Sem o território que já teve na Síria e no Iraque, o grupo tenta reagrupar-se e expandir influência para longe

Nos últimos dez anos, três Presidentes dos Estados Unidos foram creditados com um reconhecimento quase universal ao anunciarem a morte do “terrorista mais procurado do mundo” às mãos de forças especiais norte-americanas. A 2 de maio de 2011, Barack Obama comunicou a morte de Osama bin Laden, o carismático líder da Al-Qaeda. A 27 de outubro de 2019, Donald Trump descreveu a execução do misterioso Abu Bakr al-Baghdadi, “califa” do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh), “após entrar num túnel sem saída, a choramingar e a gritar”.
A 3 de fevereiro passado, foi Joe Biden a confirmar o óbito do desconhecido Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi, sucessor de Al-Baghdadi no Daesh. Este “terrorista horrível”, contou o Presidente, morreu durante “uma operação de contraterrorismo destinada a proteger o povo americano e os nossos aliados, e a tornar o mundo um lugar mais seguro”. Será mesmo?
“Penso que o Daesh está moribundo, em vias de ser erradicado definitivamente. Mas isso não quer dizer que não apareça outra afirmação de radicalismo islâmico”, diz ao Expresso Luís Saraiva, professor na Universidade Lusíada. “Aconteceu com a Al-Qaeda [no Iraque], que deu origem a este ‘Estado Islâmico’. Ainda existem resquícios da Al-Qaeda. O Daesh pode também originar uma evolução, decorrente até da perseguição que a comunidade internacional lhe faz.”
O Daesh é ‘um filho’ da guerra no Iraque, após a invasão americana de 2003. Tem na origem a Al-Qaeda no Iraque, que se alimentou da desintegração do Estado e da destruição do país para crescer. Em 2014, anunciou a criação de um “califado”, com a ambição de estender fronteiras da Índia à Península Ibérica. Embora longe de o concretizar, chegou a controlar um território comparável à Grã-Bretanha, que se estendia entre a Síria e o Iraque.
Em perda, mas capaz
Ao mesmo ritmo que o Daesh ganhou território, também o perdeu, pressionado pela guerra declarada pela coligação militar internacional. Em março de 2019, a conquista da localidade síria de Al-Baghuz pelas Forças Democráticas Sírias, lideradas pelos curdos e apoiadas pelos EUA, foi considerada o fim do “califado”.
“Desde então, o Daesh tem adotado uma atitude mais discreta. O Daesh não é a mesma potência de 2014, mas não deixou de ser uma organização capaz”, diz ao Expresso Carolina Novo, investigadora independente na área do terrorismo e ideologia do Daesh. “Diria que o grupo atravessa mais uma das muitas reorganizações por que já passou. Não apenas ao nível dos seus membros e líder, mas de estratégia. Já não é um protoestado, mas uma organização insurgente.”
O Daesh atravessa mais uma de muitas reorganizações, ao nível de membros, líder e estratégia
Uma prova de resiliência reveladora do empenho do Daesh em reorganizar-se foi o assalto à prisão de Ghwayran, no nordeste da Síria, a 20 de janeiro, por mais de cem homens armados. Aquele que é o principal centro de detenção de jiadistas albergava, na altura, cerca de 3500 — estima-se que também 800 menores, alguns com nacionalidade estrangeira.
Numa demonstração do que é a Síria hoje, a prisão é controlada não pelas forças do Presidente Bashar al-Assad, mas pelos curdos, que só recuperaram o controlo do local após dias de troca de fogo. Este é considerado o maior ataque do Daesh desde a perda do califado, ainda que a maioria dos fugitivos tenha sido recapturada.
Território não é prioridade
“Penso que este episódio demonstra que o grupo não está moribundo, mas a reequipar-se. É importante notarmos que a sua aparente destruição já aconteceu antes. Muitas vezes já se tentou prever o fim do Daesh”, diz Carolina Novo, mestre em História e Relações Internacionais pela Universidade do Porto. “Foi durante um período em que parecia moribundo que o grupo se reergueu mais forte do que nunca e estabeleceu o ‘Estado Islâmico’. Não acredito que vá acontecer na mesma dimensão agora, mas penso que pode servir de lição.”
Contrariamente à estratégia passada, hoje a reinvenção do grupo jiadista não passa pela conquista de uma base territorial, antes “por favorecer a criação de grupos afiliados”, diz a investigadora. “Já o fez em África e na Ásia. Paralelamente, no Médio Oriente, continua a realizar ataques terroristas. Neste momento, a estratégia passa mais por uma atuação descentralizada.”
Franchising terrorista
Luís Saraiva, investigador no Instituto Universitário Militar, refere que os territórios férteis à expansão do Daesh são aqueles onde o controlo e a capacidade de segurança dos Estados evidenciam fragilidades. “Aí vemos aparecer uma espécie de franchising, com grupos radicalizados, islâmicos ou não, a tentarem usar o nome do ‘Estado Islâmico’ para terem alguma projeção internacional. São grupos regionais ou locais que aproveitam o apoio ideológico ou a bandeira do ‘Estado Islâmico’ para dizerem que têm relevância.”
A estratégia do grupo passa por favorecer a criação de grupos afiliados. Já o fez em África e na Ásia
Isso acontece, atualmente, na região moçambicana de Cabo Delgado e em vários outros países, como o Afeganistão. Há duas semanas, Washington anunciou uma recompensa de até 10 milhões de dólares (€8,8 milhões) por informações que conduzam à localização de Sanaullah Ghafari, chefe do Daesh-Khorasan, a designação do grupo no Afeganistão.
Na memória dos Estados Unidos está ainda o negro 26 de agosto passado, em que um único bombista suicida afeto ao Daesh-K matou 13 norte-americanos e pelo menos 170 afegãos no aeroporto de Cabul, quando as tropas internacionais regressavam definitivamente a casa, após uma missão de 20 anos, e milhares de afegãos tentavam, de forma caótica, apanhar boleia para fugir aos talibãs regressados ao poder.
A importância do líder
A história do Daesh, como a da Al-Qaeda, mostra, porém, que a eliminação dos líderes, mesmo os mais carismáticos, não significa a erradicação automática do grupo. Quando muito, dá origem a nova metamorfose.
“À medida que a natureza e estratégia do Daesh se alteram, o mesmo acontece com o papel do chefe. Ainda que seja sempre importante, o grupo depende dele de formas diferentes, consoante a fase em que se encontra”, diz a investigadora Carolina Novo. “Quando o grupo se apresentava, em 2014, como uma entidade estatal, a figura de um líder competente e experiente era crucial para controlar todos os aspetos quotidianos relacionados com o território. Hoje, tendo em conta que o grupo se encontra dividido e se tem dedicado essencialmente a operações de guerrilha e insurgência, uma estrutura de liderança não parece ser tão crucial.”
ONDE ESTÁ O DAESH?
SÍRIA E IRAQUE — Tenta reorganizar-se após ter perdido o “califado”. Os assaltos a prisões são um modus operandi prioritário
ÁFRICA OCIDENTAL — Os países mais permeáveis são Nigéria, Chade, Camarões, Mali, Níger e Burkina Faso. Beneficia do enfraquecimento do Boko Haram e da anunciada retirada das tropas francesas
ÁFRICA CENTRAL — Engloba nesta sua “província” dois países: a República Democrática do Congo, onde, este mês, um grupo ugandês leal ao Daesh invadiu uma prisão; e Moçambique, onde está ativo em Cabo Delgado
NORTE DE ÁFRICA — Outrora feudo da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico, o Daesh está ativo na Líbia e no Egito (Península do Sinai). Na Argélia, está adormecido
ÁSIA ORIENTAL — Atua nas Filipinas, país cristão, através de grupos locais. A 27 de janeiro de 2019, reivindicou um ataque a uma igreja (18 mortos e 82 feridos). Também está ativo na Indonésia
IÉMEN — Está há oito anos neste país em guerra e onde tem sede o braço mais ativo da Al-Qaeda (na Península Arábica)
MALDIVAS — Estreou-se em 2020: incendiou cinco lanchas e dois botes,na ilha de Mahibadhoo
Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de fevereiro de 2022

