Arquivo de etiquetas: Eleições

As maiores eleições do mundo

GETTY IMAGES

A Índia vai a votos pela primeira vez desde que ultrapassou a China e se tornou o país mais populoso do mundo, com cerca de 1440 milhões de habitantes. A partir desta sexta-feira, os indianos começam a escolher 543 deputados à câmara baixa do Parlamento (Lok Sabha) para os próximos cinco anos. A disputa trava-se, sobretudo, entre o Partido do Povo Indiano (nacionalista), do primeiro-ministro Narendra Modi, e o Congresso Nacional Indiano, que tem estado na oposição nos últimos dez anos. Para formar Governo, um partido ou coligação terá de garantir 272 assentos.

Votar neste país, que tem a sétima área do mundo, implica uma logística complexa. Segundo a lei, deve haver um local de voto a dois quilómetros da casa de qualquer eleitor. Assim, dos Himalaias (norte) ao Índico (sul), do deserto Thar (oeste) aos arquipélagos da Baía de Bengala (leste), haverá 1,05 milhões de assembleias de voto — a de Tashigang a 4650 metros de altitude —, com 5,5 milhões de urnas eletrónicas.

Para pôr de pé esta operação, cerca de 11 milhões de funcionários atravessaram glaciares e desertos, selvas densas e águas infestadas de crocodilos, nas costas de elefantes e de camelos, a bordo de barcos e helicópteros. O escrutínio, que se prolonga até 1 de junho, realiza-se em sete fases. A principal razão para este calendário por camadas prende-se com a necessidade de alocar forças de segurança para verificar todo o processo, precavendo tentativas de fraude e episódios de violência.

Outra dimensão

969

milhões de indianos estão aptos a votar neste escrutínio. A idade legal para poder votar são 18 anos e para ser candidato, 25

44

dias é quanto dura o processo eleitoral até os resultados serem anunciados (4 de junho); as eleições mais rápidas foram as de 1980: demoraram quatro dias

2660

forças políticas (nacionais e regionais) estão registadas na Índia — para fazer face à iliteracia, são identificados por símbolos

Em que radica a popularidade de Modi?

O atual primeiro-ministro foi eleito pela primeira vez em 2014. Aos 73 anos, candidata-se a um terceiro mandato. Se o cumprir, Narendra Modi torna-se o terceiro indiano com mais tempo na chefia do Executivo. Mais experientes só Jawaharlal Nehru, o primeiro líder pós-independência — 16 anos e 286 dias —, e a sua filha, Indira Gandhi, que passou um acumulado de 15 anos e 350 dias no poder.

O cientista social indiano Amit Singh considera “exagerado” dizer que Modi é um líder popular. “É popular, mas controverso, talvez devido à sua capacidade de usar a religião para polarizar as massas hindus”, diz ao Expresso. “É popular apenas nalguns segmentos da maioria hindu.” Nas eleições de 2019, a sua coligação obteve 37%.

Singh diz que Modi tem boa imprensa, ao contrário da oposição, que recebe pouca atenção. “Há um capitalismo de compadrio que apoia a candidatura de Modi.” Um exemplo foi a compra da NDTV pelo multimilionário Gautam Adani, próximo de Modi. Outrora independente, a televisão é hoje câmara de ressonância do Governo.


Braço de ferro entre duas megacoligações

PARTIDOS Os protagonistas destas eleições são o Partido do Povo Indiano (BJP, na sigla inglesa), criado em 1980 e hoje no poder, e o histórico Congresso Nacional Indiano, fundado em 1885.

LÍDERES O primeiro-ministro Narendra Modi chefia o BJP (nacionalismo hindu). O rosto do Congresso (centro) é Rahul Gandhi, filho, neto e bisneto de antigos primeiros-ministros.

COLIGAÇÕES O BJP formou uma coligação de 38 partidos, a Aliança Democrática Nacional. A oposição une 26 na Aliança Inclusiva para o Desenvolvimento Nacional Indiano (INDIA), a fim de proteger o país do nacionalismo hindu. Modi passou a chamar Bharat ao país, o nome em hindi.

SÍMBOLOS O BJP é identificado por uma flor de lótus e o Congresso por uma mão.


DUAS PERGUNTAS A

Amit Singh
Cientista social indiano, autor do livro “An Approach to Hindutva India”

Que mais o preocupa no seu país?

A ascensão agressiva do nacionalismo e da religião hindus e, em simultâneo, a morte da democracia secular. O secularismo trouxe-nos liberdade de expressão, de religião, igualdade de género e o seu declínio está a ter impacto nos direitos humanos. O crescimento do nacionalismo hindu também perturbou a harmonia comunitária. Vigilantes hindus têm atacado muçulmanos e cristãos. Com Narendra Modi no poder, o ataque à sociedade civil, em especial às minorias religiosas, aumentou.

Com que impacto socioeconómico?

A desigualdade social é preocupante e é a maior de sempre. O desemprego entre os jovens com formação superior é muito elevado. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, 83% dos indianos sem trabalho são jovens. Que vão essas pessoas fazer? Vai haver caos social. Outro problema é a concentração da riqueza em 1% da elite. Com Modi, as divisões sociais aumentaram. As pessoas estão polarizadas com base na casta e na religião, com impacto na qualidade da democracia.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Eleições: não está em causa quem ganha, antes a legitimidade da República Islâmica

O regime iraniano enfrenta uma crise de legitimidade e os ayatollahs já não o conseguem esconder. Num apelo desesperado, Ali Khamenei instou, há dias, os seus conterrâneos a votarem nas eleições desta sexta-feira, 1 de março, para o Parlamento e para a Assembleia de Peritos, o órgão que escolhe o Líder Supremo. Os opositores, por seu lado, apelam ao boicote. Após as últimas eleições terem registado um mínimo histórico de afluência às urnas, a República Islâmica está pressionada mais do que nunca pela urgência em inverter a tendência, para se mostrar relevante

Da última vez que o Irão realizou eleições legislativas, em fevereiro de 2020, o país estava ainda sob o signo do choque. A 4 de janeiro, uma das figuras mais prestigiadas da República Islâmica, o general Qasem Soleimani, tinha sido assassinado por um drone disparado pelos Estados Unidos, estava ele no aeroporto de Bagdade, no Iraque. No dia do voto, o sentimento anti-ocidental estava ao rubro entre os mais entusiastas do regime religioso.

Esta sexta-feira, dia 1 de março, os iranianos regressam às urnas para escolher os seus representantes no Parlamento (Majlis) e também os membros da Assembleia de Peritos, o órgão encarregue de escolher o Líder Supremo. O escrutínio acontece num contexto em que, seja pela inimizade de décadas com os Estados Unidos, ou pela aliança com a Rússia, seja pelo apoio de Teerão a grupos armados na região, como o palestiniano Hamas ou o libanês Hezbollah, ambos protagonistas na guerra em curso na Faixa de Gaza, o país sente-se na mira dos grandes poderes ocidentais.

Esta perceção não estará ausente destas eleições, que constituirão um dilema para os eleitores: “Se os candidatos da linha dura e anti-Israel vencerem as eleições para o Parlamento, então poderão legislar no sentido de empurrar o governo e as forças armadas para uma abordagem mais conflituosa em relação aos conflitos na região”, comenta ao Expresso Mohammad Eslami, investigador iraniano na Universidade do Minho.

“Na mesma linha, se a prioridade do Parlamento for a economia e a subsistência das pessoas, [os novos deputados] poderão reorientar o regime para uma abordagem mais pacífica.”

Estas serão também as primeiras eleições desde a morte da iraniana Mahsa Amini, na sequência de ferimentos infligidos pela “polícia da moralidade” após ser detida por não usar o véu islâmico segundo a etiqueta da República Islâmica. O assassínio da jovem de 22 anos desencadeou uma vaga de protestos populares antirregime que duraram meses e só terminaram quando o regime começou a deter e a enforcar manifestantes, na sequência de julgamentos considerados fraudulentos.

Na crença de que votar é validar a República Islâmica e contribuir para a sua perpetuação, os opositores ao regime dos ayatollahs têm-se multiplicado em apelos ao boicote como forma de acentuar o divórcio entre uma parte significativa da sociedade e a hierarquia religiosa no poder.

“Estas eleições têm uma importância significativa uma vez que as anteriores registaram uma taxa de participação inferior a 50% [exatamente 42,57%], um mínimo histórico desde a Revolução Islâmica”, em 1979, diz Eslami. Para se mostrar relevante e com saúde, o regime iraniano — que tem sido desafiado por sucessivas vagas de contestação popular (por razões políticas, sociais e económicas) — está pressionado pela necessidade de inverter a tendência.

“Outro aspeto importante é o surgimento de vários movimentos sociais envolvidos ativamente no processo eleitoral” continua o iraniano. “Entre eles estão a oposição iraniana e antigos grupos reformistas que se recusam a apoiar as eleições, defendendo uma posição de ‘Não às eleições manipuladas’ e expressando relutância em conceder legitimidade ao atual regime através do voto. Já os apoiantes do regime defendem a participação eleitoral sob a bandeira ‘Desta vez, tudo vai mudar’”, fazendo fé que os próximos representantes parlamentares estarão comprometidos com “uma conduta transparente nas suas funções”.

No Índice de Perceção da Corrupção de 2023, o Irão surge na posição 149, numa lista de 180 países.

A 18 de fevereiro, o Líder Supremo do Irão, o ayatollah Ali Khamenei, de 84 anos, fez um apelo ao voto com laivos de desespero, colocando a ênfase mais na participação do que no sentido do voto. Disse então:

Todos devem participar nas eleições. As eleições são o principal pilar da República Islâmica. As eleições são a forma de reformar o país. Aqueles que querem resolver os problemas e repará-los devem recorrer às eleições. O caminho certo são as eleições. A principal prioridade é a participação do povo. A escolha das pessoas certas é secundária.”

Mas enquanto o líder religioso suplica para que os iranianos votem, por todo o país há ações de boicote ao ato eleitoral como, por exemplo, cartazes de campanha queimados. Em declarações ao Expresso, fontes da oposição iraniana no exílio dizem-se cientes que “estas eleições são vitais para que o regime recupere legitimidade”. Mas “a verdade é que o povo iraniano como um todo não acredita mais nas eleições fraudulentas deste regime”.

Conscientes que a legitimidade que o sistema político iraniano procura depende em muito da taxa de afluência às urnas, esta semana, 275 personalidades iranianas das áreas política, social e cultural uniram-se num apelo público ao boicote a este escrutínio que consideram ser “encenado”.

Na mira destes notáveis — um deles Morteza Alviri, um antigo presidente da Câmara Municipal de Teerão e embaixador em Espanha — está, designadamente, a quantidade de candidaturas desqualificadas pelo Conselho dos Guardiães.

Ainda assim, após três meses de análise às qualificações dos candidatos, este órgão composto por seis teólogos e seis juristas (que exercem mandatos de oito anos) viabilizou mais de 15.200 nomes para disputar as eleições legislativas. Entre os candidatos, há 1713 mulheres, mais do dobro das 819 que se apresentaram a votos em 2020.

Uma complexa pirâmide de poder

A estrutura de poder da República Islâmica é constituída por um emaranhado de órgãos eleitos por sufrágio direto universal e outros nomeados que têm no topo dessa cadeia de decisão o Líder Supremo. Para além do Parlamento e da Assembleia de Peritos, também o Presidente é escolhido por voto popular.

Esta sexta-feira, serão escolhidos os 290 deputados e deputadas do Parlamento (formalmente designado Assembleia consultiva Islâmica), com idades entre os 30 e os 75 anos de idade, para mandatos de quatro anos. Cinco assentos estão reservados a representantes de minorias.

Concorrem dezenas de partidos políticos, mas na dinâmica política quotidiana, o sistema movimenta-se em função de outras sensibilidades: conservadores versus reformistas.

“Apesar da multiplicidade de partidos, o sistema político no Irão funciona ao estilo de coligações, com os partidos a alinharem-se sob as bandeiras abrangentes dos reformistas, moderados ou conservadores, a fim de garantir uma maioria no Parlamento”, explica Eslami.

“Estes três principais movimentos políticos no Irão representam diferentes ideologias e crenças: os reformistas pressionam por reformas sociais e políticas, os moderados defendem uma abordagem mais pragmática da governação e os conservadores os valores e princípios tradicionais. Este processo de construção de coligações destaca a importância da cooperação e do compromisso no sistema político iraniano.”

Também a eleição para a Assembleia de Peritos encerra um alto grau de complexidade. “Para serem elegíveis, os candidatos devem possuir qualificações específicas a nível religioso, político e da jurisprudência. Devem ter uma compreensão profunda dos ensinamentos e princípios islâmicos, bem como experiência em jurisprudência islâmica. Devem também ter uma sólida experiência política e ser capazes de navegar pelas complexidades do sistema político iraniano. O número de candidatos que conseguem reunir estas qualificações e, portanto, inscrever-se como candidatos é muito baixo”, conclui Eslami.

“Durante este processo de seleção, mais de metade dos candidatos são normalmente desqualificados, limitando ainda mais o número de indivíduos que podem concorrer a um lugar na Assembleia de Peritos. Como resultado, é comum que haja apenas dois ou três candidatos a competir por cada vaga, tornando o processo eleitoral altamente competitivo e exclusivo.”

Um nome que, este ano, não passou no crivo do Conselho dos Guardiães, suscitando indignação entre os reformistas, foi Hassan Rohani, que foi Presidente do Irão entre 2013 e 2021 e que era membro da Assembleia de Peritos desde o ano 2000.

Rohani exerceu a presidência com o rótulo de moderado tendo sido responsável pela assinatura do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, a 14 de julho de 2015, que contribuiu para retirar a República Islâmica do isolamento internacional e aliviar as dificuldades económicas do povo ao garantir o levantamento de sanções internacionais.

Rohani foi sucedido na presidência pelo conservador Ebrahim Raisi, que virou o Irão para oriente, designadamente na direção da Rússia.

(IMAGEM PARLIAMENTARY UNION OF THE OIC MEMBER STATES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de fevereiro de 2024 e no “Expresso”, a 1 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

“Honraram a minha fé”, disse Khan a partir da prisão, mas não era a sua voz e isso levanta uma questão: pode a IA contornar a repressão?

Apesar de estar preso, o ex-primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan participou na campanha para as legislativas e celebrou a vitória com um discurso para os apoiantes. Tudo graças à inteligência artificial que recriou a sua voz e colocou-o a proferir uma mensagem composta a partir de notas que Khan passou para o exterior da cadeia. “A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta ao Expresso um especialista na área da Computação e da Inteligência Aumentada. “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”

Imran Khan vendeu caro o seu afastamento da política ativa e da vida em liberdade. Detido desde agosto e sujeito a uma catadupa de processos na justiça — orquestrados pelos militares, com motivações políticas e assentes em acusações forjadas, assim pensa ele e quem o defende —, o antigo primeiro-ministro do Paquistão viu os candidatos conotados com o seu partido ganhar a maioria dos assentos no futuro Parlamento, nas eleições de quinta-feira passada.

Com o partido de Khan dissolvido pelo Supremo Tribunal, militantes perseguidos e ele próprio desqualificado para concorrer — só nas últimas duas semanas, recebeu três penas de prisão de 10, 14 e 7 anos, por divulgação de segredos de Estado, corrupção e casamento ilegal, respetivamente —, os candidatos do Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI) apresentaram-se nas urnas como independentes.

Quer os entraves ao funcionamento do partido, quer as restrições adotadas pelas autoridades no dia das eleições — que decretaram um blackout nas comunicações móveis e na Internet durante o período de votação — não foram suficientes para o derrotar. Imran Khan está encarcerado, mas não o está a sua enorme popularidade, que advém dos tempos em que era uma estrela do críquete e capitaneou a seleção paquistanesa na única vez que venceu o Mundial, em 1982.

92

dos 260 deputados eleitos, a 8 de fevereiro, para a Assembleia Nacional são independentes apoiados pelo PTI de Imran Khan. Será a fação maioritária no parlamento

Na hora de celebrar a vitória, foi Imran Khan “quem fez” o discurso para os seus apoiantes — não de viva voz, dado estar preso e privado de participar em atos políticos, mas com o seu timbre vocal gerado por inteligência artificial, numa demonstração de como a tecnologia pode ser usada para contornar a repressão política.

Num vídeo, uma imagem antiga de Khan surge a discursar com os movimentos labiais sincronizados com o som criado pela inteligência artificial. A mensagem foi composta a partir de notas passadas pelo próprio aos seus advogados.

“Eu tinha plena confiança de que todos vocês iriam votar. Todos vocês honraram a minha fé e a vossa participação massiva surpreendeu a todos”, disse a voz de Khan. (Abaixo a versão do discurso em língua inglesa.)

Não foi a primeira vez que o staff de Khan socorreu-se da tecnologia para combater as restrições impostas ao partido e contornar a censura noticiosa às suas iniciativas. Durante a campanha, militantes do PTI alimentaram a dinâmica eleitoral organizando comícios digitais em plataformas como o YouTube e o TikTok, com a voz de Khan gerada por inteligência artificial. Abaixo, outro exemplo.

“A equipa de redes sociais do PTI emergiu como um farol de inovação, empregando técnicas engenhosas para chegar aos cidadãos em todo o país, uma reminiscência de tigres encurralados que lutam pela sobrevivência”, reconheceu o próprio partidoA televisão árabe “Al-Jazeera” rotulou a estratégia da equipa de Imran Khan de “campanha de guerrilha”.

“Esta é, sem dúvida, uma boa utilização da clonagem de voz, dadas as circunstâncias” repressivas em torno da candidatura de Imran Khan, diz ao Expresso Subbarao Kambhampati, professor na Escola de Computação e Inteligência Aumentada, da Universidade Estatal do Arizona (EUA). Porém, “com mais frequência ouvimos e preocupamo-nos com o mau uso ou utilizações perigosas, como a utilização de vozes clonadas em anúncios políticos enganosos.”

Um exemplo recente teve como protagonista o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Nas vésperas das primárias democratas no estado do New Hampshire, que se realizaram a 23 de janeiro, uma voz criada para soar como a do candidato democrata foi usada em mensagens telefónicas gravadas destinadas a desencorajar as pessoas de irem votar.

“O seu voto faz diferença em novembro, não nesta terça-feira”, ouvia-se. Para 5 de novembro estão agendadas as eleições presidenciais. “Embora a voz na chamada automática soe como a voz do Presidente Biden, esta mensagem parece ter sido gerada artificialmente”, apurou o gabinete do procurador-geral de New Hampshire.

“A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta Subbarao Kambhampati. “Embora as autoridades se esforcem por penalizar estas práticas e por ajudar a detetá-las (por exemplo, colocando marcas de água nos meios de comunicação gerados sinteticamente), estas medidas não serão suficientes para impedir que aqueles que espalham desinformação usufruam dos dividendos das suas mentiras.”

Uma das normas de segurança recentes é o C2PA, desenvolvido por grandes empresas de tecnologia, como a Microsoft e a Adobe. Visa a criação de um protocolo universal de Internet que permita aos criadores de conteúdos adicionarem um “rótulo nutricional”, como lhe chama o prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), com informações sobre a sua origem: de onde veio e quem ou o quê o criou.

Do além para a campanha

Outro exemplo recente de uma voz clonada para fins políticos, e que parece confirmar a tendência para que 2024 sobressaia como um ano de grande desinformação eleitoral, aconteceu na Indonésia, onde, esta quarta-feira, realizam-se eleições presidenciais.

Suharto, um antigo general que governou o arquipélago indonésio com ‘mão de ferro’ durante mais de 30 anos, e que morreu em 2008, ‘ganhou vida’ num vídeo criado por inteligência artificial que clona a voz e a imagem do antigo ditador.

“O vídeo foi feito para nos lembrar da importância dos nossos votos nas próximas eleições”, disse Erwin Aksa, vice-presidente do Golkar, o partido político que promoveu o vídeo. O Golkar não apresentou um candidato presidencial próprio, mas deu apoio a Prabowo Subianto, o atual ministro da Defesa, que é genro do ditador Suharto.

Para Subbarao Kambhampati, a integração na política das ferramentas deepfake — que usam inteligência artificial para fundir, substituir ou sobrepor áudios e imagens, produzindo assim vídeos e áudios falsos — veio para ficar. “Nos próximos anos, certamente irá difundir-se mais. Depois disso, a nossa capacidade de adaptação à nova realidade — e de não confiarmos em informações que não sejam autenticadas (como, por exemplo, por jornais de confiança, tecnologia de marca de água digital ou tecnologia de autenticação criptográfica) — será alcançada e iremos aceitá-la com calma.”

Segundo o professor, à medida que as falsificações se tornem mais sofisticadas, também aumentará a nossa imunidade a elas: “Aprenderemos a não confiar nos nossos sentidos e a insistir na autenticação”.

Até lá, deixa um conselho: “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Jornada eleitoral no Paquistão: eleitores votaram com comunicações suspensas e fronteiras encerradas

Os paquistaneses foram a votos num escrutínio que desafiou, em múltiplas frentes, a democracia que o país reclama. A Internet foi suspensa, as fronteiras com dois países foram encerradas, houve milhares de agentes mobilizados em nome da segurança da jornada eleitoral, mas pelo menos nove pessoas morreram em atos violentos. Tudo acontece com o político mais popular do país detido e objeto de sucessivas penas de prisão

Imran Khan, o político mais popular do Paquistão, está preso DEVIANT ART

O Paquistão realizou, esta quinta-feira, as 12.ª eleições gerais desde que se tornou um país independente, em 1947. Exatamente 128.585.760 eleitores — numa população de mais de 243 milhões — foram convocados para escolher os membros da próxima Assembleia Nacional e também das assembleias das quatro províncias — Balochistão, Khyber Pakhtunkhwa, Punjab e Sindh.

Durante mais de três décadas, o país foi governado pelos militares, mas nos últimos 16 anos, pelo menos oficialmente, o Governo tem estado nas mãos de civis, naquele que é o período ininterrupto mais longo de liderança civil. Cada ato eleitoral é, por essa razão, uma oportunidade de consolidação da democracia. Esta quinta-feira, alguns episódios expuseram um país no fio da navalha.

O político mais popular está preso

Imran Khan, de 71 anos, é uma antiga estrela do críquete — capitão da seleção paquistanesa na única vez que venceu o Mundial, em 1992 — que manteve intacta toda a sua popularidade quando decidiu entrar na política.

Foi afastado do poder em abril de 2022, no âmbito de uma moção de censura, e tem vindo a ser condenado em sucessivos processos na justiça. A última sentença foi-lhe atribuída no sábado passado: um tribunal civil considerou que o seu casamento com Bushra Bibi, celebrado em 2018, violava a lei islâmica e condenou ambos a sete anos de prisão.

Dias antes, Khan fora condenado a 10 anos, considerado culpado num caso de divulgação de segredos de Estado. Já em meados de 2023, tinha sido condenado a três anos de prisão por corrupção.

Detido na Prisão Adiala, em Rawalpindi, o líder do partido Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI), fundado em 1996 com o propósito de acabar com a corrupção no pais, votou por via postal.

Uma campanha de repressão visando apoiantes do PTI, nos dias que antecederam o escrutínio, avolumaram preocupações acerca do caráter livre e justo das eleições. Nos boletins de voto, onde os partidos são identificados por símbolos, o taco de críquete que identifica o PTI foi proibido.

Blackout nas comunicações

Durante o período de votação, as comunicações móveis e os serviços de dados estiveram suspensos em todo o país.

blackout teve impacto na dinâmica eleitoral, já que eleitores perderam formas de se coordenarem na ida às urnas, candidatos ficaram sem canais de comunicação com os seus representantes nas assembleias de voto, informações importantes emitidas divulgadas por SMS pela Comissão Eleitoral deixaram de estar acessíveis.

Na página da Comissão Eleitoral, a instituição disponibilizou um endereço de e-mail para os eleitores — privados de acesso à Internet — apresentarem queixas e denunciarem situações irregulares.

Estes constrangimentos levaram o PTI, de Imran Khan, a sugerir um truque: “Paquistaneses, o regime ilegítimo e fascista bloqueou os serviços de telemóvel em todo o Paquistão no dia das eleições. Vocês estão todos convidados a combater este ato covarde, removendo as passwords das vossas contas pessoais de WiFi, para que qualquer pessoa nas proximidades possa ter acesso à Internet neste dia extremamente importante”.

Violência é arma de combate político

Por todo o Paquistão, a Comissão Eleitoral estabeleceu 90.777 assembleias de voto, considerando 29.985 “sensíveis”, no que respeita às condições de segurança, e 16.766 “altamente sensíveis”, noticiou o jornal digital “Pakistan Observer”. Cerca de 44 mil foram consideradas “normais”.

Para garantir um ato eleitoral seguro, o Governo mobilizou para o efeito cerca de 650 mil agentes das forças de segurança. Ainda assim, pelo menos nove pessoas, incluindo duas crianças e seis agentes, foram mortas na sequência de ataques com granadas, explosões de bombas e tiroteios, em várias regiões do país.

Já a véspera da jornada eleitoral foi sangrenta com pelo menos 28 mortos contabilizados em dois ataques à bomba junto a sedes de candidatura, na província do Balochistão. Estes atentados foram reivindicados pelo autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh).

Duas das quatro fronteiras encerradas

Outra medida temporária, à semelhança da suspensão das comunicações, foi o encerramento das fronteiras com o Irão e o Afeganistão. O Paquistão tem fronteira também com a Índia e a China.

O Ministério do Interior justificou as restrições adotadas no dia das eleições dizendo: “Como resultado dos recentes incidentes de terrorismo no país, nos quais vidas preciosas foram perdidas, as medidas de segurança são essenciais para a manutenção da lei e da ordem e para lidar com possíveis ameaças”.

As fronteiras foram encerradas à circulação automóvel e também pedestre. Em comunicado, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros anunciou que a normalidade nas fronteiras será retomada na sexta-feira.

Votar ainda está vedado a muitas mulheres

Entre os mais de 128 milhões de eleitores, 59 milhões são mulheres, quase metade portanto. No entanto, no universo de 5121 candidatos aos 265 assentos na Assembleia Nacional, há apenas 312 do sexo feminino. Para além dos 4807 homens, há ainda dois candidatos transgénero.

No país que se notabilizou por ter eleito, pela primeira vez em todo o mundo, a primeira mulher muçulmana para a sua liderança — a primeira-ministra Benazir Bhutto, em 1988 —, as paquistanesas continuam a esbarrar com conservadorismo social e costumes tribais.

Reportagens como esta da agência France Presse, realizada em Dhurnal, na província do Punjab, revelam que, na hora de votar, muitas mulheres são impedidas de o fazer pelos homens da família, sejam o marido, o pai, um irmão ou um filho.

“A mulher não tem autonomia para tomar decisões de forma independente”, diz uma viúva de 60 anos, mãe de sete raparigas, seis delas com formação universitária. “Falta aos homens a coragem para garantir às mulheres os seus direitos.”

Dinastia política continua a fazer escola

Um dos principais partidos a ir a votos é o Partido Popular do Paquistão (PPP), fundado em 1967 por Zulfikar Ali Bhutto, que viria a ser primeiro-ministro e Presidente do Paquistão e seria condenado à morte por enforcamento na sequência de um golpe militar.

Zulfikar era o pai de Benazir Bhutto, que foi primeira-ministra entre 1988 e 1990 e ainda entre 1993 e 1996. Benazir foi assassinada a 27 de dezembro de 2007, num ataque suicida realizado durante um comício eleitoral em Rawalpindi. À semelhança do pai, também Benazir liderou o PPP.

Atualmente, quem dirige esse partido político é Bilawal Bhutto-Zardawi, filho de Benazir e neto de Zulfikar. O seu pai, Asif Ali Zardari, foi também Presidente do Paquistão, entre 2008 e 2013.

Nascido em 1988, Bilawal desenvolveu uma campanha com ênfase nas alterações climáticas e na igualdade de género na economia. Apesar de ter uma irmã mais nova — Aseefa Bhutto-Zardari, que também já debutou na política —, é ele o descendente desta importante dinastia política paquistanesa, muito atingida pela violência política.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Mais de um quarto da população mundial vai a votos em oito países asiáticos: em quase todos, a democracia derrapa

Num aparente sinal de vitalidade democrática, pelo menos 64 países realizam eleições nacionais no decurso de 2024. Na Ásia, o continente com a maior concentração de dinastias políticas e onde vive 60% da população mundial, há razões de preocupação. Nalguns países, o exercício do direito ao voto pode resultar na consagração de poderes autocráticos. Foi assim, esta semana, no Bangladesh

Este será um ano de importantes definições políticas em todo o mundo. Pelo menos 64 países realizam eleições legislativas ou presidenciais, entre os quais sete dos dez países mais populosos do mundo: Bangladesh, Paquistão, Indonésia, Rússia, Índia, México e Estados Unidos, por ordem cronológica. Portugal terá a sua quota de atenção com legislativas a 10 de março.

Esta ampla jornada eleitoral terá um impacto particular no continente asiático, onde vive cerca de 60% da população mundial e os sistemas de governo são muito marcados por dinastias políticas.

Do Irão à Indonésia, um total de 13 atos eleitorais permitirão uma avaliação às tendências políticas regionais e, alguns casos serão verdadeiros testes à democracia. Oito casos merecem especial atenção.

174 milhões de habitantes

Este país da Ásia do Sul foi a votos no domingo passado 7 de janeiro, com um vencedor anunciado à partida. Aos 74 anos, Sheikh Hasina — que preside à Liga Awami (partido de centro-esquerda) e está no poder, de forma ininterrupta, desde 2009 — foi reeleita para um quarto mandato consecutivo como primeira-ministra do Bangladesh. (Exerceu um primeiro mandato entre 1996 e 2001.)

A previsibilidade do resultado, a detenção de centenas de opositores nos meses que antecederam as eleições e o boicote decretado pelo Partido Nacionalista do Bangladesh (centro-direita), o outro partido dominante no país, afastaram eleitores das urnas. A taxa de afluência ficou-se pelos 40% — nas últimas eleições, em 2018, tinha sido de 80,2%. A primeira-ministra desvalorizou o boicote e disse:

“Cada partido político tem o direito de tomar decisões, a ausência de um partido nas eleições não significa que a democracia esteja ausente”

Sheikh Hasina é filha de Sheikh Mujibur Rahman, o homem que declarou a independência do país, em 1971. Pioneira nessa luta, a Liga Awami conquistou agora 222 dos 300 lugares no Parlamento.

No ranking “Varieties of Democracy” — que agrupa os países em “democracias liberais”, “democracias eleitorais” (como Portugal), “autocracias eleitorais” e “autocracias fechadas” —, o Bangladesh surge no terceiro grupo.

“Estamos perante um caso que resvalou claramente para a autocracia, com a preocupação adicional de, neste país, assistirmos a uma crescente violência”, diz ao Expresso Luís Tomé, professor na Universidade Autónoma de Lisboa.

“Quando os mecanismos institucionais — que, neste caso, deveriam ser democráticos, mas são-no apenas de fachada — não funcionam, o risco é o aumento da violência. A oposição e muitos cidadãos entendem que a única alternativa de demover o poder instituído é por um golpe.”

Adeus, multipartidarismo!

No hemisfério político ocidental do planeta, há receios cada vez mais vocais de que, aos 53 anos de vida, o Bangladesh esteja a caminho de se tornar um Estado de partido único.

“Os Estados Unidos partilham a opinião de outros observadores de que estas eleições não foram livres ou justas e lamentamos que nem todos os partidos tenham participado”, reagiu Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado norte-americano.

As dúvidas são partilhadas por outros países ocidentais, mas não por Rússia e China. Esta quarta-feira, os embaixadores destes dois países marcaram presença numa cerimónia de felicitações à primeira-ministra, na sua residência oficial, em Daca.

24 milhões de habitantes

As eleições presidenciais e legislativas na República da China (também conhecida como Taiwan ou Formosa), a 13 de janeiro, serão mais uma oportunidade de clarificação política relativamente ao sentimento prevalecente na ilha — de aproximação ou de afastamento — relativamente à República Popular da China.

Esta divisão dura desde o fim da guerra civil, em 1949, quando os nacionalistas (derrotados) se refugiaram naquele território insular, que se governa de forma autónoma, a cerca de 160 quilómetros da costa chinesa.

“A concretização da reunificação completa com a pátria é um curso inevitável de desenvolvimento, é justo e é o que o povo deseja. A pátria deve e será reunificada”

Xi Jinping
Presidente da República Popular da China, a 26 de dezembro, dia do 130.º aniversário do nascimento de Mao Tsé-Tung, o fundador do país

A integração de Taiwan na China Continental por via eleitoral “é o sonho de Xi Jinping e dos chineses de China Continental, que preferem a reunificação pacífica”, continua o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

“A partir do momento em que Taiwan avançou para uma plena democracia, nos anos 1990, Pequim teve sempre a expectativa de poder incluir Taiwan na mãe pátria, na lógica de ‘um país, dois sistemas’. E sempre interferiu, direta ou indiretamente, nos processos eleitorais em Taiwan, para que os candidatos que fossem mais abertos a essa possibilidade saíssem vencedores”, diz.

O precedente Hong Kong

“Mas sobretudo a partir da imposição da Lei de Segurança Nacional em Hong Kong, em 2019, a esmagadora maioria da população de Taiwan, e não apenas o tradicional partido independentista [Partido Democrático Progressista (DPP, na sigla em inglês)], deixou de acreditar na possibilidade de Pequim vir a respeitar as particularidades democráticas do sistema de Taiwan no caso de uma unificação.”

Em setembro passado, a China desvendou um plano de 21 medidas destinadas a potenciar o “desenvolvimento integrado” de Taiwan e de Fujian, a província costeira chinesa mais próxima à “província renegada”, como Pequim rotula Taiwan. O plano visa “fazer de Fujian o destino de primeira escolha de residentes e empresas de Taiwan para buscarem desenvolvimento no continente”.

Mas paralelamente, a China não pára de mostrar as garras a Taiwan. “Pequim tem muita dificuldade em gerir a lógica do bastão e da cenoura, como se vê à medida que se aproximam as eleições em Taiwan. Ao mesmo tempo que oferece algo de positivo para que os taiwaneses vejam aquilo que poderão ganhar com a reunificação da China, mantém uma enorme pressão militar, com ameaças, exercícios e declarações no sentido de que, no fundo, os taiwaneses vão ter que decidir entre a paz e a guerra”, continua Luís Tomé.

De uma solução acordada à reunificação pela força, “o relógio está a contar”, acrescenta. “O Presidente Xi Jinping disse que a questão de Taiwan vai ser resolvida no seu tempo, o que coloca uma enorme pressão no calendário.” Em 2027, será o centenário da criação do Exército de Libertação Popular, uma efeméride que pode ser aproveitada por Pequim para concretizar pela força o sonho há muito adiado.

243 milhões de habitantes

De crise em crise, o Paquistão tem eleições para a Assembleia Nacional marcadas para 8 de fevereiro, embora o Senado já tenha votado o seu adiamento. A decisão, não vinculativa, foi justificada com as “condições de segurança prevalecentes” no país.

A mais recente vaga de instabilidade decorre do afastamento do poder de Imran Khan, um antigo jogador de críquete que se tornou o político mais popular do país. Destituído do cargo de primeiro-ministro após uma moção de confiança, em abril de 2022, está atualmente preso, condenado por corrupção.

“O grande receio é que o Paquistão descambe numa guerra civil porque esta não será uma disputa política convencional em contexto democrático”, analisa o especialista em Relações Internacionais.

Trocar os EUA pela China

“Nos últimos tempos, tem acontecido de tudo um pouco ao país. Imran Khan, que era um indivíduo prestigiado e um pouco fora do sistema político, estava a fazer algumas reformas bem sucedidas. O problema é que começou a querer jogar a alta política internacional. Um dos seus maiores erros foi colocar o Paquistão demasiado na alçada da China e afastá-lo do outro aliado tradicional, os Estados Unidos. Desde os anos 1950, o Paquistão tem a particularidade de ter como aliados, em simultâneo, a China e os EUA.”

Imran Khan aproximou o Paquistão também da Rússia. Na véspera da invasão russa da Ucrânia, a 23 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin recebeu o chefe do Governo paquistanês no Kremlin, em Moscovo. “Essa foi uma das razões pelas quais depois foi feito o voto de desconfiança” a Khan.

Paralelamente à instabilidade política, o Paquistão enfrenta uma das suas piores crises económicas, resultante de opções políticas erradas, condições globais adversas, a pandemia de covid-19 e as inundações catastróficas de 2022 que submergiram um terço do país. “O Paquistão é uma soma de múltiplas crises”, diz Luís Tomé.

Este caos generalizado, combinado com tentativas externas de influência, a presença no território de grupos radicais terroristas com ligações a grupos como a Al-Qaeda, o Daesh e os talibãs, confluem para “uma situação delicada que pode degenerar numa guerra civil. E a preocupação maior resulta não só de ser um país com quase 250 milhões de habitantes, mas porque é um país com armas nucleares, com disputas com a Índia. O Paquistão está num momento perigoso e as eleições podem não facilitar”, alerta o académico.

279 milhões de habitantes

Com o Presidente Joko Widodo impedido de se recandidatar, dado já ter exercido dois mandatos, as eleições presidenciais indonésias de 14 de fevereiro estão transformadas num verdadeiro ‘negócio de família’.

Um dos três candidatos é o atual ministro da Defesa que escolheu para seu vice-presidente Gibran Raka, o filho mais velho do atual chefe de Estado. Raka tem 36 anos, quando a idade legal para concorrer ao cargo era de 40. A lei foi alterada à medida pela mão do presidente do Supremo Tribunal, que é cunhado do Presidente e tio de Raka.

“Quando Jokowi [como também é conhecido o atual Presidente] foi eleito em 2014, era um outsider político. Era um empresário da área do mobiliário que, aparentemente, rompia com a lógica das dinastias políticas, muito consolidada no Sudeste Asiático. Ele próprio escreveu, na sua autobiografia: ‘Tornar-me Presidente não significa canalizar o poder para os meus filhos’. Agora tem o filho a concorrer e ainda por cima com o ministro da Defesa que é, ele próprio, genro do antigo ditador Suharto”, alerta Luís Tomé.

O mal menor

A importância do exemplo indonésio transcende o próprio país. “Neste momento, a Indonésia é o medidor daquilo que acontece na região, e não só. Por um lado, há quem defenda que esta lógica das dinastias políticas é uma forma de, mesmo em democracia, sustentar algum equilíbrio. Ou seja, é preferível que as democracias funcionem em torno de algumas dinastias, porque mantêm a estabilidade do sistema político democrático. Outros discordam e defendem que isto é uma forma de certas famílias manterem privilégios que o resto da população não tem”, com consequências sociais de risco.

“Isto pode desiludir a população e levá-la a entender que a democracia não é um processo que permita a ascensão social, económica e política. E se o povo considerar que a democracia não serve, vai procurar alternativas. Isto acontece no Sudeste Asiático, que é uma das regiões onde mais se sente a pressão da China, que tenta dar ao mundo um modelo alternativo à democracia liberal — um modelo de regime autocrático, com desenvolvimento económico.”

89 milhões de habitantes

A 1 de março, os iranianos escolherão, simultaneamente, os seus representantes em dois órgãos: o Parlamento (Majlis) e a Assembleia de Peritos, esta última responsável pela nomeação do Líder Supremo.

“As eleições no Irão, em regra, têm uma faceta de grande liberdade. Os eleitores podem escolher os candidatos e não há propriamente manipulação de resultados. O condicionamento vem do papel do ayatollah [o Líder Supremo]. Na lógica xiita, aquilo que ele diz não é contestável.”, explica o investigador do IPRI.

“O condicionamento vem dos candidatos que podem constar no boletim. O regime seleciona os candidatos que o povo pode escolher e afasta muitos potenciais democratas que querem acabar com a Revolução Islâmica e que está fora de questão.”

No Irão, os partidos políticos não são muito relevantes. A dinâmica política gira em torno de dicotomias que se manifestam mais em contextos de tensão: conservadores versus reformistas, ortodoxos versus moderados, teóricos versus pragmáticos.

Na presente conjuntura, apesar das cíclicas vagas de protestos populares antigovernamentais, a tensão internacional permanente em que o Irão se encontra envolto — alvo de sanções, aliado da Rússia na guerra da Ucrânia e instigador do “eixo de resistência” no Médio Oriente (apoiando grupos armados como o palestiniano Hamas e o libanês Hezbollah) — tende a favorecer uma das fações.

“No contexto atual, os ortodoxos, que dominam neste momento a cena política iraniana, têm condições para se manter. Embora, economicamente, tenham sofrido quando os Estados Unidos aplicaram sanções, a apoiar o Irão ao nível económico têm estado a China, que se tornou o seu maior parceiro, e a Rússia”, vaticina Luís Tomé, especialista na região da Ásia-Pacífico.

52 milhões de habitantes

Esta democracia consolidada — apesar dos graves problemas de corrupção ao mais alto nível da política, com três dos últimos Presidentes condenados a penas de prisão — escolhe a próxima Assembleia Nacional a 10 de abril.

Paralelamente às questões económicas e sociais, a ferida aberta na península da Coreia desde 1953 — ano em que terminou a guerra entre as duas Coreias, que carece ainda da assinatura de um tratado de paz — é tema obrigatório em quaisquer eleições legislativas ou presidenciais. Que estratégia seguir em relação ao Norte?

Por um lado, há “uma linha tendente à unificação, mais apaziguadora com a Coreia do Norte, para minimizar tensões, introduzir laços, a pensar nas famílias de um lado e do outro do paralelo 38, e até a nível empresarial, para evitar o colapso no Norte e tentar, com tempo, levar as coisas a bom porto”, diz o professor da Universidade Autónoma.

Por outro, há a abordagem na linha do atual Presidente Yoon Suk-yeol “que entende que é preciso reagir de igual forma e, portanto, se a Coreia do Norte ameaça, a Coreia do Sul não se fica e ameaça de seguida”.

26 milhões de habitantes

No mesmo dia em que os sul-coreanos vão a votos (10 de abril), também os coreanos do norte farão escolhas. Em causa está a eleição da Assembleia Popular Suprema da República Popular Democrática da Coreia (vulgarmente chamada Coreia do Norte), órgão que exerce o poder legislativo.

Se a Ásia é o continente com a maior concentração de dinastias políticas, a lógica de sucessão familiar é levada ao extremo na Coreia do Norte. O país é governado desde a sua fundação pela mesma família e, apesar de ter apenas 40 anos — completados esta semana —, Kim Jong-un vai dando indicações de quem é hipótese para lhe suceder.

Boatos e especulações

Segundo as últimas especulações — ou não fosse a Coreia do Norte o país mais fechado do mundo —, Kim poderá passar o poder à sua filha, Kim Ju-ae, que terá, neste momento, 11 anos. “Mas à frente desta solução está a irmã [Kim Yo-jong]”, recorda Luís Tomé.

“Agora fala-se na filha, porque não sendo habitual, Kim Jong-un tem-na mostrado publicamente, e porque o poder tem passado de pai para filho. Numa lógica dinástica, quase monárquica, já se discute quem lhe sucederá. E ainda por cima, correm boatos de que Kim Jong-un, há dois anos, teve sérios problemas de saúde. Aquela que, aparentemente, é a sua preferida é a irmã, que é, muitas vezes, o rosto da sua política externa. O que se assume é que a irmã será a sucessora e que, a longo prazo, será a filha. Agora, por alguma razão, ele quer mostrá-la.”

1435 milhões de habitantes

A Índia é, desde o ano passado, o país mais populoso do mundo. Sempre que há eleições universais neste país organizado socialmente em função de um sistema de castas, o escrutínio decorre durante semanas. Este ano, será assim entre abril e maio próximos, quando os indianos forem eleger os 543 lugares no Lok Sabha, a câmara baixa do Parlamento.

O Partido Bharatiya Janata (conservador, nacionalista hindu), do primeiro-ministro Narendra Modi, é o favorito à vitória, na senda da grande popularidade do seu líder, que, aos 73 anos, busca um terceiro mandato consecutivo de cinco anos no poder.

Todos contra Modi

Numa espécie de “todos contra Modi”, uma coligação de quase 30 formações políticas, entre as quais o histórico Congresso Nacional Indiano, da dinastia Gandhi, uniram-se na Aliança Inclusiva para o Desenvolvimento Nacional Indiano.

Na língua inglesa, a sigla desta formação é INDIA, “julgo que para dar um significado nacionalista indiano e não hindu. Não sei se será suficiente para impedir nova vitória dos nacionalistas hindus e de Modi”, duvida Luís Tomé.

No Ocidente, “agrada-nos considerar a democracia indiana enquanto tal, porque é o país mais populoso do mundo e gostamos de ter um contrapeso à China. Tanto os Estados Unidos como a União Europeia têm procurado melhorar relações estratégicas com a Índia. Mas, na verdade, sob qualquer padrão, a democracia indiana tem deixado muito a desejar”, conclui Luís Tomé.

“Desde logo, em termos dos direitos das crianças, direitos laborais, direitos das mulheres e direitos das minorias, incluindo a minoria muçulmana de mais de 200 milhões de pessoas. A pretexto do problema do terrorismo e das tensões com o Paquistão, há regiões da Índia onde a Internet é bloqueada durante seis meses. Num regime democrático, isto não é muito abonatório”, critica.

“Enquanto nacionalista hindu, Modi tem progressivamente marginalizado os muçulmanos. Nenhuma democracia permitiria o que ele fez ao autorizar que imigrantes possam adquirir cidadania indiana, mas não imigrantes muçulmanos. É uma desigualdade flagrante. Modi está a criar uma situação escaldante.”

(IMAGEM FACEBOOK ASIA ELECTS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui