Mohammed ElBaradei, um dos principais rostos da oposição ao regime de Hosni Mubarak, juntou-se ontem aos protestos no Cairo. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de janeiro de 2011. Pode ser consultado aqui
Um dos principais rostos da oposição a Hosni Mubarak foi, ontem, ao encontro dos manifestantes no centro do Cairo. E prometeu lutar pelo fim do regime. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão
Nem os voos ameaçadores de dois caças da Força Aérea fizeram os manifestantes dispersar JORGE SIMÃO
A multidão começava a desmobilizar após o sexto dia de manifestações na praça Tahrir (Liberdade), no centro do Cairo, quando, subitamente, as atenções viraram-se para um novo grupo que se dirigia à praça.
Rodeado por câmaras de televisão, jornalistas e manifestantes eufóricos, Mohammed ElBaradei, um dos principais rostos da oposição ao regime de Hosni Mubarak, rapidamente viu-se afogado numa multidão que não se continha nos gritos de ordem: “O povo quer que o regime venha abaixo!” “Deixa-nos!”, numa clara alusão ao Presidente Hosni Mubarak.
Enquanto esperava para ouvir o que ElBaradei ia dizer, o jovem Hesham explicava ao Expresso porque razão, sendo ele um apoiante da Irmandade Muçulmana, aplaudia o Prémio Nobel da Paz: “Ele é pela mudança! E o povo quer a mudança!” ElBaradei não desapontou Hesham: “Nós apenas temos uma exigência, o fim do regime”, afirmou. “O que começámos não voltará atrás.”
Caças mandam recolher
O aparecimento de ElBaradei junto dos manifestantes foi um final inesperado para um dia de protestos que, apesar do recolher obrigatório marcado para as 16 horas, prolongou-se pela noite dentro. Nem os voos ameaçadores de dois caças da Força Aérea, que ocuparam os céus da praça mal soou as 16 horas fizeram os manifestantes dispersar.
Estes, ao longo da tarde, ora cantavam, ora gritavam slogans a plenos pulmões, ora paravam para rezar. Uns procuravam gravar tudo com o telemóvel, outros seguiam solitários empunhando folhas A4 com as suas palavras de ordem. Comum a todos, o mesmo sentimento: estão fartos de Mubarak.
O povo quer que o regime venha abaixo!, ouviu-se nos protestos de hoje JORGE SIMÃO
Vários tanques militares estavam dispersos pelo perímetro da praça. Muitos manifestantes subiam para cima dos blindados para se deixarem fotografar com os militares. Pelo menos numa ocasião, um militar deixou-se levar em ombros pelos manifestantes, ora fazendo o ‘v’ da vitória ora gritando ‘Alá é o maior’!
Os manifestantes elogiam os militares com a mesma convicção com que repudiam a polícia. Uma televisão egípcia noticiou hoje que esquadras de polícia tinham sido abandonadas bem como algumas prisões. Cerca de 1000 criminosos andariam à solta, pilhando e assaltando casas e negócios. Os habitantes do Cairo têm receio e responsabilizam o regime pela abertura das portas das prisões. Dizem que Mubarak quer lançar o caos nas ruas.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de janeiro de 2011. Pode ser consultado aqui
O recolher obrigatório e o cancelamento de dezenas de voos obrigaram milhares de pessoas a passar a noite no aeroporto do Cairo. Sair à rua era arriscar a vida e os bens. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão
JORGE SIMÃO
O Aeroporto Internacional do Cairo está transformado, por estes dias, no maior dormitório do mundo. Esta noite, à semelhança da noite anterior, milhares de pessoas não tiveram alternativa senão deitarem-se no gelado chão de mármore do aeroporto para tentar iludir o sono. O recolher obrigatório decretado pelo regime de Hosni Mubarak, em vigor entre as seis da tarde e as oito da manhã, e o cancelamento de dezenas de voos levou a que milhares de pessoas ficassem bloqueadas nos terminais, sem saída possível.
Ainda não era meia-noite e já as lojas de conveniência do aeroporto tinham entrado em rutura. O Burger King já só servia bebidas e junto das tomadas de eletricidade, as pessoas disputavam a vez para carregar telemóveis e computadores. “Já ontem foi assim”, comentava o empregado de uma loja. “Também estou preso aqui, sem poder ir para casa”, lamentava-se um funcionário num balcão de informações.
Insegurança nas ruas
Sair do aeroporto e arriscar tomar um transporte até ao centro da cidade era uma aventura com desfecho incerto. Corriam relatos de que, paralelamente às patrulhas das forças de segurança, havia carros a serem imobilizados por populares e depois assaltados.
Contactado pelo Expresso, o embaixador português no Cairo confirmou as limitações e os perigos à circulação. “O mais seguro é mesmo esperar pelas oito horas da manhã”, esclareceu Aristides Gonçalves.
Foi neste ambiente caótico que, às dez da noite de sábado, aterrou o voo proveniente de Lisboa — por semana, há dois voos diretos entre as duas capitais. A bordo do aparelho da Egyptair seguiam exatamente 30 passageiros — a classe executiva ia vazia. Uma meia dúzia ficou efetivamente no Cairo, os restantes passageiros apenas faziam escala.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de janeiro de 2011. Pode ser consultado aqui
O nosso país está cada vez mais presente no Norte de África. Mas os povos continuam de costas voltadas. No Magrebe, conhece-se o futebol português e pouco mais
Os portugueses não hesitam em ir de férias a Marrocos ou à Tunísia, sabem que a Líbia tem um Presidente um pouco excêntrico e que foi por causa de um ataque terrorista na Mauritânia que o Lisboa-Dakar foi cancelado. E partilham do fascínio universal de, um dia, avistarem as Pirâmides de Gizé. No Estreito de Gibraltar, escassos 14,4 quilómetros de mar impedem que o Sul da Europa e o Norte de África se toquem. Mas, nas duas margens do Mediterrâneo, a imagem que os povos projectam do ‘outro’ permanece refém de estereótipos e de ideias feitas.
Amanhã e segunda-feira, decorre em Argel a II Cimeira Luso-Argelina. Em paralelo, será inaugurada a Feira Internacional de Argel que em 2007 recebeu mais de 1,5 milhões de visitantes e que, este ano, tem como convidado de honra Portugal. “Sempre tivemos uma relação excelente do ponto de vista político e diplomático. A Argélia desempenhou um papel muito importante na formação da nossa revolução”, recorda o embaixador português em Argel, Luís de Almeida Sampaio. “Aquilo que não existia, como agora, era o aprofundamento da dimensão económica”, diz.
Cerca de metade do gás natural consumido pelos portugueses é importado da Argélia. Por força dessa dependência energética, a balança comercial é altamente deficitária para Portugal, mas, aos poucos, empresas portuguesas vão cunhando a paisagem local. Foi à Parque Expo, por exemplo, que foi adjudicada a elaboração do Plano Director do Reordenamento Urbano de Argel, até 2010.
Geograficamente, Argel está mais próxima de Lisboa do que Paris ou Bruxelas — uma constatação ainda mais válida para Rabat. “Neste momento, há mais de 130 PME portuguesas em Marrocos, que dão trabalho a 30 mil pessoas”, refere o embaixador em Rabat, João Rosa Lã. Um dos logotipos de Marrocos no estrangeiro, o Hotel La Mamounia (Marraquexe), está a ser recuperado pela empresa Casais, de Braga.
Hoje, 58% do total de exportações portuguesas para o Norte de África vão para Marrocos e 90% do mercado das parabólicas é português. “Estamos dependentes da situação que se viver no Magrebe. Se houver um surto terrorista ou problemas relacionados com a imigração clandestina, Portugal e Espanha serão os primeiros a sofrer”, alerta Rosa Lã.
Na corrida das empresas lusas ao mercado magrebino, o Egipto — ficou claramente para trás. Ainda assim, a Cimpor, por exemplo, controla 10% do mercado do cimento. É o mais longínquo dos países da orla Sul e tem uma vocação diferente do ponto de vista geopolítico — é um palco, por excelência, do diálogo israelo-árabe. “Uma das funções da embaixada é seguir os trabalhos da Liga Árabe. Em 2007, Portugal assinou um Memorando de Entendimento com a organização que nos permite assistir às reuniões. Poucos países da União Europeia têm-no”, refere Paulo Martins Santos, cônsul no Cairo.
A funcionar há pouco mais de um ano, a embaixada em Tripoli já constatou o potencial de um país com dimensão para ‘engolir’ a Península Ibérica. Só no primeiro trimestre de 2008, foram assinados contratos que rondam os 1000 milhões de euros. Mas para o diplomata Rui Lopes Aleixo, “a nossa imagem não pode ser só a das empresas que chegam aqui. Há que mostrar a cultura portuguesa e aquilo que somos capazes de fazer noutros domínios”, diz. Recentemente, três investigadores das Universidades de Coimbra, Porto e do Centro de Mértola visitaram a Líbia e receberam luz-verde das autoridades para apresentarem um projecto de elaboração do mapa arqueológico do país.
No término das conversas que o “Expresso” manteve com representantes de quatro das cinco missões diplomáticas portuguesas no Norte de África, é impossível iludir o forte contributo do futebol na imagem que os povos do Sul têm dos portugueses. No Cairo, Manuel José, que treina o Al-Ahly — um clube com 50 milhões de adeptos… — é um ídolo. Já em Argel, é o embaixador Almeida Sampaio que não passa despercebido na rua… “As cores de um dos principais clubes de Argel — o Mouloudia — são o verde e o vermelho. Quando fico parado no trânsito, os miúdos vêm dar beijos à flâmula (pequena bandeira) que tenho no carro. Apanho banhos de multidão por causa das nossas cores”.
O que nos une
Durante a ocupação islâmica da Península Ibérica, entre os séculos VIII e XV, o território recebeu o nome de Al-Andalus. Situado em Granada, o palácio de Alhambra é o expoente máximo desse legado. Mas mais do que um património comum, hoje, os países da Península partilham com a orla árabe fóruns de diálogo que visam a aproximação entre as margens do Mediterrâneo: o Diálogo 5+5 (os cinco países da UMA, da Mauritânia à Líbia, e cinco do Sul da Europa) e o Processo de Barcelona da União Europeia (37 membros). A União para o Mediterrâneo, de Nicolas Sarkozy, será a próxima ‘ponte’ sobre o ‘Mare Nostrum’.
MAURITÂNIA Aprendeu a falar português a bordo dos barcos de pesca luso-mauritanos, ao largo do Sara. Hoje, Yussuf, um mauritano de 37 anos imigrado há oito em Portugal, tem no português a sua língua de trabalho, num posto de combustível de Portimão. “Integrei-me bem. Há pessoas que não gostam de imigrantes, mas não ligo”. Nas férias, vai à Mauritânia de carro. “O trajecto é fácil, há sempre estrada até lá”, durante 4000 quilómetros.
MARROCOS Quando chegou a Portugal há nove anos, para fazer investigação, Omar, de 35 anos, teve de fazer “uma grande ginástica” para evitar a carne de porco e “adaptar-se à comida portuguesa”. Hoje, este professor de Estudos Árabes diz apreciar “a capacidade de desenrascar” dos portugueses. E critica a “falta de pontualidade e o ‘deixa andar’”, atitudes, confessa, também marroquinas.
ARGÉLIA Em Portugal há 24 anos, Farida tem um sonho: “Criar uma associação de amizade luso-argelina. Temos uma história comum que deve ser publicada”, diz esta consultora internacional na área alimentar, de 58 anos. “Temos uma geração de casamentos mistos. O que vai ser feito dela? Não há uma escola de língua árabe, não temos onde praticar e mostrar a nossa cultura”. Preocupa-a o futuro do neto luso-argelino.
TUNÍSIA A vida de Amel deu uma volta de 180 graus desde que chegou a Portugal, há 10 anos. Então, seguira o marido até um novo posto profissional; hoje, administra o Santarém Hotel e gere o operador turístico ‘Beauty Village’. “Gostamos muito do país, não é muito diferente da Tunísia, desde logo no clima. E o contacto entre as pessoas é muito caloroso”.
LÍBIA O bigode escuro faz Saud, muitas vezes, passar na rua por português. Nascido há 48 anos, a 60 quilómetros de Tripoli, veio para Portugal como bolseiro e por cá ficou. “Gostei do país e da forma como fui tratado”. As duas filhas apreciam ir à Líbia de férias, mas “falam pouca coisa” de árabe. Gostava que os portugueses fossem “mais ambiciosos” e que “não dramatizassem tanto”. Faz de tudo um pouco na embaixada líbia. E torce pelo Sporting.
EGIPTO “Nós, orientais, acreditamos muito no destino”, diz Badr. E o destino quis que este egípcio de 46 anos viesse a Portugal há 12 estudar a língua de Camões. “Gosto de fado e conheço todas as casas no Bairro Alto. É um tipo de música muito próxima da música árabe. Fala de pátria, saudade e amor”. Se dependesse de si, os portugueses não seriam tão passivos: “Recentemente, no Egipto, aumentou o preço do pão e houve logo protestos”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de junho de 2008
Ouviu alguém a bater à porta. Estava sentada à secretária do quarto, absorvida pela escrita de um novo livro. Era tarde de domingo, 6 de Setembro de 1981. Ignorou. Talvez fosse o porteiro, possivelmente o leiteiro. Não paravam de bater. Foi à porta. Vislumbrou um vulto negro por detrás do vidro opaco. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, estava sozinha em casa.
Abriu a janela da porta. Assustou-se. Homens armados esperavam lá fora. Uma voz grossa fez-se ouvir: “Abre a porta. Queremos fazer-te uma ou duas perguntas. Depois regressas a casa”. Foi levada e fechada numa prisão.
A arma da escrita
Vinte e três anos volvidos, à conversa com o “Expresso”, a egípcia Nawal El Saadawi — que, na segunda-feira, recebeu, em Lisboa, o X Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa — não disfarça uma expressão irónica quando lhe é perguntado que crime cometera: “Escrever e apenas escrever. Não sei carregar outra arma a não ser uma caneta. Critiquei a política de Anwar Sadate. Era impossível libertar as mulheres num país que não era livre, política, económica e socialmente”.
Um mês depois de ter sido presa, o Presidente egípcio foi assassinado e as portas da prisão abriram-se. “O que não nos mata, torna-nos mais fortes”, foi o lema que então nasceu e a guiaria vida fora. Aos 73 anos, Nawal El Saadawi é hoje uma das activistas dos direitos das mulheres mais respeitadas em todo o mundo.
Tinha apenas 10 anos quando exibiu, pela primeira vez, toda a sua natureza, despejando chá quente em cima de um homem de 32 anos que lhe tinham destinado. Acabaria por casar três vezes, com homens da sua livre escolha.
Em 1955, concluiu os estudos de Psiquiatria na Universidade do Cairo e, em 1966, o mestrado em Saúde Pública na Universidade Columbia, em Nova Iorque.
Aos 10 anos, despejou chá quente em cima de um homem de 32 anos, que lhe tinham destinado
O pai formara-se na Universidade islâmica de Al-Azhar (Cairo), mas ela admite nunca se ter sentido socialmente amordaçada: “Fui para a escola médica, falava com homens, viajei por todo o mundo. Conhecia raparigas cristãs coptas que não tinham a minha liberdade. Depende da mentalidade dos pais”.
A experiência médica em zonas rurais e o contacto com a pobreza apurou-lhe a consciência política. Nos anos 70, começa a abordar temas tabus e causa incómodo. Fala abertamente da excisão — uma experiência que viveu aos seis anos — e associa-a a problemas de ordem económica e política.
Em 1972, é exonerada de um cargo de chefia no Ministério da Saúde e vê a revista que fundara (“Saúde”) ser interditada. Em 1977, publica “A Face Oculta de Eva” — a sua única obra traduzida para português —, sobre as mulheres e o mundo árabe.
Após a publicação do livro “A Queda do Imã”, em 1987, começa a receber ameaças de morte. Em 1992, o seu nome passa a figurar na lista de alvos a abater por um grupo fundamentalista islâmico.
A intimação força-a a um período de exílio, mas não a cala. Em 2001, afirma que o acto de beijar a Pedra Negra, em Meca, não é islâmico. É acusada de apostasia, mas vence, em tribunal, um processo que visava sentenciá-la a um divórcio forçado do marido, muçulmano.
Nawal El Saadawi é uma acérrima defensora da separação de poderes: “A lei tem de ser secular, a religião fica em casa”. Mas, enquanto em muitos países árabes isso não acontece, ela recusa-se a culpar o Islão pela diminuição do estatuto das mulheres. “Islamismo, judaismo, cristianismo, todas as religiões oprimem muito as mulheres. São inferiores em todas as religiões. É ler a Bíblia…”
Artigo publicado na revista Única do “Expresso”, a 30 de outubro de 2004
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.