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Jogos políticos

Em 112 anos de história, nunca os Jogos se realizaram à margem da política. Sobreviveram a dois conflitos mundiais, a décadas de boicotes colectivos, a manifestações anti-racistas e a actos terroristas

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A escassos dias do início dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, Diogo Freitas do Amaral, então presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, socorreu-se de uma tradição da Antiga Grécia para apelar às tréguas olímpicas” (“ekecheria”). “Todos os conflitos paravam durante o período de tréguas, que começava sete dias antes da abertura dos Jogos e terminava no sétimo dia a seguir ao encerramento, de modo a que os atletas, artistas, as suas famílias e os peregrinos pudessem viajar em segurança para as Olimpíadas e depois regressar aos seus países”, afirmou durante uma intervenção em Nova Iorque.

Realizada exactamente 100 anos após o nascimento da Era Moderna da competição em Atenas, esta quarta edição dos Jogos em solo norte-americano haveria de ficar marcada pelo terrorismo. Medidas de segurança antes nunca vistas nos recintos dos Jogos não obstaram a que uma bomba explodisse no Parque Olímpico do Centenário, durante um concerto rock, e provocasse dois mortos e 111 feridos. Vinte e quatro anos depois, o “fantasma de Munique” tomava de assalto a cidade da Coca-Cola.

Ao longo do século XX, duas guerras mundiais obrigaram ao cancelamento dos Jogos, em 1916, 1940 e 1944. Mas a existência de quezílias políticas no palco da competição é quase tão antiga quanto o evento em si. Numa das primeiras edições, em Londres-1908, o verniz estalou quando a delegação norte-americana se apercebeu de que, entre as bandeiras que decoravam o estádio olímpico para a cerimónia de abertura, não figurava a “Stars and Stripes”.

Eis senão quando, durante a parada dos atletas, o desportista encarregue de transportar a bandeira norte-americana se recusou a baixá-la diante da tribuna do Rei Eduardo VIII. “Esta bandeira não se inclinará nunca diante de um Rei à face da Terra”, afirmou então o discóbolo Martin Sheridan.

Com o tempo, as tomadas de posição política ganhariam uma expressão mais colectiva, levada ao extremo durante a Guerra Fria, altura em que os Jogos se transformaram num confronto ideológico entre dois blocos e as prestações dos atletas eram encaradas como manifestações de superioridade de um modelo de vida sobre o outro.

Um dos episódios mais tensos durante a Guerra Fria foi em Munique-1972, quando a URSS venceu os EUA por um ponto, na final de “basket”

Helsínquia-1952 marcou a entrada da União Soviética no convívio olímpico, ainda que à maneira soviética… Por não quererem partilhar a aldeia olímpica com os “atletas capitalistas”, os soviéticos ficaram numa residência estudantil. Nestes Jogos, os soviéticos revelaram-se concorrentes à altura dos norte-americanos, pois somente no último dia de competições os EUA garantiram a liderança no quadro final de medalhas. Em boa verdade, o domínio norte-americano não aguentaria mais uma edição dos Jogos: em Melbourne-1956, a URSS destronaria os EUA, conquistando 98 medalhas, contra 74.

Desde então, não mais esta rivalidade bipolar se ausentou dos Jogos, com um dos episódios mais tensos a acontecer em Munique-1972, durante a final de basquetebol. Desde que a modalidade fora introduzida no programa olímpico que os EUA não tinham rival: em oito Olimpíadas, não tinham perdido um único jogo. Em Munique, com um cesto marcado em cima do apito final, a URSS venceu por 51-50. Os EUA não compareceram na cerimónia de entrega de medalhas.

A década de 80 haveria de ditar um pingue-pongue político — sob a forma de boicotes —, entre as duas superpotências e respectivas áreas de influência: os EUA faltaram a Moscovo, a URSS não compareceu em Los Angeles. A Guerra Fria apropriava-se, assim, de uma dinâmica de boicotes colectivos que tinha começado em Montreal-1976. Então, 23 países, sobretudo africanos, retiraram-se em protesto contra a participação da Nova Zelândia. Uma equipa de rugby neo-zelandesa efectuara uma digressão à África do Sul, a pátria do “apartheid”.

A acalmia só chegaria com Seul-1988, quando, pela primeira vez desde Montreal, não se registou qualquer boicote organizado, mas apenas de um pequeno grupo de países, entre os quais Cuba, Coreia do Norte e, pela quarta vez consecutiva — um recorde olímpico —, a Albânia. EUA e URSS voltaram a competir lado a lado e, no medalheiro final, como que contrariando o que estava na iminência de acontecer — a queda do Muro de Berlim e a desintegração da URSS —, os soviéticos assumiram-se como o maior colosso desportivo do mundo: ganharam 132 medalhas, contra 102 da antiga República Democrática Alemã e 94 dos EUA.

Depois da bonança de Seul, Barcelona-1992 acolheu uma espécie de Jogos da concórdia, com a integração de Cuba e da Coreia do Norte, 12 anos após a última participação, e também da África do Sul, afastada havia 32 anos. Não há um único boicote: 169 países participaram sem exibir incompatibilidades que colocassem os Jogos em causa.

Chegados a Pequim, paira no ar a ameaça de um boicote motivado pela questão do Tibete. Na contagem decrescente para os XXIX Jogos, o espírito olímpico sofreu já um revés histórico quando, à passagem por Londres, a tocha foi apagada por manifestantes pró-Tibete. Trata-se de vicissitudes próprias de um evento que, apesar do lema “O importante não é vencer, mas participar”, é mais político do que parece: nos Jogos participam mais países do que os que têm assento na ONU e entidades como a Formosa ou a Palestina competem em iguais circunstâncias com os demais.

BERLIM-1936
O negro que humilhou o Führer
Em nome da superioridade da raça ariana e da demonstração ao mundo da Alemanha enquanto potência em ascensão, Adolf Hitler ordenara o investimento de milhões em infra-estruturas de qualidade e a limpeza de todo e qualquer vestígio de propaganda anti-judaica das ruas, para que os Jogos de Berlim fossem verdadeiramente inesquecíveis. Mas um velocista negro norte-americano deu-lhe um golpe no sonho. Ao conquistar quatro medalhas de ouro (100 m, 200 m, salto em comprimento e estafeta 4×100 m), Jesse Owens — que um ano antes tinha batido cinco recordes mundiais num único dia — deitou por terra a teoria nazi da superioridade ariana. Vergado à humilhação. o Führer abandonou a tribuna e delegou a tarefa da condecoração do atleta. Já o público alemão ovacionou Jesse Owens estrondosamente.

MELBOURNE-1956
Confrontos subaquáticos
Pela primeira vez realizados no hemisfério Sul, os Jogos australianos sofreram o desgaste de dois conflitos acabados de deflagrar: por um lado, a ocupação britânica e francesa do Canal do Suez, que originou uma debandada árabe dos Jogos. Por outro, a invasão soviética da Hungria, que ocasionou um episódio memorável, em dia de semifinais de pólo aquático, uma delas disputada entre a URSS e a Hungria. Dentro da água, e sem que das bancadas fosse perceptível, os atletas iam trocando cotoveladas, pontapés e joelhadas. A dada altura, tudo fica claro quando o atleta húngaro Ervin Zador sai da piscina sangrando abundantemente do rosto. Tradicionalmente superior, a Hungria venceu a partida, sem surpresa, por 4-0. Mas cerca de 40% da delegação húngara recusou regressar ao seu país, ocupado, e desertou.

CIDADE DO MÉXICO-1968
Protestos anti-racistas no pódio
Organizados num contexto de grande agitação política, os Jogos motivaram manifestações de protesto em virtude dos seus elevados custos. Na Praça dos Três Poderes, os estudantes protestavam contra a marginalização da cidade universitária, por falta de verbas. A repressão policial fez-se sentir e provocou 80 mortos — no que ficaria conhecido como a Matança de Tlatelolco. Mas a imagem que, nesses Jogos, entraria para a história seria captada durante a cerimónia de consagração dos 200 metros masculinos: os velocistas negros Tommie Smith e John Carlos sobem descalços para o pódio e, assim que soa o hino dos Estados Unidos, baixam a cabeça e levantam o punho calçado com uma luva negra — a saudação “Black Power (Poder Negro), em protesto contra a segregação racial. Foram, de seguida, expulsos da equipa.

MUNIQUE-1972
Chacina no dormitório israelita
Os alemães eram os grandes interessados em apagar as más impressões deixadas por Berlim-1936, mas não conseguiram impedir o maior ataque terrorista da história dos Jogos. Às 4h30 de 5 de Setembro, um comando da organização Setembro Negro composto por oito palestinianos infiltrou-se na aldeia olímpica e surpreendeu os atletas israelitas de luta greco-romana. A operação de resgate dos reféns, no aeroporto militar de Furstenfeldbruck, acabou num banho de sangue, com 11 israelitas, cinco palestinianos e dois alemães mortos. Só então os Jogos, que decorriam paralelamente às negociações, foram suspensos, para a realização de uma cerimónia fúnebre, no estádio olímpico, participada por 80 mil pessoas. Com sete medalhas de ouro na natação, a estrela dos Jogos viria a ser um judeu norte-americano, Mark Spitz.

MOSCOVO-1980
Boicote à primeira edição socialista
Em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão, em 1979, um grupo de países ocidentais, liderado pelos Estados Unidos, boicota os primeiros Jogos organizados por um país socialista. O Presidente Jimmy Carter queria arrastar com os EUA a maioria do bloco Ocidental, mas viu os seus planos furados: se países como a Alemanha, o Canadá e o Japão faltaram à chamada em Moscovo — mais de 60 países aderiram ao boicote —, já aliados como o Reino Unido e a França marcaram presença no Estádio Lenine. O Governo português alinhou com os EUA, mas o Comité Olímpico luso decidiu participar, com 11 portugueses em seis modalidades. Num gesto de resposta ao boicote, na cerimónia de encerramento os soviéticos içaram ao lado da sua bandeira não a dos EUA (organizador dos Jogos seguintes) mas a de Los Angeles.

LOS ANGELES-1984
Lucros soberbos na edição capitalista
A retaliação do Bloco de Leste ao boicote promovido pelos EUA em Moscovo era mais do que esperada. Alegando não ter garantias de segurança para os seus atletas e denunciando uma comercialização descarada do espírito olímpico — estes Jogos foram os primeiros totalmente financiados pelos privados e a gerar lucros substanciais —, a URSS de Leonid Brejnev pagou na mesma moeda a atitude norte-americana e não compareceu. Mas a dimensão do boicote socialista não foi comparável ao que tinha acontecido quatro anos antes: em Moscovo onde tinham estado 81 países, em Los Angeles estiveram 140. Membro fundador do Pacto de Varsóvia, a Roménia deslocou-se aos EUA e foi o segundo país mais medalhado (53). Outro regresso foi o da China, que não competia há décadas por causa da participação da Formosa.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 10 de maio de 2008. Pode ser consultado aqui