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Da Amazon para as frentes de batalha, os drones estão a moldar a forma como se faz a guerra

De forma crescente, os drones têm assumido protagonismo em contextos de guerra. O conflito na Ucrânia é o mais recente exemplo. Ágeis, sofisticados e polivalentes, os veículos aéreos não tripulados — mesmo que comprados em sites tão populares como a Amazon — proliferam em ações de vigilância, de combate ou suicidas. Ao Expresso, um investigador da área alerta: “Enquanto a tecnologia drone é barata e extremamente avançada, desenvolvendo-se a uma velocidade estonteante, a tecnologia antidrone, que permite impedir ou neutralizar um drone, está muito menos desenvolvida e tem imensos problemas ao nível da eficácia”

Na era das ciberguerras, os drones são os guerreiros perfeitos. Matam sem remorsos, obedecem sem questionar e nunca denunciam os chefes.” Esta frase foi escrita há dez anos pelo uruguaio Eduardo Galeano, no livro “Os Filhos dos Dias” (Antígona, 2020). Nas últimas semanas, três contendas internacionais parecem confirmar o perfil guerreiro dos veículos aéreos não tripulados. E é tão simples como isto: “Qualquer pessoa pode comprar um drone na Amazon e depois armá-lo”.

Na guerra da Ucrânia, a Rússia — apanhada de surpresa pela contraofensiva de Kiev sobre territórios que Moscovo já tinha formalmente anexado — retaliou com enxames de drones sobre cidades ucranianas distantes da linha da frente, incluindo a capital.

Não muito longe, no Irão, o regime — acossado há mais de um mês por manifestações populares desencadeadas pela morte de uma mulher curda às mãos da polícia — recorreu a drones para bombardear grupos armados curdos, baseados no Curdistão iraquiano, a quem acusou de instigar os protestos.

Ainda na região do Médio Oriente, sexta-feira passada, o Governo do Iémen intercetou drones armados disparados pelos rebeldes huthis na direção de um petroleiro que se preparava para atracar num terminal no sul do país.

Novas dinâmicas no campo de batalha

De forma crescente, os drones têm vindo a assumir protagonismo em contextos bélicos. Ainda que não vão ao ponto de mudar totalmente a forma como se faz a guerra,“claramente, os drones introduzem novas dinâmicas”, diz ao Expresso o investigador Bruno Oliveira Martins, do Peace Research Institute Oslo (PRIO), estudioso da temática dos drones. “Estas dinâmicas são multifacetadas”, acrescenta. E exemplifica:

  • Ao alcance dos civis. “Na Ucrânia, por exemplo, grupos de civis, como engenheiros, organizaram-se para desenvolver drones com tecnologia comercial. Com os seus conhecimentos técnicos, colocam os drones ao serviço do exército.”
  • Resistência aos poderosos. “Porque os drones são, em geral, uma tecnologia muito mais barata do que muitas outras armas, exércitos e forças menos poderosas podem oferecer resistência significativa face a adversários mais poderosos.”
  • Novos produtores, novas alianças. “Existe uma nova geopolítica em torno do surgimento de atores internacionais ao nível da produção de armas. Isso faz com que algumas alianças e posicionamentos diplomáticos que reconhecemos no passado não existam totalmente, ou estejam a ser adaptados ou modificados.”

Foi nos anos 90, nos Balcãs, que os drones começaram a ser usados em contexto de guerra, para recolher imagens em tempo real das movimentações no terreno — as chamadas ações de Informação, Vigilância e Reconhecimento (ISR, na sigla em inglês).

Desde então, estes “zangãos” (tradução da palavra inglesa “drones”) tornaram-se mais sofisticados, polivalentes e… ameaçadores.

“Na viragem do milénio, surgiu a ideia de armar os drones, para que não só providenciassem imagens como fosse possível atuar em função desse tipo de informação recolhida”, diz Oliveira Martins, que no PRIO coordena um projeto no valor de 1,2 milhões de euros para investigar a integração de drones no espaço civil na União Europeia.

“Os primeiros drones armados apareceram em Israel e nos Estados Unidos, entre 2000 e 2010. E começaram a ser utilizados em conflitos mais convencionais.” Hoje, são usados como arma letal, essencialmente de três formas:

  1. Drone com míssil
    No grupo de drones armados, o exemplo clássico é aquele que transporta um míssil. Disparado o projétil, o veículo tem capacidade para regressar à origem.
  2. Drone improvisado
    É construído com base em tecnologia comercial, à venda em lojas. “Qualquer pessoa pode comprar um drone na Amazon e depois armá-lo”, diz o perito do PRIO. “Grupos terroristas não estatais armam este tipo de drone com granadas, por exemplo.”
  3. Drone kamikaze
    O próprio drone é a arma. Descartável, é disparado contra um alvo, destruindo-o e destruindo-se, replicando o modus operandi dos pilotos de caça japoneses suicidas na II Guerra Mundial. Este tipo de drone foi muito usado pelo grupo terrorista Daesh (o autodenominado Estado Islâmico) na Síria e no Iraque, e por grupos rebeldes em África. Hoje, “é utilizado abundantemente na Ucrânia”, por ambos os lados.

Se se distinguir entre drones comerciais (para utilização civil) e drones para uso militar, Portugal surge em lugar de destaque num dos rankings. “Há dezenas de países, decerto mais de uma centena, que produzem drones para utilização civil. Portugal tem uma empresa, a Tekever, que é líder europeia ao nível de drones utilizados, por exemplo, para vigilância marítima”, refere Oliveira Martins.

Já quanto aos drones armados, se numa primeira fase os principais produtores eram os Estados Unidos e Israel, “depois, foram surgindo novos produtores que, atualmente, representam uma fatia cada vez maior do mercado: de início a China, depois os Emirados Árabes Unidos, o Irão e a Turquia”.

“Neste momento, Irão e Turquia são quem mais atenção internacional têm atraído, nomeadamente a Turquia. Nos últimos anos tornou-se, praticamente a partir do nada, um país extremamente importante na produção de drones armados.”

Na guerra da Ucrânia, drones turcos e iranianos têm servido em trincheiras opostas. Fabricados na Turquia — que assumiu o papel de mediador entre Moscovo e Kiev —, os drones Bayraktar (porta-estandarte, em turco) foram preciosos, nas primeiras semanas do conflito, para a Ucrânia repelir as ofensivas russas.

Num momento dissonante em relação aos horrores da guerra, um grupo de militares ucranianos protagonizou um bem-humorado vídeo musical de exaltação a esse aliado turco.

Mais recentemente, foram drones kamikaze cuja origem se atribui ao Irão a sobressair no arsenal da Rússia. “No verão de 2022, Teerão transferiu centenas de drones militares para a Rússia, numa tentativa de melhorar a sua baça capacidade ao nível dos drones” de combate, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na área dos drones na Universidade do Minho. Batizados por Moscovo de Geran-2, no Irão são designados por Shahed-136.

“O Irão fabrica drones armados e possui vários modelos de drones de combate que complementam o seu programa de mísseis balísticos. É algo que permite a Teerão compensar as suas forças aéreas relativamente fracas e antiquadas”, diz Eslami.

Em 2019, a República Islâmica promoveu um exercício com drones no Golfo Pérsico intitulado “Rumo a Jerusalém”. O professor iraniano considera esta operação “uma das ações mais provocadoras nos anos recentes. A designação que os responsáveis iranianos deram a este exercício militar transmite a ideia que ‘confrontar Israel’ é uma das funções mais importantes que o Irão confere ao seu programa de drones”.

No conflito ucraniano, nem a Rússia confirma ter comprado drones ao Irão, nem este admite tê-los vendido. Mas um negócio entre estes dois países não seria surpreendente, dado serem os Estados mais castigados com sanções pela comunidade internacional — com a invasão da Ucrânia, a Rússia ultrapassou o Irão.

Acresce que, a 18 de outubro de 2020, expirou o embargo de armas ao Irão decretado pelas Nações Unidas, conforme previsto no acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, assinado cinco anos antes. Isto “eliminou qualquer obstáculo oficial à venda e aquisição de armas entre a Rússia e o Irão”, recorda Eslami.

A forma como Turquia e Irão se tornaram referências no fabrico de drones confirma uma consequência importante desta indústria. “Com o surgimento destes novos produtores, a tecnologia de drones armados democratizou-se. Hoje, é muito mais comum um determinado país conserguir adquirir esta tecnologia pelo simples facto de haver cada vez mais Estados e empresas que podem e estão interessados em vendê-la”, diz Oliveira Martins.

“Quando a produção da tecnologia era praticamente um monopólio entre Israel e os Estados Unidos, basicamente só os países da esfera de alianças e parcerias desses dois tinham acesso à tecnologia. A partir do momento em que mais e mais países, de esferas geopolíticas diferentes, começaram a desenvolver capacidade para produzir drones armados, o número de países com acesso a esses equipamentos cresceu exponencialmente.”

Drones turcos tiveram uma importância significativa na última guerra em torno de Nagorno-Karabakh (em defesa do Azerbaijão), na Líbia (em apoio do Executivo de Trípoli, reconhecido pela ONU) e também na Etiópia (adquiridos pelo Governo, contra as forças da Frente Popular de Libertação do Tigray).

Drones em mãos erradas

Além dos conflitos convencionais, os drones tornaram-se protagonistas também nas mãos de grupos terroristas. “Vimos o Estado Islâmico utilizar largas centenas, senão milhares de drones vendidos pela China”, recorda o investigador do PRIO. “Aponta-se para a existência de cerca de 65 grupos não estatais que utilizam drones armados. Mas esse número pode ser bastante mais elevado.”

Ao arrepio de quaisquer motivações políticas ou ideológicas, drones são usados por grupos de criminalidade organizada, nomeadamente narcotraficantes mexicanos. “À medida que a tecnologia prolifera, fica ao alcance de todo o tipo de grupos e para todo o tipo de utilizações.”

“Enquanto a tecnologia drone é barata e extremamente avançada, desenvolvendo-se a uma velocidade estonteante, a tecnologia antidrone — que permite impedir ou neutralizar um drone — está muito menos desenvolvida e tem imensos problemas ao nível da eficácia”, explica Oliveira Martins. “Ainda não se configura uma resposta adequada ao problema securitário que decorre da entrada em massa de drones no espaço aéreo civil.”

Durante a Administração Obama, nos Estados Unidos, o uso de drones em especial no Paquistão, Iémen e Somália — no âmbito de assassínios seletivos de suspeitos de terrorismo — contribuiu para uma perceção negativa da utilidade destes veículos aéreos, em virtude do número de civis mortos.

Para Oliveira Martins, é indiscutível que “os drones são uma tecnologia mais precisa do que outro tipo de bombas mais poderosas”. Porém, “o nível de precisão dos drones varia bastante, consoante o tipo de drone, da tecnologia utilizada, da capacidade do utilizador ou das condições no terreno”.

“Muitas vezes a precisão não é tão elevada quanto é anunciado. E em virtude da existência de uma narrativa em torno da precisão, a fasquia para se decidir utilizar um drone armado num ataque é hoje mais baixa do que antes. Porque há a ideia de que os drones são mais precisos, então vamos utilizá-los, disparar um míssil, porque temos mais confiança na eficácia desse ataque. E o que verifica quem estuda as consequências dos ataques com drones é que muitas vezes a informação que suporta a decisão para atacar com um drone não é suficientemente forte.”

Tragédias americanas

  • A 12 de dezembro de 2013, durante uma operação de contraterrorismo nos arredores da cidade de Rad’a (centro do Iémen), um drone dos Estados Unidos disparou quatro mísseis Hellfire na direção de um comboio de onze carros e pick-ups. O ataque provocou 12 mortos e 15 feridos, todos civis. Os veículos integravam um cortejo de casamento.
  • A 29 de agosto de 2021, dias após a retirada militar dos Estados Unidos do Afeganistão, um ataque desencadeado por um drone americano, em Cabul, matou dez pessoas, incluindo sete crianças. “A pessoa identificada não era terrorista, nem sequer suspeito”, recorda Oliveira Martins. “Suspeitaram do tipo de comportamento e dos sítios que essa pessoa frequentou e decidiram disparar.”

Nestes dois casos, o drone foi preciso, ainda que a informação que validou os ataques fosse incorreta. Mas, como alertou Eduardo Galeano, o drone “obedeceu sem questionar” e “matou sem remorsos”.

(FOTO Veículo aéreo não tripulado MQ-9 Reaper WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de outubro de 2022. Pode ser consultado aqui

Drones e robôs no lado certo do combate à covid-19

A pandemia do novo coronavírus acelerou a utilização de tecnologias. Da Argentina a Hong Kong, há robôs ao serviço em hospitais, farmácias e parques públicos e drones em missão de vigilância, higienização e transporte de material médico

FOTOGALERIA

ÍNDIA. Num hospital de Bangalore, um profissional de saúde testa um robô equipado com câmara térmica que vai fazer a triagem preliminar dos pacientes à chegada ao hospital para impedir a disseminação de covid-19 MANJUNATH KIRAN / AFP / GETTY IMAGES
CHILE. Um drone do município de Zapallar entrega um saco com medicamentos a um casal de idosos que vive em isolamento social por causa da pandemia REUTERS
ITÁLIA. Sem necessidade de proteção especial, este robô ajuda a tratar de doentes covid recolhendo informação junto dos pacientes, num hospital de Varese FLAVIO LO SCALZO / REUTERS
ALEMANHA. Drone para transporte de equipamento médico nos céus de Berlim HANNIBAL HANSCHKE / REUTERS
SINGAPURA. Um cão robô patrulha um parque para dissuadir ajuntamentos EDGAR SU / REUTERS
MALÁSIA. Drone ao serviço da polícia de Kuala Lumpur e da imposição das regras de confinamento LIM HUEY TENG / REUTERS
ITÁLIA. À entrada desta farmácia de Turim, um robô mede a temperatura aos clientes STEFANO GUIDI / GETTY IMAGES
FRANÇA. Um drone pulveriza uma rua da cidade de Cannes com substâncias desinfetantes ERIC GAILLARD / REUTERS
SINGAPURA. Este robô lembra aos corredores, através de mensagens sonoras, que devem manter uma distância segura EDGAR SU / REUTERS
PERU. Enquanto estão na fila para serem testados à covid-19, em Lima, estes cidadãos são desinfetados por um drone SEBASTIAN CASTANEDA / REUTERS
CHINA. Neste restaurante de Xangai, é um robô que leva a comida à mesa ALY SONG / REUTERS
REINO UNIDO. Um robô usado para fazer entregas tem a vida facilitada por estes dias, com as ruas e passeios da cidade inglesa de Milton Keynes vazios LEON NEAL / GETTY IMAGES
MARROCOS. Um funcionário de uma “startup” dirige um drone equipado com uma câmara térmica, perto de Rabat FADEL SENNA / AFP / GETTY IMAGES

EUA. Um robô entrega comida ao domicílio, na Beverly Boulevard, em Los Angeles, após ser decretado o encerramento de todos os serviços não-essenciais AARONP / BAUER-GRIFFIN / GETTY IMAGES

CHINA. Um robô-polícia acompanha três profissionais de saúde, no aeroporto de Wuhan, após o levantamento das restrições à circulação na cidade onde o novo coronavírus primeiro apareceu ALY SONG / REUTERS
ALEMANHA. Junto às caixas de um supermercado da cidade de Lindlar, este robô humanóide apresenta informação sobre medidas de proteção em relação à covid-19 WOLFGANG RATTAY / REUTERS
ÁFRICA DO SUL. Usado para sulfatar propriedades agrícolas, este drone está a ser atestado para desinfetar áreas populosas, na cidade de Tshwane ALET PRETORIUS / GETTY IMAGES
HONG KONG. No aeroporto internacional, a higienização das casas de banho está por conta de robôs equipados com luz ultravioleta TYRONE SIU / REUTERS
ARGENTINA. Nos autocarros de Buenos Aires, há robôs a participar na desinfeção AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS
ITÁLIA. No parque Valentino, em Turim, um “carabinieri” opera um drone para vigiar o cumprimento das regras de confinamento MASSIMO PINCA / REUTERS
JAPÃO. Neste hotel de Tóquio, que está a ser usado para acomodar doentes com sintomas leves de covid-19, há dois robôs ao serviço: Pepper dá as boas vindas e Whiz limpa o chão PHILIP FONG / AFP / GETTY IMAGES
INDONÉSIA. Não é um robô, é um homem vestido com um fato de autómato a impor a distância física, numa rua da cidade de Bandung R. FADILLAH SIPTRIANDY / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Os drones vieram para ficar e talvez até para nos trazer as compras a casa. Será que queremos?

A pandemia acelerou o processo de integração dos drones no espaço aéreo civil. Hoje andam no ar em ações de vigilância, a desinfetar áreas urbanas e a transportar medicamentos. O Expresso falou com um investigador que deita água na fervura da euforia e alerta para os perigos da utilização de drones em grande escala

Tempos de crise incentivam a procura de soluções inovadoras para as novas dificuldades da vida, e a pandemia provocada pelo novo coronavírus não é exceção. Da necessidade de — mais confinados — continuarmos ligados uns aos outros resultou a popularidade de serviços de videoconferências como o Zoom. Da urgência em travar a disseminação do vírus brotaram discussões sobre aplicações nos telemóveis para vigiar contactos com doentes de covid-19. E da necessidade de controlar a pandemia, muitos drones (veículos aéreos não-tripulados) passaram a andar em espaço aéreo onde, até há muito pouco, havia apenas helicópteros e aviões.

“A tecnologia é vista cada vez mais como a panaceia para todos os problemas”, diz ao Expresso Bruno Oliveira Martins, investigador do Peace Research Institute de Oslo (PRIO), na Noruega. “Neste clima de estado de emergência generalizado, os drones têm sido utilizados num grande número de funções. Quem tem observado o seu desenvolvimento nos últimos anos sempre antecipou que à medida que a tecnologia fosse evoluindo haveria novas funções que poderiam ser desempenhadas. Neste momento, tudo isso está a materializar-se, um pouco por todo o mundo.”

Em Portugal, a PSP e a GNR usaram drones para controlar o cumprimento do estado de emergência, entre 18 de março e 1 de maio, captando imagens e emitindo mensagens sonoras. Na Coreia do Sul e na Índia, aparelhos com borrifadores acoplados são utilizados para desinfetar áreas urbanas. Na China e Arábia Saudita, drones equipados com câmaras térmicas permitem detetar pessoas com alta temperatura corporal. Na Polónia e no Gana, já foram usados para transportar testes à covid-19.

Com grande naturalidade é fácil imaginar, neste contexto de pandemia, drones em massa nos céus de qualquer cidade em atividades de entregas ao domicílio. “Mas será que queremos mesmo isso?”, questiona o investigador. “Para que os drones voem, precisam de localização por satélite, por norma GPS, deixam uma enorme pegada digital. Eu não tenho a certeza de querer ter as minhas compras numa base de dados…”

O investigador recorda a edição de 6 de maio de 2017 da prestigiada revista “The Economist”, que considerava que os dados pessoais tinham ultrapassado o petróleo como “recurso mais valioso do mundo”. No desenho que ilustrava a capa, seis gigantes tecnológicas (Amazon, Uber, Microsoft, Google, Facebook e Tesla) surgiam instaladas em plataformas petrolíferas.

“A circulação dos nossos dados numa economia paralela, que se alimenta deste capitalismo de vigilância, é extremamente difícil de perceber para o cidadão comum”, explica. “A ideia de que há um sistema de email gratuito é falsa. O Gmail não é gratuito — não o pagamos com dinheiro, pagamo-lo com os nossos dados pessoais, que depois são comercializados nesse mercado paralelo que se alimenta de milhões e milhões e milhões de dados para desenvolver novas tecnologias. A maior parte das pessoas não tem consciência disto.”

Hora de ponta à volta do edifício

Além da pegada digital, Bruno Oliveira Martins identifica dois outros obstáculos à massificação de drones-estafeta. “Até podemos pensar que, precisados de ir à farmácia, seria excelente se um drone trouxesse o medicamento a casa. Mas se vivermos num prédio com mais 50 pessoas e todas pensarem da mesma maneira, inevitavelmente vão acontecer acidentes.”

Por outro lado, para haver trânsito de drones em grande escala, “o espaço aéreo teria de ser compartimentado, com corredores utilizados por drones para um determinado serviço e uns metros acima para outros serviços, o que é extremamente complicado”.

Todo este tecno-otimismo deve, pois, ser tratado com moderação, já que, à semelhança de qualquer fármaco produzido para curar maleitas, também os drones têm contra-indicações. “A proliferação de drones no espaço aéreo civil abre um sem-número de questões, sobretudo ao nível da privacidade e do armazenamento e tratamento de dados”, diz o investigador do PRIO. “Muitas vezes, tendemos a prestar menos atenção a estas questões, porque colocamos muito otimismo na tecnologia.”

Mais ainda num contexto de ameaça à saúde pública, em que os drones são percecionados como estando do lado certo do combate. “Sempre que existe um sentimento generalizado de insegurança, as pessoas estão dispostas a baixar a guarda ou a tolerar coisas que não aceitariam num contexto de normalidade”, explica Bruno Oliveira Martins.

CNPD rejeitou pedido do Governo

No caso português, o investigador destaca o papel da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) relativamente ao uso de drones durante o estado de emergência. “Quando a PSP pediu autorização ao Ministério da Administração Interna [MAI] para utilizar drones, solicitou na prática um cheque em branco. Quando o MAI consultou a CNPD, esta deu parecer negativo. Depois, quando o MAI autorizou a utilização de drones, fê-lo para fins muito mais delimitados. Vemos neste processo bastante simples como as coisas podem descambar.”

Bruno Oliveira Martins alerta para o perigo de, passado o período de exceção, a situação não voltar exatamente ao ponto em que estava antes da emergência, e exemplifica com a política de assassínios seletivos usada sobretudo por Estados Unidos e Israel. Se há anos era prática excecional, realizada em grande secretismo e para alvos de altíssimo valor, hoje tornou-se prática comum. “É um exemplo de algo que era altamente excecional e se normalizou. Passada a exceção, não se voltou ao ponto em que se estava antes.”

Prevenir abusos passa por estar vigilante — dos partidos políticos ao cidadão comum —, ainda que, nos dias que correm, todos sejam, de alguma forma, parte do problema. “Com os nossos Instagram, Facebook, Twitter, o recurso ao Google Maps para tudo e para nada, nós próprios alimentamos a cultura de vigilância”, conclui o investigador.

“Hoje é extremamente difícil vivermos desligados e isso faz com que percamos a sensibilidade em relação a questões que são efetivamente complicadas. Por essa razão, todos temos o dever de tentar ter um espírito crítico em relação a estas questões.”

(VECTORPORTAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Olhos no céu, tropas em terra

A NATO rendeu-se aos drones não armados e investiu numa frota que dá meia volta ao mundo sem abastecer

O ano de 2013 abriu a caixa de Pandora do potencial civil dos drones. Nas Filipinas, devastadas pelo tufão Haiyan, ONG recorreram a veículos
aéreos não tripulados para mapear a destruição e direcionar ajuda. No Quénia, drones baratos revelaram-se armas eficazes na proteção de elefantes, localizando caçadores furtivos e afastando manadas de zonas de risco. Nos EUA, a Amazon anunciou que irá fazer entregas recorrendo a estes aparelhos.

Estes exemplos revelam como, aos poucos, os drones se afirmam na área comercial e deixam de ser vistos exclusivamente como máquinas assassinas — perceção que decorre dos milhares de mortos, sobretudo
no Afeganistão, Paquistão e Iémen, por drones da CIA.

Talvez por isso, entre os militares, a palavra drone seja incómoda — preferem falar de veículos aéreos não tripulados (UAV). Porém, não escondem o entusiasmo perante o potencial civil destes aparelhos.

Um grande investimento em curso é o projeto de Vigilância Terrestre da NATO (AGS), que consiste na aquisição de cinco Global Hawk 40, não armados. Os portões da Base da Força Aérea dos EUA de Grand Forks, no Dakota do Norte, abriram-se ao Expresso e a cinco outros órgãos de informação europeus para um raro contacto com um destes drones. O ‘pássaro’, mais parecido a uma baleia branca, tem 40 metros de envergadura, 14,5 de comprimento e 4,7 de altura.

Equipado com sofisticadas câmaras, radares e sensores, sobe a 60 mil pés (18 km) — bem acima dos aviões comerciais — e voa ininterruptamente durante mais de 30 horas. Com um único tanque de combustível, dá quase meia volta ao mundo. Indiferente às nuvens e à poeira, o Global Hawk 40’ observa tudo o que mexe à superfície — até uma pessoa a andar.

Ao serviço da justiça

Na era dos drones, os pilotos continuarão a ser necessários, mas já não se sentarão no cockpit. Os veículos serão dirigidos à distância — por vezes a milhares de quilómetros da área que sobrevoam — por operacionais sentados à secretária. De olhar no ecrã e mão no rato do computador, não ouvem sons nem sentem acelerações ou travagens. O drone voa programado por GPS e o piloto vai fazendo zooms sobre pontos de interesse que surjam no ecrã.

O ‘risco zero’ que estes drones implicam para quem os opera é uma mais-valia deste tipo de tecnologia. Outra é a possibilidade de os pilotos se revezarem sem que o aparelho tenha de interromper a missão.

Nos EUA — onde, por exemplo, na Universidade do Dakota do Norte já se ensina a pilotar drones —, há muito que as forças de segurança se renderam ao uso civil destes aparelhos. Marinha e Força Aérea usam o ‘Global Hawk? desde 1998. Também o Departamento de Segurança Interna possui dez ‘Predator B’, usados para patrulhar a fronteira e em missões policiais. Em janeiro, pela primeira vez, um americano foi condenado com base em imagens recolhidas por um ‘Predator’.

Quando receber a frota de ‘Global Hawk 40’ — prevê-se que em 2017 —, a NATO irá usá-los na escolta de frotas humanitárias, na identificação de povoações devastadas por catástrofes naturais, no apoio a populações em fuga de guerras ou na vigilância em alto-mar.

A recolha de informação em tempo real será também importante para apoiar forças militares em situações de conflito — “olhos no céu para tropas em terra”, como a NATO descreve o projeto. Em 2011, durante a intervenção militar da NATO na Líbia, liderada por franceses e britânicos, a Aliança dependeu fortemente de meios americanos sobretudo ao nível da vigilância terrestre.

Em San Diego, na Califórnia, onde se situa um dos Centros de Excelência de Sistemas Não tripulados da Northrop Grumman — o gigante da indústria da Defesa que está a produzir os ‘Global Hawk’ para a NATO —, as paredes de uma sala de reuniões estão repletas de capas de revistas onde os drones e seus antepassados são a estrela. Algumas têm dezenas de anos. Para a Northrop Grumman — cujas vendas em 2012 rondaram os $25 mil milhões (€19 mil milhões) —, o ‘Global Hawk’ é apenas a última novidade. Desde os anos 40 que a empresa, então chamada Northrop Corporation, se dedica a colocar espiões no ar, cada um mais sofisticado do que o anterior. E mais intrusivo também.

DRONES EM MISSÃO NOS EUA

11 DE SETEMBRO, 2001
Um ‘exército’ de robôs terrestres PackBot saiu às ruas para ajudar nas ações de resgate. “São socorristas que não são afetados pela carnificina, poeira e fumaça”, escreveu então o jornal “The New York Times”, “imunes à fadiga e ao desgosto”.

INCÊNDIOS NA CALIFÓRNIA, 2007
O Global Hawk juntou-se aos ‘soldados da paz’, voando dia e noite para identificar casas em perigo, focos de reacendimento e alterações bruscas na direção das chamas.

TERRAMOTO NO HAITI, 2010
No âmbito da operação “Resposta Unificada”, dos Estados Unidos, drones filmaram estradas e pontes para determinar vias transitáveis para a assistência humanitária.

DESASTRE DE FUKUSHIMA, 2011
Um Global Hawk estacionado na base de Guam sobrevoou a central nuclear japonesa para recolher dados e fornece-los ao Governo de Tóquio. Em 2013, Estados Unidos e Japão acordaram que “dois ou três” Global Hawk norte-americanos EUA ficariam em solo japonês.

FURAÇÃO LESLIE, 2012
A NASA aproveitou este furacão no Atlântico para estudar formas de “rastrear furacões e tempestades tropicais”. Um Global Hawk doado pela Força Aérea americana seguiu o Leslie durante dez horas para analisar a sua formação e alterações de intensidade.

AO SERVIÇO DA NATO

5
Global Hawk 40 serão comprados pela NATO para missões de vigilância terrestre. O projeto ficará sedeado na base de Sigonella (Itália), onde as informações recolhidas pelos drones serão analisadas e partilhadas

15
membros financiam o projeto — não é o caso de Portugal. A informação recolhida nas operações da NATO será disseminada pelos 28 membros e pelos 22 países da Parceria para a Paz. Durante a realização de exercícios, os dados serão partilhados apenas por quem pagou

1,7
mil milhões de dólares (1,2 mil milhões de euros) é o valor do contrato assinado entre a NATO e a empresa Northrop Grumman, na Cimeira de Chicago de maio de 2012. Os Estados Unidos pagam 42% do projeto

FORÇA AÉREA INVESTE NO UAV PORTUGUÊS

As Forças Armadas portuguesas ainda não usam aeronaves não tripuladas nas suas missões, mas a Força Aérea já desenvolveu e colocou no ar vários protótipos

As Forças Armadas portuguesas estão em contagem decrescente para começar a utilizar drones nas suas operações. Atualmente, o desenvolvimento de tecnologia para veículos aéreos autónomos não tripulados (UAV) é a grande prioridade do Centro de Investigação da Academia da Força Aérea (CIAFA). “A utilização destas aeronaves está a aumentar exponencialmente”, refere a major Maria Madruga Matos, subdiretora do CIAFA, durante uma visita guiada ao laboratório do Centro, na Base Aérea nº 1, em Sintra. “Aqui juntamos a necessidade de ter plataformas para testar tecnologia e necessidades operacionais da Força Aérea, que já começou a pensar como é que veículos não tripulados podem ser integrados em ações de vigilância marítima.”

Em situações de busca e salvamento, por exemplo, os drones têm várias vantagens comparativamente aos meios tripulados. “Já temos capacidade para fazer voos noturnos”, diz o tenente-toronel José Morgado, diretor do CIAFA. “E em caso de ventos ou mau tempo, os riscos podem ser mais assumidos do que quando se usam plataformas tripuladas, uma vez que não há ninguém a bordo.” Em termos de combustível, uma hora de voo numa plataforma destas fica-se pelos 50 cêntimos.

No CIAFA, os protótipos são construídos de raiz. Isso permite, nas palavras do tenente-coronel Morgado, “fazer o caminho das pedras: produzir um protótipo, instalar pilotos automáticos, fazer integração de sistemas, desenvolver algoritmos, etc. Não teríamos todo este conhecimento se nos limitássemos a comprar coisas feitas.”

A partir da base da OTA, o Centro já testou mais de 15 plataformas de três modelos diferentes, ultrapassando os 900 voos autónomos e as 500 horas de voo. Estes resultados são possíveis graças ao PITVANT — Projeto de Investigação e Tecnologia em Veículos Aéreos Não Tripulados (2008-2015), financiado pelo Ministério da Defesa (€2 milhões) e desenvolvido em parceria com a Faculdade de Engenharia do Porto.

Em julho, o PITVANT deu um ar da sua no exercício REP13, organizado pela Marinha. Ao largo de Portimão, 100 kg de pipocas despejados no mar simularam uma mancha de óleo. Aos drones coube identificar o navio poluidor, acompanhar a evolução da mancha e enviar informações, em tempo real, para o comando da operação, que nunca saiu de Lisboa.

TRÊS PERGUNTAS A

José Morgado
Tenente-coronel, diretor do Centro de Investigação da Academia da Força Aérea

O que já foi conseguido no âmbito do Projeto PITVANT? 
Entre 2009 e 2012, estivemos fechados na OTA a desenvolver tecnologia, capacidade de integração de sistemas e procedimentos de operação. Em 2012, começámos a operar os sistemas em ambiente marítimo. Este ano, queremos fazer voos de longa duração sobre o mar e estudar a forma como estas plataformas podem interagir com meios tripulados da Força Aérea.

Qual é a autonomia dos voos?
Em Porto Santo fizemos voos de hora e meia e em Santa Cruz e Portimão fizemos de três a três horas e meia. Atualmente, temos autonomias que vão até às seis horas e estamos a preparar plataformas que irão até às 15 horas para um objetivo específico que queremos concretizar em 2014: voar entre Porto Santo e as Selvagens (600 km, ida e volta).

O eventual alargamento da Zona Económica Exclusiva portuguesa aumenta a utilidade desta tecnologia?
Nesse cenário, este tipo de tecnologia faz todo o sentido. No processo de candidatura, Portugal tem de mostrar capacidade para vigiar e monitorizar toda essa área. Os veículos aéreos autónomos não visam substituir as plataformas tripuladas, mas sim complementá-las.

Viagem a convite da Missão dos EUA na NATO

Artigo publicado no Expresso, a 12 de abril de 2014