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Estados Unidos-Israel, uma aliança à prova de bala

Os dois países têm uma relação baseada em valores, interesses e na culpa pelo Holocausto

Quando o dia 29 de novembro de 1947 amanheceu e começou a contagem decrescente para a votação, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, do plano de partilha da Palestina num Estado judeu e noutro árabe, os judeus não tinham a certeza de que o escrutínio estivesse ganho. Para que o sonho se tornasse realidade, dois terços dos 57 membros da organização — dez deles países muçulmanos — teriam de dizer “sim”.

Nos dias prévios à votação, parte da estratégia da Agência Judaica — uma espécie de Governo oficioso dos judeus da Palestina — passou por identificar países indecisos ou contrários à sua pretensão e exercer a pressão possível, de forma direta ou via terceiros. Um dos alvos foi a Libéria, dos poucos Estados africanos independentes, que era hostil à divisão da Palestina.

A Libéria era quase propriedade da Firestone, a fabricante de pneus criada em 1900, em Nashville, Tennessee, que ali possuía 400 mil hectares de plantações de árvores de borracha. Pressionado pela Casa Branca, o diretor Harvey Firestone fez saber ao Presidente da Libéria, William Tubman, que um voto contra o Estado judeu faria perigar futuros investimentos. A Libéria trocou o voto e contribuiu para a maioria de 33 países que viabilizou o nascimento de Israel.

Compensar sobreviventes

O Presidente dos Estados Unidos era Harry Truman, um dos líderes aliados que participaram na Conferência de Potsdam (Alemanha) sobre o pós-guerra, dois anos antes. “Vi alguns lugares onde os judeus foram massacrados pelos nazis. Seis milhões de judeus foram mortos: homens, mulheres e crianças. É minha esperança que tenham uma casa onde possam viver”, afirmou.

Truman era a voz do sentimento de culpa partilhado por muitos americanos relativamente ao Holocausto e à inação internacional que permitiu todo aquele horror. Uma forma de compensar os sobreviventes era dar-lhes um Estado na terra com que sonhavam. Quando, a 14 de maio de 1948, os judeus declararam a independência do Estado de Israel, os Estados Unidos reconheceram-na no próprio dia.

Passados mais de 75 anos, a solidez da relação entre Israel e os Estados Unidos ficou provada na visita-relâmpago que Joe Biden realizou a Israel, a 18 de outubro, 11 dias após o bárbaro ataque do Hamas. Biden e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, estão longe de se admirarem. Quando foi eleito, o americano demorou a telefonar ao israelita, no que foi entendido como uma manifestação de distanciamento. Mas em contexto de crise — como o 7 de outubro —, é indiferente quem está no poder em Washington ou Telavive para a aliança se impor.

“O apoio, em 1947, ao estabelecimento de Israel, pelos Estados Unidos e também pela União Soviética e pela maioria dos membros da ONU, teve que ver com o Holocausto, embora essa não tenha sido a única razão”, diz ao Expresso Natan Sachs, diretor do Centro para Política do Médio Oriente do Brookings Institution. “Esta é uma relação de longa data, que tem que ver com um sentimento de valores partilhados em torno da democracia e de ameaças do terrorismo, sobretudo depois do 11 de Setembro. Há também uma afinidade generalizada com a ideia de Israel como país de refugiados que ali constroem uma vida nova. A narrativa em si tem grande influência no imaginário americano.”

Segundo a Agência Judaica, em 2023 havia 15,7 milhões de judeus em todo o mundo. A esmagadora maioria vivia em Israel (7,2 milhões) e nos Estados Unidos (6,3 milhões). As sondagens dizem que cerca de 75% dos judeus americanos votam no Partido Democrata e que a maioria defende dois Estados.

A máscara de Netanyahu

Domingo passado, dois dias após conversar com Biden, ao telefone, e de o ter ouvido defender “uma solução de dois Estados com a segurança de Israel garantida”, Netanyahu deixou cair a máscara. “Não vou comprometer o controlo total da segurança israelita sobre todo o território a oeste da Jordânia [Cisjordânia e Faixa de Gaza incluídas]. E isto contraria um Estado palestiniano”, escreveu na rede social X.

“Não creio que a Administração Biden tenha sido equívoca quanto ao seu apoio a esse tipo de horizonte político [dois Estados]. A questão é mais como lá chegar. Neste momento, as condições entre israelitas e palestinianos são tais que esta é uma possibilidade muito distante”, acrescenta Sachs.

À semelhança do eleitorado, “a maioria dos líderes democratas desde o Presidente Clinton disse apoiar os dois Estados”, diz ao Expresso Joel Beinin, professor emérito de História do Médio Oriente, na Universidade de Stanford (Califórnia). “Exceto Clinton, que fez muito pouco e demasiado tarde, nenhum fez por que isso acontecesse. Biden também não. Numa eleição acirrada como a deste ano, não arriscará perder um voto por causa disso”. A seu ver, “enquanto Netanyahu for primeiro-ministro, desafiará Biden nesta questão, e Biden terá medo de parecer fraco”.

A proteção do veto

Beinin diz que Israel é um parceiro especial dos Estados Unidos também pelo seu papel “na manutenção da hegemonia imperial americana, não apenas no Médio Oriente, mas a nível global”. Ainda que, nos últimos anos, a Casa Branca tenha escolhido o Pacífico como prioridade estratégica, Israel não é percecionado em Washington como um fardo. “Enquanto os Estados Unidos puderem contar com Israel no Médio Oriente, será mais fácil mudar para o Pacífico.”

Ao longo dos anos, a influência dos Estados Unidos sobre Israel tem-se feito de múltiplas formas. Nos anos 90, exerceu-se, em especial, através de ajudas financeiras, sob a forma de garantias de empréstimos. Hoje, diz Sachs, já não há tanto dinheiro envolvido. “Os Estados Unidos fornecem uma grande quantidade de ajuda militar, que é gasta nos Estados Unidos, na indústria das armas, que depois vão para Israel.”

Há ainda a cobertura que a diplomacia americana garante aos interesses israelitas na ONU. “Muitas vezes, vetaram resoluções desfavoráveis a Israel no Conselho de Segurança.” Foi o que aconteceu a 8 de dezembro, relativamente a uma resolução que apelava ao “cessar-fogo humanitário imediato” em Gaza.

A 23 de dezembro de 2016, Barack Obama rompeu com essa prática de décadas e, numa decisão que enfureceu Israel, ordenou a abstenção americana numa resolução que defendia que os colonatos israelitas na Cisjordânia são uma violação do direito internacional.

Sachs não gosta do adjetivo “incondicional” para rotular a relação privilegiada. “Há um apoio muito forte, em parte porque Israel é muito popular entre o povo americano. Se olharmos para as sondagens, mesmo agora, quando há mais críticas a Israel da esquerda e da geração mais jovem, Israel ainda é esmagadoramente popular nos Estados Unidos.”

(IMAGEM Bandeiras dos Estados Unidos e de Israel DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Vladimir Putin deu um passo rumo à reabilitação internacional indo ao Médio Oriente

O Presidente da Rússia fez uma visita-relâmpago aos Emirados Árabes Unidos e à Arábia Saudita com três objetivos em carteira: mostrar que viaja sem receio da justiça internacional, pedir cortes na produção de petróleo para robustecer a economia russa e argumentar que pode ser um mediador no Médio Oriente. “Se a Rússia conseguir entrar na mediação em Gaza, poderá dizer que só não consegue resolver o outro conflito porque a Ucrânia não quer negociar”, analisa um professor de Relações Internacionais

Desde a invasão russa da Ucrânia, Vladimir Putin só por duas vezes se tinha aventurado a colocar o pé fora de países que fizeram parte da União Soviética. A 19 de julho de 2022, o Presidente russo deslocou-se a Teerão, onde foi recebido pelo Líder Supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei. Os dois países partilhavam a circunstância de serem alvo de um isolamento decretado por países ocidentais e de serem os Estados mais castigados com sanções, em todo o mundo.

Mais recentemente, a 17 e 18 de outubro, Putin viajou até à China, para um encontro com o “querido amigo” Xi Jinping — com quem já se encontrou pessoalmente cerca de 40 vezes desde 2013, ano da subida ao poder do chinês. O último encontro entre ambos em solo chinês acontecera em fevereiro de 2022, no contexto dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, a menos de três semanas da invasão russa da Ucrânia. Então, os dois afirmaram “uma relação sem limites”.

A visita de Vladimir Putin, esta semana, aos Emirados Árabes Unidos e à Arábia Saudita — a primeira ao Médio Oriente durante a guerra na Ucrânia — é um passo mais ambicioso no seu processo de reabilitação internacional.

“O objetivo maior desta visita é normalizar a diplomacia do Kremlin”, explica ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “O Presidente volta a fazer visitas, quando quer e para onde quer, volta a ter agenda pública e mostra que o mandado de captura do Tribunal Penal Internacional [TPI] tem alcance limitado.”

Putin tem a justiça internacional à perna por causa da guerra na Ucrânia e da transferência ilegal de crianças ucranianas para território russo. Nenhum dos quatro países que visitou fora do antigo espaço soviético ratificou o Tratado de Roma, fundador do TPI, pelo que não correu riscos de ver o mandado de captura internacional ser executado, como receou que pudesse acontecer na África do Sul, em agosto passado. Nessa altura, abdicou de marcar presença na cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e falou por videoconferência.

Tiago André Lopes identifica também uma dimensão de caráter económico na viagem de Putin ao Médio Oriente. Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos são países produtores de petróleo, sendo o primeiro o maior exportador mundial. Dentro da OPEP+ (que inclui os membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo e aliados, sendo a Rússia um deles), vários países já sinalizaram a vontade de cortar na produção de petróleo em 2024.

“Isto é obviamente do interesse da Rússia”, comenta o docente. “Artificialmente, faz subir os preços do crude nos mercados internacionais, o que reforça a economia russa.”

PUTIN NO KREMLIN

  • 1º mandato: 2000-2004
  • 2º mandato: 2004-2008
  • 3º mandato: 2012-2018
  • 4º mandato: 2018-2024

Esta quinta-feira, o Senado da Federação Russa agendou as próximas eleições presidenciais para 17 de março do próximo ano. Putin ainda não disse se será candidato. Poderá faze-lo na próxima semana, aproveitando a tradicional conferência de imprensa anual, onde responde a perguntas de jornalistas e do público.

Se for a votos, “o grande trunfo que vai ter é o facto de a economia russa ter aguentado o embate das sanções”, diz Tiago André Lopes. “De acordo com o Banco Mundial, no próximo ano a Rússia vai crescer a um ritmo três vezes mais rápido que o bloco europeu.”

Um terceiro interesse de Putin nesta deslocação ao Médio Oriente, que tem tanto de surpreendente como de irónico, passa por “tentar posicionar a Rússia como eventual mediador para a questão do Médio Oriente”, diz o professor da Universidade Portucalense. A ambição decorre da constatação da “incapacidade do Ocidente em desbloquear o impasse — porque alinhou com um dos contendores — e visa mostrar que a Rússia é um produtor de paz e não de guerra, o que é peculiar, mas é a posição neste momento defendida por Moscovo”.

No universo dos possíveis mediadores, o Catar apresentou serviço ao tornar possível o recente acordo entre Israel e o Hamas, que levou à libertação de 105 reféns israelitas, à entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza e à saída de 240 mulheres e menores palestinianos das prisões israelitas. Mas o colapso da trégua humanitária e a retoma da guerra obrigou o emirado a dar um passo atrás.

Com mediação da diplomacia russa, a disputa em torno do enclave de Nagorno-Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão, que dura desde 1989, encaminha-se para um armistício. “Se a Rússia conseguir fechar esse conflito e entrar na mediação em Gaza, poderá dizer que só não consegue resolver o outro conflito porque a Ucrânia não quer negociar ou porque os ‘patrões da Ucrânia’, expressão muitas vezes usada no Kremlin, não permitem a negociação.”

A Rússia é um país de portas abertas aos dirigentes do Hamas, como confirma a visita de uma delegação do grupo islamita a Moscovo, há menos de duas semanas, ao que se seguiu a libertação de dois reféns com cidadania russa num gesto de “apreciação” pela posição da Rússia. Igualmente, tem relação histórica com Israel, por ter sido, em tempos, porto de abrigo para muitos judeus.

Líderes israelitas como David Ben-Gurion ou Golda Meir nasceram no Império Russo — o primeiro em Plonsk (atual Polónia) e a segunda em Kiev (Ucrânia). “Na guerra da Ucrânia, Israel, formalmente, nunca condenou a Rússia. Pôs-se numa posição mais neutral. É verdade que apoiou a Ucrânia com algum equipamento militar, mas nada do equipamento de última geração que a Ucrânia pediu”, recorda Tiago André Lopes.

“A Rússia tem a capacidade de conseguir falar com os dois interlocutores, de os sentar à mesa e de os reconhecer. Além disso, é um dos cinco Estados com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e foi o segundo a receber a delegação ministerial conjunta árabe-islâmica, depois da China. A Rússia tem tentado mostrar interesse em desbloquear este impasse.”

A retórica de Moscovo alimenta-se também das posições contraditórias do Ocidente perante as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, nomeadamente em relação à Bielorrússia, que tem sido penalizada em várias frentes pela sua proximidade à Rússia, enquanto Israel continua a atuar impunemente.

“O conflito em Gaza demonstra alguns paradoxos do Ocidente”, comenta Tiago André Lopes. “O facto de não exigir a Israel o cumprimento do direito humanitário, apesar de a ONU fazer avisos sistematicamente. Tanto os Estados Unidos como alguns países europeus, em particular a Alemanha, têm uma espécie de simpatia contínua por Israel, e isso é um problema.”

Esta quinta-feira, decorreu em Pequim a 24ª cimeira União Europeia-China, com a presença de Charles Michel (presidente do Conselho Europeu), Ursula von der Leyen (presidente da comissão Europeia) e Josep Borrell, o Alto Representante para a Política Externa, que se reuniram separadamente com o Presidente Xi Jinping e o primeiro-ministro Li Qiang.

Na agenda de trabalhos da cimeira, figuraram conversações sobre “a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia” e sobre o “Médio Oriente”. “A informação europeia continua a ser, muitas vezes, infeliz. Na reunião de hoje, a delegação europeia nem sequer consegue classificar o Médio Oriente como conflito”, realça o docente. “Este tipo de dinâmicas é importantíssimo para os russos. Leva-os a dizer: ‘Estão a ver? Para estes senhores, há conflitos de primeira e conflitos de segunda.”

(FOTO Em Abu Dabi, Vladimir Putin foi recebido pelo Sheikh Mohamed bin Zayed Al Nahyan, presidente dos Emirados Árabes Unidos SERGEI SAVOSTYANOV / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de dezembro de 2023. Pode ser consultado aqui

Panda, o simpático embaixador da China

Os pandas são um barómetro das relações de Pequim. Empresta-os por amizade e reclama-os quando se zanga

Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, apresenta dois pandas nascidos em Toronto (2016) D.R.

“Ya Ya” regressou à China ao estilo de uma celebridade. Durante meses, milhões de chineses acompanharam, com angústia, a odisseia desta panda fêmea de 23 anos (equivalente a 80 num ser humano), que viveu 20 no jardim zoológico de Memphis, nos Estados Unidos. Desde notícias que lhe atribuíam saúde débil até à morte por ataque cardíaco do seu companheiro “Le Le”, em fevereiro passado, “Ya Ya” gerou grande comoção na China, onde se pediu que retornasse a casa. Quando o avião que a transportou tocou solo chinês, no fim de abril, a hashtag “‘Ya Ya’ aterrou em Xangai” explodiu na rede social Weibo (o Twitter chinês): foi partilhada 430 milhões de vezes.

“Ya Ya” foi para a América em 2003, quando o mundo vivia na sombra do 11 de Setembro, mas a relação entre Washington e Pequim atravessava um bom momento, confirmada pelo apoio dos Estados Unidos à adesão da China à Organização Mundial do Comércio, concretizada em dezembro de 2001. “Ya Ya” era a chancela dessa amizade.

“O panda sinaliza que o Estado chinês está de boas relações com outro Estado e valoriza-o. É uma espécie de marcador de livro”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “A diplomacia do panda é uma forma de soft power (projeção de poder por meios pacíficos) um pouco diferente, porque é um presente e uma obrigação. E é reversível, já que alguns pandas voltam para trás.”

Como um diplomata real

Foi o que sucedeu a “Ya Ya”, que deixou os Estados Unidos num contexto oposto ao da sua chegada, com uma guerra comercial, a questão de Taiwan, a disputa em torno do 5G e até o conflito na Ucrânia a encher de obstáculos a via do diálogo entre chineses e americanos. Ainda que de forma simbólica, a panda tornou-se rosto dessa degradação.

Ao lado do líder chinês Xi Jinping, o russo Vladimir Putin visita pandas, num zoo em Moscovo(2019) GETTY IMAGES

“A retirada de um panda é uma espécie de cartão amarelo aos regimes dos países que os recebem. Antes de fazer o que normalmente os Estados fazem — chamar o seu embaixador de volta e baixar o grau de importância da sua missão diplomática —, a China usa os pandas como primeira linha de aviso”, continua Tiago Lopes. “Quando era chanceler, Angela Merkel comparou os pandas a diplomatas. Se um país corta relações com outro, os diplomatas vão-se embora. Com os pandas é o mesmo”, acrescenta Paulo Duarte, especialista em Relações Internacionais das Universidades do Minho e Lusófona.

Os pandas gigantes são nativos da China. O seu habitat natural é nas montanhas de Sichuan, no sudoeste do país. São, por isso, um tesouro nacional que a China só partilha com quem lhe é especial.

A alemã Angela Merkel visita pandas no zoo de Berlim (2017) AXEL SCHMIDT / REUTERS

Na era moderna, a utilização do panda como instrumento de política externa começou a ser posta em prática em 1941 quando, a braços com a invasão japonesa, a República da China agradeceu o apoio dos Estados Unidos e ofereceu dois pandas ao zoo do Bronx (Nova Iorque). A estratégia ganhou visibilidade em 1972 quando da histórica visita à China de Richard Nixon, que desbravou caminho até ao restabelecimento da relação diplomática bilateral, em 1979. O Presidente americano presenteou Mao Tsé-Tung com dois bois-almiscarados e, em troca, o Zoo Nacional do Smithsonian, em Washington, recebeu dois pandas.

Mais longe da extinção

“O panda marca distintivamente a China. Trocar cavalos ou cães é muito comum. No mundo clássico, mesmo a troca de prisioneiros de alto nível ou de príncipes e princesas entre famílias nobres para garantir a paz era normal, mas não distintiva”, realça Tiago Lopes.

Se, antes, a China oferecia pandas, desde 1984 empresta-os, criticada por agir contra a Convenção de 1975 sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção. O empréstimo é enquadrado por contratos de longo prazo, que obrigam quem os acolhe ao pagamento de uma verba anual — o contrato padrão é de um milhão de dólares por par (€935 mil), ao ano. “A China pode, em qualquer momento, retirar os pandas e tem até missões para vigiar o seu estado”, diz Paulo Duarte.

Em 2010, a China fez regressar um panda que estava em Washington, depois de Barack Obama ter aberto as portas da Casa Branca ao Dalai Lama, o líder tibetano. No ano seguinte, não cumpriu a promessa de enviar pandas para um zoo norueguês, descontente com a atribuição do Nobel da Paz ao dissidente Liu Xiaobo.

Grande parte das receitas dos alugueres são investidas na conservação da espécie. A política tem dado frutos: em 2016, a União Internacional para a Conservação da Natureza, a autoridade global em matéria de espécies ameaçadas, passou os pandas de espécie “ameaçada” para “vulnerável”. Hoje, estima-se que haja quase 1900 exemplares na natureza e 600 em zoos e centros de reprodução.

Estes peluches de carne e osso são campeões de popularidade e muito contribuem para suavizar a imagem autoritária da China. Para Xi Jinping, são intermediários perfeitos para consolidar amizades.

DIÁLOGOS INFORMAIS

DIPLOMACIA DAS MEIAS Nasceu da irreverência do atual primeiro-ministro do Canadá, que não se inibe em usar meias coloridas em eventos públicos. Numa parada gay em Toronto, Justin Trudeau vestiu meias arco-íris, com a inscrição “Eid Mubarak” (alusiva a uma festa islâmica) e feitas numa empresa da cidade. Nesses preparos, homenageou duas comunidades e promoveu a indústria local. A moda fez escola. Em maio, o primeiro-ministro britânico compareceu num encontro com o homólogo japonês de meias vermelhas com o nome de um clube de basebol japonês. Disse Rishi Sunak a Fumio Kishida: “Espero que a sua equipa de basebol tenha tido uma época melhor do que a minha equipa de futebol.” Conversa para criar pontes.

DIPLOMACIA DO BASQUETEBOL Antes de Donald Trump ser Presidente e promover cimeiras até então impensáveis com Kim Jong-un, o excêntrico basquetebolista americano Dennis Rodman lançou-se numa cruzada para aproximar Estados Unidos e Coreia do Norte. Sem cobertura oficial, liderou delegações de antigas glórias da NBA àquele país totalitário, que realizaram “jogos de boa-vontade” com atletas norte-coreanos. A iniciativa não deu frutos políticos, mas Rodman provou que algum diálogo é possível.

DIPLOMACIA DO CRÍQUETE Índia e Paquistão já se enfrentaram em três guerras desde a partição da Índia britânica e, graças à ferida aberta chamada Caxemira, as duas potências nucleares estão permanentemente envoltos em tensão. Em várias ocasiões, o críquete — desporto mais popular nos dois países — tem sido usado para desanuviar, com jogos entre as duas seleções e dirigentes políticos dos dois lados na tribuna. Enquanto a paz não chega, o críquete cria essa ilusão.

DIPLOMACIA DO BASEBOL Barack Obama foi dos Presidentes americanos que mais tentaram aproximar-se de Cuba. Se há imagens que o provam, são as que o mostram no Estádio Latino-Americano de Havana, ao lado do homólogo Raúl Castro, a ver uma partida de basebol entre a seleção cubana e uma equipa da Florida. A conversa relaxada entre ambos foi puro ato político. Já o basebol, modalidade mais apreciada nos dois países, afirmou semelhanças entre ambos.

DIPLOMACIA DO PINGUE-PONGUE Em 1971, antes da histórica visita de Richard Nixon à China, Pequim convidou jogadores americanos de ténis de mesa para realizarem uma digressão no país. O grupo foi fotografado junto à Grande Muralha e foi capa da revista “Time”, com o título “China: um jogo totalmente novo”. Pouco tempo depois, EUA e China fizeram as pazes.

A AGENDA ESCONDIDA DA DIPLOMACIA DO IOGA

O dia 14 de dezembro de 2014 entrou para a História como a data em que a Índia levou a sua paixão pelo ioga ao palco da política internacional. Na Assembleia-Geral da ONU, apresentou uma resolução aprovada por 175 Estados-membros, a instituir o Dia Internacional do Ioga a cada 21 de junho. Ao fazê-lo, a Índia oficializou o ioga como instrumento de afirmação internacional. “Quando o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, subiu ao poder (em maio de 2014), tentou usar o ioga globalmente para afirmar o poder crescente da Índia, tal como a China faz com os pandas”, diz ao Expresso o indiano Amit Singh, que antes de ser investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra foi professor de ioga durante anos. “Na ONU, quase nenhum país se opôs, porque o ioga existe em todo o lado e faz bem a toda a gente. O problema é a agenda escondida do Governo de Modi, a promoção do hindutva”, nacionalismo hindu, que tenta elevar o hinduísmo ao estatuto de religião superior da Índia. “E, infelizmente, o ioga faz parte disso.” Singh tem formação na área dos direitos humanos e do multiculturalismo. “Direitos humanos e ioga são basicamente o mesmo.” Com essa sensibilidade, o indiano desconstrói a centralidade do ioga no projeto de Modi. “Ao promover o ioga no estrangeiro, tenta esconder o que se passa na Índia ao nível da violação dos direitos humanos de muçulmanos, da minoria cristã e de laicos”, acusa. “Acho que o ioga deve ser para toda a gente, mas não deve ser imposto. Modi tenta impô-lo nas mesquitas e escolas muçulmanas.” Depois, “vai ao estrangeiro e fala do exemplo de Gandhi”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui ou aqui

Norte pressiona, mas Sul não isola a Rússia

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

Sem sinais de trégua, a guerra da Ucrânia e a nova ordem mundial que está a originar têm levado a realinhamentos geopolíticos, qual movimento de placas tectónicas em contexto sísmico. A 10 de março, o anúncio de um acordo de normalização diplomática entre o Irão e a Arábia Saudita, mediado pela China, revelou quão dispensáveis são hoje os Estados Unidos no Médio Oriente. Na semana passada, a cimeira de Moscovo entre Xi Jinping e Vladimir Putin confirmou que, à parte os rótulos aplicados a essa relação, a China é cada vez menos neutra no conflito e a Rússia está longe do isolamento.

Um fórum onde é visível a resistência de grande parte do mundo à pressão ocidental é o grupo das 20 economias mais desenvolvidas do mundo. Há um mês, uma reunião do G20 em Bangalore (Índia) terminou sem acordo quanto a condenar a Rússia: os países ocidentais defendiam uma posição clara e grande parte dos restantes defendeu que o G20 não é um fórum político, mas de discussão de problemas económicos.

Sem serem antiocidentais, muitos países de África, Ásia e América Latina — o chamado Sul Global — têm posição híbrida relativamente ao conflito: criticam a invasão, mas mantêm o diálogo com Moscovo, nem que seja por razões práticas, como descontos na energia que importam.

A 23 de fevereiro, 52 Estados-membros da ONU não alinharam com a maioria de 141 que aprovou uma resolução na Assembleia-Geral a exigir a “retirada” russa da Ucrânia e o “fim das hostilidades”. A Namíbia absteve-se. “O nosso foco está na resolução do problema, não em atribuir culpas”, justificaria a primeira-ministra Saara Kuugongelwa-Amadhila, para quem os gastos com armamento “poderiam ser mais bem usados a promover o desenvolvimento na Ucrânia, em África, na Ásia, na própria Europa, onde muitas pessoas passam por dificuldades”.

Está marcada para 26 a 29 de julho, em São Petersburgo, a segunda cimeira Rússia-África. A primeira realizou-se em 2019, em Sochi, com a participação dos 54 Estados africanos, 43 ao nível de chefes de Estado. Então, em declarações ao jornal “The Moscow Times”, Albert Kofi Owusu, diretor da agência noticiosa do Gana, partilhou a sua experiência de colaboração com a Rússia e o Ocidente. “Com a ajuda ocidental, há todo um conjunto de condições. Dizem: se querem este dinheiro, têm de fazer determinada coisa em relação aos LGBTQ, por exemplo, mesmo que vá contra os valores do país. China e Rússia dizem: ‘Aqui está o dinheiro’.”

AS RAZÕES DE ÁFRICA

1 Memória e sentimento de gratidão relativamente ao apoio dado pela União Soviética, ao longo de décadas, aos movimentos de libertação nacional. São exemplos o ANC (África do Sul) e o MPLA (Angola).

2 Dependência africana relativamente à Rússia no que respeita à importação de cereais e, cada vez mais, a recursos energéticos.​

3 A Rússia é o maior fornecedor de armas a África. Há também presença crescente de organizações privadas de segurança, como o Grupo Wagner (de origem russa), em apoio de “guardas pretorianas” presidenciais.

4 Ausência de África nos lugares permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A Rússia defende a reforma do órgão para acomodar países de África, Ásia e América Latina.

AMÉRICA LATINA NÃO QUER SER ‘O QUINTAL’ DOS ESTADOS UNIDOS

IDEOLOGIA
Bolivarianos Cuba, Nicarágua e Venezuela estão ao lado do Kremlin desde a primeira hora. Identificam-se com o modelo autoritário de Putin e reproduzem a narrativa de que a Rússia foi provocada pelo Ocidente/NATO.

ECONOMIA
Negociantes Brasil, México e Argentina, as maiores economias regionais, não percecionam a Rússia como ameaça. No Brasil, o comércio bilateral é significativo — a Rússia é o maior fornecedor de fertilizantes. No Palácio do Planalto, a política relativa à Rússia não mudou após Lula suceder a Bolsonaro.

GEOPOLÍTICA
Aliados Muitos países têm relações diplomáticas históricas com a Rússia, ao ponto de a verem como parceiro geopolítico crucial. Exemplo: na pandemia, a vacina russa Sputnik V foi a primeira a ser usada na Argentina, Bolívia, Venezuela, Paraguai e Nicarágua.

VIZINHANÇA
Anti-imperialismo 
Coloquialmente conhecida como “pátio traseiro dos Estados Unidos”, a América Latina olha para norte com histórico receio em relação ao que dali possa vir. Neste contexto, Moscovo é vista como velha antagonista de Washington.

ORIENTE CONTA COM A RÚSSIA

Organização do Tratado de Segurança Coletiva
Aliança militar criada em 2002, é composta por seis ex-repúblicas soviéticas: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, além da Rússia. Procura replicar o modelo da NATO.

Organização de Cooperação de Xangai
Fundada em 2001, tem carácter político, económico e militar. Engloba oito países da Eurásia: China, Índia, Rússia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Usbequistão. Irão já iniciou o processo de adesão.

União Económica Eurasiática
Organização de integração económica regional, prevê livre circulação de “bens, serviços, capitais e trabalho”. Os membros são: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia. Entrou em vigor em 2015.

Comunidade de Estados Independentes
Organização de cooperação, resultou do desmembramento da União Soviética. Das 15 antigas repúblicas soviéticas, só quatro não são membros: os bálticos (Estónia, Letónia, Lituânia) e a Geórgia.

ALERTAS

“Temos de reequilibrar a nossa ordem global, torná-la mais inclusiva. Estou muito impressionado com o quanto estamos a perder a confiança do Sul Global”
Emmanuel Macron, Presidente de França

“Acho que a Rússia cometeu um erro crasso ao invadir o território de outro país. Mas quando um não quer, dois não brigam. Precisamos encontrar a paz”
Lula da Silva, Presidente do Brasil

“A situação no mundo muda de forma dinâmica. Estão a formar-se os contornos de um mundo multipolar”
Vladimir Putin, Presidente da Federação Russa

EDUCAÇÃO

27 mil
estudantes africanos frequentam universidades e instituições científicas na Rússia, segundo estatísticas de Moscovo de 2021. Em 2008 eram 9 mil. A formação de elites africanas foi um dos pilares da cooperação entre África e a União Soviética: estima-se que cerca de 60 mil africanos tenham estudado na URSS entre 1949 e 1991

HÁ MAIS DE UMA DÚZIA DE PAÍSES QUE QUEREM ADERIR AO GRUPO DOS BRICS

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (conhecidos pelo acrónimo BRICS) representam um quarto da superfície terrestre e 40% da população mundial. Estas economias emergentes começaram a realizar cimeiras anuais em 2009 (a África do Sul só a partir de 2010), vivia o mundo uma crise financeira. Os BRICS são considerados o principal bloco rival do G7, que agrupa as economias mais avançadas. “O interesse nesta associação global é bastante alto e continua a crescer. Não só Argélia, Argentina e Irão, na verdade, são mais de uma dúzia de países”, disse recentemente o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. A cimeira deste ano, de 22 a 24 de agosto, em Durban, terá interesse acrescido: a África do Sul é membro do Tribunal Penal Internacional, que emitiu um mandado de detenção para Vladimir Putin.

TRÊS PERGUNTAS A

Pedro Ponte e Sousa
Professor na Universidade Portucalense

Qual a estratégia da Rússia?
A Rússia tem procurado expandir as suas relações económicas, políticas e militares com o conjunto do mundo não Ocidental ou do Sul Global. Já vinha a fazê-lo antes da invasão, mas intensificou essa estratégia para contrariar os custos da guerra, bem como as sanções económicas do Ocidente.

Como reagiu o Sul Global?
Não adotou nem deverá adotar sanções económicas à Rússia. Nem é certo que aqueles do Sul Global que são membros do Tribunal Penal Internacional se comprometam a deter Vladimir Putin. O fundamento assenta numa separação entre a condenação política, que é evidente, e o uso de ferramentas económicas para transformar o comportamento político do outro ou, como parece pretender o Ocidente, para ‘punir’ a Rússia. O Sul Global salienta que as sanções económicas — mesmo as das últimas décadas (smart sanctions), dirigidas aos atores responsáveis pela guerra — continuam a ter impacto desproporcional sobre os mais pobres e dão um free pass aos líderes políticos.

As sanções funcionam?
Sim e não. Os impactos macroeconómicos são inegáveis. Contudo, o objetivo das sanções económicas não deveria ser ‘punir’ o outro, mas ajudar a transformar o seu comportamento político. E não só as sanções não estão a funcionar com a Rússia como a investigação científica demonstra que raramente funcionam. São uma ótima forma de quem as impõe mostrar que faz alguma coisa, e dar uma imagem de força, mas não há especiais indícios de eficácia. A solução tem sido aumentar a escala e âmbito das sanções e apontar para o longo prazo. Mas tem servido para cortar mais as relações com a Rússia, atirá-la para os braços da China e diversificar as suas relações, bem como aprofundar a mentalidade de Guerra Fria II (Ocidente versus Rússia e China) entre os decisores políticos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Um quer mais negócios, o outro mais segurança. Putin e Erdogan já não se reuniam… há 17 dias

Os presidentes da Turquia e da Rússia reuniram-se, esta sexta-feira, pela segunda vez em menos de um mês. Recep Tayyip Erdogan viajou até à cidade russa de Sochi, acompanhado por seis dos seus principais ministros. Ao recebê-lo, Vladimir Putin vaticinou que o encontro “abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas”

Encontraram-se há menos de um mês, numa cimeira em Teerão, mas os assuntos — e em especial os problemas — que partilham justificaram novo encontro. Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan, presidentes da Rússia e da Turquia, respetivamente, encontraram-se esta sexta-feira na cidade russa de Sochi, ribeirinha ao Mar Negro.

“Espero que hoje possamos assinar um memorando relevante sobre o desenvolvimento dos nossos laços comerciais e económicos”, afirmou o chefe de Estado russo, enquanto os dois se sentavam para conversar. “Acredito que [este encontro] abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas.”

Cercada por amplas sanções internacionais, a Rússia tem na Turquia (um gigante com mais de 85 milhões de habitantes) um parceiro económico precioso neste contexto de aperto. Já para Ancara, a Rússia é fundamental para poder defender o seu interesse no vespeiro da vizinha Síria. “Acredito que a nossa forma de lidar com os acontecimentos na Síria nesta altura também trará alívio à região”, disse Erdogan.

A mediação que deu estatuto a Erdogan

Erdogan chegou a Sochi com o seu estatuto internacional reforçado após mediar com êxito o acordo que permitiu a retoma, esta semana, das exportações de cereais ucranianos e de alimentos e fertilizantes russos. Esta sexta-feira, zarparam dos portos do Mar Negro três navios ucranianos carregados.

O acordo esboçou um primeiro entendimento entre Moscovo e Kiev, desde o início da guerra, e fez o mundo respirar de alívio perante a iminência anunciada de crise alimentar à escala global.

A cimeira de Sochi terá servido para Erdogan apresentar a Putin a contrapartida pelos seus esforços de mediação: a “luz verde” de Moscovo para mais uma investida militar sobre as forças curdas, no norte da Síria, do outro lado da fronteira.

Na Síria, a Rússia foi o garante da sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad e hoje controla grande parte do espaço aéreo do norte do país. A minoria curda síria, que se concentra nessa zona, partilha do sonho de um Estado próprio, o que implica a cedência de território por parte de vários países. A Turquia seria amputada da maior fatia.

“Estamos determinados em erradicar os grupos maus que visam a nossa segurança nacional desde a Síria”, afirmou Erdogan na cimeira de Teerão de 19 de julho, onde Rússia e Irão se manifestaram contrários a uma ofensiva turca.

Controladas pelas forças curdas, designadas por Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa), as cidades sírias de Tal Rifaat e de Manbij são potenciais alvos. As YPG têm ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo separatista que tem, desde há décadas, uma rebelião armada contra o poder central turco e é considerado uma organização terrorista por Ancara e pela União Europeia.

O homem-forte turco não foi só

Paralelamente ao encontro cara a cara entre Putin e Erdogan, a cimeira de Sochi passou por reuniões sectoriais entre as duas delegações. O presidente turco levou consigo uma delegação de peso que incluia os ministros dos Negócios Estrangeiros, Defesa, Energia, Finanças, Comércio e Agricultura, e ainda o chefe dos serviços secretos.

Este aparato governativo indicia forte investimento numa nova relação bilateral. Mas, atendendo à atual conjuntura internacional, dois assuntos revelaram-se particularmente urgentes.

ENERGIA

No ano passado, a Rússia forneceu à Turquia 45% das suas necessidades de gás. Ancara quer minimizar a dependência das importações e está a desenvolver uma central nuclear a ser construída por uma empresa russa, no sul do país. “É muito importante que o calendário acordado funcione e que [a central de] Akkuyu seja concluída no prazo previsto”, disse Erdogan, antes da partir para Sochi. A conclusão do projeto está prevista para 2025.

ARMAMENTO

Apesar de ter criticado a invasão russa da Ucrânia e de ter fornecido armas a Kiev, a Turquia desafinou da esmagadora maioria dos países ocidentais e não aplicou sanções à Rússia. Sochi revela que a relação tem potencial para crescer. Na guerra da Ucrânia, os drones Bayraktar TB2, de fabrico turco, revelaram-se uma arma poderosa para os ucranianos retardarem o avanço das forças russas.

Notícias recentes, que deram conta do interesse russo em adquirir drones de fabrico iraniano, expuseram a urgência que este assunto tem para Moscovo. Na cimeira de Teerão, Putin terá sugerido a Erdogan a instalação de uma fábrica de drones na Rússia. O impacto da proposta não ficará circunscrito aos dois países, já que a Turquia é membro da NATO.

(FOTO Recep Tayyip Erdogan e Vladimir Putin, em Sochi TWITTER DA PRESIDÊNCIA DA TURQUIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui