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Um recurso escasso numa região conflituosa

Opções políticas e alterações climáticas contribuíram para reduzir os caudais de quatro rios históricos. Para as populações ribeirinhas sobra um mar de preocupações

Crianças brincam no rio Nilo em Assuão, no sul do Egito KHALED DESOUKI / AFP / GETTY IMAGES

Na Antiguidade Clássica, o historiador grego Heródoto rotulou o Egito como “um presente do rio Nilo”. Para oriente, o rio Jordão foi protagonista no advento do judaísmo e do cristianismo. Ainda mais para leste, entre os rios Tigre e Eufrates, floresceu a Mesopotâmia, considerada um dos berços da civilização ocidental. Hoje, a grandeza histórica destes quatro rios esvai-se nos seus caudais, cada vez menos abundantes. Por opções políticas ou pelo efeito das alterações climáticas, há cada vez menos água disponível para as populações ribeirinhas. E tudo acontece na região mais conflituosa do mundo.

NILO Uma nova praga maligna em formação

“O Egito — nação de mais de 100 milhões de almas — enfrenta uma ameaça existencial. Uma grande estrutura de proporções gigantescas foi construída ao longo da artéria que leva vida ao povo do Egito.” O alerta foi dado há um mês, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio. A construção a que Sameh Shoukry se refere é a Grande Barragem Renascentista Etíope (GERD, na sigla inglesa), que a Etiópia começou a erguer em 2011, quando o Egito estava envolvido nas convulsões populares da Primavera Árabe. Fica no Nilo Azul, principal afluente do Nilo, que nasce na Etiópia e converge com o Nilo Branco no Sudão. Para a Etiópia, o projeto reduz a pressão energética e gera eletricidade suficiente para exportar. Para o Egito, é fonte de inquietação. Com 6650 quilómetros de comprimento, o Nilo garante 90% das necessidades hídricas do país.

A 19 de julho, a Etiópia anunciou a conclusão do segundo enchimento da barragem, o que levou as autoridades do Cairo a insurgirem-se contra as ações unilaterais de Adis Abeba. O Nilo corre de sul para norte, pelo que só chega ao Egito a água que o Sudão e a Etiópia deixarem passar. “Sempre dissemos aos nossos irmãos da Etiópia e do Sudão que os respeitamos e nos preocupamos com o seu direito à vida, tal como com o nosso. Eles têm direito a produzir eletricidade, na condição de isso não afetar a quantidade de água que nos chega”, disse, no final de julho, o Presidente Abdel Fattah al-Sisi, homem forte do Egito.

“Os danos que a GERD pode infligir afetarão todos os aspetos da vida do povo egípcio, qual praga maligna”, alerta Shoukry, recuperando a analogia bíblica das “10 pragas” para traduzir o drama atual. “O enchimento unilateral da barragem, sem um acordo que inclua os cuidados necessários para proteger as comunidades a jusante e prevenir danos significativos, aumentará as tensões e poderá provocar crises e conflitos que desestabilizem ainda mais uma região já de si conturbada.” Das Nações Unidas vêm apelos para que Egito, Sudão e Etiópia se entendam à mesa das negociações, mediadas pela União Africana. “A disputa relativamente à GERD não vai evoluir para uma guerra aberta entre os três países (ou entre dois deles). É um cenário altamente improvável”, diz ao Expresso Ana Elisa Cascão, investigadora independente e coautora de “The Grand Ethiopian Renaissance Dam and the Nile Basin” (“A Grande Barragem Renascentista Etíope e a Bacia do Nilo”). “Uma guerra ‘hídrica’ não beneficiaria absolutamente ninguém, e os custos reputacionais seriam imensos para todos. Nos últimos anos, a GERD, como ‘carta política’, tem basicamente sido usada para efeitos de política interna nos três países. Externalizar problemas internos é uma arte que todos eles dominam, mas que tem limites.”

TIGRE E EUFRATES Caudais a diminuir como nunca antes

Nascem na Turquia, desaguam no sul do Iraque e atravessam também a Síria. Espraiam-se por muitos quilómetros — o Eufrates tem 2800 quilómetros, o Tigre 1900 — em países que ora cooperam ora estão em guerra, entre si ou com terceiros. Mais do que as guerras, é o megaprojeto do Sudeste da Anatólia que tem suscitado mais preocupações relativamente ao potencial de irrigação dos dois rios.

Projetada para desenvolver 10% do território turco, esta iniciativa multissectorial prevê a construção de 22 barragens ao longo dos dois rios, a maior das quais a barragem Ataturk (nome do fundador da Turquia moderna), no curso do Eufrates.

Para o Iraque, que recolhe dos dois rios 90% da água doce que consome, o impacto das variações dos caudais é enorme. “Este ano vimos uma redução na precipitação anual de 50% em relação ao ano passado”, alertava no ano passado Mahdi Rashid Al-Hamdani, ministro dos Recursos Hídricos iraquiano, num momento de stresse hídrico. “Solicitámos ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros que envie uma mensagem urgente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia a perguntar qual é o motivo para a quebra do nosso fluxo.”

Bagdade e Ancara têm acordos em vigor sobre a partilha da água, mas há que cumpri-los. Alguma da água em falta no Iraque ficou retida na Turquia, no reservatório da barragem de Ilisu (uma das 22 projetadas), que começou a funcionar no rio Tigre.

Paralelamente às opções políticas nacionais, as alterações climáticas justificam muitas das fragilidades ambientais. Nas últimas semanas, uma seca acentuada na região de Erbil, capital do Curdistão iraquiano (norte), originou grave escassez de água, que levou as autoridades locais a detalhar apelos: “Racionem o consumo e o uso de água e coloquem válvulas nos tanques de água para reduzir o desperdício.” A cidade depende em grande parte da água do rio Zab, afluente do Tigre.

No ano passado, um relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apurou que os caudais do Tigre e do Eufrates estão a diminuir “a uma taxa sem precedentes”, com impacto direto na deslocação de populações. “Em julho de 2019, a OIM no Iraque identificou 21.314 pessoas deslocadas internamente de províncias do centro e do sul devido à falta de água, a fontes de água com alto teor de salinidade ou a surtos de doenças transmitidas pela água.”

Em 2018, os grandes protestos populares que se realizaram no sul do Iraque também tiveram origem na escassez de água potável e nas falhas de eletricidade. Aconteceu o mesmo no Irão, no mês passado, na província de Khuzestan, na fronteira com o Iraque. Segundo o serviço meteorológico iraniano, entre outubro de 2020 e junho deste ano, o país viveu os meses mais secos dos últimos 53 anos.

JORDÃO Usar a água para fazer política

Há menos de um mês em funções, o novo Governo de Israel elevou a questão da água à categoria de prioridade política. No início de julho, o primeiro-ministro Naftali Bennett encontrou-se em Amã com o rei da Jordânia, Abdullah II. O governante israelita comunicou ao monarca que Israel estava disposto a vender à Jordânia mais água do que aquela a que está obrigado pelo acordo de paz de 1994, que dividiu entre ambos o acesso às águas dos rios Jordão e Yarmuk.

A Jordânia enfrenta uma grave escassez de água, que é explicada em parte pela matemática: se em 1950 o reino tinha menos de meio milhão de habitantes, hoje tem 10 milhões, embora só tenha recursos hídricos para sustentar 2 milhões.

Com este gesto de boa vontade, a Jordânia viu o seu problema temporariamente menorizado. Já Israel reabilitou uma relação que se degradara de forma substancial nos últimos anos, condenando à morte o acordo Red-Dead de 2015, que iria ligar o Mar Vermelho (Red) ao Mar Morto (Dead) através de canalização, complementada por centrais de tratamento de água nas duas margens.

Este projeto visava salvar o Mar Morto, que está em acelerado estado de degradação, originando sumidouros com dezenas de metros de diâmetro, num território que mais parece ter sido alvo de bombardeamentos. É neste ecossistema que desagua o rio Jordão, ainda que em quantidades cada vez menores, em virtude dos desvios de água realizados ao longo do seu curso, partilhado por Israel, Síria, Jordânia e território palestiniano da Cisjordânia, ocupado por Israel.

Se na margem esquerda do Jordão a situação é de escassez, na direita é agravada pela ocupação israelita da Palestina, que garante a Israel controlo sobre toda a água entre o rio e o Mar Mediterrâneo. Ao Expresso, Marta Silva, estudiosa das relações entre Israel e a Palestina, identifica o momento-chave em que os palestinianos perderam o acesso aos recursos hídricos: “Em 1967, quando Israel conquistou os territórios palestinianos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.” A especialista explica que “o objetivo era garantir a colonização da região do vale do Jordão, a mais rica a nível de recursos aquíferos, logo com mais terras aráveis e férteis” — o celeiro da Palestina. Hoje, diz a organização EWASH, no vale do Jordão, um colono israelita gasta 81 vezes mais água do que um residente palestiniano.

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Mubarak morreu em paz. O que aconteceu aos outros líderes que combateram a “Primavera Árabe”?

Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos

Hosni Mubarak, Presidente do Egito entre 1981 e 2011 THIERRY EHRMANN / CREATIVE COMMONS

A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.

Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.

TUNÍSIA: ZINE EL ABIDINE BEN ALI

Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.

No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.

LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI

A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.

IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH

Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.

Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.

SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD

Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.

O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.

BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA

Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

O faraó que despiu a farda para mandar mais

Apesar de já se saber quem vai ganhar as presidenciais no Egito, vale a pena ver este vídeo. Fique a perceber como Abdel Fattah el-Sisi se tornou líder sem rival num país milenar que é um peso-pesado do Médio Oriente. 2:59 PARA EXPLICAR O MUNDO

Há um motivo de peso para estarmos atentos ao que se passa no Egito. Todos os anos milhares de portugueses fazem férias no país dos Faraós, e muitos outros sonham, um dia, ver de perto as Pirâmides de Gizé.

Hoje, muitas fotografias tiradas por todo o Egito correm o risco de captar o rosto de um só homem. Abdel Fattah al-Sisi é o Presidente do Egito e o vencedor anunciado das eleições que se avizinham.

Nasceu no Cairo há 63 anos, tem uma carreira militar de quase 40 e chefiava os serviços secretos militares quando, em 2011, os ventos da Primavera Árabe sopraram no Cairo, enchendo a Praça Tahrir de manifestações antirregime.

Hosni Mubarak, que governava há 30 anos, caiu ao fim de 18 dias de protestos.

A seguir à revolução, Sisi deu-se a conhecer aos egípcios na sombra da Irmandade Muçulmana, a força política então dominante. Foi nomeado ministro da Defesa e chefe de Estado-Maior das Forças Armadas por Mohamed Mursi, o Presidente islamita democraticamente eleito em 2012.

Face às derivas autoritárias de Mursi, Sisi liderou um golpe militar e substituiu-o no cargo. Depois despiu a farda de general e sujeitou-se à vontade popular, vencendo as presidenciais de forma esmagadora.

Entre 26 e 28 de março, 60 milhões de egípcios estão convocados para escolher o futuro Presidente. No boletim de voto, além de Sisi, haverá apenas mais um nome: Moussa Mostafa Moussa. Arquiteto de formação, formalizou a sua candidatura sete minutos antes do fim do prazo.

A sua presença dá um ar democrático a estas eleições, mas transforma-as numa farsa: é que o partido de Moussa tinha declarado apoio a Sisi e até ajudado na recolha de assinaturas.

A ausência de adversários dignos desse nome revela como, sete anos depois, as liberdades reclamadas pela Primavera Árabe são uma ilusão. Em janeiro e favereiro, vários potenciais candidatos foram saindo de cena. Um ex-chefe de Estado do Exército, um coronel do Exército, um advogado de Direitos Humanos, um ex-deputado.

Mas mesmo com um vencedor anunciado à partida, o Egito não perde interesse, dada a sua dimensão, localização e legado histórico.

É o mais populoso dos países árabes.

É o guardião do Canal do Suez, que encurta em mais de 10 dias a rota pelo Cabo da Boa Esperança.

É herdeiro de uma civilização milenar.

E acolhe a Universidade de Al-Azhar, grande centro do pensamento sunita, que lhe confere autoridade no mundo muçulmano.

E é um peso pesado da geopolítica do Médio Oriente.

Além da Jordânia, é o único país árabe que assinou um tratado de paz com Israel, com quem, de resto, coordena o bloqueio à Faixa de Gaza.

Foi um dos promotores do embargo ao Qatar.

Integra a coligação que bombardeia o Iémen.

E combate um dos maiores vespeiros mundiais do terrorismo, na Península do Sinai. A 29 de novembro de 2017, Sisi ordenou aos militares o uso de toda a força bruta para derrotar os terroristas e repor a segurança no Sinai dentro de três meses.

Bem a tempo das eleições…

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Vídeo publicado no Expresso Online, a 29 de março de 2018. Pode ser visto aqui

Canal do Suez cresce para não mirrar

É o canal artificial mais antigo do mundo e inaugura na quinta-feira um novo troço. Aos 146 anos de vida, o Canal do Suez aposta no crescimento, perante a crescente concorrência do Panamá e… da China

É uma obra faraónica e, ao que parece, um grande motivo de orgulho no país dos Faraós. Em contagem decrescente para a inauguração de um novo braço do Canal do Suez — que acontecerá esta quinta-feira —, nove nadadores estenderam sobre as águas do canal artificial mais antigo do mundo uma bandeira do Egito com cinco quilómetros de comprimento. Numa outra iniciativa, o mergulhador Walaa Hafez, conhecido como “a baleia egípcia”, vai tentar bater um recorde mundial, percorrendo 125 km debaixo de água.

É dia de festa gorda no Egito e, para fazer jus à importância do evento, funcionários públicos, bancários e trabalhadores da Bolsa receberam “ordem” para gozar um dia feriado.

Segundo “The Cairo Post”, está confirmada a presença de delegações de 121 países e pelo menos 26 chefes de Estado, entre os quais o francês François Hollande. Portugal será representado pelo secretário de Estado da Cooperação, Luís Campos Ferreira.

A cerimónia será uma oportunidade para celebrar a maior expansão deste Canal desde a sua abertura, em 1869. Mas também um ato simbólico de afirmação da liderança do Presidente Abdel-Fattah El-Sisi, o ex-general que afastou a Irmandade Muçulmana do poder em 2013, e do próprio Egito na disputa pela hegemonia no “campeonato” dos grandes canais marítimos.

“Do ponto de vista da indústria naval, esta iniciativa de expandir o Canal do Suez é um pouco surpreendente”, diz Ralph Leszczynski, da empresa Banchero Costa & Co., sedeada em Singapura. “Tanto quanto sei, não havia nenhuma necessidade premente ou solicitações nesse sentido.”

Alguns críticos deste projeto recordam que o Suez — que é uma fonte de receitas fundamental para o Estado egípcio — tem ainda muito que recuperar em virtude dos grandes prejuízos sofridos pela crise financeira mundial. Dados compilados pela agência Bloomberg revelam que o número de embarcações que atravessa o Canal permanece 20% abaixo do seu nível de 2008 e apenas 2% mais alto do que há uma década.

O jornal “The National”, dos Emirados Árabes Unidos, avança com argumentos geopolíticos para lançar algumas dúvidas sobre a oportunidade do projeto egípcio. Esta obra, escreve na edição desta quarta-feira, “devia garantir que o Suez permanecesse competitivo em relação ao seu principal rival, o Canal do Panamá, no que diz respeito ao transporte de mercadorias entre a costa oriental da Ásia e a costa oriental da América do Norte”.

Porém, continua o jornal, “o número de navios que se prevê que utilizem os dois canais, ainda que em crescimento, é sempre limitado e algumas das vantagens do Suez quase de certeza que irão sofrer erosão devido a um canal totalmente novo que a China está a planear começar a construir no final do ano na Nicarágua, não muito longe do Panamá”, e que deverá começar a funcionar em 2020.

O novo troço, que demorou um ano a ser construído, consiste numa extensão de 35 quilómetros, paralela ao curso do Canal (que mede, no total, 193 quilómetros), e no alargamento e aprofundamento de outros 37 quilómetros.

Foi pago com dinheiros egípcios — 8,5 mil milhões de dólares (7,7 mil milhões de euros) — e, assim o espera a Autoridade do Canal do Suez, poderá contribuir para quase triplicar as receitas provenientes da sua utilização — dos atuais 5,3 mil milhões de dólares (4,8 mil milhões de euros) para cerca de 13,2 mil milhões de dólares (12 mil milhões de euros) em 2023.

Esta obra possibilitará o trânsito de navios nos dois sentidos numa extensão de 72 quilómetros (com uma profundidade de 24 metros) e encortará o período de espera dos barcos de 18 para 11 horas. No Egito, acredita-se que, dentro de uma década, o número de navios a atravessar o Canal poderá duplicar.

Aberto em 1869, após uma década de obras que custou milhares de vidas de trabalhadores, o Canal do Suez é uma das artérias de navegação mais importantes para o comércio mundial, e em particular para o tráfico petrolífero. Estima-se que, em 2013, 4,6% do petróleo e produtos derivados foram escoados através do Suez. E que por ali flua cerca de 7,5% do comércio marítimo mundial.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 5 de agosto de 2015. Pode ser consultado aqui