Arquivo de etiquetas: Eleições presidenciais

Quando a realidade eleitoral ultrapassa a ficção

Os ucranianos votam domingo nas eleições presidenciais. O favorito é um ator que já fez de Presidente

Volodymyr Zelensky venceu as eleições presidenciais na Ucrânia à segunda volta, com 73% dos votos WIKIMEDIA COMMONS

Qualquer semelhança entre a ficção e a realidade não será pura coincidência. Será apenas a vontade de muitos ucranianos que querem voltar uma página da história do seu país da qual se sentem excluídos. A Ucrânia vota, domingo, na segunda volta das eleições presidenciais e o candidato que lidera — destacado — as sondagens é um humorista de 41 anos chamado Volodymyr Zelensky.

Há quatro anos protagonizou uma sátira política na televisão sobre a improvável caminhada de um modesto professor que, com um discurso anticorrupção, chega a Presidente do país. A série chamava-se “Servo do Povo”, exatamente o nome do partido político criado há pouco mais de um ano que tem transportado o ator na direção da mais alta cadeira do poder em Kiev.

“A razão para a vitória de Volodymyr Zelensky reside principalmente no desejo da sociedade ucraniana de mudanças drásticas ao nível das elites governantes”, explica ao Expresso Igor Tyshkevitch, do Instituto Ucraniano para o Futuro, de Kiev. “Essas exigências não foram satisfeitas após a Revolução da Dignidade”, as manifestações centradas na Praça Maidan, no centro de Kiev, em 2013 e 2014. Maidan pediu que o sistema político fosse reformado e que as rédeas do país fossem colocadas nas mãos de sangue novo. Em vão.

Quase 40 candidatos

“Para entendermos o que se passa há que olhar para a história ucraniana. Entre 1997 e 1999, o então Presidente Leonid Kuchma trocou a anterior liderança ‘vermelha’ [soviética] por uma nova elite política baseada em oligarcas”, continua Igor Tyshkevitch. Vinte anos passados, “nestas eleições, quase todos os candidatos à presidência [na primeira volta participaram 39 candidatos!] são pessoas que entraram na política nesse período.”

É o caso de Petro Poroshenko, de 53 anos, o adversário de Zelensky na segunda volta de domingo. O atual Presidente — um dos homens mais ricos da Ucrânia — debutou na política em 1998, ano em que foi eleito deputado ao Parlamento. Na presidência desde 2014 (eleito à primeira volta com quase 55%), após as manifestações da Praça Maidan terem forçado o afastamento do chefe de Estado pró-russo Viktor Yanukovytch. Poroshenko vê agora a sua reeleição altamente comprometida por um outsider.

Uma sondagem divulgada ontem atribui a Zelensky 57,9% das intenções de voto e a Poroshenko 21,7%. Na primeira volta (31 de março), tiveram 30,2% e 15,9%, respetivamente.

“A sociologia de 2018 mostra que mais de metade da sociedade ucraniana quer que o país seja liderado por pessoas absolutamente novas. Isto levou quase todos os candidatos presidenciais a tentarem ganhar votos junto da parte minoritária da sociedade que prefere que o país seja liderado por alguém experiente”, diz Igor Tyshkevitch. “Ou seja, Zelensky tornou-se o único a poder ganhar facilmente 40 a 45%. Mesmo que ele não fizesse nada, passaria à segunda volta das eleições.”

À parte a imagem de um candidato novo e diferente, Zelensky não é alguém que cative pelo seu pensamento político (que a maioria dos ucranianos desconhece). Numa lógica antissistema, o ator ignorou a forma tradicional de fazer campanha, não fazendo comícios, dando poucas entrevistas e privilegiando a comunicação através das redes sociais.

Esta semana, faltou a um debate com Poroshenko marcado para o Estádio Olímpico de Kiev, deixando o rival sozinho no pódio perante milhares de pessoas. Ao não se desgastar na exposição pública, alimenta a imagem de um ‘Presidente do povo’ que, à semelhança da sua personagem televisiva, vai para o trabalho de bicicleta.

Tensão chega à Eurovisão

Desde a desintegração da União Soviética (1991), estas serão das eleições na Ucrânia onde a Rússia tem menor ascendente sobre algum dos candidatos. Isto apesar de a situação no terreno: em 2014, Moscovo anexou a península da Crimeia e não poupou no apoio aos separatistas do leste da Ucrânia.

“Para a Rússia, não interessa quem vai ser o novo Presidente da Ucrânia”, conclui Tyshkevitch. “Os russos trabalham para enfraquecer a instituição da presidência aos olhos do povo. Querem que a Ucrânia tenha um Presidente fraco e um Parlamento menos controlável. De tempos em tempos, apoiam um lado e o outro lado, o que cria incerteza no país.”

Ucrânia e Rússia vivem uma tensão transversal. Há dois meses, sem grandes justificações, Kiev retirou-se da Eurovisão, marcada para maio em Israel. Não gostou que a cantora escolhida para representar o país, de nome artístico MARUV, se recusasse a cancelar os concertos que já tinha agendados… na Rússia.

PERFIS

PETRO POROSHENKO
O atual Presidente da Ucrânia é um dos homens mais ricos do país. Nascido em 1965, em Bolgrad (sudoeste), licenciou-se em Economia. Logo se lançou no mundo dos negócios começando a vender grãos de cacau à indústria soviética. Hoje, o império empresarial do “rei do chocolate” inclui um estaleiro naval e um canal de televisão. Em 1998, entrou na política, ao ser eleito deputado. Tem quatro filhos.

VOLODYMYR ZELENSKY
Estudou Direito, mas deixou-se seduzir pela representação. Nascido em 1978, a carreira política deste comediante confunde-se com o seu percurso na ficção. Em 2015, desempenhou o papel de Presidente da Ucrânia na série “Servo do Povo”. É membro do partido Servo do Povo, fundado há um ano. Apoiou os protestos pró-Europa da Praça Maidan, em 2013/14. Tem dois filhos e é filho de judeus.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui

Já há 18 candidatos às presidenciais de 2020. E Joe Biden pode ser o 19.º

A cerca de 20 meses das próximas presidenciais, já há candidatos a percorrer os Estados Unidos de microfone na mão a tentar convencer eleitores. O ódio a Donald Trump espicaçou em especial os democratas, que já têm em marcha 17 candidaturas

Nos Estados Unidos, a corrida às eleições presidenciais de 2020 conta já com 18 atletas. Donald Trump foi quem primeiro se apresentou em pista, ao formalizar essa pretensão exatamente no mesmo dia em que tomou posse como 45º Presidente dos Estados Unidos, 20 de janeiro de 2017. A confiança de Trump na reeleição explodiu este fim de semana, conhecidas as conclusões do procurador especial Robert Mueller que apontam para a inexistência de provas claras de conluio entre a campanha de Trump e a Rússia, nas eleições de 2016.

No seu sítio na Internet, Trump não desperdiçou a oportunidade para tirar benefícios desta vitória. Mal se abre a página do seu sítio na Internet, salta um “pop-up” que diz: “Não houve conluio & exoneração completa. Os democratas ganharam milhões com uma mentira. Agora vamos responder! Façam a vossa doação na próxima hora e vamos quadruplicar [as contribuições dos democratas]! Contribuam já.”

“Estão a aproveitar a onda ‘No Collusion’ [Não houve conluio] para mobilizar os republicanos em torno de Trump”, comenta ao Expresso o analista de política americana Germano Almeida. “‘No Collusion’ passa a ser uma espécie de slogan da recandidatura” — e possivelmente irá ser repetido por Trump até à exaustão no comício desta quinta-feira na cidade de Grand Rapids, Michigan.

Na corrida pela reeleição, Trump tem já 17 concorrentes, 16 deles afetos ao Partido Democrata. (Nas fotogalerias abaixo, os 18 surgem pela ordem em que anunciaram candidatura.) Germano Almeida destaca três nomes. À cabeça, o veterano Bernie Sanders, o senador do Vermont que em 2016 quase derrotou Hillary Clinton nas primárias democratas. “Sanders tem muita notoriedade e uma base mobilizada. Mas é demasiado à esquerda e fará 80 anos a meio do mandato.”

No pólo oposto da veteranice, há sangue novo com um poder mobilizador crescente. Por um lado, Beto O’Rourke, que nas últimas eleições para o Congresso, a 6 de novembro de 2018, quase derrotou o republicano Ted Cruz no Texas, um dos estados mais conservadores, na disputa para o Senado. “É talvez o candidato mais carismático e com maior potencial de crescimento. Sendo do Sul, pode ser a melhor hipótese para fazer a ponte entre os radicais e a ala moderada e pragmática.”

Por outro lado, uma das seis mulheres que estão na corrida à Casa Branca. “Kamala Harris, senadora da Califórnia, arrancou muito forte a agarrar temas caros à base democrata. É muito bem preparada e consegue atrair a atenção mediática. Tem história pessoal e familiar poderosa e consegue aliar uma agenda de esquerda com um discurso credível, sem cair no radicalismo. Será talvez a favorita não assumida de Barack Obama.”

No campo republicano, Donald Trump tem, para já, apenas um concorrente: Bill Weld, um advogado que foi governador do Massachusetts e candidato à vice-presidência nas eleições de 2016, ao lado de Gary Johnson, pelo Partido Libertário.

A batalha mais acesa trava-se, pois, entre democratas. E a mais de ano e meio das eleições — agendadas para 3 de novembro de 2020 —, poderão ainda surgir mais candidatos. “Está tudo à espera de Joe Biden”, diz Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA” (Prime Books, 2018).

Vice-presidente de Barack Obama nos dois mandatos (2009-2017) e senador pelo Delaware durante mais de 30 anos (1973-2009), Biden é “um dos poucos pesos-pesados que restam na alta política americana. Como tem níveis de notoriedade muitíssimo superiores a todos os outros, surge neste momento muito à frente nas primeiras sondagens.”

Esta quinta-feira, Biden surge a liderar destacado uma sondagem da Universidade Quinnipiac (Connecticut) sobre a nomeação democrata, com 29% das preferências de voto. É seguido por Bernie Sanders (19%), Beto O’Rourke (12%) e Kamala Harris (8%).

Na última sondagem nacional, realizada pela conservadora Fox News e divulgada no domingo — e que ainda não contempla o efeito “No Collusion” —, Biden bate Trump por uns claros 47% contra 40%. “Neste fase do processo, em que os candidatos ainda não tiveram oportunidade de se dar a conhecer verdadeiramente, é normal que sobressaia quem já é conhecido há mais tempo. E, nesse plano, Joe Biden e Bernie Sanders têm grande vantagem sobre todos os outros.” Na sondagem da Fox, Sanders também vence Trump, por 44% contra 41%.

Perante a confiança intacta em Biden, seria de todo impossível uma repetição da dupla Obama-Biden, desta vez com papeis invertidos? “Legalmente sim, realisticamente não”, explica o comentador. “Nem Barack Obama aceitaria a descida de posto nem isso seria bom para Joe Biden. Seria a condenação do nomeado [Biden] a um rótulo de ‘marioneta’ do verdadeiro candidato desejado [Obama].”

Apesar dos bons números, uma eventual candidatura de Joe Biden não está isenta de riscos. Na semana passada, a televisão norte-americana CNBC dava conta da hesitação de alguns doadores democratas, pelo menos numa primeira fase. A coberto do anonimato, um financeiro multimilionário afirmava: “Penso que com Biden há um sentimento de ‘Eu gosto dele, é mesmo um bom tipo’, mas seria candidato numa altura em que um branco de 76 anos pode não ser aquilo que os eleitores desejam.”

“Os democratas terão de refletir se querem correr o risco de escolher alguém que terá 78 anos à data da tomada de posse para o primeiro mandato — e que percorre os corredores do poder em Washington há quase tantos anos quantos os que Beto O’Rourke tem de vida”, comenta Germano Almeida. “A escolha dos democratas será muito geracional.”

Na segunda-feira, Jennifer O’Malley Dillon surgiu nas notícias como a mais recente contratação de Beto O’Rourke para a sua equipa de estrategas. Com trabalho feito em cinco campanhas presidenciais, foi vice-diretora da primeira campanha de Obama, em 2012. Desta vez, diz alinhar com o candidato do Texas porque representa “uma nova geração de líderes de que precisamos”.

Sendo importante, a idade não explica tudo. Bernie Sanders é mais velho do que Biden e, nas 24 horas seguintes a anunciar que ia a votos, conseguiu angariar 5,9 milhões de dólares (5,2 milhões de euros) — neste capítulo, o campeão foi Beto O’Rourke que amealhou 6,1 milhões de dólares (5,4 milhões de euros).

“Se um dos grandes problemas de Hillary em 2016 foi ser ‘demasiado conotada’ com o poder estabelecido e ‘mais do mesmo’ do que se tinha passado em Washington, será mesmo inteligente escolher, para travar uma repetição do triunfo de Trump, alguém que faz parte do ‘establishment’ há mais de 40 anos?”, questiona Germano Almeida.

Perante a pulverização democrata, Kamala Harris e Beto O’Rourke são os únicos que conseguem acompanhar os veteranos Biden e Sanders com sondagens nacionais acima dos dois dígitos. “Dão mostras de terem enorme margem de crescimento”, diz o analista. “Kamala mais à esquerda de Beto. Beto proveniente do Sul e mais forte em zonas da América rural, com melhor desempenho em ‘território Trump’ e Kamala mais urbana e ligada a estados onde os democratas tradicionalmente dominam. Kamala mais forte entre os negros, Beto mais forte entre brancos e homens (dois segmentos em que Hillary falhou e em que os democratas terão de fazer melhor em 2020). Ambos fortes entre os jovens, as mulheres e os latinos.” Fortes também num campo que, geralmente, é determinante para o desfecho de uma eleição presidencial nos Estados Unidos: “o fator novidade”.

(IMAGEM PIXABAY)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 28 de março de 2019. Pode ser consultado aqui

O calcanhar de Aquiles do Presidente

Economia e Trump complicam ‘o passeio’ de Hassan Rohani nas eleições presidenciais da próxima semana

SOFIA MIGUEL ROSA

De quatro em quatro anos, a luta pelo poder no Irão entre fações conservadoras e reformistas ganha visibilidade internacional. Foi o que aconteceu em 2009 quando a reeleição do conservador Mahmoud Ahmadinejad foi contestada nas ruas pelo Movimento Verde, criando a ilusão de uma “primavera” iraniana. Foi assim também em 2013 quando a eleição do clérigo moderado Hassan Rohani criou expectativas quanto a uma real abertura da República Islâmica ao Ocidente.

Na próxima sexta-feira, 55 milhões de iranianos estão convocados para escolher o Presidente, pela 12ª vez desde a Revolução Islâmica de 1979. “O padrão aponta para que [o Presidente em funções] Hassan Rohani seja o provável vencedor. Mas, nos últimos meses, analistas têm previsto a sua derrota”, alerta ao Expresso Ghoncheh Tazmini, investigadora da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres.

“A presidência de Rohani foi diretamente relacionada com o sentimento de crise no Irão em 2013. A economia estava mal, esmagada por pesadas sanções e, com o dossiê nuclear por resolver, o risco de um ataque dos EUA estava sempre presente. Rohani foi escolhido para resolver o problema. O Líder Supremo apoiou os seus esforços de forma relutante, advertindo para a desconfiança da América. Rohani desempenhou a tarefa com sucesso, mas as expectativas quanto a benefícios económicos decorrentes do acordo nuclear ainda não se concretizaram.”

Ao aceitar colocar o programa nuclear iraniano sob vigilância internacional — através do acordo assinado a 14 de julho de 2015 com o P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha), o Irão recebeu garantias de que as sanções seriam aliviadas.

Polémicas e milhões

Meio ano depois de assinar o acordo, Hassan Rohani confirmava essa expectativa ao pisar solo europeu naquela que foi a primeira visita de um chefe de Estado iraniano em 16 anos. As deslocações a Itália e França foram ensombradas pela polémica — em Roma porque foram tapadas estátuas de nus num museu que visitou e em Paris por não se ter realizado o jantar de gala onde seria servido vinho —, mas de lá Rohani saiu com centenas de contratos assinados que prometiam dinamizar a economia nacional.

“Após tomar posse, Rohani nomeou o Governo mais tecnocrata que a República Islâmica alguma vez teve. Atacou o problema da inflação com sucesso reduzindo-a para um dígito. No tempo do seu antecessor, tinha chegado aos 40%”, diz a analista iraniana. Já a taxa de desemprego, que mais diretamente afeta a população (80 milhões), foi de 12,5% em 2016.

“As sanções dos EUA ainda em vigor e a incerteza à volta da política da Administração Trump em relação ao Irão levaram muitas empresas europeias a não arriscar fazer negócio com Teerão”, comenta a investigadora. “Igualmente, grandes instituições financeiras continuam a recusar fazer pagamentos no âmbito de contratos que envolvam iranianos.”

Desconfiar do estrangeiro

A 21 de março, na tradicional mensagem de Ano Novo (Nowruz) — que no Irão coincide com a entrada da primavera —, o Líder Supremo recordou que as promessas económicas do Governo estavam por cumprir. Por essa altura, já Donald Trump tinha conotado os iranianos com suspeitos de terrorismo ao incluir o Irão na lista de sete países visados pelo decreto de 27 de janeiro que proibia os nacionais desses países de entrarem nos EUA (depois suspenso pela justiça). Teerão sentiu-o como uma afronta e a retórica radical que olha para o estrangeiro com desconfiança ganhou força.

Nestas eleições, registaram-se como pré-candidatos… 1636 iranianos. Além de Rohani, só mais cinco passaram no Conselho dos Guardiães, que verifica o perfil dos candidatos e a sua conformidade com os preceitos da República Islâmica. Ebrahim Raisi, da confiança do aparelho revolucionário e próximo do Líder Supremo, ayatollah Ali Khamenei, 77 anos, é o adversário mais forte do Presidente.

Um dos nomes chumbados foi o do ex-Presidente conservador Mahmoud Ahmadinejad (2005/13). “Essa exclusão demonstra que o Líder Supremo não quer problemas e deseja que os iranianos vão às urnas” e escolham. “O Líder Supremo quer evitar uma campanha que
exacerbe as divisões políticas”, diz a investigadora da SOAS.

Pilares consensuais

Com 38 anos, a República Islâmica continua num sistema híbrido, combinando elementos democráticos e teocráticos. Em épocas eleitorais, fações políticas rivais confrontam-se mas sem pôr em causa os pilares da revolução. “Enquanto a presidência pode cair para o campo tradicionalista/conservador, ou para o campo moderado/pragmático, ou ainda para o campo reformista, as prioridades estratégicas da República Islâmica permanecem as mesmas”.

Ou seja, presidências moderadas e reformistas concentram-se na sociedade civil e defendem o degelo em relação ao estrangeiro; já as conservadoras centram-se na economia doméstica, nos benefícios sociais e são mais cautelosas em relação a uma aproximação ao
Ocidente. Mas nenhuma põe em causa a soberania do líder.

OS SEIS CANDIDATOS PRESIDENCIAIS E O ACORDO NUCLEAR

“Na história do Islão, há um tratado de paz entre [o xiita] imã Hassan e [o califa omíada] Muawiyah. Apesar do imã Hassan saber que Muawiyah não iria ser leal ao tratado, assinou-o para deixar claro quem iria falhar o compromisso.” A afirmação é do candidato Mostafa Hashemitaba, fazendo um paralelismo entre este episódio histórico e o acordo sobre o nuclear iraniano assinado com seis potências internacionais.

“Porque cumprimos o que acordámos e o outro lado não?”, juntou-se-lhe Mohamed Bagher Qalibaf. “É tempo de o outro lado ser responsabilizado”, acrescentou Mostafa Mir-Salim. Num debate na televisão, o Presidente Rohani defendeu o acordo dizendo que, sem este, em vez de dois milhões de barris de petróleo por dia, o Irão produziria apenas 200 mil.

Os seus cinco adversários realçaram que o acordo não trouxe prosperidade ao país, mas nenhum prometeu rasgá-lo. Várias vezes, Donald Trump falou de “um acordo muito mau”, deixando no ar a hipótese de o renegociar. A “ameaça” de Trump e a falta de benefícios diretos para “o cidadão da rua” levam muitos iranianos a olhar para estas eleições como um referendo ao acordo nuclear.

CANDIDATOS

HASSAN ROHANI
Eleito Presidente em 2013, com 51%, tenta a reeleição aos 68 anos. Foi um dos artífices do acordo sobre o nuclear iraniano. Defensor do diálogo com o Ocidente, é apoiado por moderados e reformistas

EBRAHIM RAISI
Aos 56 anos, é o principal candidato conservador e, diz-se, o favorito do Líder Supremo. Natural de Mashhad, a segunda cidade, lidera a Astan Quds Razavi, instituição de beneficiência tida como um império financeiro

MOHAMMED B. QALIBAF
Preside à Câmara Municipal de Teerão desde 2005. Conservador, liderou a Força Aérea dos Guardas da Revolução entre 1997 e 2000. Adversário de Rohani nas presidenciais de 2013, nasceu em Mashhad há 55 anos

MOSTAFA MIR-SALIM
Ex-ministro da Cultura e da Orientação Islâmica, é um crítico do acordo nuclear e defensor da repressão de dissidentes. Tem 69 anos

ESHAQ JAHANGIRI
É primeiro vice-presidente de Hassan Rohani. Foi ministro das Indústrias e das Minas sob a presidência do reformista Mohammad Khatami e, antes, governador da província de Isfahan. Tem 59 anos

MOSTAFA HASHEMITABA
Aos 70 anos, apresenta-se como um reformista moderado. Nas presidenciais de 2001, foi o menos votado dos dez candidatos

PROCESSO ELEITORAL

1636
cidadãos pré-candidataram-se às eleições presidenciais, 137 dos quais eram mulheres. Nunca a candidatura de uma mulher foi aprovada pelo Conselho dos Guardiães

26
de maio é a data prevista para a segunda volta, na eventualidade de nenhum dos seis candidatos alcançar 50% dos votos mais um. No dia seguinte, está previsto o início do mês sagrado do Ramadão

Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui

“Movimento Verde está desorganizado”

Entrevista a Ghoncheh Tazmini, analista política iraniana

Mapa do Irão, dividido por províncias ORANGE SMILE

Ghoncheh Tazmini vive entre Lisboa, Vancouver, Londres e Teerão. Para a autora de “Khatami’s Iran: the Islamic Republic and the Turbulent Path to Reform” (não publicado em Portugal), não haverá alterações drásticas na política externa, quem quer que seja o novo Presidente.

Que Irão sairá das eleições?
O Irão enfrenta um isolamento internacional sem precedentes e duras sanções que criaram muitas dificuldades económicas e praticamente fizeram colapsar a moeda. Há poucos dias, um pacote de sanções foi levantado apenas para ser substituído por um outro, dois dias depois. O Irão pós-eleições terá de lidar com a imprevisível ‘Política para o Irão’ da comunidade internacional. O desafio do novo Presidente será o crescimento económico, a inflação e o desemprego. Ao nível da política externa, não haverá alterações drásticas. O Irão situa-se numa região instável, à beira de explodir. A sua política externa é guiada por um facto: a nação iraniana, a sua segurança e soberania estão sempre em risco. Esta consideração é consistente, independentemente de quem manda.

Como votam os reformistas?
Quem estuda o Irão sabe que, em matéria de presidenciais, o melhor é não fazer previsões. Os últimos Presidentes, Mohammad Khatami e Mahmoud Ahmadinejad, são exemplos dessa imprevisibilidade. A candidatura do negociador nuclear Saeed Jalili deu a conservadores e principalistas (favoráveis ao statu quo) uma figura em torno de quem se unirem. Em Teerão, há a perceção de que o presumível candidato do Líder Supremo terá o voto de 12 milhões de fiéis seguidores. Mas mesmo que Jalili continue a apresentar-se como o candidato mais próximo do ayatollahAli Khamenei e assegure o voto do eleitorado “neezam” (do regime), não chega. Precisa daqueles junto de quem o populista Ahmadinejad construiu a sua popularidade.

É possível uma contestação pós-eleitoral como em 2009?
Nunca há garantias de um ambiente totalmente livre de manifestações ou protestos — algo que o todo-ansioso Ocidente faz questão de capitalizar no âmbito da sua agenda visando a mudança de regime. A segurança aumentou nos últimos quatro anos, mas a maior securitização advém do medo de que as potências estrangeiras possam fomentar, secretamente, uma sublevação política através da agitação.

“Não sei se algum líder reformista teria estômago para lidar com a realpolitik iraniana como Ahmadinejad fez

Que resta do Movimento Verde de 2009?
Não há uma “movimentação” por trás do Movimento Verde, por isso não o considero um “movimento” social per se. O movimento carece de estrutura, unidade, ideologia coerente, objetivos claramente delineados (um manifesto) e um líder eficaz e carismático. Muitos partidários do Movimento Verde estão dececionados ou desorganizados ou têm exigências e objetivos bastante diferentes, que estão além dos limites sociopolíticos da República Islâmica. Seria muito difícil mobilizá-los atrás de um candidato formidável com vontade e força para agitar as coisas.

Como será recordado Mahmoud Ahmadinejad?
Para muitos no estrangeiro, ele será o Presidente iraniano incendiário, conhecido pelos seus pontos de vista controversos em relação a Israel e pelo seu estilo bombástico. Internamente, rivais e detratores poderão vê-lo como o Presidente que venceu as eleições de 2009 após “roubar votos”. Em sua defesa tem o facto de o Irão não ter sido atacado durante a sua presidência, e de o país não se ter “magoado” neste cenário de duras sanções, isolamento e esforços estrangeiros para desestabilizar o regime. Não sei se algum dos líderes mais reformistas/moderados teria estômago para lidar com a “realpolitik” iraniana da forma que Ahmadinejad fez.

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de junho de 2013. Pode ser consultado aqui