Três analistas comentam a diplomacia do 45º Presidente. Do braço de ferro com a China à ambiguidade em relação às alterações climáticas
1 PANDEMIA A covid-19 tomou o mundo de assalto e os EUA em particular, tornando-os o país mais castigado. Donald Trump desvalorizou o problema, descredibilizou a Organização Mundial da Saúde e, mesmo após ter sido infetado, ignorou o perigo promovendo comícios de multidões. “É a primeira vez desde o pós-guerra que os EUA não estão na primeira linha de uma resposta a uma crise internacional relevante”, diz Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais. “É uma mudança profunda. A principal potência internacional abdica da sua posição como garante da ordem e da estabilidade internacional.”
2 CHINA Com origem em Wuhan, a pandemia acentuou a ‘guerra fria’ entre EUA e China, levando Trump a encher a boca com “o vírus chinês”. “Barack Obama defendia que era impossível uma estratégia de contenção da ascensão da China por causa da interdependência entre as economias americana e chinesa”, diz Carlos Gaspar. “Trump decidiu ou foi levado a alinhar com uma estratégia de contenção da China cujo primeiro passo decisivo é o desacoplamento tecnológico e comercial entre as duas maiores economias mundiais. Está a pôr em causa a dinâmica de globalização.”
3 COREIA DO NORTE Quando Trump chegou à Casa Branca, a Península da Coreia, e o mundo por arrasto, estava em polvorosa perante sucessivos ensaios nucleares norte-coreanos. Trump fez tábua rasa da prática presidencial que o precedeu e tornou-se o primeiro Presidente a pisar a Coreia do Norte. Esteve três vezes com Kim Jong-un, mas o diálogo não deu frutos: Pyongyang não desnuclearizou, e Washington não levantou as sanções. “O que se vê a esta distância é que o Presidente dos EUA ofereceu uma gigantesca photo op a um ditador cruel, que não é de confiar, a troco de quase nada”, diz Germano Almeida, autor de quatro livros sobre presidências americanas.
4 ISRAEL-PALESTINA Trump fez uma escolha clara quando, a 6 de dezembro de 2017, reconheceu Jerusalém como capital de Israel. Acentuou esse alinhamento pelo Estado judaico a 15 de setembro passado ao surgir como o anfitrião da assinatura dos Acordos de Abraão, pelos quais duas monarquias árabes sunitas (Emirados Árabes Unidos e Bahrein) reconheceram Israel. “São o culminar de quatro anos de política pró-Israel, de diabolização do Irão [persa xiita] e sobretudo o ponto de chegada da preferência clara pela Arábia Saudita [árabe sunita]”, diz Germano Almeida. “É bom ver Israel assinar a paz, mas é preciso ver o que se perdeu à conta disso.” Os palestinianos foram ignorados e o Irão espicaçado.
5 IRÃO Trump deu total prioridade ao isolamento do Irão e isso ficou patente a 8 de maio de 2018 quando retirou os EUA do acordo internacional sobre o programa nuclear de Teerão. “A diabolização do Irão foi energizada pela necessidade de querer destruir tudo o que Obama fez”, diz Germano Almeida. Ao rasgar o acordo distanciou os EUA dos europeus, que mantiveram o compromisso, e desbravou caminho “a uma política para o Médio Oriente baseada em dois ‘pivôs’ por procuração: Israel e a Arábia Saudita”. O assassínio por um drone americano, a 3 de janeiro de 2020, do general Qasem Soleimani, o cérebro das intervenções iranianas na região, insere-se nessa guerra.
6 RÚSSIA Trump chegou à Casa Branca sob a suspeita de ter beneficiado de uma interferência russa nas eleições. Mas não evitou que a relação EUA-Rússia se degradasse. “A retórica utilizada em Washington relativamente à Rússia assumiu contornos nunca vistos”, diz o major-general Carlos Branco, autor do livro “Do fim da Guerra Fria a Trump e à Covid-19” (2020). “O secretário de Estado, Mike Pompeo, foi ao ponto de afirmar que a Rússia é um perigo para os EUA. O encerramento dos consulados russos em São Francisco, Nova Iorque e Washington foram precedentes perigosos. A classificação da Rússia pela Estratégia Nacional de Segurança, aprovada em 2017, como uma potência revisionista, colocando-a ao nível de ‘Estados párias’ como a Coreia do Norte, indica ao ponto a que chegou a relação.”
7 AFEGANISTÃO Com tropas neste país desde 11 de setembro de 2001, os EUA celebraram, a 29 de fevereiro deste ano, a paz com os talibãs que abre as portas ao regresso a casa. “Este acordo insere-se no cumprimento da promessa eleitoral de terminar com as ‘guerras intermináveis’”, diz o major-general Carlos Branco, antigo porta-voz do comandante da força da NATO no Afeganistão. “Os soldados americanos iniciarão uma retirada progressiva, pendente da evolução das negociações entre o Governo de Cabul e os talibãs, que não estão a ser fáceis.” Ao negociar diretamente com os talibãs, Trump contornou as dificuldades do diálogo intra-afegão. “Este acordo completa a estratégia de retraimento dos EUA, que decidiram pôr fim ao ciclo de intervenções militares no ‘arco islâmico’”, acrescenta Carlos Gaspar. “Quiseram impor a paz e sair com honra, mas este acordo não garante a paz aos afegãos, nem a honra dos norte-americanos e põe em causa tudo aquilo pelo qual os militares norte-americanos e os seus aliados combateram no Afeganistão.”
8 MULTILATERALISMO Um cunho da Administração Trump foi a denúncia de compromissos internacionais: Parceria Transpacífico, NAFTA, Acordo de Paris, Nuclear do Irão, UNESCO, Conselho dos Direitos Humanos… “Trump não simpatiza com o multilateralismo, sobretudo quando não é vantajoso para os interesses americanos. Mas é preciso avaliar com cautela as questões relativas à NATO”, alerta Carlos Branco. “As dificuldades de diálogo com os aliados europeus prendem-se, acima de tudo, com a sua reduzida contribuição financeira para o orçamento da organização. Contudo, nunca a NATO teve uma atividade tão intensa desde o fim da Guerra Fria.”
9 ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS A 1 de junho de 2017, Trump chocou o mundo ao retirar os EUA do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, criando polémica num assunto consensual nos corredores científicos e políticos. “É o momento mais vergonhoso dos anos Trump”, diz Germano Almeida. “Dá mau nome à América e coloca os EUA como ‘Estado pária’ num assunto fundamental para esta e as próximas gerações.” O Presidente nunca se assumiu totalmente como um negacionista, mas foi ambíguo para agradar aos empresários.
10 TERRORISMO George W. Bush executou Saddam Hussein, Barack Obama eliminou Osama bin Laden e Trump o líder do Daesh, Abu Bakr al-Baghdadi. Como os antecessores, pode dizer que tem “um troféu de caça” que, de forma mais simbólica do que real, identifica a derrota da ameaça islamita.
(FOTO Encontro entre Kim Jong-un e Donald Trump, na Zona Desmilitarizada U.S. GOVERNMENT / RAWPIXEL)
Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

