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Putin, Raisi e Erdogan: três “amigos” em busca de uma ordem alternativa

Os presidentes da Rússia, Irão e Turquia reuniram-se em Teerão numa cimeira com múltiplos interesses. O turco Erdogan procurou apoios para a sua agenda síria, o iraniano Raisi garantias de alívio económico e o russo Putin quis mostrar ao Ocidente que tem amigos. O mundo assistiu, na expectativa de um anúncio do fim do bloqueio russo à exportação de cereais ucranianos, que (ainda) não surgiu

Ao 146.º dia de guerra na Ucrânia, Vladimir Putin saiu da sua zona de conforto e, pela primeira vez desde que ordenou a invasão, viajou para fora do território da antiga União Soviética. O Presidente russo já saíra do país, a 29 de junho, para participar na 6.ª Cimeira do Cáspio, em Asgabate, no Turquemenistão. Esta terça-feira, esteve em Teerão para encontros que envolveram também os Presidentes do Irão e da Turquia, respetivamente Ebrahim Raisi e Recep Tayyip Erdogan.

Esta cimeira Irão-Rússia-Turquia realizou-se dois dias depois de o Presidente dos Estados Unidos terminar a sua primeira visita ao Médio Oriente, muito marcada pela “ameaça iraniana”. Joe Biden esteve em Israel e na Arábia Saudita, que se projetam como pilares de uma coligação emergente na região do Golfo Pérsico destinada a conter precisamente o Irão e aliados.

Neste contexto, o encontro de Teerão constituiu uma espécie de contrapeso à iniciativa norte-americana. Em paralelo, foi uma demonstração de que a Rússia não está sozinha e que, apesar das sanções e do isolamento internacional que afetam vários sectores da sociedade, tem mercados alternativos para onde se projetar. Revelou também a influência de Moscovo em três dos grandes problemas da atualidade.

1. BLOQUEIO DOS CEREAIS UCRANIANOS

Desde o início da guerra na Ucrânia que a Turquia se tem afirmado como país que consegue abrir portas com igual facilidade em Moscovo e em Kiev. Foi, por isso, com naturalidade que Erdogan surgiu no papel de intermediário, junto de Putin, para tentar arranjar solução para o bloqueio à exportação de 20 milhões de toneladas de cereais ucranianos.

“Com a sua mediação, nós progredimos”, disse Putin a Erdogan, em Teerão. “Nem todos os assuntos relativos à exportação de cereais ucranianos através dos portos do Mar Negro foram resolvidos, mas haver progresso já é bom sinal.”

Antes disso, hove um compasso de espera, pois o dirigente turco entrou na sala cerca de um minuto depois do homólogo russo à espera cerca de um minuto. Com os jornalistas já presentes, foi visível o desconforto de Putin.

2. CONFLITUALIDADE NA SÍRIA

A guerra na Síria é o tema que, mais facilmente, justifica um encontro entre Putin, Erdogan e Raisi. Os países que os três homens lideram fazem parte, desde janeiro de 2017, do Processo de Astana, lançado na capital do Cazaquistão para reduzir o nível de violência armada no território. A iniciativa decorre em paralelo ao diálogo de Genebra, promovido pelas Nações Unidas, que visa negociar um futuro político pacífico para a Síria.

No terreno, Rússia e Irão são os maiores aliados do regime de Bashar al-Assad, que sobreviveu a mais de dez anos de guerra graças a esse apoio fundamental. Quanto à Turquia, é, por razões internas, forte opositora do dinamismo curdo, o que a leva, ocasionalmente, a realizar incursões no norte da Síria para travar as movimentações da minoria curda.

Recentemente, Ancara anunciou planos para mais uma ofensiva. Rússia e Irão não concodam e, esta terça-feira, foi o próprio Líder Supremo iraniano a dizê-lo a Erdogan. “O terrorismo tem de ser contrariado, mas um ataque militar na Síria beneficiará os terroristas”, disse o ayatollah Ali Khamenei, que ocupa posição hierárquica superior à do Presidente Raisi.

Há exatamente uma semana, o Conselho de Segurança das Nações Unidas prolongou a abertura do ponto de passagem de Bab al-Hawa, no noroeste da fronteira entre a Síria e a Turquia, por onde é canalizada a ajuda internacional. “É o único corredor humanitário em funcionamento. Havia mais três que, em 2020, foram vetados pela Rússia e acabaram por fechar”, comenta ao Expresso a eurodeputada Isabel Santos, que preside à delegação do Parlamento europeu para as relações com os países do Maxereque, entre eles a Síria.

“Este corredor humanitário é absolutamente imprescindível para o acesso das organizações humanitárias ao terreno. Serve uma população de mais de quatro milhões de pessoas. Só por este corredor passa uma média de 700/800 camiões com ajuda humanitária por mês. Em maio, atingiu-se os 1000 camiões”, transportando água potável, medicamentos, alimentos. “Sem esta ajuda humanitária, está-se a condenar à morte boa parte desta população.”

Rússia instrumentaliza ajuda humanitária

O corredor ficará aberto seis meses, findos os quais o Conselho de Segurança terá de votar outra resolução com vista ao prolongamento por mais meio ano. Foi a posição que prevaleceu, por pressão da Rússia, e que justificou a abstenção de França, Reino Unido e Estados Unidos. “Estes países entendiam — e bem — que o prazo estabelecido devia ser de um ano, por causa da programação da atividade das organizações não-governamentais” que estão no terreno. “Paira uma certa insegurança que, ao fim destes seis meses, possa não haver esse prolongamento”, comenta a eurodeputada.

A seu ver, é claro que “a Rússia está a fazer um jogo político”. A parlamentar socialista prossegue: “Toda a marca negativa que vem do conflito na Ucrânia é transportada para condicionar e servir como moeda de troca para o que se está a passar na Síria. Há uma instrumentalização política da ajuda humanitária”.

“Felizmente, a resolução foi aprovada, mas paira sobre as cabeças das pessoas que são assistidas, e que dependem em absoluto desta ajuda humanitária, a possibilidade de, passados seis meses, a Rússia decidir vetar o funcionamento deste corredor.”

3. DESACORDO SOBRE O NUCLEAR IRANIANO

Rússia e Irão são os países mais castigados por sanções internacionais em todo o mundo. Essa circunstância e as crescentes dificuldades económicas dela decorrentes empurram-nos na direção do outro, e de quem assuma na cena internacional uma amizade com ambos, como é o caso da Turquia.

“Infelizmente, devido à pandemia do coronavírus, o volume de comércio [entre Irão e Turquia] diminuiu significativamente, chegando agora aos 7000 milhões de dólares [valor semelhante em euros]. Acredito que com a determinação dos dois países, conseguiremos atingir o volume comercial de 30 mil milhões de dólares”, afirmou o Presidente turco, esta terça-feira, após encontrar-se com o homólogo iraniano. “Além disso, tomando medidas na área de petróleo e do gás natural, podemos acelerar esta situação.”

Teerão desespera por ver as sanções internacionais levantadas, o que só acontecerá no âmbito de um acordo internacional sobre o seu programa nuclear. Desde abril de 2021 decorrem negociações em Viena, visando a reativação do compromisso, ferido após a retirada dos Estados Unidos ordenada por Donald Trump. Mas o diálogo em que participam sete países tarda em produzir resultados.

Segunda-feira à noite, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Amir Abdollahian, falou ao telefone com Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança. “A Casa Branca deve pôr de lado as suas exigências e dúvidas excessivas e, de forma realista, caminhar para se encontrar uma solução e se chegue a um acordo”, disse o iraniano ao espanhol. “E deve parar de repetir a abordagem ineficaz do passado e o comportamento improdutivo de recurso a pressões e sanções para influenciar.”

Apesar da insistência num acordo, é cada vez mais percetível que, para os ayatollahs, que governam o Irão desde 1979, as grandes oportunidades estão não no Ocidente, mas a leste, desde logo na Rússia e, por arrasto, na China. Mais ainda numa altura em que veem os inimigos Israel e Arábia Saudita unidos numa aliança improvável, promovida pelos Estados Unidos, e cujo cimento é “conter o Irão”.

(Ao centro, o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, foi o anfitrião dos homólogos russo, Vladimir Putin (à esq. na foto), e turco, Recep Tayyip Erdogan SERGEI SAVOSTYANOV / SPUTNIK / AFP /GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui

Negociações “substanciais” ou oportunidade para Putin ganhar tempo? “Perceber os russos é sempre muito complicado”

Russos e ucranianos deram uma hipótese à diplomacia e reuniram-se, frente a frente, em Istambul. A Ucrânia disse estar disposta a aceitar um estatuto de neutralidade, pediu que a porta da adesão à UE ficasse aberta e aceita remeter para negociações futuras o estatuto da Crimeia e do Donbas. Os russos disseram que vão entregar as propostas a Putin. Os especialistas admitem um passo em frente, o da via diplomática que finalmente se abre. Mas alertam que é cedo para respirar de alívio

Intervenção do Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, diante de russos e ucranianos, a 29 de março de 2022, em IstambulREPUBLIC OF TÜRKIYE DIRECTORATE OF COMMUNICATIONS

A cidade turca de Istambul acolheu, esta terça-feira, uma ronda de negociações entre russos e ucranianos facto que, por si só, indicia uma evolução no processo de conversações ‘em parte incerta’ que as partes vinham mantendo quase desde o início da invasão.

Frente a frente, as duas delegações ouviram o Presidente da Turquia dizer, presencialmente, que “um cessar-fogo é benéfico para todos” e apelar à “obtenção de resultados concretos”. Segundo Recep Tayyip Erdogan, “uma paz justa não terá um derrotado”. Afirmações óbvias que, porém, ainda não conseguiram impor-se nos 34 dias que já dura a invasão russa da Ucrânia.

“A entrada em cena de Erdogan é reflexo do que se está a passar na guerra, e que força a Rússia a tentar encontrar alguma forma para sair do conflito sem perder totalmente a face”, diz ao Expresso Bernardo Teles Fazendeiro, professor de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. “A aceitação da mediação turca é simbólica e demonstrativa dessa disposição para encontrar algum compromisso face ao impasse no terreno.”

Objetivos mínimos

São vários os indícios de que a Rússia está cada vez mais longe dos objetivos a que se propôs inicialmente:

— A “operação especial militar” na Ucrânia, previsivelmente rápida, já dura há mais de um mês.

— A “desnazificação” da Ucrânia, que passava pela entrada das tropas russas em Kiev e pela substituição do atual Governo por um Executivo pró-Kremlin, falhou.

— Mariupol, cuja conquista permitiria à Rússia o controlo sobre uma faixa terrestre entre a Rússia Continental e a península da Crimeia, anexada em 2014, continua a resistir.

“Face a tudo isto, e ao potencial desgaste que isto causa política e economicamente a longo prazo na Rússia, esta percebe que tem de arranjar solução. A Rússia foi derrotada ao nível daqueles que eram os seus objetivos iniciais”, diz Bernardo Teles Fazendeiro. “Queria impor esta nova ordem na Ucrânia e não conseguiu.”

Ucrânia aceita neutralidade

Mas de Istambul saíram indícios de que a posição negocial da Ucrânia está a ir ao encontro das pretensões russas. Segundo o negociador-chefe ucraniano, David Arakhamia, o seu país concordará com um estatuto de neutralidade se houver um “acordo internacional” que garanta a sua segurança.

Esse compromisso seria assinado por vários países, ao estilo de uma espécie de fiadores, que Arakhamia enumerou: Estados Unidos da América, China, França, Reino Unido (membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU), e também Turquia, Alemanha, Polónia e Israel.

“Queremos um mecanismo internacional de garantias de segurança onde esses países atuem de forma semelhante ao artigo 5.º da NATO, e ainda com mais firmeza”, acrescentou o ucraniano. Ao abrigo desse artigo, um ataque a um Estado membro é encarado como um ataque a toda a Aliança Atlântica.

Zelensky fala muito. E Putin, que quer?

Paralelamente, a Ucrânia exige que a Rússia deixe aberta a porta da adesão à União Europeia e está na disposição de “excluir temporariamente” de um acordo com a Rússia a península da Crimeia (anexada por Moscovo em 2014) e os territórios do Donbas (sob controlo de forças separatistas pró-Rússia). O estatuto da Crimeia, em específico, seria resolvido ao longo de conversações bilaterais que decorreriam por um período de 15 anos.

“Não sabemos detalhes. Mas subentende-se, entre linhas, que a Ucrânia pode desistir do Donbas como território ucraniano”, comenta ao Expresso a investigadora Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) da Universidade do Minho.

“Do lado russo, é mais difícil saber o que querem, porque não comunicam. Zelensky está sempre a falar, está sempre a aparecer e a ser muito claro sobre o que pretende. Do lado russo, não há essa comunicação. Mas é importante lembrar que Putin, ao contrário de Zelensky, não tem como primeira prioridade a questão da perda de vidas humanas. Os russos estão a perder muitos soldados, mas não é isso que vai motivar Putin a sentar-se à mesa das negociações. O que o motiva é a evolução no terreno, a dificuldade em atingir os seus objetivos de guerra.”

Os seis temas quentes entre Rússia e Ucrânia

  • Neutralidade da Ucrânia;
  • Desarmamento e garantias mútuas de segurança;
  • Processo a que a Rússia chama “desnazificação”;
  • Remoção de obstáculos à utilização generalizada da língua russa na Ucrânia;
  • Estatuto do Donbass, onde ficam os territórios separatistas de Donetsk e Luhansk;
  • Estatuto da Crimeia.

Em Istambul, pela voz do chefe da delegação e conselheiro presidencial, Vladimir Medinsky, a Rússia reconheceu ter havido “discussões substanciais” e que Kiev apresentou propostas “claras”, que serão “estudadas muito em breve e submetidas ao Presidente” Vladimir Putin.

Paralelamente, realçou a decisão do Ministério da Defesa russo, anunciada em paralelo às negociações — com o objetivo de “aumentar a confiança mútua e criar as condições necessárias para novas negociações” — de “reduzir radicalmente a atividade militar nas direções de Kiev e Chernihiv”, no norte da Ucrânia. “Não é um cessar-fogo, mas é essa a nossa aspiração, alcançar gradualmente uma desescalada do conflito, pelo menos nestas frentes.”

“Perceber os russos é sempre muito complicado”, nota Sandra Fernandes. “Dá a ideia de que querem negociar, até porque se percebe que a invasão está a patinar, mas não pára, o que causa imenso terror. Sexta-feira passada, declararam que iriam concentrar-se no Donbas, mas hoje estão a bombardear Mykolaiv [no sul, junto a Odessa] de forma brutal.”

Da imposição à aceitação

Ainda que a Rússia pareça ter passado de uma estratégia de imposição (da situação no terreno) para uma de aceitação (da negociação), há sempre outras leituras possíveis. “Penso que o principal objetivo de Putin é ganhar tempo”, diz a docente da Universidade do Minho.

“Ir para a mesa da negociação é sempre um ganhar de tempo face ao que são os objetivos, a eventual alteração dos objetivos e a preparação de novos objetivos. A Rússia ainda não está numa posição de força [ao nível do controlo territorial] e a Ucrânia também ainda não perdeu tudo. Estamos numa situação intermediária, entre dois momentos, e nesse sentido os dois estão a jogar com aquilo que conseguem.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

ONU estabelece relações formais com o Governo talibã do Afeganistão

Uma resolução aprovada no Conselho de Segurança das Nações Unidas garante a continuidade da missão de assistência da ONU em território afegão. Não se cumpriram os receios de que a Rússia pudesse usar o direito de veto, em retaliação pelas sanções que enfrenta devido à invasão da Ucrânia

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, esta quinta-feira, por larga maioria, uma resolução que formaliza a futura relação entre a organização e as autoridades talibãs do Afeganistão.

O documento, proposto pela Noruega, “redesenha as relações do organismo global com Cabul para corresponder à tomada do poder pelos talibãs, no ano pasado”, escreve a emissora Al-Jazeera, do Catar.

A Resolução 2626 garante também a continuidade das Nações Unidas em território afegão, ao prorrogar por um ano o mandato da Missão de Assistência das Nações Unidas ao Afeganistão (UNAMA), até 17 de março de 2023.

“Esta resolução envia uma mensagem clara de que o Conselho de Segurança está firmemente por trás do apoio contínuo da ONU ao povo afegão, que enfrenta desafios e incertezas sem precedentes”, regozijou-se a missão da Noruega na ONU, num post publicado no Twitter.

Os receios de que a Rússia poderia usar o seu poder de veto — por ser um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança —, em retaliação pelas pesadas sanções que enfrenta devido à invasão da Ucrânia, não se confirmaram. Dos 15 votos, 14 foram favoráveis à resoluão e só um país, precisamente a Rússia, se absteve.

Esta posição da ONU constitui o primeiro reconhecimento diplomático internacional do Governo talibã. Apesar de delegações do grupo extremista religioso já terem sido recebidas em vários países, até ao momento nenhum país estabeleceu relações diplomáticas, a nível bilateral, com o novo Governo de Cabul.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

A “joia da coroa” das presidências portuguesas

A Índia é assunto querido à diplomacia portuguesa. Foi em 2000, durante uma presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Este sábado, no Porto, uma nova edição tenta reatar as negociações comerciais entre ambas, paralisadas há oito anos. Para a UE, este caminho para a Índia revela a procura de alternativas à dependência da China. Para Portugal, é o continuar de uma relação histórica com mais de 500 anos. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa”, diz ao Expresso uma investigadora indiana

A Índia é um país tão grande e diversificado que a dúvida se instala com legitimidade: é a Índia um país ou será mais um continente? Em superfície, o mapa indiano engole os 16 territórios menores da União Europeia (UE). Já em termos populacionais, estima-se que dentro de cinco anos ultrapasse a China e se torne o país mais populoso do mundo.

É este colosso geográfico e demográfico que este sábado se vai ‘sentar à mesa’, ainda que de forma virtual, com a União Europeia. A cimeira decorrerá no Palácio de Cristal do Porto e foi, desde a primeira hora, rotulada por António Costa de “joia da coroa” da presidência portuguesa do Conselho da UE, em matéria de política externa.

“Tanto Portugal como a UE reconhecem que é necessário aprofundar as relações com a Índia para depender menos da China. Mas o desafio é que, ao contrário da China, a Índia tem sido um ator económico menos relevante e também relutante em relação à liberalização do comércio e dos investimentos, com negociações que se arrastam desde 2007, e que foram interrompidas em 2013”, comenta ao Expresso Constantino Xavier, investigador no Centro do Progresso Económico e Social de Nova Deli. “A cimeira de sábado deverá indicar um novo compromisso político para aprofundar a dimensão económica, reatando negociações.”

A relação entre a UE e a Índia — duas das maiores economias do mundo — formalizou-se em 1994, através de um Acordo de Cooperação bilateral. O objetivo maior de um acordo de livre comércio nunca viu a luz do dia, inviabilizado por divergências, sobretudo a nível das tarifas alfandegárias a pagar pela indústria automóvel e da livre circulação de determinadas categorias profissionais. A cimeira do Porto ambiciona desbloquear o impasse e relançar o diálogo.

COMÉRCIO UE-ÍNDIA

10º

lugar é a posição da Índia no ranking dos parceiros comerciais da União Europeia

posição é a que a União Europeia ocupa na lista de destinos das exportações indianas

“A Índia tem procurado aprofundar o seu relacionamento com a Europa desde meados dos anos 2000, como parte de um impulso geral na política externa indiana para diversificar as suas parcerias em todo o mundo. A novidade é que a Índia começou a envolver-se, além de Berlim, Paris e Bruxelas, com outros estados europeus, incluindo Portugal, Espanha, países nórdicos, da Europa Central e Oriental também”, diz ao Expresso a indiana Garima Mohan, investigadora no German Marshall Fund. “Enquanto a Índia tenta recuperar das consequências da pandemia, precisará de trabalhar mais com a Europa, também na questão da distribuição equitativa de vacinas.”

Tanto para Bruxelas como para Nova Deli, a cimeira do Porto servirá para tomarem o pulso uma à outra. “Do lado europeu, vai permitir aferir quão tangível é o interesse da Índia em cooperar mais com a UE, e em que setores a cooperação pode ser acelerada”, comenta ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense.

“Para a Índia, permite a Modi aferir das intenções da UE no que toca a objetivos geopolíticos e geoeconómicos. Nova Deli tem a grande expectativa de a cimeira resultar num empurrão ao Acordo de Cooperação de 1994 e procura alavancar a iniciativa ‘Make In India’ (que tem por mote ‘Zero Defeitos e Zero Efeitos’), através da qual se posiciona como alternativa viável à ideia da China como fábrica do mundo. A Índia procura parceiros que a confirmem como uma potência regional emergente, alicerçada na ideia de tailored-by-size diplomacy [diplomacia à medida].”

2000, 2007 e 2021

A confirmar-se o relançamento das negociações entre europeus e indianos, será mais um marco na afirmação de Portugal como ponte entre a Índia e a Europa, alicerçada numa relação histórica bilateral com mais de 500 anos.

“O facto de este histórico encontro de líderes decorrer sob a presidência portuguesa tem sido amplamente notado na Índia”, diz Mohan. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa.”

Foi durante uma presidência portuguesa do Conselho da UE, a 28 de junho de 2000, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Foi ainda na presidência portuguesa do segundo semestre de 2007 que foram lançadas as negociações com vista a um acordo de comércio livre, que agora se tenta retomar.

“A Índia é a maior democracia à escala global e nós temos de valorizar, tendo um relacionamento cada vez mais estreito, designadamente pelo contributo que poderemos dar em conjunto para componentes fundamentais dos processos de transição climática e digital. Falo do desenvolvimento da inteligência artificial ou da ciência de dados. Europa e Índia podem desenvolver uma aliança estreita para o futuro.”

António Costa primeiro-ministro português

“Portugal tem desempenhado um papel importante na aproximação entre Nova Deli e Bruxelas, agindo essencialmente como facilitador de diálogo”, acrescenta Tiago André Lopes. “O facto de ser, uma vez mais, em Portugal que se discutem as relações entre o bloco europeu e o gigante asiático permite-nos, como anfitriões, gozar de um canal de influência não apenas como moderadores da discussão, mas como parte ativa na fixação da agenda. O sucesso desta cimeira irá firmar o crédito de Portugal no seio da UE como ponte e porta-voz dos 27 na relação com a Ásia e com África.”

A cimeira deste sábado não pode deixar de ser enquadrada na Nova Estratégia de Cooperação no Indo-Pacífico, que a UE lançou a 19 de abril e que tentará injetar “estabilidade”, “segurança”, “prosperidade” e “desenvolvimento sustentável” numa região que é palco de grande concorrência geopolítica e revela muitas tensões. “Durante a sua presidência, Portugal tem tido um papel pioneiro na revisão da política europeia para a Ásia, que nos últimos anos tem pendido para a China, culminando no polémico acordo de investimentos de 2020”, diz Constantino Xavier.

“Portugal cedo reconheceu que é necessária uma política para a Ásia mais equilibrada, não só com a Índia, mas também com o Japão, e que essa diversificação europeia contribui para uma Ásia mais multipolar e estável. É nesse sentido que a UE está a assumir um perfil mais estratégico na Ásia, além de uma mera abordagem mercantilista, focada sobretudo nos grandes negócios da China. Seja na Índia ou no resto da Ásia, esse papel de peso da UE é recebido de braços abertos, como mais uma alternativa para preservar uma Ásia multipolar, menos exposta ao crescente poderio e centralidade da China.”

A ÍNDIA E PORTUGAL

0,2%

das exportações portuguesas tiveram como destino a Índia, em 2020. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), a Índia é o 46º cliente das exportações portuguesas de bens

0,9%

do total de importações portuguesas vêm da Índia. É o 15ª mercado onde mais Portugal compra

17.619

cidadãos estrangeiros de origem indiana vivem em Portugal, segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) referente a 2019. São, na esmagadora maioria (13.235), homens

“O fator China é uma explicação importante para a aproximação entre UE e Índia. As perceções europeias sobre a Índia têm mudado à medida que aumentam as tensões com a China”, diz Garima Mohan. “Revigorar a parceria com a Índia é também um pilar fundamental da estratégia Indo-Pacífico da UE.”

“Da mesma forma, a resposta da Índia ao desafio da China concentrou-se no fortalecimento de parcerias, dissociação económica e diversificação. Isso inclui não só o fortalecimento dos laços com os seus parceiros do grupo Quad (Austrália, Japão e Estados Unidos) e com o Sueste Asiático, mas também com a Europa. Não é por acaso que assuntos da agenda UE-Índia — como a segurança marítima no Oceano Índico, alternativas à Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), tecnologias emergentes, 5G e Inteligência Artificial —, todos têm elementos de competição com a China.”

A relação entre europeus e indianos tem potencial para exercer um impacto geopolítico maior. “UE e Índia também procuram liderar esforços para proteger a ordem internacional da crescente rivalidade sino-americana”, alerta Constantino Xavier.

“Seja na luta contra as alterações climáticas, na regulação das novas tecnologias ou no desenvolvimento sustentável, Bruxelas e Nova Deli estão a coordenar posições comuns para oferecer soluções globais, especialmente pela via do multilateralismo. Ambas reconhecem que para depender menos dos Estados Unidos ou da China, têm de aprofundar as suas relações e coordenar as suas políticas com outras potências e blocos regionais.”

É todo este longo caminho que a presidência portuguesa do Conselho da UE tem promovido e que a cimeira do Porto quer ajudar a trilhar.

(FOTOS A 24 de junho de 2017, António Costa recebeu Narendra Modi, no Palácio das Necessidades, em Lisboa GABINETE DO PRIMEIRO-MINISTRO DA ÍNDIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

A nova ‘moeda de troca’ da política internacional

Vários países estão a usar a vacina para a covid-19 para projetar poder. Ao doarem milhares de doses, solucionam problemas, mas a prazo buscam compensações políticas

O arsenal de armas de soft power com que os Estados procuram projetar a sua influência no mundo sem recorrer à guerra ganhou um novo elemento — a vacina para a covid-19. Desde que soou o tiro de partida da imunização em todo o mundo, alguns países têm doado milhões de doses a terceiros com indisfarçável interesse político.

“A vacina está a ser usada como qualquer outro instrumento de política externa, é um meio para atingir um fim maior”, explica ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “A prática assemelha-se a outros benefícios económicos que normalmente se utilizam como ‘cenoura’ destinada a premiar o comportamento de um Estado ou levar a um comportamento que se pretende.” Ajuda humanitária, alívio de dívida, assistência bilateral, dinheiro a fundo perdido ou empréstimos, acesso a tecnologia, participação em organizações internacionais… “Usa-se uma ferramenta económica, mas o objetivo é político.”

China, Índia e Rússia — pesos-pesados da geopolítica mundial e produtores da vacina — têm direcionado milhões de doses para fora do país, quando a inoculação das respetivas populações está numa fase inicial. “A vacina é tão ou mais valiosa para qualquer dos Estados em causa do que qualquer apoio económico ou financeiro, pelo que é provável que as consequências desta ação, o efeito permanente deste soft power, seja mais durável no tempo”, acrescenta o académico. “Esse apoio, em momentos difíceis, vai deixar uma marca consistente tanto nos decisores como na população.”

CHINA: Enterrar o “vírus chinês”

Para a China — onde começou a pandemia —, a vacina revelou-se uma oportunidade para acabar com a narrativa do “vírus chinês”, que Donald Trump, ex-Presidente dos Estados Unidos, propalou até à exaustão. Com quatro vacinas aprovadas (Sinopharm, Sinovac, CanSino e Sinopharm Wuhan), presenteá-las a terceiros é para Pequim um atalho eficaz para melhorar a imagem.

No início de fevereiro, a China anunciou a doação de vacinas a 14 países asiáticos e africanos e a intenção de “assistir” outros 38. As 100 mil doses enviadas para a Guiné Equatorial, por exemplo, garantiram a imunidade de 4% da população.

A dimensão asiática desta “diplomacia da vacina” é, para a China, muito condicionada pela rivalidade com a Índia. O primeiro país a receber a vacina chinesa de graça foi o Paquistão, arquirrival da Índia. Outro beneficiário foi o Sri Lanka, ‘campo de batalha’ entre chineses e indianos pelo domínio da Ásia do Sul. A 28 de janeiro chegaram ao país 500 mil doses oferecidas pela Índia. À espera, no aeroporto de Colombo, o Presidente Gotabaya Rajapaksa agradeceu a “generosidade”. Na Índia, a imprensa tratou o assunto como vitória diplomática sobre a China. Dias depois, Pequim fez chegar ao Sri Lanka 300 mil doses da sua vacina.

Com mais de 1400 milhões de habitantes, a China tinha vacinado, até 28 de fevereiro, apenas 3,65% da sua população — Portugal vai nos 8,68%. Essa circunstância não contém o regime comunista no seu esforço de afirmação externa. “O facto de as democracias estarem (mais) sujeitas a pressões e escrutínio públicos poderá promover a lógica de ‘os nossos primeiro’ e levar a que regimes autocráticos, menos limitados na alocação de recursos e na elaboração da sua política externa, possam dedicar-se mais a essa oferta”, diz Ponte e Sousa. “Os regimes autocráticos precisam mais desse apoio internacional para melhorar a sua imagem. Poderão ‘esforçar-se mais’ para obtê-lo.”

ÍNDIA: A farmácia do mundo

A pandemia permitiu à Índia mostrar os músculos ao nível da produção de vacinas e afirmar-se como “a farmácia do mundo”. O Instituto Serum (privado e com sede em Pune) é o maior fabricante mundial de vacinas — estima-se que 65% das crianças de todo o mundo recebam pelo menos uma vacina ali produzida. Diariamente, o Instituto fabrica 2,5 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford para a covid-19 (chamada localmente Covishield), destinada aos mercados externo e interno.

Outro laboratório indiano — Bharat Biotech, que exporta para mais de 120 países — desenvolveu uma vacina própria (Covaxin). Autorizada apenas na Índia, foi administrada ao primeiro-ministro Narendra Modi.

A “diplomacia da vacina” tem permitido a Nova Deli rentabilizar a política de “vizinhança primeiro”, teorizada por Modi, e dar réplica ao avanço da China. Nesse espírito, Sri Lanka, Nepal, Maldivas, Maurícias, Butão, Bangladesh, Seychelles, Afeganistão e Myan­mar já receberam doações da Índia.

Com base no princípio filosófico indiano Vasudhaiva Kutumbakam — frase em sânscrito, encontrada em textos hindus, que significa “o mundo é uma família” —, a Índia já começou a doar vacinas para fora da região. Nas redes sociais, Nova Deli vai publicitando a chegada de carregamentos da Covishield a um novo país com a hashtag #VaccineMaitri (“vacina pela amizade”). Só esta semana, pelo menos Ruanda, Quénia, Nigéria, Angola, Senegal e Camboja receberam doses made in Índia. Até quarta-feira o país enviara 45,6 milhões para 46 países — 7,1 milhões a título gratuito.

RÚSSIA: Reforçar estatuto

Ao batizar a vacina de Sputnik V — recuperando uma designação que remete para os anos gloriosos da exploração espacial da União Soviética —, a Rússia não escondeu a intenção de a usar para reclamar estatuto internacional.

A Sputnik V foi a primeira vacina para a covid-19 aprovada em todo o mundo para uso doméstico, no longínquo 11 de agosto de 2020. Despertou dúvidas acerca da sua eficácia ao não cumprir todas as etapas do processo de produção. O Presidente Vladimir Putin disse que a tomaria, mas até ao momento ainda não o fez. Fora de portas, porém, a Sputnik-V já está a ser usada como bandeira.

A Alrosa — empresa russa parcialmente estatal, líder mundial da mineração de diamantes — anunciou a compra de dezenas de milhares de doses dessa vacina para oferecer a Angola e ao Zimbabwe, países onde opera.

Na ânsia de exportar a sua vacina, o Kremlin conta com um ‘aliado’ inesperado: a resistência do povo à vacinação, que tem feito sobrar doses. “Pergunto-me porque está a Rússia a oferecer, teoricamente, milhões e milhões de doses, embora não avance o suficiente na vacinação do seu próprio povo”, insinuou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decerto incomodada com a interferência russa na coordenação europeia. É que, por força dos atrasos na entrega das vacinas contratualizadas por Bruxelas, a Rússia já conseguiu vender a Sputnik-V à Hungria.

OUTROS EXEMPLOS

SÉRVIA — Comprou vacinas à China, à Rússia e à Pfizer e distribuiu uns milhares de doses pela vizinhança, em especial um país com quem estava em guerra há menos de 20 anos: Bósnia-Herzegovina. Antes ofereceu vacinas à Macedónia do Norte e Montenegro.

ISRAEL — Quase a tornar-se o primeiro a vacinar toda a população, ofereceu doses a países que aceitaram transferir as suas embaixadas para Jerusalém (Guatemala, Honduras, República Checa). Comprou vacinas à Rússia para entregar à Síria em troca da libertação de uma israelita.

EMIRADOS ÁRABES UNIDOS — A riqueza proveniente do petróleo permitiu-lhe comprar vacinas para oferecer a países onde tem interesses comerciais ou estratégicos. As Seicheles (100 mil habitantes), onde têm projetos energéticos e são parceiros no combate à pirataria, receberam 50 mil doses.

(ILUSTRAÇÃO PIXAHIVE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de março de 2021. Pode ser consultado aqui