Arquivo de etiquetas: Direitos humanos

Perseguidos, mas não esquecidos

Por todo o mundo, o exercício da fé cristã chega a ganhar contornos de crime. Seja porque os crentes vivem sob a alçada de regimes que admitem uma religião só, seja devido à intolerância de sociedades nacionalistas, seja porque “califados oportunistas” substituem-se aos Estados, não faltam exemplos de perseguição aos cristãos

ILUSTRAÇÃO Cristiano Salgado

Aquele 8 de abril de 2021 tinha tudo para ser um dia normal no Hospital Civil de Faisalabad, na província paquistanesa do Punjab. Como muitas outras vezes, as enfermeiras Mariam Lal, de 54 anos, e Nawish Arooj, de 21, estavam de serviço na ala psiquiátrica. A descida aos infernos destas paquistanesas começou quando um paciente lhes deu para a mão um autocolante rasgado que tinha arrancado de um armário de medicamentos. O papel tinha impressa uma passagem do Alcorão. Na manhã seguinte, um grupo de pessoas em fúria confrontou as duas enfermeiras e acusou-as de blasfémia. Mariam e Nawish eram cristãs e aquele autocolante rasgado era a prova de um ato de “profanação do Alcorão”.

INFOGRAFIAS Carlos Esteves

No Paquistão, acusações de blasfémia, muitas vezes falsas, motivam atos de vingança e manifestações de ódio que, amiúde, resultam em linchamentos. Um número desproporcionalmente elevado de casos envolve cristãos. Das 1550 pessoas acusadas de blasfémia desde 1986, quando o código penal foi alterado para incluir o crime de “profanação do Alcorão”, os cristãos surgem implicados em cerca de 15% dos casos, ainda que correspondam a menos de 2% da população.

A partir do seu esconderijo, Mariam e Nawish partilharam a sua história com a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que destacou o caso no relatório “Perseguidos e Esquecidos?”, divulgado em novembro passado. Esta instituição pontifícia, com sede na Alemanha e representação em Portugal, trabalha com base em dados que são do domínio público e, em especial, informações recolhidas junto da Igreja local.

As duas mulheres foram levadas e colocadas sob proteção policial. Numa decisão sem precedentes no Paquistão, dado os casos de blasfémia serem, frequentemente, punidos com pena de prisão, ambas foram libertadas sob fiança. É uma liberdade relativa, já que Mariam e Nawish passaram a viver em local secreto, temendo pela vida o tempo todo.

O relatório, que se publica desde 2004, conclui que hoje os cristãos são “vítimas de assédio por motivos religiosos, desde abusos verbais a assassínios, em mais países do que nunca”, lê-se. “Em muitos casos, se não na maioria, esta deterioração não afetou todo o país, mas apenas regiões específicas”, onde a presença de cristãos é expressiva.

Na última edição, pela primeira vez, o relatório destaca a situação na Nicarágua, onde o regime liderado por Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, tem visado a Igreja Católica, seja expulsando membros do clero do país, obrigando ao encerramento de organizações geridas pela Igreja ou restringindo atividades religiosas, como impedir padres de entrarem em hospitais, mesmo que a pedido de doentes, para dar o sacramento da unção.

A 11 de fevereiro de 2023, D. Rolando Álvarez, o bispo de Matagalpa, foi destituído da cidadania e condenado, sem julgamento, a 26 anos de prisão, por um tribunal de Manágua, que o considerou “traidor à pátria”. O bispo é uma voz crítica do regime e nunca cedeu às pressões para se exilar. Acabou por ser expulso para o Vaticano, em janeiro de 2024, juntamente com outro bispo, 15 sacerdotes e dois seminaristas. Seguiu-se a anulação do estatuto jurídico de inúmeras instituições ligadas à Igreja e o confisco de bens. A pedido das autoridades de Manágua, a Santa Sé encerrou a sua representação diplomática na Nicarágua, na sequência da expulsão do país do núncio apostólico.

Califados oportunistas

Noutras latitudes, os cristãos sofrem às mãos dos chamados “califados oportunistas” que se tornaram uma grande preocupação, em particular na região do Sahel. As tradicionais estratégias de grupos jiadistas de matança e pilhagem deram lugar a uma tendência de imposição de sistemas fiscais e comerciais ilegais ao estilo de ‘um Estado dentro do Estado’ que, muitas vezes, visa as populações cristãs.

Nos últimos anos, em especial após o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) ter sido derrotado no Iraque e na Síria, o epicentro da violência militante islamita deslocou-se do Médio Oriente para África. Na Nigéria, na véspera de Natal de 2023, mais de 300 cristãos foram mortos após extremistas da etnia fulani (muçulmana) invadirem mais de 30 aldeias, no estado de Plateau (centro). Dispararam armas de fogo, incendiaram localidades inteiras e destruíram reservas de alimentos. Jalang Mandong, que perdeu dez familiares no massacre, relatou à AIS que os ataques tiveram por objetivo “perturbar a celebração do Natal” e roubar terras às comunidades.

Os cristãos representam quase metade da população da Nigéria. Em especial no norte do país, onde continuam ativos grupos terroristas como o Boko Haram e o autoproclamado “Estado Islâmico da Província da África Ocidental”, são muitas vezes objeto de discriminação e acusações de blasfémia decorrentes da imposição da sharia (lei islâmica) em pelo menos 12 dos 36 Estados do país.

Na mesma área geográfica, o Burquina Fasso é um caso recente de agravamento da perseguição aos cristãos, que são minoritários no país. Um dos primeiros episódios que fez soar os alarmes aconteceu em outubro de 2023, quando, na região de Débé, dois escuteiros foram executados no interior de uma igreja por extremistas islâmicos — um em frente ao altar, o outro junto à estátua da Virgem Maria. Os jovens tinham por hábito escoltar crianças até uma escola na localidade vizinha de Tougan, onde estava estacionado o exército burquinense. Os terroristas tinham encerrado as escolas nas zonas onde estavam. Após este incidente, mais de 340 cristãos receberam um ultimato de 72 horas para abandonar as suas aldeias.

Os limites do Irão

“Os ataques de grupos islamitas afetaram vários grupos religiosos, incluindo os muçulmanos tradicionais”, lê-se no relatório, que cita o bispo burquinense Justin Kientega, de Ouahigouya, segundo o qual os cristãos são mais visados pelos jiadistas e enfrentam um controlo mais rigoroso e punições mais severas do que os seus vizinhos muçulmanos. “Não há liberdade de culto. Em algumas aldeias, [os jiadistas] permitem que as pessoas rezem, mas proíbem o catecismo; noutros locais, dizem aos cristãos para não se reunirem na igreja para rezar.”

A predominância da lei islâmica é fator de discriminação também no Irão, um Estado teocrático que tem um “grande ayatollah” no topo da pirâmide do poder. Nos últimos anos, os cristãos têm sofrido na pele a mão de ferro do regime que silenciou os gigantescos protestos populares que se seguiram ao “caso Mahsa Amini”, a muçulmana que foi detida e mortalmente agredida, em 2022, pela polícia de costumes, que fiscaliza nas ruas se a indumentária dos cidadãos respeita os preceitos da República Islâmica. No caso de Mahsa, consideraram que não levava o véu na cabeça, de uso obrigatório para as mulheres, corretamente colocado.

Os cristãos também não escapam. A 13 de fevereiro de 2024, Laleh Saati, uma iraniana de 46 anos convertida ao cristianismo, foi levada de casa dos pais, nos arredores de Teerão. Durante o interrogatório, na prisão de Evin, foi confrontada com fotografias e vídeos da sua participação em eventos cristãos na Malásia, onde viveu anos antes e onde foi batizada. Levada a um tribunal revolucionário, foi-lhe perguntado porque tinha regressado se tinha “feito essas coisas fora do Irão”. Foi condenada a dois anos de prisão, acrescidos de mais dois de proibição de viajar.

Os cristãos detidos no Irão aumentaram de 59, em 2021, para 166, em 2023. “As autoridades têm cada vez mais como alvo pessoas que distribuem Bíblias”, diz o relatório da AIS. As confissões cristãs são reconhecidas, oficialmente, mas a leitura da Bíblia em língua farsi não é permitida.

Na Índia, onde o nacionalismo hindu tem originado perseguições às minorias cristã e, sobretudo, muçulmana, pelo menos 12 estados adotaram leis anticonversão. Essas medidas potenciam atos de hostilidade, como negar aos cristãos o acesso à água de um poço, o enterro de um ente querido ou atos de vandalismo, agressões ou assassínios. A 24 de junho, Bindu Sodi, de 32 anos, foi morta à machadada e à pedrada por um tio, na aldeia de Toylanka, no estado de Chhattisgarh, no centro do país. Duas semanas antes, o homem e um filho tinham invadido terrenos pertencentes à família de Bindu e cultivado uma parcela. O tio defendia que aquela família não tinha direito às terras porque se tinha convertido ao cristianismo. Foi apresentada queixa na polícia, mas antes que se apurasse de que lado estava a lei, Bindu pagou com a vida a intolerância do tio.

A incógnita síria

O ano de 2024 terminou com uma grande incógnita no mapa-mundo. O fim da era dos Assad na Síria colocou no poder um grupo sunita salafita jiadista (Hayat Tahrir al-Sham) liderado por um antigo aliado da Al-Qaeda. Os receios relativamente à perseguição de minorias religiosas (e mesmo de outras sensibilidades dentro do Islão além dos sunitas) manifestam-se perante episódios como o ocorrido a 23 de dezembro, na região de Hama (centro).

Na localidade de Suqaylabiyah, de maioria cristã, um grupo de homens encapuzados deitou fogo a uma grande árvore de Natal, montada numa praça. No dia seguinte, véspera de Natal, centenas de pessoas saíram à rua nas zonas cristãs de Damasco em protesto contra o ataque. Nesse mesmo dia, quando decorreram as cerimónias natalícias na Igreja da Senhora de Damasco (católica), havia no exterior pickups com homens afetos ao grupo islamita no poder… a garantir segurança. O tempo dirá se a nova Síria será tolerante em matéria de religião.

Artigo publicado no “Expresso E”, a 10 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui e aqui

Direitos humanos são importantes, mas interesses políticos são ainda mais

O Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu mais uma sessão regular. Com tantos atropelos aos direitos humanos no mundo, as votações das resoluções acabaram por refletir outros interesses. Quer esteja em causa a Ucrânia, a Eritreia ou situações de violência religiosa, os países posicionam-se em função de quem é visado e não propriamente da justeza do assunto

Os direitos humanos não colhem unanimidade entre os Estados, nem mesmo quando não são respeitados e se espera uma reação de condenação de quem os viola. Isso ficou patente na 53.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que terminou na sexta-feira. Várias resoluções aprovadas expõem diferentes mundividências ou simplesmente aproveitamentos políticos que transformam os direitos humanos em armas de arremesso entre os Estados.

Um exemplo ficou espelhado na votação da resolução “Combater o ódio religioso que constitui incitamento à discriminação, hostilidade ou violência”, que condena e rejeita “os recentes atos públicos e premeditados de profanação do Sagrado Alcorão e destaca a necessidade de responsabilizar os autores desses atos de ódio religioso, conforme as obrigações dos Estados decorrentes do direito internacional dos direitos humanos”.

O documento exorta ainda “os Estados a examinar as suas leis nacionais, políticas e quadros legislativos para identificarem lacunas que possam impedir a prevenção e repressão de atos” que constituam incitamento ao ódio religioso, discriminação, hostilidade e violência.

No momento da votação da resolução — que foi apresentada pelo Paquistão (em nome dos membros da Organização da Cooperação Islâmica) e pelo Estado não-membro Palestina —, outras razões, que não o combate à islamofobia, falaram mais alto: 28 países aprovaram o texto, mas 12 votaram contra e 7 abstiveram-se.

Os oito membros da União Europeia que atualmente integram o Conselho de Direitos Humanos rejeitaram a resolução, tal como o Reino Unido e os Estados Unidos. A favor, votaram maioritariamente países muçulmanos, africanos e latino-americanos.

15

de março é o Dia Internacional do Combate à Islamofobia, aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A data foi celebrada pela primeira vez este ano.

O problema do ódio religioso ganhou recentemente mais premência após um refugiado iraquiano ter queimado um exemplar do Alcorão em frente à mesquita central de Estocolmo, na Suécia. O ato aconteceu a 28 de junho, quando, em todo o mundo, os muçulmanos celebravam a Festa do Sacrifício (Eid al-Adha), uma das principais no calendário islâmico.

O gesto originou protestos de rua em vários países visando, em especial, os edifícios das embaixadas da Suécia. O Papa Francisco condenou o ato, dizendo-se “irritado e enojado”, e a adesão da Suécia à NATO ficou por um fio, depois de o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ter acusado o país nórdico de ser complacente com manifestações anti-islâmicas.

Retaliação abortada junto à embaixada de Israel

Em retaliação, um homem de origem síria residente na Suécia obteve autorização das autoridades do país para queimar um exemplar da Torá e uma Bíblia em frente à embaixada de Israel em Estocolmo. Previsto para este fim de semana, o protesto não foi avante, com o seu autor a reclamar apenas atenção.

“Quero mostrar que temos que nos respeitar uns aos outros, vivemos na mesma sociedade. Se eu queimar a Torá, outro a Bíblia, outro o Alcorão, vai haver guerra aqui. O que eu quis mostrar é que não está certo para fazer isso”, disse o homem.

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas é um órgão intergovernamental composto por 47 Estados-membros que se comprometem com a promoção e a proteção dos direitos humanos. Eleitos todos os anos pela Assembleia Geral para mandatos de três anos, são escolhidos segundo um critério geográfico:

  • 13 de África
  • 13 da região Ásia-Pacífico
  • 6 da Europa de Leste
  • 8 da América Latina e Caraíbas
  • 7 da Europa Ocidental e outros Estados

O Conselho reúne-se, em sessão ordinária, três vezes ao ano, em Genebra. Só os 47 membros têm direito a voto, mas qualquer membro da ONU tem direito à palavra. A sessão que se concluiu esta sexta-feira começou a 19 de junho. A 54.ª terá início a 11 de setembro próximo.

2

vezes Portugal integrou o Conselho dos Direitos Humanos: entre 1990 e 1993 e, mais recentemente, entre 2015 e 2017.

Situada no Corno de África, a Eritreia foi outro dossiê quente que dividiu águas. O país está sinalizado como território onde há detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, condições prisionais desumanas e abusos sexuais e de género generalizados.

Recentemente, a Eritreia envolveu-se diretamente no conflito que engoliu a vizinha Etiópia, com epicentro na região do Tigray e que terminou oficialmente a 2 de novembro de 2022, com a assinatura de um tratado de paz.

Atrocidades nos dois lados da guerra

Em março deste ano, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, afirmou que quer as Forças Nacionais de Defesa Etíope, e os seus aliados, como o exército eritreu, quer as forças afetas à Frente de Libertação do Povo de Tigray cometeram crimes de guerra durante os dois anos que durou o conflito.

No Conselho de Direitos Humanos, a resolução aprovada sobre o assunto, proposta por um grupo de países, entre os quais Portugal, é um conjunto de apelos genéricos — por exemplo, ao Governo eritreu, para tomar medidas imediatas e concretas, e ao relator especial da ONU, para apresentar um relatório ao Conselho sobre o assunto —, mas nem assim colheu unanimidade.

A favor, votaram apenas 18 países, 7 votaram contra e houve 21 abstenções. Ao lado da Eritreia, rejeitaram a resolução China, Cuba, Índia, Paquistão, Somália e Sudão.

A subalternização da importância dos direitos humanos aos interesses políticos ficou patente em três outras situações.

  1. SÍRIA — Um total de 24 países aprovaram uma resolução que condena o facto de as mulheres e crianças sírias serem alvo de ataques direcionados e de haver “leis ou práticas discriminatórias com base no género por quaisquer partes do conflito, predominantemente o regime sírio”. Quatro membros saíram em defesa do regime de Bashar al-Assad: Bolívia, China, Cuba e Eritreia.
  2. BIELORRÚSSIA  Uma resolução manifestando “profunda preocupação com as contínuas violações sistemáticas dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na Bielorrússia, em particular as restrições opressivas em curso aos direitos à liberdade de reunião, associação e expressão pacíficas, tanto online como offline” foi respaldada por 20 países, tendo uma maioria de 21 membros optado pela abstenção. Em defesa do regime de Alexander Lukashenko posicionaram-se Bolívia, China, Cuba, Eritreia, Cazaquistão e Vietname.
  3. ISRAEL  O Conselho adotou uma resolução solicitando “recursos financeiros, humanos e ao nível do conhecimento” para aplicar uma resolução histórica de 2016, que, pela primeira vez, considerou os colonatos israelitas em território palestiniano, incluindo em Jerusalém Oriental e nos Montes Golã, “ilegais e um obstáculo à paz e ao desenvolvimento económico e social”. Na votação, 31 países votaram a favor, 13 abstiveram-se e três ficaram ao lado de Israel: República Checa, Reino Unido e Estados Unidos.

atual composição do Conselho de Direitos Humanos conta com a presença da Ucrânia. A Federação Russa também foi eleita para este ciclo, mas a 7 de abril de 2022 renunciou ao cargo, na sequência de uma deliberação da Assembleia-Geral da ONU que suspendeu a Rússia do Conselho.

Com uma guerra em curso, a situação na Ucrânia foi também objeto de deliberação nesta sessão. Uma resolução relativa à “cooperação e assistência à Ucrânia no campo dos direitos humanos” foi rejeitada por China, Cuba e Eritreia, mas viabilizada por 28 votos favoráveis e 16 abstenções.

À mesa das discussões, o assunto tornou-se, ele próprio, uma guerra de argumentos. De um lado, acusações à Rússia de violação da Carta das Nações Unidas por uma agressão brutal, não provocada e injustificada que multiplica sofrimento na Ucrânia e consequências negativas em todo o mundo.

Do outro, países que atribuem as raízes da tragédia ucraniana às políticas dos Estados Unidos e à expansão para leste da Aliança Atlântica (NATO), à revelia das exigências de segurança de Moscovo. Para uns e outros, o Conselho de Direitos Humanos mais não é do que um campo de batalha.

(ILUSTRAÇÃO “Todo o ser humano tem direitos” FORBES INDIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui

Os barcos da ilusão

Perseguidos em Myanmar ou refugiados no Bangladesh, pagam a traficantes para que os tirem dali

Rezuwan não teve a coragem da irmã. Abandonada pelo marido e com duas filhas a seu cargo, Hatamonesa pagou 100 mil tacas bengalis (€900) a um traficante para que a metesse num barco e a resgatasse da vida difícil no campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

A 25 de novembro de 2022, Hatamonesa e uma filha de cinco anos estavam entre os cerca de 180 ocupantes de uma embarcação, maioritariamente rohingyas, que zarpou da zona de Teknaf. Para trás deixou a filha mais velha, entregue ao cuidado de familiares que não ousaram seguir com ela.

Foi o caso do irmão Rezuwan, de 25 anos, casado e pai de uma bebé de um ano. “É muito perigoso. Aqueles barcos são impróprios para navegar e os traficantes tentam meter mais e mais pessoas lá dentro para ganharem mais dinheiro”, conta ao Expresso. “É como jogar à moeda: se tivermos sorte, sobrevivemos, se não tivermos…”

Do campo foi acompanhando a odisseia da irmã. “Dias após terem partido, o homem do barco disse ao traficante, através de um telefone satélite, que o motor tinha parado. De início não nos disseram nada e tentaram resolver o problema. Mas quando a situação se descontrolou, falaram connosco para pedirmos ajuda à comunidade internacional. Para ser sincero, não acreditei neles. Nem imaginava que tivessem um telefone satélite. Pensei que era apenas uma artimanha para extorquirem mais dinheiro às famílias.” Acabou por chegar à fala com o barqueiro e inteirou-se da real situação do barco.

Um mês à deriva

O plano da irmã era chegar à Indonésia e depois seguir para a Malásia ou outra “terra humanitária, onde a filha pudesse ir à escola e depois à universidade e ela própria tivesse uma vida diferente”. Assim que tivesse condições, tentaria que a filha mais velha se lhes juntasse.

Tudo foi posto em causa depois de o barco ter ficado à deriva entre a baía de Bengala e o mar de Andamão. A angústia durou mais de um mês, sem que nenhum país à volta respondesse à urgência e abrisse as fronteiras.

JAIME FIGUEIREDO

Em águas tailandesas, alguns atiraram-se à água na esperança de serem resgatados por pescadores ou pela Marinha. Depois, a corrente levou o barco para águas indianas, onde, por fim, desembarcaram, a 26 de dezembro, na zona de Aceh, na ponta norte da ilha de Samatra. Não sobreviveram à odisseia 26 pessoas. Desde então, Rezuwan vai tendo notícias da irmã de longe a longe, através de telefonemas de três minutos facilitados pela ONU.

O desespero em que vive esta minoria muçulmana — que no seu país, Myanmar, é perseguida e no Bangladesh, para onde fugiu, vive em campos de refugiados — leva os rohingyas a recorrerem aos barcos como tentativa de fuga para uma vida mais segura e digna.

“Em Myanmar dizem que sou bengali, no Bangladesh sou rohingya. Não sou reconhecido por nenhum país. Vou para onde?”

Em 2022, segundo a ONU, 3545 rohingyas lançaram-se ao mar em 39 embarcações — mais 360% do que no ano anterior. Desembarcaram 3040, morreram ou desapareceram 348 e, no final do ano, havia ainda 157 no mar. Quase 45% dos embarcados eram mulheres e crianças.

Este fenómeno encerra uma ironia: 32% dos barcos foram intercetados em Myanmar (e os ocupantes presos, incluindo crianças). A Malásia acolheu 25%, a Indonésia 24%, 10% dos barcos voltaram ao Bangladesh, 5% foram para a Tailândia e 3% para o Sri Lanka.

Um povo sem cidadania

A perspetiva de terem futuro nestes países é uma ilusão. Sem reconhecimento legal, este povo não tem passaporte que lhe permita emigrar. “Em Myanmar dizem que sou bengali, no Bangladesh sou rohingya. Não sou reconhecido por estes países. Aliás, por nenhum. Vou para onde, então?”

Rezuwan chegou ao campo em 2017, fugido à repressão ordenada pela junta militar contra o seu povo. Em duas semanas, cerca de 700 mil rohingyas cruzaram a fronteira com o Bangladesh, triplicando a população de refugiados na região de Cox’s Bazar (Sueste). Até lá, foram três dias a pé, com seis familiares, incluindo a mãe e um irmão com deficiência. Hoje vivem todos numa estrutura coberta por um toldo, com paredes de bambu e chão em cimento.

Passados cinco anos, a situação provisória dos rohingyas é cada vez mais definitiva. “Somos um milhão nos campos, mas só uns cinco mil trabalham para organizações não governamentais a troco de 100 dólares [€94]. Não tenho trabalho profissional. Ganho algum a ajudar jornalistas.”

Muitos rohingyas vão nos barcos tentar arranjar trabalho e tirar as famílias da miséria, fugindo a uma situação cada vez mais explosiva. “Tornámo-nos um fardo para o Bangladesh, a maioria não nos quer aqui muito mais tempo. Não veem avanços a nível do repatriamento. E há falta de interesse pelo nosso problema. Somos muito poucos. Está a fazer-se tarde. O meu avô morreu sem ver a sua identidade reconhecida, o meu pai também.”

Rezuwan acha que não vai escapar ao mesmo fado, mas não se deixa derrotar. Calcorreou os campos durante dois anos e recolheu contos populares rohingyas da boca dos mais velhos. Traduziu-os e publicou o livro “Rohingya Folktales: Stories from Arakan”, garantia de que aquele património sobreviverá ao desaparecimento de sucessivas gerações de contadores de histórias e à inexistência legal do seu povo.

(FOTO Um barco que transportou refugiados rohingyas permanece ancorado no Mar de Andamão depois do desembarque dos ocupantes numa praia em Aceh, na Indonésia, a 8 de janeiro de 2023 KENZIE EAGAN / UNHCR)

Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Nicarágua libertou 222 presos políticos. Para o regime do casal Ortega, foram “deportados traidores”

Um grupo de 222 políticos, jornalistas, religiosos e personalidades da sociedade civil da Nicarágua, críticos do regime liderado pelo ex-guerrilheiro sandinista Daniel Ortega, foi libertado de forma inesperada. Abertas as portas da prisão, entraram num avião e seguiram para os Estados Unidos. São “traidores à pátria”, defendem os apoiantes do Presidente. “Vão para o exílio, mas vão para a liberdade”, regozijou-se um escritor nicaraguense, também ele crítico do regime

O governo ditatorial da Nicarágua, liderado pelo casal Ortega, abriu as portas da cadeia, esta quinta-feira, a 222 presos políticos. Ainda de mandrugada, estes partiram de Manágua, num voo charter organizado pelo governo dos Estados Unidos, e foram transportados para o Aeroporto Internacional de Dulles, nas imediações de Washington DC.

A decisão afetou antigos candidatos presidenciais e governantes, como o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Francisco Aguirre-Sacasa, personalidades da sociedade civil, jornalistas e membros da Igreja Católica, todos eles críticos do regime liderado, desde 2007, pelo ex-guerrilheiro Daniel Ortega que tem como vice-presidente, desde 2017, a sua mulher, Rosario Murillo.

Alguns dos presos políticos estavam dispersos por vários estabelecimentos prisionais do país, outros viviam em regime de prisão domiciliária. Foram detidos na sequência dos violentos protestos antigovernamentais de 2018.

“Um grande dia para a luta pela liberdade”

Para além de assistência médica e legal, escreve a agência Reuters que terão ajuda do Departamento de Estado norte-americano para se reunirem com familiares que já vivem em solo americano, muitos deles fugidos a vagas repressivas anteriores.

“Hoje é um grande dia para a luta pela liberdade na Nicarágua, ao saírem das prisões tantos prisioneiros condenados ou processados injustamente, prisões onde nunca deveriam ter estado. Vão para o exílio, mas vão para a liberdade”, regozijou-se, no Twitter, o escritor nicaraguense Sérgio Ramirez, Prémio Cervantes 2017 e, ele próprio, um crítico do regime.

A publicação “El 19 Digital”, afeta ao movimento sandinista, de que emana o partido do Presidente Ortega, escreve que as pessoas que saíram em liberdade são “traidores à pátria”, que foram condenadas “pela prática de atos atentatórios à independência, soberania e autodeterminação do povo, por incitação à violência, ao terrorismo e à desestabilização económica”.

Alvo ao ouro

O diário britânico “The Guardian” escreve que esta libertação massiva é “uma forma de sinalizar o desejo de relançar relações com os Estados Unidos”.

Na sequência da demonstração de nepotismo do regime Ortega-Murillo e da repressão à dissidência, a Administração Biden impôs sanções económicas que visaram diretamente o sector do ouro — o principal produto de exportação da Nicarágua. Estatísticas do Banco Central do país revelam que, em 2021, 79% das vendas de ouro tiveram como destino os Estados Unidos.

Para além da governação autocrática, nos últimos anos a Nicarágua tem sido notícia por ser um dos países de origem das caravanas de migrantes que partem a pé rumo ao “el dorado” norte-americano. E, no contexto da invasão russa da Ucrânia, Daniel Ortega foi dos primeiros países a sair em defesa de Vladimir Putin.

(IMAGEM WIKIPEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de fevereiro de 2023. Pode ser consultado aqui

‘Kafala’, o sistema laboral do Catar que faz do sonho pesadelo

As críticas ao Catar, onde o Mundial arranca no domingo, decorrem de uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante

A esmagadora maioria dos migrantes abrangidos pelo sistema kafala entregam o seu passaporte ao seu empregador MIGRANT-RIGHTS.ORG

A polémica em torno dos direitos dos migrantes no Catar capturou um evento talhado para deslumbrar. Pelo exotismo de ser o primeiro Mundial a decorrer no Médio Oriente e por projetar um pequeno Estado com uma riqueza infinita, que recentemente lhe permitiu resistir a três anos e meio de bloqueio ao território aplicado por quatro países vizinhos.

Na base deste portento estão leis, práticas e costumes laborais que transformam os trabalhadores estrangeiros em ‘escravos dos tempos modernos’ — o sistema kafala. Em árabe, kafala significa ‘garantia’, a mesma que, em teoria, um empregador dá ao empregado quando o contrata.

“No centro deste sistema está uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante, o que a torna particularmente problemática”, explica ao Expresso Ryszard Cholewinski, responsável do gabinete para os países árabes da Organização Internacional do Trabalho.

“A entrada do migrante no país está vinculada a um empregador específico, através de uma autorização de trabalho e residência; a renovação da permanência no país é da responsabilidade do empregador, sendo que a não-renovação da autorização de residência coloca o trabalhador em situação irregular, sujeito a prisão, detenção e deportação; a rescisão do contrato de trabalho requer a aprovação do empregador; mudar de um empregador para outro requer a aprovação do primeiro; a saída do país tem de ter aprovação do empregador.”

Catar lidera nas reformas

O sistema kafala é aplicado nos seis países ribeirinhos do golfo Pérsico, mas também em países árabes, como Jordânia, Líbano e Iraque, com populações significativas de migrantes. Apesar de estar na mira das críticas, o Catar é um dos países que mais reformas tem realizado.

O sistema kafala está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os habitantes nativos

Segundo a Organização Internacional para as Migrações, em 2011, no Catar, 92% dos ‘colarinhos azuis’ (que realizam trabalhos manuais, como trabalhadores da construção civil ou motoristas) tinham entregado o seu passaporte ao empregador. Fruto de pressões regulatórias, em 2014 a percentagem tinha caído 18 pontos. Paralelamente, a quantidade de trabalhadores que dizia conservar consigo o passaporte subiu de 8% para 22%. Hoje, reter o passaporte do trabalhador é ilegal, exceto se tal for solicitado por escrito pelo próprio.

Que querem os nativos?

“O Catar está mais avançado em termos de reformas do sistema kafala e começou a desmantelar os aspetos mais problemáticos do mesmo”, diz Cholewinski. “As reformas incluem a abolição da autorização de saída e do Certificado de Não-Objeção”, ou seja, os migrantes já não precisam do ‘sim’ dos patrões para sair do país ou mudar de emprego.

“Os imigrantes sempre tiveram um papel imenso nas monarquias do golfo, com origem na indústria das pérolas, no século XIX, que impulsionou a imigração em massa a partir do Corno de África”, explica ao Expresso David B. Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”. “Hoje, o sistema também está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os locais. Nativos e líderes querem ter um mecanismo de controlo de quem está no país.”

Cerca de 90% dos 2,8 milhões de habitantes do emirado são estrangeiros, sobretudo da Índia, Bangladexe e Nepal. “Os catarenses estão em desvantagem no seu próprio país, nas empresas, fábricas e casas.”

À parte a pressão interna­cional para que o sistema acabe, essa terá de ser uma vontade local. “O Catar é um país autocrático”, conclui o professor do King’s College de Londres. “E, mesmo em autocracias, os líderes precisam de perceber até que ponto podem insistir em ideias e políticas que os locais não querem. O sistema kafala é um tema quente no Catar. Os locais não querem que seja diluído e até gostariam que fosse alargado.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui