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Um apelo a Ronaldo, Messi e companhia: “Se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar, será uma oportunidade perdida”

As críticas à volta da atribuição do próximo Mundial ao Catar colocam ainda mais os holofotes sobre os futebolistas que irão competir nos luxuosos relvados do emirado. “Os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem” sobre o trabalho escravo dos migrantes, as restrições impostas às mulheres ou a rejeição dos homossexuais, defende Tim Sparv, antigo futebolista finlandês, em entrevista à Tribuna Expresso. Sparv pôs a mão na consciência e tornou-se uma voz em defesa da moralidade no desporto

Nos últimos quinze anos, dois dos maiores eventos desportivos à escala global foram atribuídos, por quatro vezes, a países autoritários, com a ficha suja ao nível do respeito pelos direitos e liberdades individuais.

A China organizou os Jogos Olímpicos de verão em 2008 e a edição de inverno de fevereiro passado, ambos em Pequim. Já a Rússia acolheu os Jogos de inverno de 2014, em Sochi, e o Campeonato do Mundo da FIFA de 2018.

Este ano, ao realizar o Mundial de futebol, o Catar soma-se à lista exclusiva de países com capacidade para organizar, por si só, um evento de grande dimensão. Sem créditos na modalidade, o pequeno emirado do Golfo Pérsico — pouco maior do que o distrito de Beja e com menos de três milhões de habitantes — beneficia de um orçamento suficientemente ilimitado para deslumbrar o mundo do desporto.

Haverá uma sombra a ofuscar todo o glamour: o tratamento escravo dado aos imigrantes, as restrições dos direitos das mulheres e a rejeição à comunidade LGBTQIA+ levantam questões morais que responsabilizam, neste caso, a FIFA e não deixam indiferentes muitos profissionais do desporto.

Um prémio para ditadores

“Atribuir um grande torneio, como o Mundial de futebol, devia ser um prémio por um registo positivo ao nível dos direitos humanos. Devia existir um conjunto de critérios na hora de dar este tipo de eventos. De outra forma, vamos pôr vidas humanas em risco e vamos recompensar ditadores e países que não o merecem”, defende o antigo futebolista finlandês Tim Sparv, em entrevista à Tribuna Expresso.

“Para mim, este tipo de organizações devem compensar bons comportamentos e atitudes, pessoas focadas na igualdade e em valores positivos. Não pode ser suficiente montar um bom espetáculo durante um mês. É necessário algo mais”, sublinha.

Tim Sparv foi o capitão da seleção da Finlândia no Euro 2020, o primeiro Europeu em que a equipa nórdica participou, em 2021 JOOSEP MARTINSON / GETTY IMAGES

O internacional finlandês, que arrumou as chuteiras no final do ano passado, aos 34 anos, é hoje uma voz ativa na denúncia dos problemas laborais no Catar e no apelo para que os agentes desportivos se envolvam.

“Os atletas podem ter um grande impacto na sociedade, mas muitas vezes isso não acontece. Estamos muito envolvidos na profissão e não vemos as possibilidades que temos, de falarmos com crianças e jovens e de os influenciarmos, de passarmos mensagens positivas, contra o racismo, a favor da igualdade, sobre os migrantes, a importância da leitura, pode ser sobre tantas coisas…”, diz.

“Mas é preciso que seja algo em que acreditemos e que nos apaixone. Chegou um pouco tarde na minha carreira, mas estou feliz por fazer algo.”

Viver na bolha, sem olhar o mundo

Sparv despertou para o problema dos abusos dos direitos humanos no Catar em 2019, quando a seleção finlandesa tinha um estágio agendado nesse país do Golfo. Riku Riski, um companheiro de equipa, alegou razões éticas e recusou fazer a viagem.

“Este episódio fez-me questionar: ‘O que se passa? O que não estou a ver?’ Eu sabia que o Catar não era propriamente como a Finlândia, mas vivia na minha bolha, demasiado concentrado em ser futebolista acima de qualquer coisa, em vez de usar a minha condição de capitão da seleção nacional para consciencializar para determinados assuntos.”

Antes de um jogo contra a Turquia, Haaland, estrela da seleção norueguesa e do Manchester City, usa uma ‘t-shirt’ com a inscrição “Direitos humanos, dentro e fora do campo” JORGE GUERRERO / AFP / GETTY IMAGES

Se qualquer futebolista internacional, mesmo em países sem grande projeção na modalidade, tem potencialmente uma audiência de milhões de adeptos a escutá-lo, esse ativo é muitas vezes desperdiçado pelos maiores craques.

“Nestas grandes competições, os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem destes assuntos. Ficarei muito desiludido se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar. Será uma oportunidade perdida.”

A diplomacia das t-shirts

Tim acredita que haverá equipas ou jogadores individualmente a colocarem o dedo na ferida. Anima-o iniciativas como as das seleções da Noruega, Alemanha e Países Baixos — as duas últimas qualificadas para o Catar — que, em jogos de qualificação para o torneio, recorreram à “diplomacia da t-shirt” para difundir mensagens importantes.

“Direitos humanos dentro e fora do campo”, defenderam os noruegueses em camisolas usadas no aquecimento do jogo contra Gibraltar, a 24 de março de 2021. No dia seguinte, antes de defrontarem a Islândia, os jogadores alemães apresentarem-se em formação com a expressão “direitos humanos” estampada em t-shirts pretas. Dias depois, foi a vez dos neerlandeses juntaram-se à campanha com o slogan “Futebol apoia a mudança”.

Sem adesão da equipa adversária (Hungria), os jogadores ingleses protestam contra o racismo, na Puskas Arena de Budapeste NICK POTTS / GETTY IMAGES

Em março deste ano, Harry Kane, o capitão da seleção inglesa, revelou que os jogadores tinham-se reunido para discutir a questão dos direitos humanos no Catar. E garantiu que os ingleses irão usar as plataformas ao seu dispor para aumentar a consciencialização sobre o assunto.

“É importante perceber que, antes de tudo, enquanto jogadores, nós não escolhemos onde este Campeonato Mundial vai ter lugar”, disse Kane. “Mas isto acabou por contribuir para lançar o foco sobre questões importantes que poderiam não ter vindo à tona se o Mundial não se realizasse ali.”

Ainda o exemplo de Kaepernick

A equipa inglesa tem sido das que, de forma mais convicta, continua, antes de cada partida, a colocar o “joelho no chão”, num protesto antirracismo criado por Colin Kaepernick. Em 2016, este jogador de futebol americano ajoelhou-se durante a execução do hino dos Estados Unidos, em protesto contra a violência racial no país. O gesto acabou com a carreira do futebolista, mas continua a inspirar desportistas em todo o mundo.

“Tenho a certeza que alguém vai usar o Mundial no Catar para fazer algum tipo de campanha, alguma ação focada na situação dos trabalhadores migrantes, na igualdade, nos direitos das mulheres ou da comunidade LGBTQ”, diz Sparv.

“Estou bastante confiante que alguém diga: ‘Ok, esta é uma grande possibilidade de falarmos sobre estes assuntos, de sermos criativos e fazermos algo acontecer, dentro ou fora do campo, antes ou depois dos jogos’. E os adeptos também têm a possibilidade de desempenhar um papel.”

Tim Sparv abandonou os relvados em dezembro de 2021, aos 34 anos, encerrando uma carreira de quinze anos como futebolista profissional LARS RONBOG / GETTY IMAGES

Sparv acredita no poder da palavra. Além das entrevistas aos órgãos de informação, tem escrito artigos incitando os protagonistas do futebol a não ficarem indiferentes.

Já este ano, deslocou-se ao Catar, numa viagem organizada pela Federação Internacional das Associações de Futebolistas Profissionais (FIFPro), o que lhe possibilitou o contacto com migrantes, deu-lhe um conhecimento mais amplo do problema e conferiu-lhe maior legitimidade para falar.

Como tratar a Rússia?

O finlandês não se mostra partidário do boicote a eventos desportivos realizados em países alvo de algum tipo de desaprovação internacional. Mas aceita que possa haver exceções, e toma como exemplo a invasão russa da Ucrânia.

“Boicotar a Rússia, impedindo-a de participar em eventos desportivos internacionais, é a única coisa a fazer. É um pouco difícil ver como isso afeta os atletas russos individualmente. Eles deviam ter a possibilidade de continuar com as suas carreiras, não usando a bandeira da Rússia, claro. Mas no caso de atletas que apoiem a guerra, façam a apologia de Vladimir Putin ou usem a letra Z, penso que não deverão ter hipótese de participar em competições internacionais.”

Uma bandeira com o “Z” de apoio à invasão russa da Ucrânia é desfraldada durante um jogo do campeonato sérvio ANDREJ ISAKOVIC / AFP / GETTY IMAGES

A agressão da Rússia à Ucrânia levou países vizinhos a recearem passar por igual pesadelo. A Finlândia, em particular, pôs fim à sua neutralidade histórica e pediu adesão à NATO.

Sparv, que vive atualmente em Praga, a capital da República Checa, de onde é natural a companheira, fez a sua parte e entregou as chaves do seu apartamento, na cidade de Vaasa (na costa ocidental), a uma família ucraniana composta por mãe e dois filhos.

“O pai ficou na Ucrânia, mas a família está bem, se é que é possível dizê-lo desta forma. As crianças gostam de futebol, então levei-as a um clube local, em Vaasa. Já estão a praticar e a fazer novos amigos. Para mim, foi uma forma concreta de ajudar alguém. Senti-me mesmo bem.”

(FOTO PRINCIPAL “Direitos humanos”, lê-se nas ‘t-shirts’ da seleção da Alemanha, num jogo de qualificação para o Mundial do Catar TOBIAS SCHWARZ / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 4 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Junta militar retomou as execuções. Porquê?

O alvo foram quatro ativistas pró-democracia. Há mais de 100 sentenças de morte à espera

1. Porque há críticas a Mianmar?
Esta semana, a junta militar no poder anunciou a execução de quatro ativistas pró-democracia, acusados de contribuir para “atos terroristas” ao oporem-se ao golpe militar de 1 de fevereiro de 2021. Desde o afastamento do Governo democraticamente eleito, gerou-se um Movimento de Desobediência Civil com várias formas de protesto: bater em panelas, manifestações de rua, recusa em pagar contas e boicote a lotarias patrocinadas pelo Estado e empresas ligadas aos militares. A junta tem em curso uma repressão à campanha.

2. Quão surpreendentes foram as execuções?
O regime não aplicava sentenças de morte desde a década de 80. E há receios de que não se fique só por estas quatro. Segundo a Associação de Assistência a Presos Políticos, desde o golpe, tribunais militares já decretaram 117 penas capitais. Esta semana, ao rebater a condenação internacional, um porta-voz da junta mostrou determinação e disse que os ativistas “mereciam muitas sentenças de morte”. Segundo o jornal “The Irrawaddy”, os quatro foram enforcados.

3. Onde está Aung San Suu Kyi?
A líder da oposição e Nobel da Paz está presa, mais uma vez. Era ela que liderava o Governo civil, eleito nas urnas, deposto pelo golpe militar do ano passado. Aos 77 anos, Suu Kyi está na prisão de Naypyitaw a cumprir pena de 11 anos. Acusada de fraude eleitoral, enfrenta um total de 11 acusações que podem valer-lhe um cúmulo jurídico de mais de 150 anos atrás das grades.

4. Mianmar é um país em paz?
A impopularidade do golpe levou alguns grupos a pegar em armas para se juntarem à resistência. Isto acontece num país cuja Constituição reconhece 135 grupos étnicos, que não os rohingya (muçulmanos), o que tem valido sanções internacionais a Mianmar. Alguns grupos levam anos de rebelião contra o poder central. A 15 de julho, oito soldados governamentais foram mortos em Myawaddy Township, no estado dos Karen, o grupo armado mais antigo.

5. Quem tem influência no país?
A China, que ali tem interesses, como o Corredor Económico China-Mianmar, um conjunto de infraestruturas projetadas ao abrigo da Nova Rota da Seda. Mas a junta preza o isolamento. No último debate na Assembleia-Geral da ONU, em que os 193 países levam representantes a discursar em Nova Iorque, apenas dois faltaram: o Afeganistão dos talibãs, a quem a ONU fechou a porta, e Mianmar.

(FOTO Min Aung Hlaing, líder da Junta militar de Myanmar WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Esquecidos e assimilados à força, tibetanos já só querem autonomia

Ofuscado pela agitação em Hong Kong, a tensão em Taiwan e o drama dos uigures, o Tibete continua a ser uma pedra no sapato de Pequim

A escala de Mingyur Paldon no aeroporto de Lisboa, a 3 de janeiro passado, devia ter durado só uma hora, mas prolongou-se por quase um dia inteiro. Em trânsito entre os Estados Unidos, onde estuda Relações Internacionais e Desenvolvimento Humano no Connecticut College, e a Bélgica, onde ia fazer um semestre, esta tibetana, de 22 anos, viu a viagem interrompida quando, a caminho da ligação, foi intercetada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Foi interrogada após cinco horas de espera e percebeu que havia desconfianças em relação ao documento com que viajava: um “certificado de identidade” emitido pelo Governo da Índia para refugiados tibetanos. Parecido com um passaporte amarelo, tem ao centro o capitel do Leão de Ashoka, emblema nacional da Índia. Mingyur — que nasceu no Tibete e chegou à Índia aos dois anos — usou-o sem problemas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em Portugal não foi aceite.

No aeroporto, “foram muito ignorantes sobre um conjunto de coisas”, afirma ao Expresso. “Disseram que eu devia ter uma cidadania, de alguma forma, e perguntaram se não tinha passaporte chinês. Expliquei que não é possível, porque sou refugiada. Deixaram-me ir, mas recusaram-se a carimbar o meu passaporte. Fizeram-no no cartão de embarque.” Após pernoitar num hotel perto do aeroporto, deixou o país às 7h20 do dia 4.

Antes morto do que preso

Desde o início do ano, já morreram três tibetanos imolados pelo fogo. Tsewang Norbu, cantor de 25 anos a quem chamam “o Justin Bieber tibetano”, sacrificou-se em frente ao Palácio Potala, em Lassa. Em Ngaba, um homem de 81 anos imolou-se junto a um posto da polícia. Em junho, em Kanlho, um monge morreu ao lado de uma foto do Dalai Lama, o líder espiritual tibetano.

Perante tibetanos que se imolam pelo fogo, o Governo chinês fica impotente. Não sobra ninguém para punir

Desde 2009, foram já 161 os tibetanos a recorrer a esta forma extrema de protesto. “Nos anos 80 havia manifestações quase todos os meses, que o Governo chinês tratou de controlar e eliminar. Quem participasse ia preso, era torturado e via as famílias sofrer. Com práticas coercivas de controlo, intimidavam comunidades inteiras. Por vezes, não apenas a família, mas todo o bairro era punido”, recorda ao Expresso Tsering Shakya, da Universidade de British Columbia, em Vancôver (Canadá).

A experiência de Mingyur em Portugal é apenas um exemplo das dificuldades que enfrentam os estimados 150 mil tibetanos da diáspora. Nada comparável, porém, ao quotidiano de desespero e frustração de mais de seis milhões, que vivem, desde 1950, sob ocupação chinesa, no planalto tibetano: dois milhões na Região Autónoma, quatro milhões noutras regiões chinesas.

“A maioria dos presos só saía em liberdade quando estava prestes a morrer. Os tibetanos começaram a perceber que ser preso significava morrer e que imolarem-se não requeria qualquer organização, apenas que fossem a uma praça e ateassem fogo ao corpo. Não sobraria ninguém para ser punido e o Governo ficaria impotente”, continua o tibetano, nascido em Lassa em 1959. “Negar o poder de torturar é poderoso.”

Mal atendeu a videochamada do Expresso, o professor agarrou no livro que andava a ler e mostrou-o para a câmara. “É sobre os jesuítas portugueses no Tibete. Estavam em Goa, na Índia, e foram para o Oeste do Tibete. Foram muito importantes de 1582 até cerca de 1700. Mas o Papa mandou que se retirassem e deixassem o Tibete para os confucianos. Foi um grande erro.”

JAIME FIGUEIREDO

As armas de Pequim

Desde 1984 que a China tem em vigor uma lei da autonomia regional pela qual formalizou a atribuição de autonomia às suas minorias. Desde que Xi Jinping é Presidente (2013), no entanto, a situação do Tibete “piorou muito”, conta ao Expresso Tsering Tsomo, diretora-executiva do Centro Tibetano para os Direitos Humanos e Democracia, com sede em Dharamshala, na Índia. “O Governo chinês está a aplicar ativamente uma política de assimilação cultural forçada.” O professor Shakya fala de “colonização mental do Tibete”.

Cerca de 800 mil crianças vivem em internatos coloniais e recebem uma educação altamente politizada

A autoridade chinesa exerce-se prioritariamente no sector educativo. Na escola, ensina-se desde tenra idade que o Tibete faz parte da China e que o hino nacional que devem saudar é a “Marcha dos Voluntários”. Tudo é explicado em chinês, sendo o tibetano ensinado como língua estrangeira.

Um relatório recente do Tibet Action Institute expõe “uma vasta rede de internatos coloniais no Tibete, onde os estudantes vivem separados das suas famílias e são sujeitos a uma educação altamente politizada, essencialmente em chinês”. Afeta pelo menos 800 mil crianças, dos 6 aos 18 anos.

O que querem os tibetanos?

Desde que, na década de 80, Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, teorizou o “Caminho do Meio” — que consagra a interpretação budista da vida quotidiana e rejeita posições extremas — que as aspirações políticas tibetanas ficaram claras. A posição oficial do Governo tibetano no exílio (em Dharamshala, no Norte da Índia, para onde o Dalai Lama fugiu em 1959, após uma revolta tibetana esmagada pelos chineses) é de apelo à autonomia, não à independência.

‘Um país, dois sistemas’ não seduziu Taiwan e não funciona em Hong Kong. Porque haveria o Tibete de aceitar?

Nascida na Índia, Tsering Tsomo, de 45 anos, nunca foi ao Tibete. “É preciso uma autorização das autoridades chinesas. Trabalho na área dos direitos humanos, é impossível. Sei que estou sob vigilância.” Podia obter cidadania indiana com facilidade, mas prefere manter o estatuto de refugiada e lutar pelo sonho nacional. “Apelamos a uma verdadeira autonomia, não só na Região Autónoma como em todas as áreas tibetanas. Devem beneficiar e exercer poderes de autogoverno.”

O quarto problema

Quando o Dalai Lama propôs o “Caminho do Meio” aos tibetanos, a China ofereceu a Hong Kong, Macau e Taiwan a fórmula “um país, dois sistemas”. “Não seduziu Taiwan e não está a funcionar em Hong Kong. Porque é que o Tibete haveria de aceitar algo semelhante?”, questiona Shakya. Se o Tibete já foi o principal fantasma a perseguir Pequim fora de portas, hoje três outros problemas absorvem a atenção mediática: a repressão à minoria uigur (muçulmana) em Xinjiang, o silenciamento do movimento pró-democracia em Hong Kong e a tensa coexistência com a China nacionalista (Taiwan).

A China está a ficar mais descarada. Pode fazer o que quer e a comunidade internacional nada faz

“O Tibete foi relegado para quarto lugar”, apesar de ter sido “o primeiro assunto que chamou a atenção da comunidade internacional para quão implacável e brutal é o regime comunista chinês”, diz a ativista Tsering. “Foi o primeiro aviso, mas tudo continuou na mesma. E outros problemas surgiram. Todo este acumular de questões mostra como a China está a ficar mais descarada, pensando que pode fazer o que quer e que a comunidade internacional não faz nada. O Tibete devia ser um alerta para que mais nenhum assunto fosse adicionado à lista.”

(IMAGEM Bandeira do Tibete WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui

Raif Badawi já saiu da prisão, mas ainda não é um homem livre

Foi notícia em todo o mundo após ser condenado a 1000 vergastadas em público pela justiça saudita. Cumpridos dez anos de prisão, o bloguista Raif Badawi foi libertado, mas enfrenta a proibição de viajar durante mais dez anos. Iss impede-o de se juntar à família, exilada no Canadá. “Se Portugal puder ajudar…”, apela um membro da equipa de defesa do intelectual saudita

Há sete anos por esta altura, Raif Badawi era o saudita mais famoso do mundo. Um vídeo filmado às escondidas no momento em que sofria 50 vergastadas, numa praça junto a uma mesquita na cidade saudita de Jeddah, foi descarregado na Internet e correu mundo. A exposição de práticas medievais no reino saudita, em pleno no século XXI, gerou indignação mundial.

Badawi, nascido em 1984, pagara caro o ‘atrevimento’ de escrever sobre liberdade religiosa, democracia e direitos humanos no seu blogue “Liberais Sauditas Livres”. Detido e acusado de “insulto ao Islão”, em 2012, foi condenado a 10 anos de prisão, 1000 chicotadas em público, 10 anos de inibição de viajar (após ser libertado) e uma multa no valor de um milhão de riais sauditas (hoje sensivelmente 266 mil euros).

O intelectual acabaria por sofrer apenas essa primeira leva de 50 açoites — a segunda foi adiada oito vezes e nunca concretizada. O próprio castigo por flagelação acabaria por ser abolido no reino, no âmbito das reformas promovidas pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, em 2020.

Apesar dos pedidos de clemência feitos pela família e dos inúmeros apelos à libertação que partiram de organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, de governos e até das Nações Unidas, Raif cumpriu a pena de prisão na sua totalidade.

Dois obstáculos pela frente

O ativista foi libertado a 11 de março passado, onze dias além do tempo previsto (devia ter saído a 28 de fevereiro). Saiu da cadeia, mas ainda não é um homem livre. O seu caso está transformado numa prova de obstáculos e, apesar da pena de prisão cumprida ele não se safa do pagamento da multa nem da inibição de viajar durante mais dez anos, o que o impede de se juntar à família, exilada no Canadá.

A notícia da libertação de Raif chegou à família pela voz do próprio. “Foi o meu pai quem telefonou à minha mãe após sair em liberdade. Não há palavras para descrever quão felizes estamos”, disse ao Expresso um dos três filhos do casal, Terad Badawi, de 17 anos.

Terad, que gere a conta oficial do pai na rede social Twitter, vive com a mãe e duas irmãs (Najwa, de 18 anos, e Miryam, de 14) na cidade de Sherbrooke, no Quebeque. Foi no Canadá que obtiveram asilo político, em 2013, já com Raif a contas com a justiça saudita. E é desse país que lideram uma campanha internacional para que o caso não caia no esquecimento nem saia da agenda política.

“Há discussões em curso para se tentar fazer cair a parte da pena referente ao dinheiro e à proibição de viajar, dado que, segundo a lei saudita, ele já cumpriu o dobro da pena que deveria cumprir”, explica ao Expresso Évelyne Abitbol, membro da equipa de defesa e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade.

Numa carta enviada ao príncipe herdeiro saudita, a 8 de março passado, a que o Expresso teve acesso, um representante legal de Badawi, Irwin Cotler, antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá, contesta a situação do agora ex-prisioneiro, argumentando que foi condenado ao abrigo da Lei contra o Cibercrime, que prevê penas máximas de cinco anos (enquanto ele cumpriu 10). Alega também que, ao abrigo do direito internacional, a flagelação é um tipo de punição equivalente à tortura.

Angariação de fundos

“O senhor Badawi foi condenado por fundar um site que visa o diálogo pacífico e aberto. Não representa qualquer preocupação ao nível da segurança. O seu único desejo é reunir-se com a sua família a mais de 10 mil quilómetros de distância, em Sherbrooke, Quebeque, Canadá, para que possa viver os seus dias como marido e pai dedicado”, escreve o jurista.

Paralelamente a esta diligência, decorre na plataforma “GoFundMe” uma campanha de angariação de fundos, lançada pela Fundação Giordano Bruno (Alemanha), com o intuito de arrecadar a pequena fortuna exigida pela justiça saudita.

Desde o início, este caso mobilizou os corredores diplomáticos de países e organizações. Em 2012, conhecida a detenção do bloguista, as Nações Unidas apelaram à sua imediata libertação. Em 2015, a mesma ONU emitiu posição considerando a detenção do saudita ilegal e uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nesse ano, a União Europeia, através do Parlamento Europeu, atribuiu a Raif Badawi o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento. Com o saudita detido em Dhahban Central, prisão de alta segurança em Jeddah, foi a mulher, Ensaf, quem o representou na cerimónia, em Estrasburgo.

O anfitrião Trudeau

Desde a concessão de exílio à família Badawi que este caso tem estado na linha da frente da política canadiana. A 27 de janeiro de 2021, a câmara baixa do Parlamento aprovou, por unanimidade, uma moção (não vinculativa) exigindo a atribuição da cidadania canadiana a Raif Badawi.

O primeiro-ministro Justin Trudeau, que várias vezes se encontrou com a família de Raif, não falhou o momento da libertação do intelectual saudita. “Estou aliviado por Raif Badawi ter sido libertado por fim. Os meus pensamentos estão com a sua família e amigos, que o defendem incansavelmente há quase uma década. Os nossos funcionários estão a trabalhar para esclarecer as condições da sua libertação”, congratulou-se, no Twitter, a 12 de março passado.

Também sobre Trudeau que recai a maior pressão, seja para que o Canadá conceda cidadania a Raif, seja para que interceda junto de Riade para viabilizar a reunião familiar. “O primeiro-ministro do Canadá sempre disse que quando Raif saísse da prisão, iria ajudar”, diz Évelyne Abitbol. “Raif já saiu…”

Mais do que nunca, a defesa deposita na arte da diplomacia a esperança de reversão de partes da sentença. “Americanos, União Europeia, canadianos pediram ao rei Salman que conceda um perdão”, conclui. “Qualquer governo ocidental que possa negociar [com a Arábia Saudita] e consiga dar um salvo-conduto é bem-vindo. Se a Espanha puder… ou Portugal…”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

País autocrático, repressivo e cleptocrático: eis a Rússia de Putin à luz dos relatórios internacionais

O maior país de todo o mundo não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. A constatação resulta da análise dos principais relatórios internacionais das áreas políticas e sociais. Da paz aos direitos humanos, da democracia à corrupção

Vladimir Putin é Presidente da Federação Russa desde 2012 WWW.KREMLIN.RU / WIKIMEDIA COMMONS

Ainda a guerra na Ucrânia fervilhava apenas na cabeça de Vladimir Putin e o mundo debatia-se com duas emergências à escala global: os efeitos das alterações climáticas e a pandemia de covid-19. Na busca de respostas imediatas, os países esboçaram uma união de esforços e acorreram a participar em duas iniciativas.

Na frente climática, rumaram a Glasgow, na Escócia, para participarem na 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), considerada a última oportunidade para a obtenção de um compromisso sério que salve o planeta da irreversibilidade da degradação ambiental.

Na batalha da pandemia, sob o chapéu da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi gizado o mecanismo Covax, que possibilita o acesso gratuito de mais de 90 países subdesenvolvidos a vacinas para a covid-19. A Rússia não participou em nenhuma das duas.

COP-26 e Covax são apenas dois exemplos que revelam um posicionamento muito particular da Rússia no mundo. Aquele que é o maior dos países, em termos geográficos, não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. Comprova-o uma análise a vários relatórios internacionais de áreas políticas e sociais.

A paz é uma miragem

A guerra na Ucrânia — que consiste na invasão de um Estado soberano por outro — é a demonstração mais recente da utopia que a paz global continua a ser. Revela também que, neste domínio, a Rússia contribui ativamente para que tal aconteça.

Segundo a última edição do “Índice Global da Paz”, compilado pela organização Vision of Humanity (Austrália), que se propõe “medir a paz num mundo complexo” com base em três critérios — ‘Conflitos em curso’, ‘Segurança e Proteção’ e ‘Militarização’ —, a Rússia surge em 154.º lugar, num total de 163 países. Numa classificação em que Portugal ocupa o 4.º lugar, a Rússia tem por companhia países como Afeganistão, Síria, Coreia do Norte e Venezuela.

A Rússia é “a nação menos pacífica da região [da Eurásia]” e “um dos países menos pacíficos do mundo”, lê-se no relatório, elaborado antes da presente invasão da Ucrânia. “No entanto, apesar da sua baixa classificação no Índice, a paz na Rússia melhorou nos últimos anos. Este é o segundo ano consecutivo em que a Rússia regista uma melhoria ao nível da paz. O país melhorou tanto ao nível dos ‘conflitos em curso’ como da ‘militarização’, mas registou uma deterioração quanto à ‘proteção e segurança’. Houve degradação em manifestações violentas e instabilidade política.”

Para tal, contribuem episódios de agitação social como as manifestações populares, reprimidas com violência pelas forças governamentais, que se seguiram ao envenenamento e posterior detenção do opositor ao regime Alexei Navalny. O relatório fala de mais de 8500 detenções.

No final de 2021, uma das organizações internacionais mais atentas aos conflitos no mundo, o International Crisis Group (Bélgica), elaborou um documento sobre “dez conflitos a ter em conta em 2022”. Num exercício quase premonitório, destacou em primeiro lugar a Ucrânia como país com maior potencial de conflito, numa altura em que já era assediada por um crescente número de tropas russas na sua fronteira.

“Apesar da ameaça do Presidente russo Vladimir Putin à Ucrânia, os Estados raramente entram em guerra uns com os outros”, lê-se no documento. Até para os olhos mais habituados a antecipar conflitos, a invasão russa da Ucrânia foi uma surpresa, ainda que o International Crisis Group admita, na sua análise, que “descartar a ameaça [russa à Ucrânia] como um bluff seria um erro”. Como se está a ver.

Democracia nem no papel

“Os líderes da China, Rússia e de outras ditaduras conseguiram mudar os incentivos globais, comprometendo o consenso de que a democracia é o único caminho viável para a prosperidade e a segurança, ao mesmo tempo que encorajam abordagens de governação mais autoritárias.”

Esta constatação está expressa no relatório “Liberdade no Mundo 2022”, produzido pela organização Freedom House (Estados Unidos), com o subtítulo “A expansão global dos regimes autoritários”.

À semelhança do “Índice Global da Paz”, também no “Índice da Democracia”, elaborado pela Economist Intelligence Unit (Reino Unido), a Rússia está nos últimos lugares: surge na posição 124, numa lista com 167 países (Portugal é 28.º).

A lista assenta em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo (onde a Rússia obtém a avaliação mais fraca), funcionamento do Governo, cultura política, liberdades civis e participação política (onde a Rússia tem melhor registo).

Neste relatório, que divide os regimes políticos em “democracias completas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários”, a Rússia é um exemplo da última categoria. Igual rótulo é aplicado à Rússia no “Relatório Global sobre o Estado da Democracia”, do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Suécia), que defende que o país regrediu de uma “democracia retrógrada” para um “regime autoritário”.

Dois factos recentes sustentam a caracterização da Rússia como “regime autoritário”. Por um lado, a realização de um referendo constitucional, entre 25 de junho e 1 de julho de 2020, que garantiu a Putin a possibilidade de se deixar ficar no poder até 2036. Seguiu-se-lhe uma campanha de repressão dos dissidentes, que incluiu a detenção do crítico mais vocal do Kremlin: Alexei Navalny, a 17 de janeiro de 2021.

Por outro lado, a 23 de dezembro de 2020, foi aprovada uma alteração legislativa, na câmara baixa do Parlamento (Duma), para silenciar opositores, jornalistas, bloggers, ativistas e outras vozes críticas de Putin, rotulados de “agentes estrangeiros”.

Noticiar só o que é possível

Uma das áreas diretamente visadas pela legislação “dos agentes estrangeiros” é a da informação. Essa designação passou a penalizar repórteres como os que cobriram as grandes manifestações de Khabarovsk, no extremo leste da Rússia, entre julho de 2020 e setembro de 2021, em solidariedade com o governador local, que fora preso.

Muitas vezes, os jornalistas são presos e obrigados a pagar multas pesadas. O caso de Ivan Golunov, que investiga casos de corrupção, revela outra dimensão do cerco à imprensa: em junho de 2019, foi preso pela polícia de Moscovo e acusado de “produção ou venda ilegal de drogas”. O caso tornou-se mediático, originou protestos de rua e tornou-se um exemplo dos abusos da polícia. O repórter acabaria por ser libertado e cinco ex-polícias foram acusados de terem forjado a sua incriminação.

No último “Índice Mundial sobre a Liberdade de Imprensa”, dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF, França), a Rússia surge no 150.º lugar, num total de 180 países. O relatório descreve uma “atmosfera sufocante para jornalistas independentes”, com “leis draconianas, o bloqueio de sites, cortes na Internet e os principais meios de comunicação controlados ou estrangulados”.

Em partes do território russo, como a Crimeia (península ucraniana anexada pela Rússia em 2014) ou a Chechénia (república no Cáucaso cujas ambições de independência foram esmagadas pela Rússia em guerras recentes) são autênticos “buracos negros” em matéria informativa.

A guerra na Ucrânia e o crescente isolamento a que a Rússia está sujeita vieram dar relevância a um objetivo já anunciado do Kremlin: soberania digital, ou seja, criar uma Internet paralela que permita à Rússia desligar-se da rede global. Uma lei federal de 13 de março de 2019 — a Lei da Internet Soberana — não só dá cobertura legal a ações de vigilância digital como atribui competências ao Governo para separar a Rússia da Internet global.

“Como os principais canais de televisão continuam a inundar os telespectadores com propaganda, o clima tornou-se muito opressivo para quem questiona o novo discurso patriótico e neoconservador, ou para quem apenas tenta manter um jornalismo de qualidade”, lê-se no relatório dos RSF.

Esse espírito repressivo está presente numa nova lei, aprovada a 4 de março, já com a invasão da Ucrânia em curso, segundo a qual a publicação de informação “falsa” ou “mentirosa” sobre as forças armadas russas é punível com pena de até 15 anos de prisão. Pertencendo ao Kremlin o critério sobre o que é informação verdadeira ou falsa, sobra muito pouco espaço para os media independentes.

Há duas semanas, o popular canal televisivo Dozhd anunciou a suspensão das suas emissões por tempo indeterminado justificando a decisão com a pressão sentida relativamente à cobertura da guerra na Ucrânia. A decisão foi tomada numa reunião dos funcionários. É apenas um caso.

Corrupção endémica

Na Rússia, o combate à corrupção, como a mera denúncia de casos por órgãos de informação, tornou-se ainda mais perigoso desde a adoção da lei dos “agentes estrangeiros”. “As autoridades invadiram casas e escritórios de jornalistas e ativistas que investigavam a corrupção do Governo e declararam-nos ‘agentes estrangeiros’ sujeitos a relatos financeiros onerosos e restrições de publicação”, denuncia o último “Índice de Perceção de Corrupção”, da organização Transparência Internacional (Alemanha).

Nesse relatório, a Rússia surge na 136.ª posição, em 180 países. É o país europeu mais abaixo no ranking. Portugal está no 62º lugar. Segundo a Transparência Internacional, “a corrupção é endémica na Rússia”, onde “as instituições públicas estão quase completamente nas mãos do Governo, o que faz falhar a responsabilização de quem tem o poder”.

Quando a guerra na Ucrânia rebentou, a organização tomou posição, recordando a cumplicidade das economias desenvolvidas no crescimento da cleptocracia russa. “Não devia ter sido necessária uma tragédia desta escala para levar os governos do Ocidente a despertarem para os perigos de permitirem a cleptocracia”, defendeu a Transparência.

“Estamos a ver as suas consequências devastadoras, agora na Ucrânia. Para evitar sofrimento futuro, os decisores nas economias avançadas precisam de acelerar com urgência políticas anticorrupção importantes. Muitas deveriam ter sido adotadas há muito tempo.”

Ordem para perseguir

Em regimes autocráticos, como a Rússia, os direitos humanos estão entre as primeiras vítimas da repressão associada ao seu modus operandi. Um dos casos mais recentes do cerco à luta pelos direitos humanos no país foi a dissolução da organização não-governamental Memorial International, decretada pelo Supremo Tribunal.

Fundada na década de 1980, na era da perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência), impulsionadas pelo Presidente soviético Mikhail Gorbachev, a Memorial teve entre os seus fundadores o dissidente Andrei Sakharov (prémio Nobel da Paz em 1975). Era a organização de direitos humanos mais antiga da Rússia.

Nos relatórios de organizações globais, como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional, outras denúncias contribuem para um retrato negro da Rússia na área dos direitos humanos.

“Em 2021, as autoridades continuaram a empregar uma variedade de instrumentos para assediar defensores dos direitos humanos e impedir o seu trabalho”, lê-se no relatório da Human Rights Watch.

O documento descreve dezenas de casos envolvendo sobretudo advogados de defesa de participantes em protestos ou que litigam casos contra a Rússia em instâncias jurídicas internacionais, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Cidadãos estrangeiros a trabalhar na área, tornados ameaças à segurança nacional, recebem muitas vezes ordem de expulsão do país. Algumas organizações são consideradas “extremistas” e encerradas.

A 5 de outubro de 2021, a ONG Mães de Soldados de São Petersburgo, que defende os direitos dos recrutas no exército russo há mais de duas décadas, encerrou atividades alegando “sérias restrições” impostas pelas autoridades. A decisão seguiu-se à divulgação de uma lista de 60 tópicos que passou a ser proibido abordar em público, por exemplo, divulgar informação sobre o estado de espírito dos militares.

relatório da Amnistia detalha outros problemas com grupos da sociedade alvo de leis e das forças da ordem: discriminação contra a comunidade LGBTI, aumento da perseguição a Testemunhas de Jeová, inação legislativa perante o aumento de casos de violência doméstica, tortura e maus-tratos (com impunidade para os agressores).

A Amnistia destaca ainda o aproveitamento da pandemia de covid-19 como pretexto para abortar manifestações de rua, incluindo os protestos solitários, de uma pessoa só, um tipo de protesto a que os russos recorrem para contornar a dificuldade em obter autorizações para se manifestarem.

Já durante a guerra na Ucrânia, foi notícia a detenção de Yelena Osipova, conhecida artista e ativista russa que sobreviveu ao cerco nazi a Leninegrado, durante uma manifestação contra a guerra, na mesma cidade, que hoje se chama São Petersburgo. Tinha 77 anos e visíveis dificuldades de locomoção.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de março de 2022. Pode ser consultado aqui. A tradução do artigo para língua russa pode ser consultada aqui