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Seis razões (e cinco ilustrações) que justificam os apelos ao boicote dos Jogos Olímpicos de Pequim

Um conjunto de dossiês polémicos, alguns dos quais duram há décadas, colocam a China sob permanente escrutínio internacional. Sempre que Pequim procura projetar prestígio, como acontece com a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno, não falta quem recorde que há problemas que continuam por resolver. Da ocupação do Tibete à ameaça de invasão a Taiwan, da repressão da minoria uigur à falta de transparência em relação à origem da pandemia de covid-19

Ocasiões como os Jogos Olímpicos projetam os países que os organizam à escala planetária. Tornam-se montras de poder e de capacidade, mas podem contribuir também para virar os holofotes para situações que se quer manter discretas. É o que acontece com a China, anfitriã dos XXIV Jogos Olímpicos de Inverno até domingo próximo.

Alguns pesos pesados da política, e também do desporto, como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim. À semelhança do que aconteceu na cerimónia de abertura, não se farão representar na festa de encerramento. 

O boicote não prejudicou o evento a nível desportivo, já que os mesmos países enviaram atletas para competir, mas beliscou o prestígio de Xi Jinping. Nos corredores políticos, significa uma reprovação tácita da atuação do Presidente chinês e, implicitamente, das lideranças que o antecederam, em problemas que se arrastam há anos.

OCUPAÇÃO DO TIBETE

Apelidada de “teto do mundo”, em virtude dos picos montanhosos que a caracterizam, a região do Tibete vive sob ocupação chinesa há sete décadas. A repressão do povo tibetano — que incluiu a destruição de cerca de 6000 mosteiros e templos budistas — atirou grande parte da população para um exílio forçado. Foi também o destino do líder espiritual Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 1989, que acusa o regime chinês de “genocídio cultural”. 

“Estes 50 anos trouxeram sofrimento e destruição incalculáveis à terra e ao povo do Tibete. Hoje, a religião, a cultura, a língua e a identidade estão em vias de extinção. O povo tibetano é visto como um criminoso que merece ser morto”, afirmou em 2009, por altura do 50.º aniversário de uma tentativa de revolta tibetana, que foi reprimida e que o levou ao exílio na Índia. “No entanto, é uma conquista a questão do Tibete estar viva e a comunidade internacional interessar-se cada vez mais por ela. Não tenho dúvidas de que a justiça da causa do Tibete prevalecerá, se continuarmos a trilhar o caminho da verdade e da não-violência.”

Se fosse um país independente, o Tibete seria, em área, o 10.º maior do mundo. Para a China, esse imenso território — que faz fronteira com Myanmar, Butão, Nepal e Índia, nomeadamente com a conflituosa região da Caxemira — é parte inalienável da sua soberania. Para o povo tibetano, é a sua pátria ancestral e um Estado independente desde 1913 (após o fim da dinastia Qing), hoje sob ocupação ilegal.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Aquando dos Jogos Olímpicos (de verão) de Pequim de 2008, a campanha “Liberdade para o Tibete” motivou protestos em todo o mundo. O tradicional rito do transporte da tocha olímpica desde a Grécia até ao local dos Jogos transformou-se numa prova de obstáculos, com ativistas a tentarem romper o cordão de segurança à volta do estafeta para apagar a chama.

Em outubro passado, em vésperas de se repetir o ritual, dois ativistas foram detidos junto à Acrópole de Atenas, após desfraldarem uma bandeira do Tibete e uma tarja que dizia: “Revolução Hong Kong Livre”. Eram uma tibetana de 18 anos e um rapaz de 22, nascido em Hong Kong e a viver no exílio, outro dossiê quente que a China tem em mãos.

CERCO À DEMOCRACIA EM HONG KONG

Quando Hong Kong foi transferido do Reino Unido para a República Popular da China, em 1997, ficou acordado um período de transição de 50 anos, durante o qual a antiga colónia britânica conservaria a sua autonomia económica, bem como direitos e liberdades não extensivos à população da China Continental. 

Esse estatuto — ao abrigo do princípio “um país, dois sistemas” — tem sofrido erosão, com sucessivas leis a subordinarem crescentemente o quotidiano de Hong Kong à vontade de Pequim. A 30 de junho de 2020, a introdução de uma nova Lei da Segurança Nacional no território, na sequência de gigantescas manifestações populares pró-democracia, acentuou esse controlo político e o cerco à oposição democrática.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

A nova lei “limpou” as ruas de manifestantes, que passaram a correr o risco de terem de responder por crimes de “secessão, subversão, terrorismo”, e colocou uma mordaça no sector da comunicação social. Jornais independentes tiveram de fechar portas na sequência da prisão de jornalistas ou da apreensão de ativos. O último foi o “Zhongxin News”, em janeiro passado, e antes dele o “Stand News”, em dezembro. Um dos títulos mais populares, o “Apple Daily”, encerrou em junho de 2020. O seu proprietário, o milionário Jimmy Lay, foi preso e condenado a 14 meses de prisão por “organização de protestos ilegais”.

Na avaliação da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China surge como um dos “predadores” da liberdade de informação. No relatório de 2021, ocupa o 177º lugar (em 180), devido a “censura na Internet, vigilância e propaganda a níveis sem precedentes”. Há 78 jornalistas e 39 “jornalistas cidadãos” presos na China.

‘BIG BROTHER’ CHINÊS

À partida para Pequim, vários comités olímpicos nacionais sugeriram aos membros das respetivas delegações que usassem telemóveis provisórios durante a sua estada na China. Segundo o jornal holandês “De Volkskrant”, o Comité Olímpico dos Países Baixos proibiu mesmo os seus atletas de levarem smartphones e laptops pessoais.

Com o evento a decorrer em tempo de pandemia, a organização solicitou a atletas, dirigentes e jornalistas que instalassem a aplicação MY2020 para reportarem, diariamente, o seu estado de saúde. Esta medida desencadeou receios de espionagem digital.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Nos últimos anos, na China, um sistema de vigilância intrusivo tem ganho contornos cada vez mais Orwellianos. Uma das suas dimensões é o Sistema de Crédito Social, que consiste num mecanismo de pontuação dos cidadãos e que os recompensa ou penaliza em função de comportamentos. 

De iniciativa governamental, este projeto lançado em 2014 ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da China Continental — numa primeira fase, Macau e Hong Kong ficam de fora.

REPRESSÃO DOS UIGURES

A segregação e a violência com que as autoridades chinesas tratam a minoria uigur (muçulmana) têm-lhes valido acusações de “genocídio”. Segundo organizações internacionais dos direitos humanos, nos últimos anos, mais de um milhão de uigures foram enviados para “campos de reeducação” na província de Xinjiang, no noroeste da China. Há denúncias de trabalhos forçados, de esterilização à força de mulheres e relatos de tortura e abusos sexuais.

Pequim tem repetidamente negado maus tratos aos uigures e defende as suas ações em Xinjiang com a necessidade de combater o terrorismo. Dentro desta narrativa, os campos são considerados uma espécie de centros de formação vocacional cujo objetivo é manter os uigures longe da radicalização.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Quando anunciaram o boicote diplomático aos Jogos de Pequim, os Estados Unidos justificaram a posição com o “genocídio e os crimes contra a Humanidade em curso em Xinjiang e outras violações dos direitos humanos” pelo regime chinês.

Numa tentativa de limpar a imagem — ou de passar a mensagem de que não aceita lições em matéria de direitos humanos —, a China proporcionou um momento de grande simbolismo na cerimónia de abertura dos Jogos: um dos dois atletas escolhidos para acender a chama olímpica no interior do estádio foi um esquiador uigur.

ASSÉDIO’ A TAIWAN

Também chamada China Nacionalista, Taipé ou Formosa, esta ilha situada a cerca de 180 km da costa chinesa é um Estado independente para apenas 15 países em todo o mundo (e funciona como tal, sob um regime democrático). Mas a disputa geopolítica em torno do seu futuro político é um desafio à paz mundial.

Para Pequim, Taiwan simboliza a dificuldade de implantar a revolução maoísta em todo o território chinês e corporiza um projeto político alternativo que ameaça a política da “China Única”, segundo a qual há apenas um Estado chinês soberano e Taiwan faz parte dele.

De tempos a tempos, a China manifesta o seu ascendente sobre a ilha fazendo incursões aéreas na área de defesa de Taiwan. Em finais de janeiro, Pequim bateu o recorde diário de intrusões, com 39 aviões de guerra a aproximarem-se da “província rebelde”. Este modus operandi tem valido à China condenações internacionais, mas para Pequim funcionam como simulações de uma eventual invasão de Taiwan no caso de falhar a reunificação por via pacífica, como aconteceu com Hong Kong e Macau.

A ORIGEM DA COVID

Mais de dois anos após o início da pandemia de covid-19 — cujo vírus foi detetado, pela primeira vez, em dezembro de 2019, na cidade chinesa de Wuhan —, a falta de explicações sobre como tudo começou origina desconfianças em relação à responsabilidade da China. “Infelizmente, o que vimos da República Popular da China, desde o início desta crise, é incumprimento das suas responsabilidades básicas em termos de acesso e partilha de informações”, acusou o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Entre 14 de janeiro de 10 de fevereiro de 2021 — quase um ano após ser declarada a pandemia —, uma missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) esteve por fim na China, para tentar apurar factos. Divulgado o relatório final, um conjunto de 14 países, entre os quais os EUA, Reino Unido, Japão e Israel, emitiu um comunicado conjunto dizendo que o relatório “foi significativamente atrasado e não continha acesso a dados e amostras completos e originais”.

Esta posição soou como crítica à influência da China dentro da OMS e à incapacidade da organização conduzir uma investigação independente, já que Pequim pôde vetar cientistas destacados para integrar a missão e impor limitações aos investigadores durante a visita.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

A maior prisão mundial para jornalistas continua a regredir ao nível do acesso à informação

Numa semana especial para o jornalismo, a organização Repórteres Sem Fronteiras tomou o pulso à liberdade de imprensa na China e concluiu que “sob a liderança do Presidente Xi Jinping, o Partido Comunista Chinês aumentou drasticamente o seu controlo sobre jornalistas”. Para este retrato negro contribui, entre outros, 127 jornalistas presos e uma ampla estratégia de controlo do acesso à informação a que nenhum chinês escapa

© 2019 Brian Stauffer for Human Rights Watch

Nas últimas semanas, duas mulheres têm sido rostos dos limites ao exercício de direitos e liberdades na República Popular da China. Uma delas é Peng Shuai, tenista de 35 anos que representou o país em três edições dos Jogos Olímpicos e que acusou um ex-vice-primeiro-ministro chinês de a ter forçado a relações sexuais. Após a denúncia, a atleta desapareceu das redes sociais e da vida pública. O Comité Olímpico Internacional conseguiu contactá-la, mas há suspeitas de que possa estar refém das autoridades de Pequim, proibida de sair do país e forçada a negar a história que denunciou.

Outra chinesa em rota de colisão com as autoridades chinesas é Zhang Zhan, jornalista de 38 anos que, no início da pandemia de covid-19, expôs a situação na cidade de Wuhan, onde primeiro foi identificado o vírus SARS-CoV-2, publicando nas redes sociais mais de 100 vídeos filmados com o telemóvel. A 28 de dezembro passado, foi condenada a quatro anos de prisão.

“Em maio de 2020, Zhang Zhan foi levada pela polícia do seu hotel em Wuhan. A sua reportagem sobre o surto de covid-19 no epicentro da pandemia foi interrompida de forma abrupta. Na prisão, tem feito greves de fome para reclamar os seus direitos constitucionais enquanto cidadã chinesa, poder expressar-se livremente e protestar contra a sua detenção arbitrária. O seu advogado pôde visitá-la algumas vezes e disse que, desde o primeiro dia, ela não fez uma única refeição normal.”

Este relato foi feito por Jane Wang, coordenadora da campanha #FreeZhangZhan, durante um webinar organizado pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que este ano atribuiu um prémio à jornalista chinesa. “No final de julho”, continuou Wang, “Zhang Zhan foi internada num hospital penitenciário, amarrada a uma cama e alimentada à força durante 11 dias. No início de agosto, a sua família foi informada de que ela pesava menos de 40 quilos e tinha sintomas de má nutrição grave. No final de outubro, não conseguia andar ou sequer levantar a cabeça.”

webinar dos RSF, a que o Expresso assistiu terça-feira, visou a apresentação do novo relatório da organização sobre o estado do jornalismo na China. Nas palavras de Christophe Deloire, secretário-geral dos RSF, o documento expõe “como o regime tenta construir uma sociedade-modelo sem jornalismo” e “uma sociedade onde o Estado diz aos cidadãos o que se pressupõe que possam pensar e na qual partilhar informação factual é crime”.

O relatório constata ainda que “sob a liderança do Presidente Xi Jinping, o Partido Comunista Chinês aumentou drasticamente o seu controlo sobre jornalistas”, não só na China continental como em Hong Kong e Macau.

127

jornalistas estão, atualmente, presos na China. Trata-se de uma parte considerável dos 293 repórteres que, segundo o Comité para a Proteção de Jornalistas, estão detidos em todo o mundo

Um caso referido no relatório é o de Cheng Lei, jornalista australiana nascida na China que trabalhava como pivô na China Global Television Network (CGTN). Em novembro de 2019, foi oradora na WebSummit, em Lisboa; meio ano depois era detida na China, acusada de “fornecer segredos de Estado a um país estrangeiro”. Desde então, continua sem data de julgamento marcada.

“Para silenciar os jornalistas, o regime chinês acusa-os de ‘espionagem’, ‘subversão’ ou ‘fomento de altercações e provocação de problemas’, três ‘crimes de bolso’, termo usado por especialistas em direito chinês para qualificar ofensas que são definidas de forma tão ampla que podem ser aplicadas a quase todas as atividades”, lê-se no relatório dos RSF. As duas primeiras acusações podem valer prisão perpétua.

Convite traiçoeiro para um chá

Com 82 páginas, o relatório dos RSF tem como título “O grande salto atrás do jornalismo na China”, num jogo de palavras alusivo ao “Grande Salto em Frente”, a campanha económica e social com que Mao Tsé-Tung pretendeu modernizar a China, entre 1958 e 1962.

Entre os vários obstáculos à liberdade de informação na China, o documento destaca:

  • Bloqueio de sites na Internet
  • Vigilância de grupos de conversação online, como a app WeChat, que se tornou uma espécie de cavalo de Tróia da polícia
  • ‘Exército’ de trolls ao serviço do regime
  • Colocação de jornalistas em regime de “Vigilância Residencial num Local Designado”, durante meses
  • Convite para “um chá” com responsáveis pela censura e propaganda, como forma de intimidação
  • Diretrizes diárias do Partido Comunista Chinês sobre assuntos sensíveis, como Tibete, Xinjiang, Hong Kong, Taiwan, corrupção e dissidência
  • Aumento de assuntos tabu sobre os quais é proibido reportar, como Tiananmen e, mais recentemente, o movimento #Me Too e a covid-19
  • Confissões forçadas na televisão, por parte de jornalistas detidos pelo regime
  • Lei da Segurança Nacional (no caso de Hong Kong)
  • app Study Xi

Adotada para “fortalecer o país”, a aplicação Study Xi — uma encomenda do Partido Comunista Chinês à gigante do comércio digital Alibaba — é uma ferramenta educativa destinada a difundir o pensamento do Presidente Xi Jinping. Desde outubro de 2019, os jornalistas chineses têm sido forçados a fazer o download dessa app para renovar a carteira profissional.

A aplicação permite que o regime avalie o conhecimento e a lealdade dos jornalistas à doutrina oficial, mas mais do que isso… também permite que as autoridades espiem o conteúdo dos smartphones dos jornalistas, pondo em perigo profissionais e fontes.

“Sabemos que a livre circulação de informação é a fundação de uma sociedade civil e que informar os cidadãos é a fundação da democracia”, disse Wu’er Kaixi, antigo dirigente dos protestos estudantis na Praça Tiananmen, durante a apresentação do relatório dos RSF.

“Na China, não temos democracia nem sociedade civil, temos totalitarismo, um regime que oprime a dissidência do seu povo, envia jornalistas para a prisão, dissemina informação falsa e transforma os media do Estado numa máquina de propaganda que mente não só ao seu povo como a todo o mundo, mesmo perante a verdade.”

O ativista justifica o declínio da liberdade de imprensa na China com “as atrocidades que o regime comete contra o povo uigur. No século XXI, [a China] mantém mais de um milhão de uigures em campos de concentração”, diz Wu’er Kaixi, que se questiona como é possível que tal aconteça nos dias de hoje.

“Como pode um regime realizar tal ato? Com a tolerância do mundo”, continua. “O mundo tem concordado com a China. Não fazer nada, é concordar”, diz. “É muito importante acordarmos que as democracias ocidentais lideradas pelos EUA e a Europa têm sido cúmplices nas últimas décadas. E é hora de parar.”

No Índice Mundial de Liberdade de Imprensa 2021, dos RSF, a China surge na 177ª posição entre 180 países. Atrás de si, tem apenas o Turquemenistão, a Coreia do Norte e a Eritreia.

Badiucao, o cartoonista político que desenhou a capa do relatório dos RSF, e que vive na Austrália, viu recentemente o Governo chinês tentar cancelar uma exposição sua num museu de Brescia, no norte de Itália. A pressão foi exercida de múltiplas formas: sobre as autoridades italianas, nas redes sociais do artista, junto da sua família em Xangai e através de visitas suspeitas, durante a sua estadia em Itália, onde recebeu ameaças de morte de forma velada.

“A liberdade do jornalismo na China não diz respeito apenas ao bem-estar das pessoas na China. Também tem tudo a ver com as pessoas de fora da China, com a sociedade democrática, com os países que ainda gozam de liberdade de imprensa”, disse Badiucao.

“A propaganda da China como um vírus, que não pára dentro da China e infetará o mundo exterior, e o objetivo é tirar a liberdade de todos. O problema da liberdade de imprensa da China é também um problema nosso”

Badiucao
 cartoonista político chinês

A divulgação deste relatório teve em conta a realização de dois eventos, nos próximos dias, com potencial para indispor a China. Por um lado, a Cimeira pela Democracia, organizada de forma virtual pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, esta quinta e sexta-feiras, que reunirá cerca de 110 países. “A China, claro, não foi convidada, mas estará com toda a certeza nas mentes de todos, uma vez que o regime de Pequim é uma das mais importantes ameaças à democracia em todo o mundo”, disse Christophe Deloire.

Por outro, a entrega do prémio Nobel da Paz, sexta-feira, a dois jornalistas — a filipina Maria Ressa e o russo Dmitry Muratov — numa cerimónia em Oslo, na Noruega. “Será uma mensagem muito forte e poderosa para os predadores da liberdade de imprensa e um encorajamento para todos aqueles que defendem o jornalismo em todo o mundo”, concluiu o secretário-geral dos RSF. “Esta é, na realidade, uma semana muito especial para o jornalismo.”

Os Repórteres Sem Fronteiras divulgaram apenas as versões inglesa e francesa do relatório, disponíveis neste link. A 24 de janeiro, dez dias antes dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim, o documento será divulgado em outras oito línguas, inclusive em português

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Internet: um luxo ou um direito humano?

A esta pergunta respondeu a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, durante a sua intervenção na Web Summit. Michelle Bachelet abordou o impacto da tecnologia nos direitos humanos e enunciou princípios para lidar com o binómio liberdade de expressão ou discurso de ódio, na Internet

Mais de 70 anos depois, será que a Declaração Universal dos Direitos Humanos — redigida a seguir à II Guerra Mundial — deveria atualizar-se e adaptar-se à era digital? “Hoje, a Internet ainda é um luxo, mas não tenho dúvida de que é um direito humano”, disse Michelle Bachelet, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, numa intervenção na Web Summit. “Por essa razão, está incluído na Agenda do Desenvolvimento Sustentável para 2030 que todas as pessoas devem ter direito ao acesso à Internet.”

O “acesso universal e a preços acessíveis à Internet” consta do nono dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, aprovados pela Assembleia Geral da ONU, que visam resolver necessidades tanto nos países desenvolvidos como nos territórios em desenvolvimento, sem deixar ninguém para trás.

“Vimos o que aconteceu durante o encerramento das escolas”, durante os confinamentos decretados no âmbito do combate à covid-19. “Todas as crianças que não tinham acesso à Internet não conseguiram prosseguir com a sua educação”, recorda a ex-Presidente do Chile (2006-10 e 2014-18).

“Não é fácil qualificar o discurso”

Bachelet afirmou que as questões da Internet são hoje objeto de estudo e trabalho no seio da organização que dirige. “Não é preciso atualizar os tratados dos direitos humanos. Eles são feitos para nos anteciparmos aos desafios. Hoje, o desafio é: como aplicar as leis existentes a este novo espaço digital e como compensar a proteção dos direitos humanos que são violados de novas maneiras, através da utilização de novas tecnologias.”

Uma das principais preocupações prende-se com o choque entre o exercício da liberdade de expressão e o discurso de ódio na Internet. Para a alta comissária, no cargo desde 2018, “é arriscado” traçar uma linha entre estas duas dimensões. “Como podemos ter a certeza de que algo que foi dito ou escrito é discurso de ódio ou liberdade de expressão? Não é fácil qualificar o discurso.”

A chilena defende uma análise caso a caso e propõe a aplicação de seis critérios: o contexto em que determinada coisa foi dita ou escrita, quem a proferiu, com que intenção, qual o conteúdo, a extensão do discurso e a probabilidade de provocar danos.

Da mesma forma, qualquer intenção de impor limites ao discurso deve obedecer a princípios, que enumera: legalidade, legitimidade, necessidade e proporcionalidade.

Vigiar a doença ou a população?

Em contexto de pandemia, Bachelet abordou o impacto sobre o direito à privacidade de novas ferramentas tecnológicas de vigilância em massa e de inteligência artificial para reconhecimento facial. “Enquanto algumas medidas são proporcionais e necessárias para conter a disseminação da covid-19, outras correm o risco de minar os direitos digitais”, disse. “Muitos países usaram a covid-19 como desculpa para limitar direitos, as vozes dos críticos e o descontentamento das pessoas.”

Falou ainda da questão dos aplicativos de rastreamento de proximidade, adotados em vários países, como a Stay Away Covid no caso português. “A Organização Mundial da Saúde é cautelosa quanto ao emprego destas tecnologias, porque podem cruzar a linha pouco clara entre a vigilância da doença e a vigilância da população.”

A alta comissária avançou com propostas para que as medidas se tornem mais aceitáveis: que se assegure que as restrições sejam eficazes e produzam o efeito desejado, que se recolha apenas informação realmente necessária para o fim pretendido e que seja apagada assim que o objetivo for atingido, que se recorra o mais possível ao anonimato, que se limite o acesso à informação recolhida, não havendo partilha entre agências governamentais e que, passada a crise, se elimine as práticas invasivas de recolha de dados.

Na era digital, Bachelet não tem dúvidas de que os direitos individuais offline devem também ser protegidos online. E conclui: “Os direitos humanos são uma bússola para nos guiar nas incertezas e nos novos desafios”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Portland continua a ferro e fogo, 100 dias após o início dos protestos

Começaram após o assassínio de George Floyd, o negro asfixiado pelo joelho de um polícia branco, e foram sendo alimentados por outros casos de violência policial e as desigualdades raciais. Os protestos na cidade norte-americana de Portland, levam já 100 dias nas ruas. A efeméride foi assinalada no sábado à noite com uma nova jornada de contestação

Investida policial numa rua de Portland CARLOS BARRIA / REUTERS
Detenção de uma manifestante no exterior do edifício da polícia CARLOS BARRIA / REUTERS
Batalha campal entre polícias e manifestantes CARLOS BARRIA / REUTERS
Um frente a frente que dura há 100 dias CAITLIN OCHS / REUTERS
Um manifestante ferido é levado pela polícia CARLOS BARRIA / REUTERS
Apreensão dentro de uma casa em relação ao que se passa nas ruas CARLOS BARRIA / REUTERS
Os protestos intensificam-se durante a noite CARLOS BARRIA / REUTERS
Um manifestante com dificuldade em respirar, após inalar gás lacrimogéneo CAITLIN OCHS / REUTERS
Socorro a um manifestante atingido por um cocktail molotov CAITLIN OCHS / REUTERS
Desespero e impotência no rosto desta manifestante solitária CARLOS BARRIA / REUTERS
Manifestantes disparam artefactos pirotécnicos para assinalar o 100º dia de protestos CAITLIN OCHS / REUTERS
A aparente serenidade de quem acha que está do lado certo do problema CARLOS BARRIA / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Washington, Louisville, Portland, Rochester… Não se vê o fim dos protestos

Várias cidades norte-americanas continuam tomadas por protestos contra a violência policial que visa os negros de uma forma particular. Começaram com o caso de George Floyd e, pelo caminho, foram adicionando os nomes de outras vítimas

A menos de dois meses de umas eleições presidenciais que se adivinham polémicas e tensas, as ruas dos Estados Unidos não dão sinais de acalmia. Nos últimos dias, vários protestos dinamizados pelo movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) saíram às ruas de várias cidades norte-americanas para repetir até à exaustão slogans de protesto contra a violência policial que visa os negros de forma particular e os nomes de vítimas.

Na capital do país, Washington DC, realizaram-se no sábado marchas e vigílias para exigir justiça para Deon Kay, um afroamericano de 18 anos mortalmente baleado no peito, na quarta-feira, quando fugia da polícia armado. A polícia disse ter disparado antes de o jovem largar a arma, que seria encontrada a 30 metros do local onde Kay tombou.

Em Louisville, estado do Kentucky, o nome mais invocado pelos manifestantes foi o de Breonna Taylor, uma negra de 26 anos morta pela polícia no seu apartamento na própria cidade, em março. Centenas de pessoas tentaram chamar a atenção para o problema concentrando-se antes da realização do Kentucky Derby, uma tradicional competição hípica, vestidos com fardas e armados. A tensão subiu quando o grupo ficou frente a frente com uma milícia armada de direita.

A indignação está igualmente ao rubro em Rochester, no estado de Nova Iorque. Sete polícias foram suspensos na quinta-feira passada pela participação na detenção violenta do afroamericano Daniel Prude, que levaria à sua morte, dias depois.

O caso aconteceu em março, mas os agentes apenas foram detidos um dia após os advogados da família terem divulgado as imagens da detenção captadas pela própria polícia, onde se vê os agentes a taparem a cabeça do homem com um capuz quando já estava no chão.

Nem sempre os protestos são pacíficos, como muitas vezes anunciados. Em Portland, no estado do Oregon, a marcha prevista para este sábado transformou-se numa batalha campal. Manifestantes arremessaram coquetéis molotov contra a polícia. Esta considerou que a manifestação “não autorizada” transformou-se num “motim” e respondeu com gás lacrimogéneo e outras munições “não letais”.

Esta revolta generalizada leva já 100 dias nas ruas. Começou na sequência do assassínio de George Floyd, sufocado pelo joelho de um polícia, a 25 de maio, em Minneapolis, e vai sendo alimentada por outros casos tornados públicos.

O último destes casos aconteceu a 23 de agosto e envolveu o afroamericano Jacob Blake, baleado sete vezes nas costas, pela polícia, em Kenosha, estado do Wisconsin. Na terça-feira passada, o Presidente Donald Trump visitou a cidade e atribuiu os protestos à esquerda radical e ao “terrorismo doméstico”.

Na quinta-feira, um estudo elaborado pelo US Crisis Project revelou que 93% dos protestos realizados desde a morte de George Floyd foram pacíficos e não causaram destruição. Uma conclusão que contraria diretamente a visão dos acontecimentos expressa pelo Presidente do país.

(FOTO Detenção de uma manifestante no exterior do edifício da polícia CARLOS BARRIA / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui