidas.

Expectativa e sofrimento na Praça dos Mártires, em Beirute, durante o jogo de futebol entre as seleções do Líbano e da Coreia do Norte, a 19 de novembro ANDRES MARTINEZ CASARES / REUTERS

Com 18 fações religiosas oficialmente reconhecidas, o Líbano é o protótipo de um Estado confessional, onde o poder político é distribuído de forma proporcional pelas várias comunidades consoante o seu peso demográfico. “A maioria dos clubes de futebol está associada a diferentes grupos sectários. Há clubes sunitas, xiitas, drusos e cristãos. Poucos são neutros, só encontrei dois”, diz Yehuda Blanga.

O principal campeonato é disputado por 12 equipas. Todas já sentiram o sabor de ser campeão mas, como em Portugal, há “três grandes” que se destacam. O Ansar, o mais vitorioso (13 campeonatos) e dominador entre o fim da guerra civil e o início do século XXI, é popular entre os sunitas.

O Nejmeh é o clube com mais adeptos, entre sunitas, xiitas, drusos e arménios. Fundado em 1945, foi o primeiro clube não-cristão. Em 2003, foi comprado pela família Hariri (muçulmana sunita) que nos últimos 20 anos já contribuiu com dois primeiros-ministros: Saad, que se demitiu em janeiro na sequência das manifestações, e o seu pai, Rafiq, assassinado em 2005, que dá nome ao estádio do Nejmeh.

Grande rival do Nejmeh, o Ahed é o campeão em título. Preferido dos xiitas, foi fundado pelo movimento islamita Hezbollah no início deste século. É o clube dominador da última década. Em 2019, tornou-se a primeira equipa libanesa a vencer uma competição internacional, a Taça da Confederação Asiática de Futebol.

A ascensão do Ahed tirou do pódio o Homenetmen, fundado por arménios, comunidade que dominou o futebol libanês nas décadas de 1940 a 1960.

Euforia entre jogadores e “staff” da equipa libanesa do Ahed, após a conquista da Taça da Confederação Asiática de Futebol, a 4 de novembro passado, em Kuala Lumpur. O amarelo e verde dos equipamentos é o mesmo da bandeira do Hezbollah MOHD RASFAN / AFP / GETTY IMAGES

Falta de profissionalismo

“O problema não é tanto uma subordinação sectária, como é política. A maioria das equipas está relacionada com partidos políticos por vários motivos”, explica ao Expresso o jornalista desportivo libanês Rawad Mezher. “Uma das razões mais importantes prende-se com a falta de profissionalismo ao nível da gestão desportiva, o que se traduz num problema para garantir orçamentos.”

Num país com sensivelmente o dobro do tamanho do Algarve e cerca de quatro milhões de habitantes (excetuando os refugiados), as receitas provenientes da bilheteira, merchandising, publicidade e direitos televisivos são insuficientes para assegurar o concurso de jogadores talentosos. A isto acresce a instabilidade que, de tempos a tempos, paralisa o país. Entre 2006 e 2010, a presença de adeptos nos estádios foi interdita após episódios de violência sectária entre apoiantes de vários clubes dentro e fora dos estádios.

Este panorama torna os clubes permeáveis a quem está disposto a injetar dinheiro em nome de interesses próprios e na expectativa de total lealdade. Não raras vezes, as cores do clube são as de partidos, nos estádios há grandes fotografias de políticos e os seus nomes são invocados nos cânticos das claques. Nos seus primeiros anos de vida, o patrocinador das camisolas do Ahed era a Al-Manar, televisão por satélite do Hezbollah.

A pandemia de covid-19 não para o futebol de rua, em Beirute, junto ao Estádio Camille Chamoun. E as máscaras não atrapalham GETTY IMAGES

Estas especificidades tornam o mercado libanês pouco atrativo para os investidores estrangeiros. Danyel Reiche recorda que, há uns anos, a Coca-Cola demonstrou interesse em financiar um clube libanês. Para evitar associações sectárias e ser acusada de favoritismo, acabou por patrocinar… três equipas: uma sunita, outra xiita e uma terceira cristã.

A 6 de abril de 1975, quando o Líbano estava prestes a implodir numa guerra civil que duraria 15 anos, a chegada a Beirute de Pelé parou o país e apartou as tensões. “Pelé veio jogar pelo Nejmeh um amigável com uma equipa de estrelas do campeonato libanês. O estádio encheu-se com 40 mil pessoas”, diz Yehuda Blanga.

“Os anos de 1974 e 1975 são considerados os mais importantes do futebol libanês, por dois acontecimentos importantes: a vitória do Nejmah sobre o campeão soviético, o Ararat Yerevan, e a visita da estrela brasileira.” Há mesmo quem defenda que a presença de Pelé no Líbano adiou o início da guerra civil, que começaria uma semana depois.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Quarentena para equídeos, febre aftosa e Zika: o desporto já esteve condicionado antes

Prometia ser um evento histórico, disputado simultaneamente em 12 países, mas por causa do coronavírus o Euro 2020 foi adiado para o próximo ano. Não é a primeira vez que um grande evento desportivo é perturbado por ameaças à saúde pública. Recordemos três exemplos

A ameaça do vírus Zika aos participantes nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, na capa da edição de 8 de agosto de 2016 da revista “The New Yorker”

Jogos Olímpicos de Melbourne (1956)

Os primeiros Jogos Olímpicos realizados no hemisfério sul não o foram na sua totalidade. Na Austrália, estrita legislação em vigor obrigava a que os cavalos que fossem competir nas disciplinas equestres cumprissem um período de quarentena de seis meses. Apesar da pressão internacional, as autoridades mostraram-se renitentes em abrir uma exceção para as Olimpíadas. A solução foi encontrada a milhares de quilómetros de distância. Entre 11 e 17 de junho, cinco meses antes do início dos Jogos em Melbourne, cavaleiros de 29 países disputaram as disciplinas hípicas em… Estocolmo, na Suécia. Portugal enviou sete cavaleiros, uma representação mais numerosa do que aquela que enviaria a Melbourne (cinco velejadores). Pela primeira e única vez, a mesma edição dos Jogos disputou-se em duas cidades, de dois países e dois continentes, em diferentes hemisférios e distintas épocas do ano. Tudo por uma questão de saúde pública.

Campeonato das Seis Nações em râguebi de 2001

À segunda edição deste torneio — o Seis Nações é uma competição anual entre Inglaterra, França, Irlanda, Itália, Escócia e País de Gales —, um surto de febre aftosa contagiou a Grã-Bretanha. Ao contrário do coronavírus, que pode ser mortal para os seres humanos, a febre aftosa é altamente contagiante entre animais. No caso, especialmente na verdejante Irlanda, estavam em perigo os meios de subsistência de populações inteiras.

No calendário do Seis Nações de 2001, os três últimos jogos fora da equipa irlandesa (na Escócia, no País de Gales e em Inglaterra), previstos para março e abril, foram adiados para setembro e outubro, tornando esta edição a mais longa da história da competição, de fevereiro a outubro.

No estádio, o vencedor do torneio foi a Inglaterra, um dos territórios mais afetados pelo surto. Nos campos, mais de seis milhões de cabeças de ovinos e bovinos foram abatidas antes da epidemia ser contida.

Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro (2016)

Quando, menos de um ano antes de arrancarem os Jogos do Rio, começaram a surgir notícias de que, no Brasil, havia um vírus entre a população que estava na origem do nascimento de bebés com malformações, a realização do evento começou a ser questionada.

A menos de três meses da cerimónia de abertura, a Organização Mundial de Saúde (OMS) abordou diretamente a questão e defendeu que “cancelar ou alterar a localização do evento não irá alterar a proliferação internacional do vírus Zika. O Brasil é um de quase 60 países e territórios que reportaram a transmissão do Zika através de mosquitos”.

Estavam previstos viajar até ao Rio 16 mil atletas e meio milhão de visitantes, a quem a OMS sugeriu um conjunto de recomendações — do uso de repelentes à abstinência sexual. No terreno, a organização do evento concentrou-se no tratamento dos lagos de água estagnada nas imediações das instalações olímpicas e em fumigar a cidade.

Apesar destas diligências e do facto dos Jogos acontecerem durante o inverno brasileiro — época em que há menos mosquitos e o risco de contágio é menor —, houve atletas que se recusaram a participar, em especial golfistas e tenistas. No fim, a Cidade Maravilhosa venceu os céticos e os mosquitos.

Artigo publicado no “Tribuna Expresso”, a 18 de março de 2020. Pode ser consultado aqui

Competições milionárias para cadeiras vazias

Jogos à porta fechada, eventos cancelados ou deslocados. O coronavírus deu cabo do calendário desportivo

“The show must go on” — nem que seja à porta fechada e sem público a assistir. É o que vai acontecer este fim de semana em cinco jogos da Serie A, a primeira divisão do campeonato italiano de futebol. Nesse lote está um dos jogos do ano, o Juventus-Inter, entre equipas que têm ombrea­do na liderança, o que já levou a Sky, detentora dos direitos da prova, a admitir ceder a transmissão da partida em canal aberto.

A Itália é o país europeu mais afetado pelo Covid-19 — em número de infetados e de mortos — e, desde há uma semana, um decreto governamental proíbe aglomerações de pessoas, em especial no norte do país. Na quinta-feira, em Milão, o Inter-Ludogorets (da Bulgária) para a Liga Europa realizou-se sem espectadores no Giuseppe Meazza. Nesse mesmo dia, foi noticiado o primeiro teste positivo entre futebolistas do Calcio — um atleta do Pianese, da Serie C, que foi internado num hospital de Siena.

Dentro de três meses e meio, a 12 de junho, é precisamente em Itália, no Olímpico de Roma, que será dado o pontapé de saída do Campeonato da Europa. A UEFA quis celebrar em grande o 60º aniversário do torneio e distribuiu-o por 12 países, da Espanha (Bilbau) ao Azerbaijão (Baku). Na fase de grupos, a Seleção portuguesa andará entre a Hungria (Budapeste) e a Alemanha (Munique).

No atual contexto de propagação do novo coronavírus, este modelo inédito pode transformar-se numa dor de cabeça insuportável. Há duas semanas, num balanço à venda de bilhetes, a UEFA disse ter recebido 28,3 milhões de pedidos, o dobro da procura do Euro 2016. Só o Alemanha-França, do grupo de Portugal, motivou o interesse de 710 mil pessoas, quase dez vezes a capacidade da Allianz Arena de Munique, que o vai receber.

Megaeventos no horizonte

Este “interesse sem precedentes” à volta do Euro, como reconheceu a própria UEFA, dá uma ideia do vai e vem de gente que se projeta por toda a Europa. Esta semana, a organização abordou pela primeira vez a possibilidade de o evento ser adiado se o surto de Covid-19 não for controlado. “Estamos na fase da espera. Estamos a monitorizar país a país. O futebol deve seguir as ordens de cada país”, disse Michele Uva, membro do Comité Executivo da UEFA, em declarações à televisão italiana RAI. “A via desportiva só será fechada se a situação piorar.”

Com a final do Euro prevista para 12 de julho em Londres, os amantes dos grandes eventos desportivos terão apenas duas semanas de pausa até retomarem as emoções fortes. Para 24 de julho está prevista a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos no Japão, país que presentemente é o quarto com mais casos de Covid-19 confirmados, a seguir a China, Coreia do Sul e Itália. Da mesma forma que, há quatro anos, o vírus Zika ameaçou “adiar” ou “cancelar” os Jogos do Rio de Janeiro, este ano é um outro microrganismo a forçar a discussão.

Se, em 2016, o vírus Zika ameaçou adiar ou cancelar os jogos do Rio, agora há outro microrganismo a forçar a discussão

No início desta semana, um dirigente do Comité Olímpico Internacional (COI) pôs o dedo na ferida afirmando que existe uma janela de três meses, até ao fim de maio, finda a qual há que tomar uma decisão realista em relação ao evento. “Por essa altura, as pessoas vão ter de perguntar: ‘Estará controlado o suficiente para nos sentirmos confiantes e irmos até Tóquio, ou não?’”, disse Dick Pound, antigo campeão canadiano de natação, que não tem dúvidas na hora de optar entre cancelar ou adiar um evento que demorou anos a preparar. “Não se adia algo com o tamanho e a escala dos Jogos Olímpicos” — em Tóquio são esperados 11 mil atletas, de mais de 200 nações, e oito milhões de espectadores. “Há tanta coisa em causa, tantos países e diferentes calendários, competitivos, televisivos. Não se pode apenas dizer: ‘Adia-se para outubro’.”

Seria a segunda vez que o Japão veria os ‘seus’ Jogos cancelados, já que a edição de 1940, anulada por causa da II Guerra Mundial, também lhe estava atribuída. Mas no país ninguém quer pensar nessa possibilidade. Em causa está um evento avaliado em 25 mil milhões de dólares (€23 mil milhões) com tabelas para os principais patrocinadores na ordem dos 100 milhões de dólares (€91 milhões).

Quem quer receber os Jogos?

Quinta-feira, quando ainda ecoavam as palavras do seu colega no COI, o presidente da organização, Thomas Bach, procurou afastar fantasmas num encontro com jornalistas japoneses. Afirmou que o COI está “totalmente comprometido com o sucesso dos Jogos que irão começar a 24 de julho” e, questionado sobre alternativas, foi seco: “Não vou deitar combustível às chamas da especulação.”

Cancelar os Jogos pode ter, a prazo, um efeito dramático. “Anteriormente, várias cidades retiraram as suas candidaturas perante receios em relação aos custos com a realização de megaeventos, por exemplo com a segurança”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor na Universidade de Loughborough (Reino Unido). “Com o Covid-19 em mente, é possível que algumas cidades e países fiquem mais relutantes em apresentar candidatura. Mas há uma visão alternativa que diz que uma crise deste tipo nunca afetou os Jogos no passado, por isso porquê pensar que pode tornar-se uma ocorrência regular?”

MODALIDADES AFETADAS

FUTEBOL — Campeonatos parados na China, Japão e Coreia do Sul. Jogos à porta fechada no Irão

ATLETISMO — Previsto para março, em Nanjing (China), o Campeonato do Mundo em Pista Coberta foi adiado para 2021

CICLISMO — Com meta final este domingo, o Tour dos Emirados Árabes Unidos acabou mais cedo após dois casos suspeitos no hotel das equipas

FÓRMULA 1 — O Grande Prémio de Xangai, marcado para 19 de abril, foi adiado

RÂGUEBI — Algumas partidas do Torneio das Seis Nações, nomeadamente as que opõem Itália e Irlanda, previstas para 6 e 8 de março, foram adiadas

TÉNIS DE MESA — Na Coreia do Sul, o Campeonato do Mundo por equipas, agendado para março, foi adiado três meses

BOXE — O torneio de qualificação para os Jogos referente à Ásia e à Oceânia foi transferido para Amã (Jordânia). Estava previsto para Wuhan (China), onde primeiro surgiu o Covid-19

Texto escrito com Rossend Domènech, correspondente em Roma.

(FOTO Estádio de Wembley, em Londres NICHOLAS GEMINI / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui e aqui