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A odisseia de uma jovem saudita, contra a família e contra o país

Determinada em libertar-se das amarras sociais que a condenavam a uma vida submissa, uma jovem saudita meteu-se num avião a caminho da Austrália em busca de asilo. Intercetada na Tailândia, temeu pela vida. Sem sair do aeroporto, barricou-se num quarto de hotel, abriu conta no Twitter e gritou por ajuda — 48 horas depois saía em liberdade

“A minha conta oficial será entregue aos meus amigos mais próximos caso eu desapareça, para que as informações reais sobre o meu caso sejam atualizadas e documentadas, para que as restantes provas sejam publicadas e para que a voz das raparigas como eu nunca seja abafada.”

O tom desta mensagem publicada no domingo no Twitter por uma saudita de 18 anos não podia ser mais inquietante. Mais ainda quando, ao percorrer as suas mensagens, se percebia que aquela conta tinha sido criada apenas no dia anterior com o objetivo indisfarçável de pedir ajuda. A utilizadora era Rahaf Mohammed al-Qunun, uma estudante na Universidade Ha’il (nordeste da Arábia Saudita), em fuga a um futuro que lhe haviam traçado.

Aproveitando umas férias com a família no Kuwait, Rahaf ganhou coragem e, no sábado, apanhou um voo para Banguecoque, a capital da Tailândia. Ao contrário do que é possível no seu país natal, não necessitou de autorização de um homem da família para comprar bilhete e subir a bordo.

Rahaf tencionava chegar à Austrália, mas a escala tailandesa não foi pacífica. Chegada ao Aeroporto Suvarnabhumi, viu ser-lhe apreendido o passaporte — aparentemente porque não tinha bilhete de regresso, reserva de hotel ou qualquer programa turístico —, o que a impediu de seguir viagem para a Austrália, onde tencionava pedir asilo. Temendo ser deportada para junto da família, barricou-se num quarto de hotel no aeroporto e abriu conta no Twitter. A sua história começou então a circular a reboque da “hashtag” #SaveRahaf.

A jovem acusa a família de abusos, “incluindo espancamentos e ameaças de morte por parte de homens da família, que também a forçaram a ficar no seu quarto durante seis meses por ter cortado o cabelo”, informa a Human Rights Watch. “É evidente que ela procura proteção internacional”, acrescenta a organização humanitária. “Al-Qunun pode estar em sérios riscos se regressar para junto da família. Na Arábia Saudita, ela também enfrenta possíveis acusações criminais, numa violação aos seus direitos básicos, por ‘desobediência parental’, que podem originar castigos desde regressar a casa do seu guardião até à prisão, e por ‘prejudicar a reputação do reino’ nos seus pedidos de ajuda públicos.”

No Twitter, Rahaf foi divulgando provas da sua identidade, desmentindo notícias que iam saindo sobre si na imprensa saudita e publicando imagens do pequeno quarto onde resistia e onde o colchão, uma mesa e uma cadeira bloqueavam a abertura da porta, em caso de invasão forçada. E foi fazendo apelos ao mundo: “Quero a ONU! Quero a ONU! Quero a ONU!”.

Em meia dúzia de horas tinha os principais órgãos de informação internacionais de olhos postos na sua história — a videojornalista australiana Sophie McNeill, que trabalha para a australiana ABC, conseguiu entrar para dentro do quarto — e uma senadora australiana a trabalhar no seu caso: “A Austrália tem de ajudar esta jovem urgentemente! A sua vida está em perigo após ela renunciar ao Islão e fugir a um casamento forçado. Nós podemos emitir documentos de viagem de urgência para que ela apanhe um voo para a Austrália e procure segurança. Já apelei ao Governo para que haja rapidamente!”, escreveu no Twitter a senadora Sarah Hanson-Young.

A partir do seu quarto, Rahaf confirmou que procura “proteção” de um país terceiro, especialmente “Canadá, Estados Unidos, Austrália e Reino Unido”. O impacto mediático do caso, que transbordou as redes sociais, levou a um decisão rápida por parte das autoridades tailandesas: “Se a jovem não quiser partir, ela não será enviada contra a sua vontade” para a Arábia Saudita, esclareceu o major general Surachate Hakparn esta segunda-feira.

A aparente facilidade com que o caso parecia resolver-se levantou dúvidas em relação à sinceridade das palavras do general. A confiança aumentou quando foi dada “luz verde” a uma delegação do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados para visitar Rahaf no quarto. Pouco depois surgia a notícia de que a jovem poderia sair — ficaria à guarda das Nações Unidas. “Ela já saiu do aeroporto com a ONU”, informou o general. “Ela não está mais detida pelos serviços de imigração.”

Até sair da Tailândia, Rahaf não pode respirar de alívio, apesar do rápido e positivo desfecho de um caso que tinha tudo para correr mal. Em abril de 2017, numa situação muito semelhante, a saudita Dina Ali Lasloom foi forçada a regressar a casa durante uma escala nas Filipinas, igualmente a caminho da Austrália.

A odisseia de Rahaf ganhou uma dimensão acrescida dado estar ainda recente na memória o brutal assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, um crítico do regime de Riade, que colocou o reino saudita no radar do (in)cumprimento dos direitos humanos.

Após ser nomeado príncipe herdeiro da coroa saudita, em junho de 2017, Mohammed bin Salman (MbS), hoje com 33 anos, “libertou” as sauditas de algumas amarras para anunciar ao mundo o início de uma nova era social no reino, designadamente permitindo que passassem a conduzir automóveis.

A fuga de Rahaf revela que o principal problema subsiste: o sistema de tutela familiar que subordina as mulheres à vontade de um homem — seja pai, marido, irmão ou mesmo filho — para decisões como estudar ou viajar para o estrangeiro. Estas obrigações duram a vida inteira. Para o Estado, as mulheres são permanentemente menores — até jovens destemidas como Rahaf Mohammed al-Qunun o provarem que não.

(IMAGENS Rahaf Mohammed al-Qunun, no interior de um quarto de hotel, no aeroporto de Banguecoque, na Tailândia TWITTER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui

Faz esta sexta-feira 33 anos na prisão. E vive no medo de ainda receber 950 chicotadas

Dois anos após receber 50 vergastadas numa praça da Arábia Saudita, o bloguer Raif Badawi, que amanhã faz 33 anos, vive no receio permanente de que as 950 chicotadas em falta a que foi condenado comecem a ser aplicadas a qualquer momento dentro da prisão. Não podemos esquece-lo…, apela ao Expresso uma amiga da família e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade

Raif Badawi já foi notícia em todo o mundo por diversas vezes. Foi-o a 29 de outubro de 2015 quando o Parlamento Europeu anunciou que o Prémio Sakharov daquele ano era dele. Tinha-o sido meses antes também pelas dramáticas razões que o tornaram universalmente conhecido: em frente a uma mesquita na cidade saudita de Jeddah, na presença de centenas de pessoas, Raif recebeu 50 chicotadas nas costas por “insulto ao Islão através de canais eletrónicos”, decretou a justiça saudita. Inspirado pelos “ventos da mudança” da Primavera Árabe, Raif criara o blogue “Liberais Sauditas Livres”, onde promovia debates sobre religião e sociedade uma ameaça à segurança nacional, considerou Riade.

Esta sexta-feira, o bloguer saudita faz 33 anos. Assinala-os na prisão, longe da família a mulher e três filhos menores vivem exilados no Quebec (Canadá) e das manchetes noticiosas. “Não, o caso não está esquecido”, garante ao Expresso Évelyne Abitbol, amiga da família e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade. “Não podemos esquece-lo. Devemos continuar a lutar pela sua libertação. Ele não é um criminoso, é um blogger, um jornalista, um escritor. E não insultou o Islão, defendeu a liberdade de expressão, de religião, de opinião…”

Após a sua prisão, em 2012, a Amnistia Internacional considerou Raif Badawi um prisioneiro de consciência, “detido unicamente por exercer pacificamente o seu direito à liberdade de expressão”. Na imagem, uma das campanhas da organização: “Blogar faz mal às costas”, lê-se. Usa-se a palavra “blogging” em vez de “flogging” (flagelação) AMNISTIA INTERNACIONAL

O caso de Raif tem constado da agenda diplomática de muitos países ocidentais nos seus contactos bilaterais com as autoridades sauditas. Os ministros dos Negócios Estrangeiros de todos os países ocidentais apelarem à sua libertação de cada vez que têm encontros na Arábia Saudita, mas não temos qualquer indicação de que ele vá ser libertado, refere Évelyne, nascida em Casablanca (Marrocos) e que é assessora especial para a diversidade de Jean-François Lisée, o líder da oposição na Assembleia Nacional do Quebec. Destaca as posições assumidas pelos Governos da Áustria, Suíça, Alemanha, França, Suécia, Noruega, Reino Unido e Canadá. Estão a trabalhar muito para o tirar de lá.

Esta semana, o potencial político do caso de Raif foi aflorado a propósito da visita à Arábia Saudita do Rei Felipe de Espanha, que se inicia no sábado. Segundo a imprensa espanhola, Letizia recusou-se a acompanhar o marido. Num artigo de opinião no diário digital El Español, o diretor adjunto Miguel Ángel Mellado enumera várias razões que podem ter contribuído para a posição da rainha. Segundo o jornalista, ela nunca visitaria um país onde as mulheres são proibidas de conduzir, as mulheres casadas não podem viajar sozinhas sem a tutela de um membro da família do marido, onde 150 pessoas foram executadas nos últimos anos, por decapitação na sua maioria, nalguns casos por se oporem à família real, um país que financia milhares de mesquitas em todo o mundo promovendo o wahabismo, uma corrente religiosa muçulmana radical, onde as divorciadas não podem entrar por serem consideradas adúlteras e onde um bloguer, Raif Badawi, recebeu 50 chicotadas em público e está na prisão à espera das restantes 950 a que foi condenado.

As chicotadas foram uma parte da pena decretada em maio de 2014. Raif foi também condenado a 10 anos de prisão, a mais 10 anos sem poder sair do país e a uma multa de um milhão de rials (mais de 250 mil euros). Recebeu as primeiras 50 chicotadas a 9 de janeiro de 2015; a segunda leva foi sendo sucessivamente adiada por razões de saúde. Raif sofre de hipertensão e é convicção da família que se o castigo continuar a ser aplicado, ele não sobreviverá. Ele tem sempre esse medo. Está sempre em grande tensão, continua Évelyne. Ele não está bem. Nem a nível físico ele tem pedras no rim nem emocionalmente. Claro que já lá vão quase cinco anos de prisão. Raif foi preso a 17 de junho de 2012.

O diretor da prisão autorizou-o a receber livros, mas estes não lhe chegam. Os livros têm de passar pela censura religiosa, explica Évelyne. Na prisão, ninguém o visita, mas Raif pode telefonar à família. Eles contactam-se. A família não pode telefonar-lhe, mas ele liga de uma cabine pública no interior da prisão. Falam-se a cada dois ou três dias.

VIGIADA, COMO O IRMÃO

Raif Badawi tornou-se o rosto mais visível entre um conjunto de intelectuais, ativistas, académicos que foram severamente punidos por ousarem dizer o que pensam na Arábia Saudita criticando as autoridades, apelando a reformas ou denunciando violações aos direitos humanos. Muitos são criminalizados ao abrigo de legislação anti-terrorista e de combate ao cibercrime.

No seu sítio na Internet, a Organização Saudi-Europeia para os Direitos Humanos apresenta vários casos de repressão, tortura, detenções arbitrárias, execuções políticas, que visam quem esboça a mínima dissidência em relação à Casa de Saud. Entre eles, está o de Samar Badawi, uma ativista dos direitos humanos de 35 anos. O apelido não ilude o parentesco: é irmã de Raif.

A 12 de janeiro do ano passado, foi presa por incitamento à opinião pública contra o Estado. Durante um interrogatório, foi questionada por ter feito o upload no Twitter da foto de um ativista a cumprir pena de prisão e por ter saudado a saída da prisão de um outro. Acabou por ser libertada, mas hoje vive com rédea curta no que respeita ao exercício das liberdades. O Expresso pediu-lhe uma entrevista para este artigo. Não posso, infelizmente, responde por email. Fui proibida pelo Governo saudita. Não posso falar com jornalistas. Lamento muito.

Tirada na noite da passagem de ano para 2017, a foto mostra Ensaf Haidar (a mulher de Raif) e os três filhos do casal: Doudi, Miriyam e Najwa. Entre as duas meninas, está a amiga Évelyne ÉVELYNE ABITBOL

No sítio da Fundação Raif Badawi para a Liberdade, um contador vai assinalando os dias, horas, minutos e segundos que faltam para a libertação de Raif — uma meta que a família gostaria de encurtar. Conta, para isso, com a pressão exercida por Governos nacionais sobre as autoridades sauditas — a ministra dos Negócios Estrangeiros da Suécia, Margot Wallström, qualificou a punição a Raif como “medieval” — e também com o voluntarismo de cada cidadão individualmente — como aconteceu com a própria Évelyne.

“Envolvi-me há dois anos. Tinha sido jornalista e tinha trabalhado na área internacional sobre diversidade, direitos humanos e desenvolvimento democrático. Um dia, vi um apelo da Ensaf no Youtube e pensei que podia ajuda-la, já que ela vive em Sherbrooke (Quebec), muito perto de mim. Conhecemo-nos numa vigília e rapidamente tornei-me amiga da família. Comecei a ajudar nas conferências de imprensa, apresentações públicas, elaboração de discursos e moções a apresentar na Assembleia Nacional do Quebec.” Depois, “decidimos abrir uma fundação com o nome de Raif e assente nos seus valores”.

Aos portugueses, em particular, Évelyne faz dois apelos. Por um lado, pede que participem numa campanha de crowdfunding (recolha de fundos) lançada em novembro passado para ajudar a custear as ações desenvolvidas pela Fundação. Qualquer quantia é bem vinda, diz. Por outro, apela a que uma editora portuguesa se interesse pelo livro da Ensaf, Mon combat pour sauver Raif Badawi (O meu combate para salvar Raif Badawi), lançado no ano passado. A tradução espanhola vai ser lançada em fevereiro. Seria muito bom arranjarmos alguém que traduzisse o livro para português e o publicasse.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 12 de janeiro de 2017. Pode ser consultado aqui

Uma criança morre a cada 10 minutos no Iémen

É o país mais pobre do Médio Oriente, assolado por um conflito que vai caindo no esquecimento e coloca as crianças, cada vez mais, na linha da frente da mortalidade. No Iémen, perto de meio milhão de crianças está em perigo de morrer à fome

A cada hora que passa, morrem seis crianças no Iémen de doenças já erradicadas noutras zonas do planeta, infeções respiratórias e subnutrição. “A violência e o conflito fizeram reverter ganhos significativos na última década ao nível da saúde e nutrição das crianças iemenitas”, alertou Meritxell Relaño, representante interina da UNICEF no Iémen. “Doenças como a cólera e o sarampo aumentaram e, com poucas infraestruturas de saúde funcionais, esses surtos estão a penalizar muito as crianças.”

Segundo aquela agência especializada das Nações Unidas, 2,2 milhões de crianças sofrem de subnutrição — na província de Sa’ada (norte), junto à fronteira com a Arábia Saudita, oito em 10 crianças sofrem de subnutrição crónica. Cerca de 462 mil correm mesmo o risco de morrer à fome — um aumento de 200% desde 2014.

“A subnutrição no Iémen está em alta e a aumentar”, acrescentou a espanhola Meritxell Relaño. “O estado de saúde das crianças no país mais pobre do Médio Oriente nunca foi tão catastrófico como hoje.”

Unificado desde 1990, o Iémen tem enfrentado anos de pobreza generalizada, escassez alimentar e um sistema de saúde deficiente. O Relatório de Desenvolvimento Humano Árabe de 2016, divulgado a 29 de novembro passado, descreve “uma das piores crises humanitárias” em todo o mundo. “Em dezembro de 2015, estimava-se que 21,2 milhões de pessoas — o que corresponde a 82% da população iemenita — necessitava de ajuda humanitária”, lê-se na página 129 do documento.

“Menos de um terço da população do país tem acesso a tratamentos médicos”, complementa a UNICEF. “Menos de metade das infraestruturas de saúde estão operacionais. Profissionais de saúde não recebem salário há meses e agências de ajuda humanitária lutam para trazer suprimentos para salvar vidas em virtude do impasse político entre as partes em conflito.”

A situação no Iémen degradou-se acentuadamente a partir de março de 2015, quando o país começou a ser alvo de bombardeamentos por parte de uma coligação de países da região. Oficialmente, a ofensiva liderada pela Arábia Saudita (país árabe), o gigante sunita do Médio Oriente, visa devolver o poder ao Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi, deposto em setembro de 2014 pelos rebeldes huthis — xiitas e próximos do Irão (país persa), o grande rival dos sauditas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2016. Pode ser consultado aqui

Raptos, tortura e execuções sumárias. Métodos de Assad são copiados por grupos da oposição

Na Síria, em áreas controladas pela oposição a Bashar al-Assad, os civis não estão a salvo de atrocidades. Um novo relatório da Amnistia Internacional denuncia os abusos cometidos por grupos armados afetos à oposição

No conflito da Síria, ninguém cumpre as regras da guerra. Grupos jiadistas e movimentos afetos à oposição levam a cabo formas de abuso semelhantes aos métodos de tortura atribuídos às forças leais ao Presidente Bashar al-Assad, denuncia, esta terça-feira, um relatório da Amnistia Internacional.

“As forças do Governo têm sido responsáveis pela maioria das violações, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade, sujeitando dezenas de milhares [de pessoas] a detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos e desaparecimentos forçados”, lê-se no documento. “No entanto, os abusos por parte de grupos armados não-estatais têm agravado o sofrimento dos civis. Os grupos armados que se opõem ao Governo sírio praticaram violações graves do direito internacional humanitário, incluindo sequestros, tortura e execuções sumárias.”

O documento — intitulado “A tortura foi o meu castigo” — tem na sua origem entrevistas a 70 pessoas que vivem ou trabalham na província de Idlib e partes de Alepo, áreas controladas por rebeldes, no noroeste da Síria.

Um deles é Ibrahim (nome fictício), que afirma ter sido raptado pelo grupo islamita Jabhat al-Nusra — o braço da Al-Qaeda na Síria —, em 2015. “Eu tinha ouvido e lido sobre as técnicas de tortura das forças de segurança governamentais. Pensei que estaria protegido disso, dado que moro numa área controlada pela oposição. Estava enganado. Fui sujeito às mesmas técnicas de tortura às mãos da Jabhat al-Nusra”, testemunhou.

Segundo o relatório, as formas de tortura atribuídas a grupos da oposição incluem o espancamento com objetos, as posições “shabeh” (a vítima fica suspensa do teto pelos pulsos durante horas) e “dulab”, em que a vítima é enfiada num pneu (a cabeça fica colada aos joelhos) sendo depois espancada.

Ouvir certa música é perigoso

Para além da Jabhat al-Nusra, o relatório enumera mais quatro grupos armados implicados em relatos de atrocidades sobre civis: a Frente al-Shamia, o Movimento Nour al-Dine Zinki e a Divisão 16, em Alepo (membros da coligação Conquista de Alepo), e a Jabhat al-Nusra e o Movimento Islâmico Ahrar al-Sham, em Idlib (que integram a coligação Exército da Conquista).

“Alguns destes grupos, compostos predominantemente por cidadãos sírios, foram controlando áreas cada vez maiores da cidade de Alepo, de Idlib e arredores, entre 2012 e 2015, e permaneceram no poder nessas zonas até hoje com o apoio de Governos como do Qatar, Arábia Saudita, Turquia e Estados Unidos”, lê-se no relatório. “E ao fazerem-no, estabeleceram instituições administrativas e quase judiciais.”

Se, numa fase inicial deste conflito, muitos civis terão sentido alívio quando as suas áreas de residência caíram nas mãos de grupos que combatiam o regime de Damasco, hoje muitos civis vivem num medo constante de serem raptados. Basta serem apanhados a criticar esses grupos ou a não cumprirem as estritas normas sociais por eles impostas.

Imad (nome fictício) relatou à Amnistia Internacional um ataque à Rádio Fresh, uma estação da cidade de Kafranbel, no norte da província de Idlib, a 10 de janeiro passado: “Alguns combatentes da Jabhat al-Nusra invadiram a estação às sete da manhã. Eu vi os carros, tinham o logotipo deles estampado nas portas. Confiscaram e destruíram algum equipamento e começaram a gritar que nós estávamos a passar música inapropriada na rádio. Nós passávamos canções revolucionárias ou então da Fairuz [uma cantora libanesa muito popular em todo o mundo árabe]. Prenderam dois funcionários. Durante dois dias não soubemos deles. Depois foram libertados após ‘confessarem’ terem praticado o mal. Continuamos a passar música mas muito menos do que anteriormente. Estamos mais cautelosos”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de julho de 2016. Pode ser consultado aqui

Amnistia denuncia campanha anti-árabe no Curdistão iraquiano

Um relatório da organização humanitária revela que forças curdas iraquianas demoliram, fizeram explodir e queimaram milhares de casas num esforço deliberado para punir e forçar comunidades árabes à deslocalização

É uma guerra paralela no Iraque — a disputa por território em nome de identidades étnicas. “Forças peshmergas do Governo Regional do Curdistão e milícias curdas no norte do Iraque demoliram, fizeram explodir e queimaram milhares de casas num esforço aparente para desenraizar comunidades árabes em vingança ao que percecionam ser um apoio ao autodenominado Estado Islâmico [Daesh]”, denuncia a Amnistia Internacional num relatório divulgado esta quarta-feira.

O documento — intitulado “Banidos e desapossados: deslocamento forçado e destruição deliberada no norte do Iraque” — assenta numa investigação feita em 13 cidades e aldeias das províncias de Ninive, Kirkuk e Diyala, capturadas ao Daesh entre setembro de 2014 e março de 2015, em testemunhos de mais de 100 pessoas e imagens recolhidas por satélite.

As conclusões apontam para uma destruição em larga escala realizada por “peshmergas” (forças curdas iraquianas) e, em alguns casos, por milícias yazidis e grupos curdos armados oriundos da Síria e da Turquia, coordenados com os “peshmergas”.

“Forças do Governo Regional do Curdistão parecem estar a liderar uma campanha concertada para deslocar à força comunidades árabes, destruindo aldeias inteiras em áreas reconquistadas ao Daesh no norte do Iraque”, acusou Donatella Rovera, conselheira da Amnistia que investigou no terreno. “A deslocação forçada de civis e a destruição deliberada de casas e propriedades sem justificação militar podem constituir crimes de guerra.”

Estratégia inversa à de Saddam

Os curdos, que não são árabes, correspondem a cerca de 20% da população iraquiana e são a etnia maioritária no norte do país. Apoiados por bombardeamentos aéreos dos Estados Unidos, os “peshmergas” têm conseguido recuperar territórios ao Daesh, alguns etnicamente mistos.

Citado pela agência Reuters, Dindar Zebari, do departamento internacional do Governo do Curdistão, justificou que a destruição resultou dos combates entre os “peshmergas” e os jiadistas, bem como dos bombardeamentos da coligação internacional e de bombas deixadas para trás pelo Daesh. E recordou que a região deu guarida a 700 mil árabes em fuga à violência no resto do país.

A Amnistia Internacional alerta a coligação para que se assegure que a assistência ao Governo do Curdistão não contribua para abusos, nomeadamente para um processo inverso à campanha de arabização da região promovida por Saddam Hussein. Então, as populações visadas por deslocações forçadas foram os curdos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui