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“Dois terços dos países do mundo” podem prender Netanyahu, mas “na prática é pouco provável” que tal aconteça

O primeiro-ministro de Israel é procurado pelo mais importante tribunal do mundo por crimes de guerra e contra a Humanidade. Viajar para o estrangeiro passou a ser um quebra-cabeças para Benjamin Netanyahu: há 124 países signatários do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, muitos dos quais com boas relações com Israel, mas também defensores do direito e da justiça internacional

Se o primeiro-ministro de Israel, o ex-ministro da Defesa israelita e o chefe do braço militar do Hamas — presumivelmente morto por Israel em julho — entrassem num dos 124 Estados-membros signatários do Tribunal Penal Internacional (TPI), os três poderiam ser presos pelas forças policiais dos respetivos países. No entanto, “na prática é pouco provável” que isso aconteça, afirmam ao Expresso professores de Direito Internacional.

Quinta-feira passada, o TPI emitiu mandados de detenção contra os israelitas Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, e o palestiniano Mohammed Deif por crimes contra a Humanidade e crimes de guerra. O Tribunal de Haia não tem capacidade de prender diretamente os suspeitos que procura: “É óbvio que não pode haver uma força policial internacional com autoridade para atravessar fronteiras e ir a países sem o seu consentimento”, começa por dizer William Schabas, especialista em Direito Penal Internacional e Direitos Humanos, em declarações ao Expresso.

Por outro lado, “o TPI tem no total 124 forças policiais — são as forças policiais dos seus Estados-membros”, acrescenta, referindo-se aos países que ratificaram o Estatuto de Roma, que fundou o Tribunal em 2002. É o caso de todos os países da União Europeia, mas não de nações proeminentes como os Estados Unidos, Israel, Rússia, China ou Índia, que não têm obrigação legal de cooperar com esta instância judicial.

Netanyahu acusa procurador

“A grande maioria dos Estados-membros do TPI, incluindo Portugalprenderá certamente os suspeitos se estes entrarem no seu territórioNa prática, é pouco provável que Netanyahu e Gallant se desloquem a Estados que ratificaram o Estatuto de Roma. Já dos cerca de 75 Estados que não o ratificaram, muitos não são o que se poderia chamar de ‘amigos de Israel’, e por isso também não é provável que Netanyahu se desloque a esses países”, afirma o professor da Universidade de Middlesex (Reino Unido) e da Universidade Leiden (Países Baixos).

Netanyahu não tardou a reagir com “repugnância” às “ações absurdas e falsas” do Tribunal de Haia, que classificou de “antissemita”, “tendencioso” e “discriminatório”. Segundo o primeiro-ministro israelita, o procurador-geral do TPI, Karim Khan, é “corrupto” e “está a tentar salvar-se de acusações de assédio sexual e por juízes tendenciosos”, atirou, referindo-se às notícias publicadas pela imprensa britânica e americana, que acusam Khan de alegado assédio sexual a uma jovem da equipa de acusação.

Quem cumpre e quem bate o pé ao TPI?

“Um total de 124 Estados — cerca de dois terços dos países do mundo — aderiram ao tratado do Tribunal Penal Internacional”, lembra Diane Marie Amann, professora de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. “Este compromisso de cooperação tem sido interpretado significando que os Estados-membros devem executar as ordens do TPI. Essas ordens podem dizer respeito ao acesso a testemunhas ou a provas físicas, e podem também incluir mandados que visem a detenção de indivíduos”, acrescenta ao Expresso.

Só que a emissão dos mandados de captura contra Netanyahu não colheu unanimidade entre os 124 países e, na prática, há quem tenha argumentos para não o fazer. É o caso de Viktor Orbán, primeiro-ministro da HUNGRIApaís que aderiu ao TPI em 1999 e ratificou o Estatuto em 2001, quando, em Budapeste, estava no poder… Viktor Orbán. Agora, o chefe do Governo classificou os mandados do TPI de “escandalosamente descarados” e “cínicos”. Numa atitude desafiadora, revelou a intenção de convidar Netanyahu para visitar a Hungria.

“Isto é errado por si só”, disse na sexta-feira, em entrevista à rádio estatal húngara. “Portanto, não há outra escolha: temos de confrontar esta decisão e, por isso, ainda hoje convidarei o primeiro-ministro dos israelitas, o Sr. Netanyahu, para visitar a Hungria.”

Orbán já antes fizera saber que não cumpriria o mandado de detenção contra Vladimir Putin, emitido a 17 de março de 2013, por “responsabilidade individual” nos crimes de guerra de “deportação ilegal” e “transferência ilegal” de crianças das zonas ocupadas da Ucrânia para território russo.

Ao nível de Orbán, em defesa férrea dos governantes israelitas, está o Presidente da ARGENTINA, Javier Milei, que discordou da posição do TPI e descreveu os mandados como “um ato que distorce o espírito da justiça internacional”. Acrescentou: “Esta resolução ignora o direito legítimo de Israel de se defender contra ataques constantes de organizações terroristas como o Hamas e o Hezbollah”.

Na mesma linha, outro país latino-americano colocou-se ao lado de Israel: o PARAGUAI. “Esta decisão viola o direito legítimo de Israel de se defender. O Paraguai rejeita veementemente a exploração política do direito internacional e considera que esta decisão compromete a legitimidade do Tribunal, além de enfraquecer os esforços pela paz, segurança e estabilidade no Médio Oriente”, defendeu o Governo.

Aliado histórico de Israel, o Paraguai foi um dos países que seguiram os Estados Unidos no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, durante a Administração Trump, tendo decidido mudar a embaixada de Telavive para a cidade santa. Recentemente, o Presidente israelita, Isaac Herzog, convidou o homólogo paraguaio, Santiago Peña, para realizar uma visita de Estado a Israel, coincidente com a viagem do paraguaio para inaugurar a embaixada em Jerusalém.

Como se posicionam os europeus?

Todos os 27 membros da União Europeia (UE) são Estados signatários do TPI. Além da estrondosa reação da Hungria, as posições dos europeus oscilam entre países que acolhem a decisão do TPI e garantem que a vão cumprir e outros que denunciam o que dizem tratar-se de uma posição política, sem concretizar como vão atuar.

‘Cumprimos o mandado e vamos prender’

Nos PAÍSES BAIXOS, onde recentemente houve incidentes envolvendo grupos pró-Palestina e adeptos de um clube israelita, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caspar Veldkamp, defendeu, diante do Parlamento, que o país irá atuar em conformidade com os mandados. “Os Países Baixos respeitam, obviamente, a independência do TPI. Somos obrigados a cooperar com o TPI e o fá-lo-emos.” Veldkamp tinha uma visita a Israel prevista para esta semana, que foi cancelada, após conversa telefónica com o homólogo israelita, Gideon Sa’ar, que lhe comunicou desilusão pela posição de Amesterdão.

Também a vizinha BÉLGICA defendeu que “os responsáveis ​pelos crimes cometidos em Israel e Gaza devem ser processados ​​ao mais alto nível, independentemente de quem os cometeu”, via Ministério dos Negócios Estrangeiros. Petra De Sutter, vice-primeira-ministra, subiu a fasquia e afirmou que “a Europa deve cumprir” os mandados, instando as nações europeias a imporem sanções económicas e a suspenderem os acordos comerciais com Israel. “Os crimes de guerra e os crimes contra a Humanidade não podem ficar impunes.”

PORTUGAL integra o grupo dos países que comunicaram a sua posição de forma clara. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, disse que o país está “vinculado” às decisões do TPI, enquanto seu Estado-membro, e garantiu que Portugal vai cumprir as suas “obrigações internacionais”, caso haja necessidade.

‘Cumprimos o mandado, mas a decisão é má’

Um conjunto de países tem posição híbrida, afirmando o seu compromisso com o TPI, mas criticando a equiparação entre Israel e o Hamas. É exemplo a ÁUSTRIA, onde o ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Schallenberg, considerou a deliberação “totalmente incompreensível” e os mandados contra os governantes israelitas “ridículos”. Viena diz-se, porém, forçada a efetuar detenções se Netanyahu e Gallant puserem pé no seu território. “O Direito Internacional não é negociável e aplica-se em todo o lado, em todos os momentos. Mas esta decisão é um mau serviço à credibilidade do Tribunal.”

Petr Fiala, primeiro-ministro da REPÚBLICA CHECA, disse que “a infeliz decisão do TPI mina a autoridade noutros casos, ao equiparar os representantes eleitos de um Estado democrático aos líderes de uma organização terrorista islâmica”. Concordando com as críticas de Fiala, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jan Lipavsky, disse que a Chéquia “defenderá sempre a adesão ao direito internacional”.

A posição da ITÁLIA pode encaixar-se nesta categoria, mas depende de quem fala. O ministro da Defesa, Guido Crosetto, defendeu que, embora Roma considere a decisão do TPI “errada” ao colocar “ao mesmo nível” os líderes de “uma organização terrorista criminosa” e os do país “que tenta erradicá-la”, a Itália é obrigada a prender Netanyahu e Gallant. “Ao aderir ao tribunal, devemos aplicar as suas decisões”, disse. “Todos os Estados que aderirem são obrigados — a única forma de não o aplicar será retirar-se do tratado.”

Já o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Antonio Tajani, reiterou apoio ao TPI, “lembrando sempre que o tribunal deve desempenhar um papel jurídico e não político”, disse. “Avaliaremos em conjunto com os nossos aliados o que fazer e como interpretar esta decisão.” Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro, instalou a confusão ao expressar total apoio a Netanyahu. “Ele é bem-vindo” a Itália. “Os criminosos de guerra são outros.”

‘Cumprimos o mandado, pela Palestina’

No decurso da guerra em Gaza, dois membros da UE reconheceram o Estado da Palestina. Um deles foi ESPANHA, que “cumprirá com os seus compromissos e obrigações”, disse o Governo de Pedro Sánchez.

“Estas acusações [do TPI] não podiam ser mais graves”, afirmou o primeiro-ministro da IRLANDA. Simon Harris considerou a situação no território palestiniano “uma afronta à Humanidade” e acrescentou: “Quem quer que esteja em condições de ajudar o TPI a realizar o seu trabalho vital deve agora fazê-lo com urgência”.

‘Estamos vinculados, mas vamos analisar’

Acusando a sensibilidade do caso, quer Berlim quer Paris expressaram hesitações. Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros da ALEMANHA, disse que o seu país está “vinculado” ao TPI e respeita o direito internacional. Porém, se Netanyahu e Gallant serão ou não detidos no país é, por enquanto, uma questão “teórica” que a Alemanha irá “examinar”.

Já em Paris, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Christophe Lemoine, afirmou que FRANÇA reagirá “em linha com o Estatuto do TPI”, mas recusou-se a dizer se o país tenciona prender os governantes israelitas. “É algo legalmente complexo, por isso não vou comentar hoje.”

A 21 de maio, quando o procurador-geral do TPI, Karim Khan, anunciou que ia solicitar mandados de detenção para os dois governantes israelitas e três dirigentes do Hamas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês emitiu um comunicado: “A França apoia o TPI, a sua independência e a luta contra a impunidade em todas as situações.”

No REINO UNIDO, que Netanyahu visitou no ano passado, o discurso é de “respeito pela independência do TPI, que é a principal instituição internacional para investigar e processar os crimes mais graves de interesse internacional”. Um porta-voz do primeiro-ministro Keir Starmer disse que o país “cumprirá as suas obrigações legais” e, questionado se o Governo irá executar os mandados, acrescentou: “Não vamos entrar em suposições”.

Emily Thornberry, presidente (trabalhista) da comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento britânico, foi mais esclarecedora. “Se Netanyahu vier à Grã-Bretanha, a nossa obrigação ao abrigo da Convenção de Roma será prendê-lo conforme o mandado do TPI”, disse. “Não é bem uma questão de dever, somos obrigados a fazê-lo porque somos membros do TPI.”

Estados Unidos de portas escancaradas

Seja Joe Biden ou Donald Trump o inquilino da Casa Branca, Netanyahu será sempre bem-vindo em Washington. Israel tem uma aliança de décadas com os Estados Unidos o que lhe garante amigos nas fileiras dos dois grandes partidos norte-americanos. A 24 de julho passado, o primeiro-ministro israelita ultrapassou Winston Churchill e tornou-se o líder mundial a discursar mais vezes no Congresso dos Estados Unidos.

Os ESTADOS UNIDOS, que não são membros do TPI, arrasaram a deliberação da justiça internacional. “A emissão de mandados de detenção pelo TPI contra os líderes israelitas é ultrajante”, defendeu Biden. “Deixem-me ser claro mais uma vez: seja o que for que o TPI possa implicar, não há equivalência — nenhuma — entre Israel e o Hamas. Estaremos sempre ao lado de Israel contra as ameaças à sua segurança.”

Em maio passado, quando o procurador-geral do TPI solicitou os mandados, Washington opôs-se e afirmou que não tinha sido dada aos israelitas a possibilidade de investigarem, eles próprios, as acusações que lhe faziam. Agora, uma das reações mais inflamadas partiu de Lindsey Graham, senador há mais de 20 anos pelo Partido Republicano, que ameaçou os países aliados com sanções se executarem o mandado do TPI.

“A qualquer aliado, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, França, se tentarem ajudar o TPI, iremos sancionar-vos”, disse, à Fox News. “Se ajudarem o TPI como nação e forçarem o mandado de captura contra Bibi [Netanyahu] e Gallant, o ex-ministro da Defesa, vou impor-vos sanções como nação”, disse. “Terão de escolher entre o TPI desonesto ou a América.”

CANADÁ, precisamente um dos países ameaçados por Graham, foi inequívoco no apoio à decisão do TPI. “Sempre disse que é muito importante que todos cumpram o direito internacional”, disse o primeiro-ministro, Justin Trudeau. “Defendemos o direito internacional e cumpriremos todos os regulamentos e decisões dos tribunais internacionais.”

Uma das reações mais simbólicas em relação a esta questão foi a da ÁFRICA DO SUL, que é membro do TPI e está na origem de um processo contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, o órgão jurisdicional da ONU. Pretória considerou a deliberação “um passo significativo na direção da justiça para os crimes contra a Humanidade e os crimes de guerra na Palestina”.

O Governo sul-africano declarou “o seu compromisso com o direito internacional” e apelou à comunidade internacional “que defenda o Estado de Direito e garanta a responsabilização por violações dos direitos humanos”. Esta posição tem, porém, uma fragilidade…

Em 2015, a África do Sul optou por não prender o então Presidente do Sudão, Omar al-Bashir, acusado de crimes de guerra na região do Darfur e alvo de um mandado do TPI. Mais tarde, o Supremo Tribunal de Recurso da África do Sul decidiu que a não detenção de Bashir fora ilegal.

Entre os países árabes e muçulmanos que se pronunciaram, há unanimidade em relação à urgência em sentar Israel no banco dos réus. A JORDÂNIA, que tem um tratado de paz com Israel há 30 anos, defendeu que a decisão do TPI “deve ser respeitada e aplicada sem seletividade”. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, acrescentou que a decisão do tribunal é “uma mensagem para toda a comunidade internacional, que enfatiza a necessidade de travar os massacres contra o povo palestiniano”.

O vizinho IRAQUE valorizou “a postura corajosa e justa assumida pelo TPI”, disse o porta-voz do governo, Basim al-Awadi. “Esta decisão histórica afirma que, por mais opressão que persista e tente prevalecer, a justiça e a verdade irão enfrentá-la e impedir que domine o mundo.”

Do Magrebe, a ARGÉLIA descreveu o veredicto do TPI como “passo importante e avanço tangível para acabar com décadas de impunidade e a evasão de responsabilização e punição por parte da ocupação israelita”.

Durante os meses de guerra em Gaza, o Presidente da TURQUIA — que várias vezes abriu as portas ao Hamas — tem sido das vozes mais críticas de Israel, ao ponto de comparar Netanyahu a Hitler. Recep Tayyip Erdogan elogiou a “decisão corajosa” do TPI e disse que os mandados de detenção “renovam a confiança da humanidade no sistema internacional”.

“Emitir um mandado de detenção não é suficiente”, reagiu o Líder Supremo do IRÃO, o ayatollah Ali Khamenei. “Deveria ser emitida uma sentença de morte para Netanyahu.”

Texto escrito com Mara Tribuna.

(FOTO Edifício do Tribunal Penal Internacional, em Haia, Países Baixos PETER DEJONG / AP)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de novembro de 2024. Pode ser consultado aqui

O “conflito mais documentado de sempre” tem cada vez mais países unidos na investigação de potenciais crimes de guerra

São já seis os países que aderiram à Equipa de Investigação Conjunta, um mecanismo internacional de cooperação judicial criado para investigar crimes de guerra na Ucrânia. “Temos de construir parcerias”, apelou o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI). “Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade”

Dor sem fim na cidade ucraniana de Bucha, após a descoberta de uma vala comum junto a uma igreja WOLFGANG SCHWAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

A guerra na Ucrânia está para durar, dizem cada vez mais observadores, mas a justiça internacional não espera pelo fim para responsabilizar quem violou as suas regras. Esta terça-feira, Estónia, Letónia e Eslováquia juntaram-se à Equipa de Investigação Conjunta (JIT, na sigla inglesa) criada a 25 de março por Polónia, Lituânia e Ucrânia, para investigar alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Hoje é um dia importante”, congratulou-se o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI). “A JIT tem três novos membros. É algo necessário para abordar crimes com a magnitude daqueles que muitas vezes temos visto no TPI. Temos de construir parcerias. E o que isto mostra é que não há uma dicotomia entre cooperação e independência. Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade.”

Karim A. A. Khan expressou-se nestes termos numa conferência de imprensa realizada esta terça-feira, em Haia, a que o Expresso assistiu de forma remota. De forma inédita, também o Gabinete do Procurador do TPI — que a 2 de março tinha aberto uma investigação aos crimes ocorridos na Ucrânia com base em relatos apresentados por 39 Estados membros — é membro participante desta JIT, em circunstâncias que o próprio detalhou.

O TPI (cujo estatuto é subscrito por 123 Estados membros) tem total acesso a toda a informação partilhada na JIT, mas não está obrigado a partilhar a informação que recolher com os outros membros. O TPI é um tribunal independente, com um mandato específico, explicou o seu procurador. “Não são valores europeus que estamos a proteger. O TPI não é um braço da União Europeia. Tratam-se de valores humanos”, esclareceu Karim A. A. Khan.

Cooperar para evitar sobreposições

Paralelamente às investigações desenvolvidas pelos seis Estados membros da JIT, outros treze países estão a conduzir processos próprios. Organizações não governamentais e associações da sociedade civil estão também no terreno a recolher informação sobre alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Isto não se trata de um mega caso. Não significa que estamos a copiar-nos uns aos outros e a fazer a mesma coisa em países diferentes. A JIT centraliza as áreas em que necessitamos de cooperar e ajuda a resolver situações de sobreposição. Todos temos processos diferentes”, explicou Andres Parmas, procurador geral da Estónia.

Provas recolhidas por vários países e guardadas em diferentes jurisdições podem ser contraproducentes. “Temos uma grande necessidade de coordenação. E é aqui que o Eurojust entra. Temos mais de 20 anos de experiência de operações de grande escala”, disse Ladislav Hamran, presidente da Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal (Eurojust), que é parceira deste mecanismo internacional de cooperação judicial desde a primeira hora.

A contribuição desta agência da UE passa por dar apoio legal, financeiro e também logístico, como o fornecimento de telefones satélite, computadores portáteis, impressoras, scanners 3D, coletes à prova de bala, capacetes, veículos todo o terreno, drones e outros equipamentos importantes para a recolha de provas.

“Podemos concluir com certeza que a guerra na Ucrânia será o conflito armado mais documentado que testemunhamos até ao momento”, comentou Ladislav Hamran.

Tradutores, para que todos se entendam

O Eurojust, que acolheu a conferência de imprensa desta terça-feira, colmata ainda as necessidades de tradução para que os relatórios forenses possam ser lidos por todos, independentemente da sua nacionalidade, e para que procuradores, investigadores e agentes da polícia, quando reunidos, se possam expressar nas suas línguas maternas e serem entendidos por todos.

“Nunca antes na história dos conflitos armados, a comunidade legal respondeu com esta determinação. A decisão de formar esta JIT foi tomada aqui mesmo, no edifício do Eurojust, apenas seis dias após começar este conflito”, acrescentou o presidente da agência.

Dariusz Barski, procurador nacional da Polónia, explicou que no seu país, que já acolheu mais de 3,5 milhões de refugiados ucranianos, muito deste trabalho passa por entrevistar pessoas para recolher informação que possa ser útil a qualquer investigação.

“Estes processos também se referem às atividades levadas a cabo pelas autoridades e responsáveis da Bielorrússia que disponibilizaram o seu território para esta guerra de agressão iniciada pela Rússia contra o território independente da Ucrânia”, disse Barski. “Encorajo outros países a juntarem-se à JIT.”

A Lituânia, outro país fundador da Equipa, invoca a sua experiência de mais de 30 anos de investigação de crimes atribuídos ao Exército Vermelho por alturas da desagregação da União Soviética (1991), de que o país báltico fazia parte: “Queremos partilhar esta experiência com os nossos colegas na Ucrânia”, disse Nida Grunskiene, procuradora geral lituana. “Tomamos a decisão [de participar na JIT] depois de avaliarmos a informação pública que nos chegou nos primeiros dias da guerra na Ucrânia.”

Justiça ucraniana é rápida e lenta

Presente na conferência de imprensa, Iryna Venediktova, a procuradora-geral da Ucrânia, foi confrontada por um jornalista com a rapidez com que o país julgou o primeiro militar russo: um cidadão de 21 anos, condenado a prisão perpétua pela morte de um homem de 62 anos que seguia de bicicleta, na região de Sumy (nordeste).

“Na Ucrânia, os jornalistas perguntam-me porque é que os julgamentos demoram tanto. ‘Três meses, tanto tempo, o que andaram vocês a fazer até agora?’ Já os jornalistas internacionais perguntam-me: ‘Porquê tão rápido?’”, disse. “Nós vamos a tribunal quando estamos prontos.”

A procuradora disse que, atualmente, há cerca de 15 mil casos relativos a crimes de guerra no país e que a Ucrânia vai acusar cerca de 80 suspeitos por essas atrocidades. Admitiu também que as investigações tornam-se difíceis porque as autoridades de Kiev não têm acesso a partes do território, como a região do Donbas (leste), por exemplo. “Mas temos acesso a pessoas.”

Em abril passado, quando visitou a cidade ucraniana de Bucha, onde foram executados civis, o procurador do TPI proferiu uma frase que ficou a soar: “A Ucrânia parece uma cena de crime”.

Esta terça-feira, Karim A. A. Khan mostrou-se um homem confiante no papel da justiça. “Os custos com a justiça são irrisórios quando comparados com os milhares de milhões de dólares que são gastos num conflito. É mais barato financiar um mecanismo judicial como este do que comprar tanques e mísseis”, disse.

“Sou um grande fã da jurisdição universal. Cabe aos Estados decidirem se se juntam ou não à JIT. O que devemos fazer é aplaudir qualquer autoridade, qualquer procurador independente que tente chegar à verdade e reivindicar os direitos dos sobreviventes. Não estamos em competição. Esta é uma obrigação partilhada.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui. Tradução do artigo em língua russa neste link

Descodificador. Que pode fazer a justiça na ‘guerra de Putin’?

Imagens de cadáveres de civis espalhados nas ruas de Bucha e de edifícios completamente destruídos e sem vida na cidade sitiada de Mariupol levantaram um coro de denúncias sobre crimes de guerra na Ucrânia. Como pode intervir o direito internacional?

Morte e destruição sem fim, em Bucha, nos arredores de Kiev CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES

1. A guerra desencadeada pela Rússia é legal?

Não, desde o seu primeiro minuto. A Carta das Nações Unidas — uma das pedras angulares do direito internacional, assinada a 26 de junho de 1945, no término da II Guerra Mundial — proíbe expressamente, no seu artigo 2º, “o recurso à ameaça ou ao uso da força [o chamado jus ad bellum], quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado”. A única exceção em que um país pode, por sua iniciativa, recorrer à força é em situações de legítima defesa (artigo 51º). Ora, no caso da invasão russa da Ucrânia, nem a Rússia foi atacada nem havia uma iminência de ataque armado contra o país liderado por Vladimir Putin.

2. Que legislação é importante?

Além da Carta da ONU, a regulação do uso da força faz-se também através do direito internacional humanitário, que procura limitar o sofrimento provocado pela guerra. Surgiu no século XIX, com o intuito de humanizar a guerra, e assenta em quatro Convenções de Genebra. A primeira (1864) confere proteção aos soldados feridos e enfermos durante uma guerra terrestre. A segunda (1906) estende as obrigações do primeiro tratado às forças navais. A terceira (1929) define o tratamento dos prisioneiros de guerra. E a quarta (1949) outorga proteção aos civis, inclusive em território ocupado. A Rússia ratificou os quatro tratados.

3. Que tribunais são competentes?

Qualquer violação por Estados que tenham ratificado as Convenções de Genebra pode conduzir a um processo diante do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ou do Tribunal Penal Internacional (TPI). O TIJ aprecia litígios entre Estados e é o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes eleitos pelo Conselho de Segurança, por recomendação da Assembleia-Geral. Quanto ao TPI, que tem sede em Haia, só julga indivíduos.

4. Vladimir Putin pode ser julgado?

Teoricamente, sim, no TPI. Mas, na prática, há uma infinidade de obstáculos até que isso se torne possível. Desde logo, há que recolher, no terreno, indícios e provas das atrocidades imputadas às forças russas, suscetíveis de implicar toda a cadeia de comando até chegar ao Presidente da Rússia. Esta fase pode demorar anos. Se a investigação do TPI resultar na formulação de uma acusação, é então emitido um mandado de captura internacional, dado que o tribunal apenas julga na presença do arguido, e não à revelia. Além disso, o TPI não dispõe de uma força policial que possa atravessar fronteiras nacionais para executar o mandado de detenção. A questão coloca-se: quem apanha Putin?

5. Há algum processo a decorrer no TPI?

Sim. A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan, anunciou a abertura de uma investigação aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por cerca de 40 países. Atualmente, no terreno, instituições como o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ONG como Amnistia Internacional e Human Rights Watch e ainda jornalistas, ativistas e cidadãos estão numa corrida contra o tempo na procura de registar e documentar o maior número de indícios de crimes de guerra possível. Nem a Rússia nem a Ucrânia assinaram o Estatuto de Roma (que instituiu o TPI), mas tal não constitui entrave a uma ação nesse tribunal.

6. A Ucrânia já acorreu à justiça?

Sim, de forma bastante inteligente. Dois dias após a Rússia ter iniciado a invasão da Ucrânia, argumentando com a urgência em proteger as populações ucranianas russófilas do leste do crime de genocídio, a Ucrânia instaurou um processo no TIJ, acusando a Rússia de manipular o conceito de genocídio para justificar a sua invasão ilegal. A Rússia tentou boicotar o caso faltando a algumas sessões. A 16 de março, ouviu o TIJ dar razão a Kiev e a instar Moscovo a parar imediatamente com as operações militares. A favor votaram 13 juízes e contra apenas dois: o magistrado chinês e o russo. Os veredictos do TIJ são vinculativos, mas o tribunal não tem forma de obrigar ao seu cumprimento.

7. O massacre de Bucha é genocídio?

A violência das imagens captadas naquela cidade dos arredores de Kiev ergueu muitas vozes, incluindo a do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, num coro de denúncias de uma situação de genocídio, o mais grave dos crimes contra a Humanidade. Mas, à luz do direito internacional, a tragédia de Bucha dificilmente configura um crime desse tipo. Segundo a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), genocídio consubstancia um conjunto de atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Esta especificidade, aparentemente, não é o caso de Bucha.

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

O direito internacional tem forma de julgar os responsáveis pelo massacre de Bucha. “Mas quem apanha Putin?”

Há genocídio em Bucha? E ilegalidades nos ataques russos, em plena guerra? Que tribunais podem julgar os russos? E haverá vontade? O difícil processo de levar os crimes de guerra russos à justiça

Na emoção de um encontro com refugiados ucranianos, durante a sua recente visita à Polónia, Joe Biden não se conteve nas palavras e chamou “carniceiro” a Vladimir Putin. O comentário gerou um efeito de bumerangue e o Presidente dos Estados Unidos foi duramente criticado, inclusive por alguns pares, como o homólogo francês. “Eu não usaria esse tipo de linguagem porque continuo a falar com o Presidente Putin”, disse.

Se o objetivo do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo e a retirada das tropas russas da Ucrânia, acrescentou Macron, “não podemos escalar nem em palavras nem em ações”. Este discurso mudou após a divulgação das imagens do massacre de Bucha, nos arredores de Kiev. “Hoje, há sinais muito claros de crimes de guerra”, admitiu agora o presidente francês.

Entre os observadores, a atribuição de responsabilidade a Moscovo é cada vez mais hegemónica. “A Rússia manifesta um completo desprezo pelas normas do direito internacional humanitário a que está obrigada. As Convenções de Genebra de 1949 obrigam a que se faça sempre a distinção entre civis e combatentes”, diz ao Expresso Maria Assunção Vale Pereira, professora de direito internacional. “Por outro lado, é preciso distinguir os objetivos militares dos bens de caráter civil, e os russos têm-no ignorado completamente, têm usado armas proibidas, como minas e munições de dispersão”. Porém, acrescenta, se “o direito tem as respostas, o problema é saber se a Rússia está disposta a aplicar o direito a que se comprometeu.”

Houve genocídio em Bucha?

Na Universidade do Minho, esta especialista leciona também direito internacional humanitário, prevenção de conflitos e manutenção da paz e tribunais internacionais. Na sua ótica, o caso de Bucha dificilmente configura um crime de genocídio, conforme o reclama o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e muitas outras vozes chocadas pela violência das imagens captadas na cidade. “O crime de genocídio tem como aspeto específico o facto de os crimes em causa serem praticados com a intenção de destruir no todo, ou em parte, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional. Não estou a ver que haja em Bucha um grupo específico com estas características.”

Mas nada diminui as acusações de que o Kremlin é alvo. Ainda que Moscovo alegue que as imagens de Bucha sejam produto de uma encenação profissional, a “simples” decisão de invadir um Estado soberano faz com que a Rússia venha acumulando ilegalidades desde o primeiro dia da guerra. “Toda esta intervenção é ilícita, porque o direito internacional proíbe o recurso à força”, continua a professora. “A única exceção em que um Estado, por sua iniciativa, pode recorrer à força é em legítima defesa. Ora a Rússia não foi atacada nem havia uma iminência de um ataque armado. Tudo isto é ilícito.”

À luz do direito internacional, a regulação do uso da força faz-se através da Carta das Nações Unidas, que prevê quando é lícito o recurso à força (o chamado jus ad bellum), e através do direito internacional humanitário, que surgiu no século XIX “com o intuito de humanizar a guerra”, explica a professora Maria Assunção Pereira. “Visa sobretudo preservar quem não participa diretamente nas hostilidades e, por outro lado, limitar meios e métodos de combate, atenuando o sofrimento de quem participa e não participa.”

Hoje, a aplicação de todo este ordenamento jurídico faz-se em especial em duas instâncias internacionais, de quem se espera, neste caso concreto, a responsabilização dos mandantes da agressão a um Estado soberano.

Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)

É o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes. São eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, em votações simultâneas, mas separadas. Para ser eleito, um candidato tem de receber a maioria absoluta dos votos nos dois órgãos.

O TIJ apenas julga litígios entre Estados, ou seja, processos em que um Estado está contra outro Estado. “Neste momento, o TIJ aprecia um caso interposto pela Ucrânia que, inteligentemente, aproveitou a acusação que a Rússia lhe fez de estar a perseguir um crime de genocídio [no leste do país] e, a partir daí, encontrou bases de jurisdição para que o Tribunal pudesse julgar. À partida, o TIJ só julga se houver aceitação da sua jurisdição”, explica a professora. Boicotar as diligências do TIJ passa, por exemplo, por faltar às sessões. A Rússia fê-lo recentemente.

A 16 de março passado, os trabalhos em Haia — onde fica a sede do TIJ — foram uma demonstração de como não decorrem de forma totalmente imune às sensibilidades políticas em redor deste caso. Nesse dia, o TIJ aprovou uma posição exortando a Federação Russa a parar com a guerra e com todas as atividades militares na Ucrânia. A decisão foi aprovada por 13 juízes. Os dois que votaram contra foram os magistrados russo e chinês.

Tribunal Penal Internacional (TPI)

Ao contrário do TIJ, que aprecia casos entre Estados, o TPI só julga indivíduos. Nem a Rússia nem a Ucrânia são signatárias do Estatuto de Roma, que instituiu este tribunal, mas isso não constitui um entrave perante a vontade de ser desencadeada uma ação no TPI.

Isso pode ser feito através de uma remissão do Conselho de Segurança da ONU, o que neste caso não acontecerá em virtude do poder de veto de que a Rússia dispõe. Pode haver também Estados a denunciar a prática de crimes ou pode ser o procurador do TPI, por sua própria iniciativa e em posse de indícios que caibam no âmbito da competência do tribunal, a levar a cabo essa investigação. Se da investigação decorrer a formulação de uma acusação e se esta dor confirmada pelo Juízo de Instrução, é então emitido um mandado de captura internacional.

“Mas quem é que apanha o Putin?”, questiona Maria Assunção Pereira. “O TPI não julga à revelia, é preciso a presença do arguido. Além disso, é um tribunal, não tem forças de polícia. Putin está enfiado num bunker, ninguém sabe bem onde, e nunca mais vai sair da Rússia. É difícil que seja capturado para ser levado a tribunal. Os instrumentos existem, assim pudessem funcionar.”

Da mesma forma que o TPI está dependente das polícias nacionais (que não podem cruzar fronteiras) para executar mandados de detenção, também não tem prisões onde os condenados possam cumprir a sentença. “Mas há acordos celebrados com Estados, como por exemplo com a Holanda”, explica a docente. “Através desses acordos, a Holanda disponibiliza-se a receber um determinado número de pessoas para cumprir pena nas suas prisões.”

Recolher provas para levar a tribunal

Da recolha de provas até à emissão de um mandado de captura podem passar anos. Mas ceder à morosidade da justiça teria o mesmo efeito de uma rendição voluntária ao agressor.

A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan QC, anunciou a abertura de uma investigação oficial aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por um conjunto de países, atualmente 41. Para que o processo avance, “é preciso que o Estado da nacionalidade dos alegados responsáveis pelos crimes aceitem a jurisdição, o que não é possível, porque são russos e a Rússia não aceita, ou então que o Estado em cujo território tiveram lugar os crimes, a Ucrânia, aceite a jurisdição”, explica Maria Assunção Pereira.

Paralelamente, também a Procuradoria-Geral da Ucrânia está a recolher dados sobre crimes de guerra. Há um site no qual qualquer cidadão pode registar os seus achados. “Desde o início da guerra, registamos mais de 4000 crimes militares, crimes de guerra”, disse esta segunda-feira a procuradora-geral do país. O objetivo da iniciativa é documentar factos para poder apresentar provas diante dos tribunais ucranianos e também do TPI.

A procuradora Iryna Venediktova esclareceu que ainda não foram verificadas as denúncias referentes a Bucha (execuções sumárias e valas comuns) e Mariupol. Nesta cidade do sudeste da Ucrânia, onde se estima que 90% dos edifícios tenham sido destruídos, foi bombardeado um teatro onde estava instalado o maior abrigo antiaéreo da cidade e onde estavam refugiadas centenas de pessoas. No seu exterior, uma palavra escrita em russo, visível a partir do céu, alertava para a presença de civis no local: dizia “crianças”, mas não deteve o fogo russo.

Apesar de não ser signatária do TPI, a Ucrânia reagiu à ameaça russa à sua soberania e adaptou a sua posição em relação ao TPI. Através de uma declaração emitida em 2015, a Ucrânia passou a reconhecer a jurisdição do TPI em matéria de “alegados crimes” praticados pela Rússia no seu território desde 20 de fevereiro de 2014.

Neste dia, mais de 50 manifestantes antigoverno foram mortos na Praça Maidan, em Kiev, tomada pelo movimento Euromaidan, que defendia a aproximação da Ucrânia à União Europeia. Este massacre atribuído à polícia ucraniana precipitou a queda do governo pró-russo, a invasão e posterior anexação russa da Península da Crimeia e constituiu o tiro inicial para a guerra separatista no leste da Ucrânia.

As memórias (e o exemplo) de Nuremberga

A forma como, após a II Guerra Mundial, oficiais nazis e guardas dos campos de concentração conseguiram escapar aos julgamentos de Nuremberga e esconderem-se em múltiplos países é hoje apontado como uma vulnerabilidade que se pode repetir.

Recorda Maria Assunção Pereira: “Depois de Nuremberga, foram apontadas várias deficiências a esse tribunal. Logo em 1948, a Assembleia Geral [da ONU] convidou a Comissão de Direito Internacional, que era um órgão subsidiário, a ponderar o interesse da criação de um tribunal de natureza penal e de caráter permanente. Mas, apesar de tudo o que tinha sido reconhecido em Nuremberga, houve, por um lado, a Guerra Fria (que levou a que não houvesse entendimento) e, por outro lado, a ideia (enfatizada no princípio da proibição do uso da força, na Carta das Nações Unidas) de que qualquer tribunal que fosse criado tinha que ter competência para julgar o crime de agressão. Mas como isso tocava com as competências do Conselho de Segurança também não se conseguiu fazer nada. Foi preciso esperar pelo fim da Guerra Fria”.

A trágica década de 1990 daria motivos suficientes para a reorganização da justiça internacional. Em 1993, foi estabelecido, através de uma resolução do Conselho de Segurança, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia, com competência para julgar os crimes mais graves aí ocorridos. Com o mesmo espírito, foi criado, no ano seguinte, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Só em 1998 é que foi adotado o Estatuto de Roma que instituiu o Tribunal Penal Internacional com os contornos hoje em vigor.

Existe o direito, existem instituições, mas pode faltar vontade política em que se faça justiça. Para além da Rússia, até países como os Estados Unidos, a China e Israel não assinaram ainda o Estatuto de Roma. “O TPI só pode julgar se considerar que não há vontade ou capacidade dos Estados para julgarem”, conclui Maria Assunção Pereira.

“Parece que alguém está a dizer: ‘Os meus não podem ser julgados porque mesmo no meu país não há garantias de que sejam julgados devidamente’. Nos Estados Unidos, por exemplo, há várias situações de indivíduos acusados de crimes de guerra a serem julgados em comissões administrativas. Isso não é um tribunal. Então no mandato de Donald Trump, foi uma hostilidade absolutamente paranóica contra o TPI.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui