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Paris Saint-Germain vs. Manchester City. O “dérbi do Golfo” que vai muito além do futebol

Paris Saint-Germain e Manchester City disputam, esta quarta-feira, a primeira mão das meias-finais da Liga dos Campeões. Os dois clubes são pontas de lança ao serviço de dois países do Médio Oriente empenhados em projetar poder e influência em todo o mundo: Qatar e Emirados Árabes Unidos. A vitória no relvado terá também uma dimensão geopolítica

Ambos sonham conquistar a Liga dos Campeões e os muitos milhões que têm ao seu dispor aproximam-nos dessa possibilidade. Paris Saint-Germain (PSG) e Manchester City medem forças, esta quarta-feira, na primeira mão das meias-finais da prova milionária.

Mais do que uma disputa desportiva entre dois emblemas que querem chegar ao topo do futebol europeu, os jogos desta quarta-feira, em Paris, e de 4 de maio, em Manchester, têm implícito um braço de ferro entre dois países do Médio Oriente — o Qatar (dono do PSG) e os Emirados Árabes Unidos (proprietário do City) — que rivalizam entre si e que, tendo comprado estes dois emblemas, usam-nos como arma de soft power para projetar poder e influência em todo o mundo.

Será uma partida picante a nível político e a nível popular, já que cada clube é sinónimo de uma monarquia. Como tal, muitos tenderão a olhar para este jogo como uma disputa por procuração, mesmo que não estejam assim tão interessados em futebol”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres e autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017).

1880 É fundado o Manchester City Football Club. Foi comprado pelo Abu Dhabi United Group em 2008. Joga no Etihad Stadium e o patrocinador das camisolas é a Etihad Airways, uma das transportadoras aéreas dos Emirados Árabes Unidos

1970 O Paris Saint-Germain foi criado após fusão entre o Paris Football Club e o Stade Saint-Germain. Foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011. Joga no Parque dos Príncipes e tem entre os seus parceiros premium o Turismo do Qatar e a Qatar Airways

Qatar e Emirados são antigos protetorados britânicos que conservaram o gosto pelo futebol mesmo após declararem independência, em 1971. Passados 50 anos, servem-se desse património afetivo e da sua enorme riqueza — a do Qatar vem do gás natural e a dos Emirados, do petróleo — para se afirmarem, patrocinando clubes e comprando outros.

Desde 2008 que o Man City é detido pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dabi, principal dos sete emirados que compõem o país chamado Emirados Árabes Unidos. O Abu Dhabi United Group, empresa privada que comprou o City, é também dono do Bombaim FC, do Melbourne FC e do Cidade de Nova Iorque FC, entre outros clubes por todo o mundo.

Já o PSG foi comprado em 2011, numa altura em que andava arredado dos títulos, mesmo em França. Foi adquirido pelo próprio emir do Qatar, através do Qatar Sports Investments, fundo soberano que é uma espécie de ponta de lança do país no esforço de afirmação internacional. Ao leme do PSG, o Qatar mostrou cedo ao que vinha: em 2012 contratou Zlatan Ibrahimovic, em 2013 Edinson Cavani e David Beckham e em 2017 Kylian Mbappé e Neymar.

“O PSG é enorme no Qatar, por razões óbvias”, diz David B. Roberts. “Embora o futebol inglês seja dominador, regra geral, com as notáveis exceções dos dois clubes espanhóis [Real Madrid e Barcelona] cada vez menos pessoas admitirão apoiar o Man City no Qatar!”

A estratégia do pequeno emirado — que tem uma população de três milhões e área oito vezes menor do que Portugal — terá o seu ponto alto no próximo ano, quando o Qatar acolher o Mundial de futebol, que terminará uma semana antes do Natal.

Seja ou não um bom jogo, o duelo entre PSG e City terá inevitavelmente uma dimensão geopolítica, dada a rivalidade entre Qatar e Emirados e o facto de apoiarem fações contrárias em várias contendas do Médio Oriente. Cinco exemplos:

  1. BLOQUEIO AO QATAR. Os Emirados foram um dos quatro países que a 5 de junho de 2017 impuseram um bloqueio por terra, mar e ar ao Qatar. Durou 43 meses e terminou a 5 de janeiro passado, em vésperas de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos e defender a necessidade de “recalibrar” a relação com a Arábia Saudita (primeiro país que Donald Trump visitou), outro promotor do bloqueio ao Qatar.
  2. RELAÇÃO COM O IRÃO. Apesar de Qatar e Emirados serem países muçulmanos sunitas, o Qatar tem uma relação de proximidade ao Irão (xiita) como nenhum outro país do Golfo. Para tal, não será alheio o facto de ambos partilharem o maior campo de gás do mundo. Já a relação entre Irão e Emirados tem-se pautado pela tensão, sobretudo em torno da disputa de três ilhas: Abu Musa, Grande Tunb e Pequena Tunb.
  3. INTERVENÇÃO NA LÍBIA. Neste longínquo país do Norte de África, em guerra desde o fim do regime de Muammar Kadhafi (2011), os Emirados apoiam as forças leais ao general rebelde Khalifa Haftar enquanto o Qatar alinha ao lado da Turquia em defesa do Governo de Tripoli, internacionalmente reconhecido. A relação com a Turquia — que tem uma base militar no Qatar — intensificou-se na sequência do bloqueio regional ao país.
  4. NORMALIZAÇÃO COM ISRAEL. Os Emirados foram um dos países árabes que, no ano passado, normalizaram a sua relação diplomática com Israel. Por seu lado, o Qatar é dos principais fornecedores de ajuda financeira ao território palestiniano da Faixa de Gaza (controlado pelo grupo islamita Hamas).
  5. APOIO A ISLAMITAS. Como revela a sua posição em relação à questão palestiniana, o Qatar não tem pejo em apoiar grupos islamitas — como o Hamas e, sobretudo, a Irmandade Muçulmana —, enquanto os Emirados se opõem terminantemente e os reprimem internamente.

PSG e City encontram-se na Champions num momento em que ecoa ainda o fracasso da Superliga Europeia, projeto que mereceu dos dois clubes posições contrárias: o City foi um dos fundadores e o PSG recusou participar.

“Para o PSG teve muito mais que ver com o papel mais amplo do sotf power, não tanto o dinheiro. O mesmo pode ser dito sobre o Man City e os seus proprietários”, diz Roberts. “Julgo que a diferença crucial se prende com a pressão de outras equipas inglesas sobre o Man City no sentido de aderir (por comparação à ausência de pressão em França), e com a relação muito próxima entre o PSG e a UEFA, a nível pessoal e institucional.”

Falhanços no desporto e na política

Para a história, o PSG (e o Qatar) ficou bem na fotografia, enquanto o Manchester City (e os Emirados) saiu rotulado como um dos “12 sujos”. “Para os Emirados, [o insucesso da Superliga Europeia] foi outro malogro depois de o seu bloqueio ao Qatar ter falhado por completo. Nenhuma das 13 exigências apresentadas ao Qatar em junho de 2017 foi cumprida, incluindo a exigência ridícula de fechar a Al Jazeera, cadeia noticiosa que estabeleceu novos padrões críticos para reportagens no Médio Oriente”, comenta ao Expresso Danyel Reiche, investigador na área da Política e Desporto, que lidera um projeto de investigação sobre o Campeonato do Mundo de 2022, na Universidade de Georgetown do Qatar.

“O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, foi muito esperto em não aderir à Superliga, proposta que ignorou o sentimento de uma vasta maioria de adeptos europeus, que rejeitam a americanização dos desportos europeus e a eliminação da meritocracia, com ligas fechadas sem promoções e despromoções. Creio que o PSG, e também os grandes clubes alemães, serão recompensados pela sua resistência à Superliga, ganhando o apoio de adeptos em todo o mundo. Isso é especialmente bom para o PSG, que era, até agora, sobretudo associado ao sucesso a partir de combustíveis fósseis.”

Para o PSG, a vitória neste embate significará a repetição da época passada, quando atingiu a final de Lisboa, que perdeu para o Bayern de Munique. Já para o City a chegada às meias-finais é feito inédito no palmarés do clube, numa altura em que a sua popularidade já teve melhores dias.

“Muito foi dito sobre os donos do Liverpool, que ignoraram o desejo dos adeptos. Mas para mim o desenvolvimento mais interessante foi o do Manchester City”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor de Desporto e Teoria Social na Universidade de Loughborough (Inglaterra). “No passado, muitos adeptos de outros clubes consideravam o City a sua segunda equipa, porque não era o Manchester United, era o verdadeiro clube de Manchester (o United tem sede em Salford). O City não teve muito êxito em grande parte da sua história e, no entanto, tinha adeptos locais leais. Questiono-me que pensarão os adeptos mais antigos sobre aquilo que o clube se tornou.”

A perspetiva de ganharem por fim a Liga dos Campeões talvez os leve a serem contidos em relação à liderança do clube. Para tal, o City terá de ultrapassar o PSG. Talvez nenhum outro duelo personifique atualmente o poder do dinheiro no futebol europeu.

(IMAGEM PMNEWS NIGERIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

Um novo Golfo, mais jovem e agitado

Outrora estável, conservadora e adepta da continuidade, a região vive hoje uma mudança acelerada

O Kuwait tornou-se, esta semana, o mais recente reino nas margens do Golfo Pérsico a instalar no poder uma nova liderança. Quinta-feira, um novo príncipe herdeiro prestou juramento diante do Parlamento, sensivelmente uma semana depois de Nawaf Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah ter sido designado emir. Meios-irmãos entre si, são ambos octogenários, o que destoa de uma tendência crescente na região: a ascensão a cargos de poder de personalidades mais jovens.

“No caso do Kuwait, houve claramente uma aposta na estabilidade, no que toca à sucessão do xeque Al-Sabah [falecido a 29 de setembro], com o poder a permanecer nas mãos da velha guarda”, diz ao Expresso Manuel Castro e Almeida, doutorado em Relações Internacio­nais pela London School of Economics and Political Science, do Reino Unido.

O académico explica que, da mesma forma, “o novo sultão de Omã é da velha geração, embora nos primeiros meses de reinado tenha dado indicações positivas em matéria de reformas urgentes nas áreas da diversificação económica e da governação”. À semelhança do Kuwait, Omã tem novo chefe de Estado desde 10 de janeiro. Haitham bin Tariq Al Said, de 64 anos, sucedeu ao primo, o sultão Qabus, que morreu aos 80 anos a escassos meses de completar 50 anos no trono.

Estes monarcas chegam ao poder numa altura em que a dinâmica regional é muito marcada pela atuação individual de dois príncipes herdeiros, líderes de facto da Arábia Saudita — Mohammed bin Salman (M.B.S.), de 35 anos — e dos Emirados Árabes Unidos — Mohammed bin Zayed al Nahyan (M.B.Z.), de 59.

M.B.S. versus M.B.Z.

“É difícil dizer qual é o mais poderoso, mas a influência low profile dos Emirados, o seu soft power, é enorme e vai muito além da região. Os Emirados têm sido líderes da modernização no mundo árabe, como reconhecem em sondagens os jovens árabes por toda a região. M.B.S. quer posicionar a Arábia Saudita da mesma forma”, diz Manuel Castro e Almeida, diretor de pesquisa do Group ARK, empresa especializada na aplicação de projetos no Médio Oriente na área da prevenção do extremismo violento. Criou, por exemplo, os ‘Capacetes Brancos’ na Síria.

Num artigo publicado a 2 de junho de 2019, o influente “The New York Times” titulava: “O governante árabe mais poderoso não é M.B.S.. É M.B.Z.”. O analista português diz que “há uma relação de grande proximidade entre ambos” e que “M.B.Z. teve um papel como mentor de M.B.S.”.

Reformas substanciais

Pela sua dimensão territorial, pela liderança do mundo islâmico que reclama na qualidade de guardiã dos principais lugares santos do Islão (Meca e Medina), bem como pela rivalidade histórica com o vizinho persa (Irão), tudo o que acontece na Arábia Saudita tem impacto na região e na forma como, do estrangeiro, se olha para ela.

Neste capítulo, a governação de M.B.S. tem capitalizado. Entre as reformas mais sonantes promovidas pelo príncipe saudita estão a diminuição de poderes da polícia religiosa, a autorização para as mulheres conduzirem, o enfraquecimento do sistema de tutela masculino (que submete as sauditas à autoridade de um homem da família) e a abertura do país aos turistas.

“Tanto M.B.S. como M.B.Z. são reformadores”, diz Castro e Almeida. “Ambos apostam forte no conceito de boa governação e modernização dos seus países. Mas é preciso colocar esse carácter reformador no contexto local, nomeadamente em termos dos sistemas políticos, do contrato social vigente desde que estes países existem, da volatilidade da região na última década e do conservadorismo de segmentos substanciais das populações.”

No coração da região, há uma crise que dura há mais de três anos e que não dá mostras de sanar: o bloqueio ao Qatar — que é governado por um emir de 40 anos, Tamim bin Hamad Al Thani —, imposto por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrain (e também Egito). “É uma crise que acrescenta fragilidade e instabilidade não só ao Golfo como ao Médio Oriente como um todo.”

Emirados têm sido os líderes da modernização no mundo árabe. Arábia Saudita quer colocar-se de igual forma

“Mas o bloqueio é mais sintoma do que causa”, continua o analista. “Existem profundas diferenças estratégicas e ideo­lógicas dentro do Conselho de Cooperação do Golfo”, a organização regional composta pelas seis monarquias árabes, todas com a fonte de receita dominante no petróleo e no gás e todas tementes em relação ao vizinho da frente, o Irão.

“O apoio do Qatar aos grupos islamitas da região e a sua aliança com a Turquia fazem dele, para os líderes sauditas e dos Emirados, na melhor das hipóteses um vizinho incómodo e na pior uma ameaça”, prossegue Castro e Almeida.

O amigo israelita

Há menos de um mês, Emirados e Bahrain frustraram grande parte do mundo árabe ao assinarem um tratado de normalização diplomática com Israel (Acordos de Abraão). “Acredito que mais países sigam esse caminho, embora no caso da Arábia Saudita esse passo seja mais complexo. Riade liderou, no passado, a Iniciativa de Paz Árabe, que visava solucionar o conflito israelo-palestiniano. Dada a linha dura do atual Governo israelita em relação aos palestinianos, é complicado para a liderança saudita oficializar esse passo.”

A tudo isto acresce a intervenção militar da Arábia Saudita e dos Emirados no Iémen, que dura desde 2015, e a queda acentuada dos preços do petróleo e do gás, consequência do impacto económico global da pandemia. Conclui Manuel Castro e Almeida: “Para uma região que, nas últimas décadas, se definia mais pela estabilidade, continuidade e conservadorismo, é muita mudança em pouco tempo.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui e aqui

O sabor agridoce da “paz” entre Israel e dois países árabes

A Casa Branca acolheu a assinatura de acordos de normalização diplomática entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrein. Uma traição, lamentam os palestinianos

Vinte e seis anos depois, a Casa Branca voltou a abrir portas para consagrar a aproximação entre Israel e o mundo árabe. Longe de serem unânimes, quem ganha e quem perde com os Acordos de Abraão?

VENCEDORES

DONALD TRUMP
A 49 dias de tentar a reeleição como Presidente dos EUA, carimba o seu maior êxito diplomático. Consegue-o após uma entrada em falso ao propor, no início do ano, o “acordo do século” entre israelitas e palestinianos, que refletia sobretudo os interesses israelitas e, sem surpresa, foi rejeitado pelos palestinianos.

Terça-feira, no papel de anfitrião da histórica cerimónia que aproximou Israel, Emirados e Bahrain, garantiu: “Estamos muito adiantados em relação a uns cinco outros países. Francamente, acho que poderíamos tê-los aqui hoje.”

Proposto para o Nobel da Paz, Trump tem contra si o facto de os signatários destes acordos nunca terem travado uma guerra uns com os outros e também a experiência de antecessores. Em 1979, Jimmy Carter foi o anfitrião da assinatura da paz entre Israel e Egito, mas apenas Menachem Begin e Anwar al-Sadat foram agraciados (este veio a ser assassinado). Também os acordos de Camp David de 1993 valeram o Nobel aos israelitas Yitzhak Rabin e Shimon Peres e ao palestiniano Yasser Arafat, mas não a Bill Clinton.

BENJAMIN NETANYAHU
Consegue um pacto benéfico para Israel sem fazer cedências. Com o país que governa a cumprir o segundo confinamento (este de três semanas) por causa da covid-19, com um julgamento por corrupção agendado e uma coligação periclitante, o primeiro-ministro israelita arrebata um êxito importante na frente que mais o tem tomado ao longo dos seus sucessivos mandatos: a ameaça do regime iraniano dos ayatollahs.

ARÁBIA SAUDITA
Está ausente da ‘foto de família’ que fica para a História, continua sem relações diplomáticas com Israel, mas a sua concordância em relação aos Acordos de Abraão está implícita. Autorizou o primeiro voo comercial entre Israel e os Emirados a atravessar o seu espaço aéreo e não se opôs ao protagonismo do Bahrein, um dos estados que mais protege na região, por ter poder sunita e maioria xiita. Interessa-lhe todo o reforço da frente anti-Irão.

INDÚSTRIA DAS ARMAS
É um assunto que os protagonistas não abordam em público, mas que foi decisivo para o sucesso dos Acordos. Netanyahu terá viabilizado a venda de aviões de combate F-35 dos EUA aos Emirados. O negócio, que reduzirá a superioridade militar israelita na região, conta com a oposição de militares e políticos em Israel. Trump já disse “não ter problemas” em vender os caças aos Emirados, aliados da Arábia Saudita nos bombardeamentos ao Iémen.

PERDEDORES

PALESTINIANOS
“Traição”, “facada nas costas”. Os palestinianos não escondem a desilusão, ainda que os Emirados garantam que os Acordos de Abraão suspendem a anexação da Cisjordânia. Porém, a ocupação não recua um centímetro, a Palestina independente não tem perspetiva e abriram-se brechas na unanimidade árabe em torno da causa. Dias antes da cerimónia, a Liga Árabe — que sempre subordinou a normalização da relação com Israel ao reconhecimento da Palestina — rejeitou a condenação dos Acordos de Abraão proposta pelos palestinianos.

IRÃO
Vizinho das duas petromonarquias que abriram braços ao “inimigo sionista”, como Teerão designa Israel, o Irão qualificou a aproximação entre os Emirados e Israel como ato de “estupidez estratégica”, que terá o condão de “fortalecer o eixo de resistência na região”.

Com os Acordos de Abraão, Israel passa a ter quatro pontos de apoio no mundo muçulmano sunita, que olha para o Irão como o gigante xiita que ameaça a região com um projeto de expansão. O impacto desta nova frente anti-Irão tenderá a aumentar se a ela aderirem novos membros, como Omã, o Kuwait e, de forma decisiva, a Arábia Saudita.

TURQUIA
Com os Acordos de Abraão, vê um grande adversário, os Emirados, ganhar acesso a sofisticado armamento norte-americano. Turquia e Emirados intervêm atualmente na guerra na Líbia: Ancara pelo poder em Trípoli (reconhecido pela ONU) e Abu Dhabi em apoio do general rebelde Khalifa Haftar. A Turquia foi o primeiro país muçulmano a reconhecer Israel.

QATAR
Grande rival dos Emirados, é alvo, desde 2017, de um bloqueio regional imposto por Arábia Saudita, Egito, Emirados e Bahrein. Os Acordos de Abraão reforçam a posição dos dois últimos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Emirados e Bahrain assinam hoje “a paz” com Israel. Quem se seguirá?

Dois países da região do Golfo Pérsico assinam esta terça-feira acordos de normalização diplomática com Israel. Nos últimos meses, a Administração Trump fez deste assunto uma prioridade e desenvolveu intensos contactos com outros países da região do Médio Oriente e não só, visando quebrar o isolamento internacional do Estado hebraico

Vinte e seis anos depois, a Casa Branca volta a abrir portas para possibilitar a assinatura de um acordo “de paz” relativo ao Médio Oriente. É assim que são apresentados os pactos celebrados entre Israel, por um lado, e Emirados Árabes Unidos e Bahrain, pelo outro, ainda que nenhum dos signatários tenha alguma vez estado em guerra.

Esta terça-feira, a relação diplomática entre Israel e os Emirados será normalizada através de um “Tratado de Paz” e a que envolve o Bahrain através de uma “Declaração de Paz”. A Administração Trump, que fez a mediação, designou esta conquista diplomática de Acordos de Abraão.

Por Israel, assina esses documentos históricos o primeiro-ministro Benjamin Netahyahu. “Passaram 26 anos entre o segundo acordo de paz com um país árabe [com a Jordânia, em 1994] e o terceiro [com os Emirados Árabes Unidos, anunciado a 13 de agosto passado]. Mas apenas 29 dias entre o terceiro e o quarto [com o Bahrain, anunciado a 11 de setembro]. E haverá mais”, garantiu o governante israelita.

Nas últimas semanas, por iniciativa do Governo dos Estados Unidos, têm-se multiplicado iniciativas junto de vários países — árabes e não só — com o intuito de tornar Israel um país menos isolado no Médio Oriente e criar uma frente de entendimento entre países que olham para o Irão como inimigo. O esforço tem-se concentrado sobretudo na região do Golfo Pérsico, onde já começou a produzir resultados.

EMIRADOS ÁRABES UNIDOS

Torna-se esta terça-feira o terceiro país árabe a reconhecer Israel a nível oficial, após o Egito em 1979 e a Jordânia em 1994. “Este avanço histórico abrirá um novo capítulo de oportunidades e estabilidade para a região. Agora que a anexação [israelita do território palestiniano da Cisjordânia] foi descartada, podemos trabalhar juntos na construção dessa base sólida de paz”, afirmou Yousuf al-Otaiba, embaixador dos Emirados nos Estados Unidos.

O novo acordo prevê o desenvolvimento de relacões comerciais, a intensificação do turismo, a realização de voos diretos, cooperação científica e abertura de embaixadas — não sendo certo, para já, que a delegação dos Emirados fique instalada em Jerusalém.

Num primeiro passo rumo a essa normalização, os Emirados aboliram, a 29 de agosto, uma lei que boicotava Israel e, na prática, inviabilizava o desenvolvimento de relações comerciais e financeiras entre as duas nações. Dois dias depois, a realização do primeiro voo comercial entre Telavive e Abu Dabi começava a dar cor a essa nova realidade.

A autorização da Arábia Saudita para que o avião da israelita El Al atravessasse o seu espaço aéreo — encurtando o voo de sete para pouco mais de três horas — foi outra medida inédita. Implicitamente, Riade não se opõe à aproximação entre os Emirados e o Estado judeu: o tempo dirá se também seguirá nesse caminho.

BAHRAIN

O anúncio da normalização da relação entre o Bahrain e Israel aconteceu a 11 de setembro, dia em que os Estados Unidos assinalavam o 19.º aniversário dos atentados terroristas de 2001. “Não há resposta mais poderosa ao ódio que gerou o 11 de Setembro do que este acordo”, disse Trump, no próprio dia.

Ao contrário dos Emirados, o Bahrain já tinha retirado do seu ordenamento jurídico legislação anti-Israel, em 2005, após assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos durante a presidência de George W. Bush.

Na hora de tornar público o estabelecimento de relações diplomáticas com Israel, também Manama — à semelhança de Abu Dabi — não esqueceu a questão palestiniana. Israel e o Bahrain “continuarão os seus esforços para alcançar uma solução justa, abrangente e duradoura para o conflito israelo-palestiniano e permitir que o povo palestiniano concretize todo o seu potencial”, lê-se num comunicado conjunto divulgado pelos dois países e pelos EUA, que tem a sua Quinta Frota sediada precisamente nesta pequena ilha do Golfo Pérsico.

OMÃ

Tal como os Emirados e o Bahrain, também o sultanato de Omã recebeu recentemente a visita do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, num périplo por vários países do Médio Oriente e África com quase um ponto único na agenda: a aproximação a Israel.

Omã acolheu positivamente o estabelecimento de relações entre Israel e os dois vizinhos do Golfo, suscitando muitas interrogações sobre se este país poderá ser a próxima peça do dominó a tombar. Omã tem desenvolvido contactos secretos com Israel e em 2018 recebeu mesmo a visita de Netanyahu, que não tem muitas portas abertas na região.

SUDÃO

Quando do périplo de Mike Pompeo pela região, o Sudão foi outro dos Estados árabes visitados e sondados. O país vive uma fase de transição iniciada com a deposição de Omar al-Bashir — ao fim de 30 anos no poder — e tem como prioridade a aceitação internacional e a saída da lista dos Estados-párias associados ao terrorismo.

Em fevereiro passado, após encontro no Uganda entre o atual Presidente do Sudão, Abdel Fattah al-Burhan, e Netanyahu, o gabinete do primeiro-ministro israelita fez saber que “ficou acordado o início de uma cooperação que conduzirá à normalização dos laços entre os países”.

No final de agosto, em entrevista à televisão Channel 13, o ministro da Informação israelita, Eli Cohen, afirmou: “Haverá, este ano, outro [acordo] com um país africano. Na minha opinião, o Sudão também assinará um acordo de paz com o Estado de Israel”.

No Sudão, contudo, a questão não é consensual. Recentemente um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi despedido após dizer que estava iminente um acordo entre Cartum e Telavive. “O que afirmei refletiu a política do nosso Governo relativamente à normalização com Israel, porque há contactos e reuniões políticas abertas ao mais alto nível governamental”, reagiu depois Haydar Sadig.

Também a causa palestiniana é argumento para haver sectores no Sudão que rejeitam o diálogo com Israel. “Defendemos os direitos do povo palestiniano e estamos contra a normalização com Israel”, afirmou Sadiq Yousef, membro do Comité Central do Partido Comunista do Sudão.

SÉRVIA E KOSOVO

Os esforços da Administração Trump para minimizar o isolamento internacional de Israel não se ficam pelo mundo árabe. A 4 de setembro, a Casa Branca foi cenário de dois dias de conversações entre o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro do Kosovo, Avdullah Hoti, que terminaram com a formalização de um acordo de cooperação económica, assinado na Sala Oval. “É um facto histórico”, celebrou Trump. “Tenciono visitar os dois países num futuro não muito distante.”

Nesse dia histórico para sérvios e kosovares, Trump conseguiu que o fosse também para Israel, ao anunciar que a Sérvia vai mudar a sua embaixada em Israel de Telavive para Jerusalém (como fez Washington) e que o Kosovo — antiga província sérvia de maioria muçulmana —, vai em breve reconhecer o Estado judeu.

Esta aproximação entre sérvios e kosovares acontece 21 anos após os 78 dias de bombardeamentos da NATO sobre a Sérvia, com o intuito de acabar com a repressão aos albaneses do Kosovo. Este território declarou a sua independência da Sérvia em 2008, mas as tensões continuam e Belgrado nunca reconheceu a soberania kosovar. Trump bem pode dizer que a paz está mais próxima destes dois países graças à sua liderança.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Partiu de Telavive e aterrou em Abu Dabi o primeiro voo comercial de sempre entre Israel e um país do Golfo

Israel e Emirados Árabes Unidos começaram, esta segunda-feira a construir uma nova relação bilateral, com a realização do primeiro voo comercial direto entre os dois países. A Arábia Saudita, que não reconhece o Estado judeu, ajudou à festa e, pela primeira vez, autorizou um avião israelita a sobrevoar o seu território

Aos poucos, o Acordo de Abraão anunciado a 13 de agosto por Israel e os Emirados Árabes Unidos começa a tornar-se realidade. Às 11h21 desta segunda-feira (menos duas horas em Portugal Continental), descolou do aeroporto Ben Gurion, em Telavive, um Boeing comercial com destino a Abu Dhabi — o primeiro voo de sempre entre os dois países.

Para reforçar o caráter histórico deste voo, a Arábia Saudita — que oficialmente não reconhece Israel — autorizou o voo 971, operado pela empresa israelita, a atravessar o espaço aéreo saudita.

“Pela primeira vez, uma aeronave israelita irá sobrevoar a Arábia Saudita e após um voo direto que partiu de Israel, irá aterrar nos Emirados Árabes Unidos”, anunciou o piloto Tal Becker, citado pela pubicação “The Times of Israel”. “Estamos todos entusiasmados e esperamos mais voos históricos que nos levarão a outras capitais da região, levando-nos a todos para um futuro mais próspero.

A bordo seguiu uma delegação conjunta de responsáveis políticos israelitas e norte-americanos. Em Abu Dabi, irão participar em reuniões de trabalho “sobre uma série de questões visando a assinatura de acordos de cooperação nas esferas civil e económica”, informou o gabinete do primeiro-ministro de Israel.

A delegação israelita é encabeçada pelo chefe do Conselho de Segurança Nacional, Meir Ben Shabbat, e a norte-americana pelo Conselheiro de Segurança Nacional Robert O’Brien e por Jared Kushner, genro de Donald Trump e o seu principal conselheiro para questões do Médio Oriente.

“O nosso objetivo é alcançar um programa de trabalho conjunto que leve ao avanço das relações num vasto leque de áreas: turismo, saúde, inovação, ciência, tecnologia, economia e muitos outros campos”, disse Meir Ben-Shabat, antes da partida. “Esta manhã, a tradicional benção ‘Vá em paz’, tem um significado especial para nós.”

Integram a delegação americana também Avi Berkowitz, representante especial da Casa Branca para Negociações Internacionais, e Brian Hook, representante especial para o Irão.

Fim da lei do boicote a Israel

“Ao mesmo tempo que este é um voo histórico, esperamos que esta viagem seja o início de uma viagem ainda mais histórica para o Médio Oriente e além. Ontem, rezei no Muro [das Lamentações] para que muçulmanos e árabes de todo o mundo assistam a este voo, reconhecendo que somos todos filhos de Deus e que o futuro não precisa de ser predeterminado pelo passado”, disse Kushner momentos antes embarcar. “Acredito que tanta paz e prosperidade são possíveis nesta região e em todo o mundo.”

Como que a abrir caminho a esta visita, no sábado o Presidente dos Emirados Árabes Unidos aboliu uma lei de 1972 que instituía um boicote a Israel. A decisão seguiu-se a um périplo do secretário de Estado norte-americano pela região, na semana passada, durante o qual Mike Pompeo tentou convencer outros países árabes a normalizarem relações com o Estado judeu.

Anunciado a 13 de agosto, o acordo de normalização das relações diplomáticas entre Israel e os Emirados — intermediado pela Administração Trump — tornou-se o terceiro reconhecimento do Estado judeu por parte de um país árabe, após Egito (1979) e Jordânia (1994).

Apesar de os signatários defenderem que este entendimento levou à suspensão dos planos israelitas de anexação de partes da Cisjordânia palestiniana ocupada, o Acordo de Abraão é sentido pelos palestinianos como “uma traição”.

(FOTO A 30 de janeiro de 2022, o Presidente de Israel, Isaac Herzog, realizou uma visita oficial aos Emirados Árabes Unidos. Em Abu Dabi, foi recebido pelo príncipe herdeiro Mohamed bin Zayed Al Nahyan WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui