Comentário áudio sobre a “marcha da partida”, organizada hoje pelos manifestantes anti-Mubarak. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui
Comentário áudio sobre a “marcha da partida”, organizada hoje pelos manifestantes anti-Mubarak. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui
Fações pró e anti Mubarak confrontaram-se esta tarde no centro do Cairo, perante a passividade do exército egípcio. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

Cedo se adivinhou que ia haver problemas. Por volta do meio-dia, grupos compactos de pessoas empunhando fotografias do Presidente, bandeiras do Egito e gritando “Mubarak sim!” começaram a dirigir-se à praça Tahrir, que, nos últimos dias, tem funcionado como o quartel-general do movimento de contestação a Hosni Mubarak.
A reunião com os opositores ao Presidente foi rápida. Mesmo ao lado do Museu Egípcio, as duas facções encontraram-se face-a-face e, separadas por escassos metros, começaram a arremessar pedras ininterruptamente.
À retaguarda, no campo dos opositores a Mubarak, não tardou a organizar-se o apoio à linha da frente. Havia pessoas a fragmentarem grandes pedras em pedaços mais pequenos e outras a transportá-las até aos que estavam na frente. Num canteiro, improvisou-se um hospital de campanha. Os feridos não tardaram a aparecer, pelo próprio pé, a cambalear, apoiados no ombro de outro ou levados em braços.

Cabeças rachadas, olhos feridos, lábios rasgados, tudo era tratado com água, algodão e mercuriocromo. “Mubarak, estás feliz agora?”, gritava um ferido.
Nas bermas, as pessoas procuravam todo o tipo de superfície em ferro — tapumes das obras, barreiras ao trânsito ou as bases dos candeeiros públicos — para baterem nelas com pedras compassadamente, provocando uma sensação semelhante ao rufar do tambor antes da guerra. “É uma mensagem para Mubarak. Só saímos daqui quando ele se for embora”, explicava um jovem.
“Eles podem gostar de Mubarak e também têm o direito de se manifestar. Mas porque é que vieram ao nosso encontro? Porque não escolheram outro sítio?”, questionava-se um jovem. “Mubarak quer o caos!” Num momento particularmente dramático, homens montados em cavalos e camelos, vindos do lado pró-Mubarak, irromperam pela multidão quase chegando à praça Tahrir.
“Não tenho provas do que lhe vou dizer, mas aqueles homens têm falsa identidade. São os prisioneiros libertados por Mubarak, contratados para causar agitação”, dizia um jovem. Ao lado, outro acenava: “Sou licenciado em Física. Sei manifestar-me de forma civilizada, não preciso de atirar pedras. Mubarak está a tentar que nos matemos uns aos outros. Foi ele que mandou para aqui estes terroristas.”
À margem dos confrontos, algumas gruas começam a remover as carcaças de carros da polícia queimados pelos manifestantes anti-Mubarak, que ali estavam desde a semana passada. Um jovem com lágrimas nos olhos diz: “Tantas pessoas morreram por nada. Vê o que está ali a acontecer? Estão a limpar as ruas para que amanhã tudo volte à normalidade, como que se nada se tivesse passado”.
Entre os manifestantes pró-Mubarak, muitos diziam “amar” o “rais”. Outros pareciam apenas ansiosos pelo regresso do país à normalidade. “A economia está em baixo. Protestar sim, mas não deitem o país abaixo. Quem assume a responsabilidade por tudo isto?”, questionava um apoiante do Presidente. “Eles têm direito a manifestar-se, mas Mubarak já disse que se vai embora. Vamos seguir com a vida agora”, dizia outro.
Um homem vestido com fato e gravata e um pin da Universidade do Cairo na lapela dizia: “Todos os egípcios que têm formação gostam de Mubarak. E não gostam dos grupos islâmicos. Com Mubarak, o país desenvolveu muito.” Outro acrescentava: “É impossível agradar a 85 milhões de egípcios. Mas antes disto que se está a passar, pelo menos o Egito era seguro”.

Tudo acontecia perante a passividade dos militares cujos tanques, à semelhança dos dias anteriores, continuavam estacionados nas ruas adjacentes à praça. Hoje, com uma nuance: em vez de estacionados na horizontal, fazendo com que o acesso à praça Tahrir fosse feito a conta gotas, hoje, estavam paralelos à rua, ajudando à fluidez da multidão. “Está a ver como estão os tanques? Porque não estão atravessados como nos outros dias?”, apontava um jovem.
Ao nono dia de manifestações no Cairo, os jornalistas tornaram-se subitamente alvo de desconfiança, dos dois lados. “O que estão aqui a fazer? Limitem-se a relatar os factos”, insinuava um manifestante pró-Mubarak à passagem da reportagem do Expresso. “Espiões”, gritava outro.
Entre os opositores a Mubarak, o acolhimento que caracterizou os dias anteriores — dadas as dificuldades de comunicações, os jornalistas eram muito procurados pelos manifestantes na esperança de transmitirem a sua mensagem para o exterior — começou a abrir algumas brechas.
Um jovem tentou roubar o bloco de notas da reportagem do Expresso e dois outros tentaram impedir o fotógrafo do Expresso de aceder à linha da frente dos confrontos. Subitamente, cada repórter começou a ser olhado por alguns manifestantes como agentes ao serviço de Mubarak.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui
Manifestantes egípcios querem reunir hoje um milhão de pessoas na praça Tahrir. O desafio a Mubarak sobe a fasquia como nunca antes. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

A noite vai ser longa na praça Tahrir. Ao escurecer, nos espaços verdes, foram montadas tendas de campismo, onde alguns milhares de pessoas se preparam para pernoitar. Terça-feira será um dia importante para o sucesso do movimento de contestação ao Presidente Hosni Mubarak: os manifestantes querem reunir na praça um milhão de pessoas.
Por indicação do Governo os comboios estão paralisados. A medida visa impedir que afluam à capital egípcia pessoas vindas de todo o país. “Estão enganados”, diz um manifestante. “Não só vamos conseguir juntar um milhão nesta praça, como um milhão em muitos outros sítios do Egito.”
Com as comunicações quase totalmente cortadas — a única operadora de Internet a funcionar foi silenciada esta noite e os sms não chegam ao seu destino —, os manifestantes empenham-se no passa a palavra para organizar as ações de protesto.
Uma jovem com a voz que mal se ouve, gasta pelas palavras de ordem, explica o que está combinado: “Amanhã, encontramo-nos aqui às 9h00. Às 11h00 partimos até ao edifício da televisão pública. E depois seguimos para a residência presidencial, em Habtin. Se o Exército não nos deixar passar é porque não quer a mudança”.
Entre as tendas, um mar de pessoas conversa tranquilamente, lê o jornal ou simplesmente dormita. Convidam os jornalistas a juntarem-se aos piqueniques improvisados e desfiam sem se cansarem as suas razões de queixa em relação ao regime de Mubarak.
“Eu vivo aqui há três dias”, diz Mohamed, um médico de 40 anos. “O Governo tenta fazer truques, dizendo que há uma evolução, mas nós não acreditamos nisso.” As pessoas mostram-se indiferentes às alterações governativas promovidas por Mubarak. Dizem que só haverá verdadeira mudança quando ele cair.
Dir-se-ia que o “ensaio geral” para a megamanifestação de terça-feira correu bem. Os caças da Força Aérea que ontem voaram sobre a praça de forma ameaçadora não apareceram — apenas um helicóptero sobrevoou quase ininterruptamente o local. Tanques do Exército continuam estrategicamente estacionados nas ruas de acesso à praça.
A Polícia continua desaparecida e os populares dão mostras de estarem a lidar melhor com as ameaças de assalto às suas casas, que nasceram após a Polícia abandonar as esquadras e deixar à solta centenas de presos.
“Ontem tentaram atacar a minha casa”, conta Abrahman, funcionário do Banco Nacional do Egito. “A minha mulher estava sozinha em casa. Mas os meus irmãos e os meus vizinhos protegeram-na”. Abrahman vive na praça desde sexta-feira.
Um homem com uma fotografia de Mubarak, pintada com um pequeno bigode preto e com a legenda “o novo Hitler”, mostra-se confiante: “Isto é uma questão de tempo. Estamos muito seguros disso. Vai ser um dia importante.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui
Num discurso à nação o Presidente egípcio, Hosni Mubarak, anunciou que não será candidato nas eleições presidenciais previstas para setembro. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão
Num discurso transmitido pela televisão estatal cerca das 23 horas (21h em Lisboa), o Presidente do Egito anunciou: “Não tenho a intenção de me apresentar às próximas presidenciais.”
Hosni Mubarak reconheceu que o país está a viver “dias difíceis” e disse que “nunca quis poder ou prestígio”. “Passei muito tempo a servir o Egito”, disse.
Alguns milhares de pessoas assistiram ao discurso através de uma tela de pano instalada na praça Tahrir e ainda antes de Mubarak terminar de falar a multidão irrompeu num único grito: “Deixem-nos! Deixem-nos! Deixem-nos!” Querem que o Presidente abandone o poder e o país o mais rapidamente possível.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui
A “marcha dos milhões” saiu à rua com sucesso. Entre os manifestantes, um nome ganha preponderância para suceder a Mubarak — Arm Mousa, Presidente da Liga Árabe. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

A fasquia foi colocada alta — juntar um milhão de pessoas no centro do Cairo — e a prova foi largamente superada. As contas são difíceis de fazer, desde logo porque a praça Tahrir não comporta nem metade do número desejado. Mas com a praça e as ruas adjacentes cheias, com gente a perder de vista, a mensagem passou a plenos pulmões: “O povo quer o fim do regime” foi o grito que mais se ouviu.
Com os comboios paralisados em todo o país e as comunicações fortemente condicionadas — a Internet e os sms continuam sem funcionar —, os manifestantes começaram dirigir-se bem cedo para a praça, onde largas centenas de pessoas tinham passado a noite. A meio da manhã, o ambiente assemelhava-se àquele que antecede os grandes dérbis futebolísticos. Havia uma grande expectativa de que aquele iria ser um dia importante.
Ao início da tarde, pequenos grupos vindos de outros pontos da cidade começaram a entrar na praça, alimentando a massa humana que já enchia o local. “Isto não é uma manifestação, é uma revolução”, exultava Ashraf, um estudante de engenharia de 24 anos. “Da próxima vez, um grupo fica na praça e outro vai até ao palácio presidencial”, em Heliópolis.
As manifestações na praça Tahrir são volantes. Há pessoas a entrar e a sair constantemente do perímetro da praça — limitado pelos tanques do exército —, como que se entre momentos de protesto fossem a casa ou a outro sítio resolver alguma coisa. Com o dia útil no Cairo reduzido a sete horas — das 15 às 8 horas da manhã está decretado o recolher obrigatório —, as manifestações tornaram-se a única razão para os cairotas saírem de casa.
A partir da varanda do nono andar de um dos prédios circundantes à praça, com vista privilegiada sobre a manifestação, Ahmed, que ora tirava fotografias, ora espreitava a televisão, descaiu-se: “Gamal (filho de Mubarak, apontado como seu sucessor), querias receber o governo deste país como prenda de Natal. Já não a vais ter!”

Os manifestantes não se esquivaram a responder quando perguntamos quem queriam ver no lugar de Mubarak. Mas preferiram dizer que, de momento, a grande prioridade é expulsar “o rais” do poder. Depois, outra frase seguir-se-á.
Das dezenas de testemunhos recolhidos pelo Expresso, todos foram no sentido da opção por um Presidente civil. Várias personalidades egípcias têm perfil para assegurar uma situação transitória até que o país tenha condições para realizar eleições. “Queremos um Presidente que seja um de nós”, ouve-se com frequência. “Um médico, um advogado, um engenheiro… Há muitos egípcios com valor”.
Entre os civis mais vezes referidos está Amr Mousa. Atual Presidente da Liga Árabe, Mousa termina o seu mandato em março e já anunciou que não voltará a candidatar-se ao cargo. “Cumprirei o meu dever em benefício do povo egípcio”, disse Mousa, questionado sobre se estaria disposto a candidatar-se à presidência do país.
À espera que Mubarak os ouça e abandone o cargo que ocupa há 30 anos, os egípcios não dão mostras de querer parar a luta. “Venho amanhã outra vez, depois de amanhã, na próxima semana, no próximo ano — até que Mubarak morra!”, diz Mahmud, de 22 anos, estudante de educação física. Fala devagar e tem um ar cansado. Quando percebe que o Expresso é um jornal português, arregala os olhos e ergue a voz de entusiasmo: “Manuel José (treinador do Al-Aly, clube do Cairo)! Ele está no meu coração!”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui