Arquivo de etiquetas: Ebrahim Raisi

Perfil de Ebrahim Raisi. Intolerante à corrupção, o novo Presidente do Irão inicia funções com o nome na lista de sanções dos Estados Unidos

O oitavo Presidente da República Islâmica toma posse, esta quinta-feira, diante do Parlamento. Após uma carreira de 40 anos ao serviço da justiça, Ebrahim Raisi é apontado como futuro sucessor de Ali Khamenei na liderança espiritual do país. Sem experiência política, tem a complicar a nova tarefa o facto de enfrentar pessoalmente sanções decretadas pelos Estados Unidos

Ebrahim Raisi ascendeu à presidência do Irão aos 60 anos. O turbante negro revela descendência direta do Profeta Maomé MEGHDAD MADADI / WIKIMEDIA COMMONS

Os calendários eleitorais e a vontade popular determinaram que, em 2021, tanto Estados Unidos como Irão renovassem as suas presidências com outros rostos. Mas mesmo com Joe Biden em Washington e Ebrahim Raisi em Teerão, não está garantida qualquer melhoria no contacto entre os dois países, sem relações diplomáticas desde 1979.

Três dias após ser eleito, o novo chefe de Estado iraniano deu uma concorrida conferência de imprensa em Teerão, onde foi inquirido sobre se planeava encontrar-se com o homólogo norte-americano. “Não”, respondeu secamente.

Nesse encontro com a imprensa, Raisi — que, esta quinta-feira, toma posse diante do Parlamento — defendeu a continuação das conversações indiretas que decorrem, em Viena, sobre o futuro do acordo nuclear (do qual os EUA se retiraram por decisão do anterior Presidente, Donald Trup), instou Washington a levantar as sanções e definiu o programa de mísseis balísticos iraniano como “inegociável”.

Raisi respondeu aos jornalistas com o manto de estadista colocado. De um prisma pessoal, a perspetiva de diálogo com os EUA é algo que também se lhe afigura impossível. Desde finais de 2019 que o novo Presidente do Irão é alvo de sanções dos Estados Unidos.

A 4 de novembro desse ano, dia em que se assinalou o 40.º aniversário do início da crise dos reféns na embaixada dos EUA em Teerão — 52 pessoas foram mantidas em cativeiro durante 444 dias —, a Administração Trump decretou sanções financeiras contra o Estado-Maior das Forças Armadas iranianas e nove outros indivíduos próximos do ayatollah Ali Khamenei. Raisi era um dos visados.

“Esta ação visa impedir que os fundos fluam para uma rede secreta de assessores militares e de relações exteriores de Ali Khamenei que há décadas oprimem o povo iraniano, exportam o terrorismo e avançam com políticas desestabilizadoras em todo o mundo”, lê-se no decreto.

À época da imposição das sanções, Raisi levava meses na liderança do sistema judicial do Irão. Fora nomeado para o cargo pelo Líder Supremo, após décadas de experiência na área. Começou em 1981, aos 20 anos, como promotor de justiça na cidade de Karaj, perto de Teerão.

Essa longa experiência contribuiria para uma mancha negativa na sua reputação, profusamente recordada no momento da sua eleição. O seu nome surge associado à sinistra “comissão da morte”, que, em 1988 — era Raisi vice-procurador-geral de Teerão —, supervisionou a execução extrajudicial de presos políticos nas prisões de Evin e Gohardasht, nos arredores da capital.

Crimes contra a humanidade

No dia seguinte à vitória de Raisi nas presidenciais de 18 de junho, a Amnistia Internacional divulgou um comunicado intitulado “Ebrahim Raisi tem de ser investigado por crimes contra a Humanidade”. “Como chefe do sistema judicial iraniano, presidiu a uma violenta repressão aos direitos humanos em que centenas de dissidentes pacíficos, defensores dos direitos humanos e membros de grupos minoritários foram perseguidos e detidos arbitrariamente.”

“Sob a sua supervisão”, continua a organização de defesa dos direitos humanos, “foi concedida impunidade total a funcionários do Governo e forças de segurança responsáveis ​​por matar ilegalmente centenas de homens, mulheres e crianças e sujeitar milhares de manifestantes a prisões em massa e pelo menos centenas a desaparecimentos forçados, tortura e outros maus tratos durante e após os protestos em todo o país em novembro de 2019.”

Neste período, duas execuções tiveram grande repercussão internacional: a do lutador Navid Afkari e a do jornalista Ruhollah Zam, ambas em 2020.

À frente do sistema judicial, Raisi promoveu um conjunto de reformas penais que resultaram na libertação de presos e na comutação de sentenças de pena de morte, o que lhe angariou popularidade.

Ganhou as eleições à primeira volta, com expressivos 61,95%, naquele que foi o escrutínio menos participado de sempre (51,2% de abstenção). Votaram no vencedor cerca de 18 milhões dos quase 29 milhões de eleitores que foram às urnas. Raisi teve a vida facilitada pelo chumbo aplicado pelo Conselho de Guardiães — órgão que valida as candidaturas à presidência — a alguns perfis moderados e reformistas que poderiam fazer-lhe frente.

Raisi assentou a sua campanha em slogans como “honra nacional”, “dignidade humana” e “igualdade social”, surgindo aos olhos dos eleitores como um homem humilde, intolerante à corrupção. A experiência na 40 anos na área da justiça levou muitos iranianos a acreditarem que será ativo no combate à corrupção, uma das principais queixas do povo.

Ebrahim Raisi nasceu a 14 de dezembro de 1960, em Mashhad, a mesma cidade no nordeste do país onde, 21 anos antes, nasceu Ali Khamenei, atual Líder Supremo do Irão. Mashhad é a segunda cidade do Irão e um importante centro religioso xiita, já que alberga o túmulo de Reza, o oitavo dos doze imãs infalíveis que compõem a linhagem xiita.

Nascido no seio de uma família religiosa, perdeu o pai aos cinco anos e aos 15 começou a estudar no seminário de Qom, a principal cidade santa para os xiitas. Dali assistiu ao avolumar do descontentamento popular em relação ao monarca Mohammad Reza Shah Pahlavi, que haveria de o derrubar e levar os ayatollahs ao poder.

Aos 23 anos, Raisi casou com a professora universitária Jamileh Alamolhoda, de quem teve duas filhas. Pelo casamento, tornou-se genro de Ahmad Alamolhoda, conhecido pregador ultraconservador nas orações de sexta-feira, em Mashhad, que chegou a proibir música ao vivo e mulheres ciclistas na cidade.

Sayyid de turbante negro

Além da visão ideológica conservadora, partilha com o Líder Supremo o título de sayyid. Segundo o Islão xiita, esmagadoramente maioritário no Irão, um sayyid descende diretamente de Fatima, filha do profeta Maomé, e simbolicamente usa um turbante negro para evidenciar esse estatuto.

Nos últimos anos, Raisi tem sido apontado como potencial sucessor de Khamenei, como líder espiritual do Irão. O próprio Khamenei foi Presidente (1981-89), imediatamente antes de assumir a liderança religiosa da República (sucedendo ao pai fundador, o ayatollah Ruhollah Khomeini). Apesar da sua longa carreira na justiça, só muito recentemente se deu a conhecer ao grande público.

Em 2016, foi nomeado por Ali Khamenei guardião da multimilionária fundação caritativa Astan-e Qods-e Razavi, sedeada em Mashhad, com negócios em múltiplas áreas e que supervisiona o santuário do imã Reza.

No ano seguinte, subiu mais um degrau no reconhecimento público e ascendeu ao primeiro plano da política, desafiando nas urnas Hassan Rohani, o Presidente a quem agora sucede. Durante a campanha, Rohani referiu-se a Raisi como um “daqueles que não conhecem nada além de execuções e prisões”. Raisi perdeu aquelas eleições de 2017, com apenas 38% dos votos, num escrutínio que teve uma taxa de afluência de 73%. Mas os iranianos ficaram a conhecê-lo.

Se a presidência do país é, como muitos suspeitam, um trampolim para se tornar o próximo líder espiritual do Irão, os próximos tempos serão vitais. Raisi terá de mostrar capacidade na governação e conquistar o coração de um povo de mais de 80 milhões em grandes dificuldades económicas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

Um novo Presidente sem vontade de falar com o Ocidente

Apontado como sucessor do Líder Supremo, o conservador Ebrahim Raisi herda um país em crise económica. A saída está para leste

Ebrahim Raisi é o oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS

Aos 42 anos de vida, a República Islâmica do Irão parece necessitada de soluções que o pensamento do seu fundador não contemplou. Nos anos que se seguiram à Revolução de 1979, uma frase de Ruhollah Khomeini desiludiu, em especial, os trabalhadores do complexo petroquímico de Azmayesh, cujas greves tinham sido cruciais para o desgaste do xá e subsequente ascensão ao poder dos ayatollahs. “Não fizemos uma revolução para termos melões baratos, fizemo-la pelo Islão”, disse Khomeini.

Hoje, é o preço dos bens de primeira necessidade — seja melão, pão ou gasolina — que mais preocupa os iranianos. Protestos recentes contra a escassez de água potável em cidades da província de Khuzestan (a oeste, junto ao Iraque) foram reprimidos com violência. O petróleo é abundante na região, mas essa riqueza não beneficia quem ali vive.

Sanções não explicam tudo

A política de “máxima pressão” de Donald Trump, que levou à retoma de sanções, colocou o Irão — e mais de 80 milhões de habitantes — à beira do colapso económico. “Com as sanções, que impedem o comércio, as exportações de hidrocarbonetos e o acesso aos mercados financeiros, a economia do país caminha a passos largos para uma situação preocupante, com sinais de grande inquietação no seio da população”, vaticina ao Expresso João Henriques, investigador da Universidade Autónoma de Lisboa e membro do Observatório do Mundo Islâmico. A forte desvalorização da moeda iraniana, o rial, deixou a fasquia da classe média abaixo de 50% da população. Mas as sanções não explicam tudo…

“Há um novo discurso revolucionário que atribui as principais causas da crise no país à corrupção e à má gestão”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na área dos estudos do Médio Oriente na Universidade do Minho. “Ao considerar uma raiz interna para a maioria dos problemas económicos, uma campanha anticorrupção abrangente requer uma cooperação forte e consistente entre os poderes legislativo, judicial e executivo. Isso será possível, mais do que nunca, com Ebrahim Raisi”. O novo Presidente toma posse quinta-feira.

Há um novo discurso revolucionário que atribui
as principais causas da crise à má gestão e à corrupção

Raisi, de 60 anos, trabalhou no sistema judicial durante 40 e partilha uma visão conservadora com as principais instituições de poder. “É um clérigo há muito apontado como potencial sucessor do Líder Supremo, Ali Khamenei [82 anos]”, diz João Henriques.

Aliança entre sancionados

“Embora o principal foco do futuro Governo sejam as políticas internas — reforma do regime tributário, renascimento de indústrias falidas, investimento na construção e na agricultura industrial e desenvolvimento de zonas industriais para evitar a exportação de matérias-primas —, os planos de Raisi relativos à política externa têm tendência para se voltar para leste”, diz Eslami.

“Será uma mudança significativa em relação à era de Hassan Rohani.” O Presidente cessante, moderado e reformista, defendeu o diálogo com o Ocidente. “Embora a relação com Estados Unidos e União Europeia seja importante, com Raisi será secundária. China e Rússia serão as prioridades.”

Raisi “já deixou patente não ver nas relações com o Ocidente uma prioridade do seu consulado presidencial”, acrescenta Henriques. Desde janeiro de 2016, quando o Presidente chinês, Xi Jinping, visitou Teerão, o Irão tornou-se grande beneficiário da Nova Rota da Seda. Igualmente, é um corredor fundamental para os países da Ásia Central — que abrigam um dos maiores reservatórios energéticos do mundo — acederem a águas internacionais.

Os planos de Raisi relativos à política externa têm tendência para se voltar para leste

Com os Estados Unidos a ameaçarem penalizar qualquer país que faça negócios com o Irão, este tenderá a voltar-se também para outras nações visadas por Washington, como Cuba, Bielorrússia ou Síria. Nos últimos anos, esta estratégia tem acontecido com maior visibilidade com a Venezuela, onde aportaram vários petroleiros com crude iraniano. A relação pode evoluir para “um plano mais ambicioso, que pode ter lugar a longo prazo e que passa pelo estabelecimento de uma base militar ou pelo início de um grupo paramilitar nas Caraíbas”, refere Eslami.

Princípios intocáveis

Ebrahim Raisi foi eleito a 18 de junho, com quase 18 milhões de votos (62%), num escrutínio em que participaram apenas 49% dos eleitores. No Irão, a eleição de um Presidente não acarreta mudanças na política externa. É o Líder Supremo quem define as linhas estratégicas do país; ao Presidente, a margem que resta é escolher que caminho seguir para concretizá-las.

“A política externa do Irão é baseada em princípios revolucionários, que incluem a preservação da integridade territorial, a autossuficiência, o antissionismo, o anti-imperialismo e a defesa do Islão”, enumera o professor iraniano. O apoio a milícias no Iraque, Afeganistão, Palestina, Líbano, Síria e Iémen insere-se num imperativo estratégico de neutralização de ameaças estrangeiras, incluindo militares.

Acordo nuclear: que futuro?

Assim sendo, que empenho colocará Raisi no diálogo internacional sobre o programa nuclear? “Na sua primeira declaração pública após ser eleito, Raisi instou a Administração Biden a voltar ao acordo nuclear, de 2015”, recorda o investigador português.

“O Irão não vai parar com as conversações sobre o nuclear”, acrescenta Eslami, mas não aceitará “participar numa negociação longa e erosiva”. Teerão diz que foi Washington a abandonar o acordo, logo terá de dar provas de boa-fé e levantar as sanções. “Embora o diálogo continue, uma nova ronda de negociações sobre o programa iraniano não parece possível”, conclui. “O programa de mísseis balísticos, que é a base da ‘legítima defesa’ e da ‘dissuasão convencional’, é a ‘linha vermelha’ do Irão” — qualquer que seja o Presidente em funções.

PERFIL DE EBRAHIM RAISI

O oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão partilha com o Líder Supremo a origem (ambos nasceram na cidade religiosa de Mashhad) e o estatuto (ambos reclamam serem descendentes diretos do profeta Maomé, daí usarem o turbante negro de sayyed). Nascido em 1960, Ebrahim Raisi é um clérigo conservador que começou a trabalhar no sistema judicial aos 20 anos, como promotor de justiça em Karaj. O seu nome ficou ligado ao chamado “comité da morte”, composto por funcionários judiciais e agentes secretos, responsável pela execução de milhares de presos políticos, em 1988. Liderou o sistema judicial desde 2019, período em que ocorreram duas execuções que geraram protestos internacionais: a do lutador Navid Afkari e a do jornalista Ruhollah Zam. Em 2017, Raisi debutou no primeiro plano da política: obteve 38% nas presidenciais, que perdeu para o Hassan Rohani, a quem agora sucede.

(FOTO Ebrahim Raisi é o oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2021