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A estratégia de Trump e os alertas de Eça

Os EUA vão enviar mais tropas para o Afeganistão. Os talibãs já prometeram fazer do país um cemitério para os norte-americanos

“Salvem-me dos meus amigos!”, lê-se neste cartoon de 1878 sobre “O Grande Jogo” no Afeganistão: O emir afegão Sher Ali Khan ladeado pelo urso russo e pelo leão britânico WIKIMEDIA COMMONS

Em finais do século XIX, Eça de Queirós era um observador atento da guerra no Afeganistão. Em 1880, numa das “Cartas de Inglaterra” publicadas no “Diário de Notícias” escrevia o seguinte sobre a campanha militar dos ingleses no país: “No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com grandes nomes de pátria, de religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o ‘homem vermelho’, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o. Foi assim em 1847, é assim em 1880.”

Senhores da Índia e temerosos do avanço da Rússia pela Ásia Central, os ingleses tentaram, por duas vezes, ocupar o Afeganistão — sem sucesso. No século seguinte, foi a vez de os soviéticos ocuparem o país durante 10 anos (1979-1989), de onde saíram sem honra nem glória. Hoje, são os norte-americanos que ali vivem dificuldades, não conseguindo colocar um ponto final àquela que já é a guerra mais duradoura em que se envolveram e onde chegaram a ter 100 mil efetivos.

O espírito indomável dos afegãos tem levado escritores e historiadores a referirem-se ao país como um “cemitério de impérios”. Esta semana, os talibãs recuperaram o termo para reagirem à nova estratégia dos EUA para o Afeganistão, anunciada, na terça-feira, por Donald Trump. “Se a América não retirar as suas tropas, em breve o Afeganistão tornar-se-á mais um cemitério para esta superpotência do século XXI”, ameaçou Zabiullah Mujahid, porta-voz dos “estudantes”.

Sem adiantar números nem se comprometer com prazos, o Presidente anunciou apenas que o contingente norte-americano vai ser reforçado. “Em termos gerais, é positivo que os EUA renovem o seu compromisso no Afeganistão”, comenta ao Expresso Mirco Günther, diretor para o Afeganistão da Fundação Friedrich Ebert (FES). Retirar as tropas, como Trump defendeu na campanha eleitoral, “teria sido uma decisão irresponsável”.

Fatura do 11 de Setembro

Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão — país que pagou a fatura do 11 de Setembro —, seguem ali destacados 8400 norte-americanos. “The Wall Street Journal” diz que outros 3500 estão em missão temporária. E estima-se que o Pentágono tenha recomendado um reforço em 4000.

“A estratégia anunciada, que nada tem de novo, parece um pouco míope”, diz o analista da FES. “Este conflito não pode ser resolvido apenas através de meios militares. Dizer ‘nós não vamos construir o Estado, vamos matar terroristas’” — palavras de Trump — “falha no reconhecimento de uma situação que é complexa e das realidades no terreno. Para evitar um novo aumento do extremismo violento e para combater efetivamente o terrorismo, o Afeganistão necessita de instituições fortes, de um governo nacional que demonstre ter os mesmos objetivos, órgãos de segurança menos corruptos e tribunais independentes.”

Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão, que pagou a fatura do 11 de Setembro, seguem ali 8400 americanos

No discurso sobre o Afeganistão, Trump identificou o Paquistão e o seu jogo duplo — ora assumindo-se como parceiro do Ocidente no combate ao terrorismo ora fechando os olhos às movimentações dos talibãs e da rede Haqqani no seu território — como uma razão para a instabilidade no Afeganistão. “O Paquistão dá refúgio a agentes do caos, da violência e do terror”, disse Trump. “Ele é o primeiro Presidente dos EUA a criticar o Paquistão e a convidar a Índia a aumentar o seu envolvimento do Afeganistão”, diz Mirco Günther. “Dada a relação tensa entre esses dois países e as dinâmicas regionais, preocupam-me as repercussões do que pode ser uma mudança da política dos EUA para a Ásia do Sul. Pôr os países uns contra os outros não ajuda.”

Artigo publicado no Expresso, a 26 de agosto de 2017, e republicado no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui