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O líder foi morto, mas o Daesh ainda vive

Sem o território que já teve na Síria e no Iraque, o grupo tenta reagrupar-se e expandir influência para longe

Bandeira do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) WIKIMEDIA COMMONS

Nos últimos dez anos, três Presidentes dos Estados Unidos foram creditados com um reconhecimento quase universal ao anunciarem a morte do “terrorista mais procurado do mundo” às mãos de forças especiais norte-americanas. A 2 de maio de 2011, Barack Obama comunicou a morte de Osama bin Laden, o carismático líder da Al-Qaeda. A 27 de outubro de 2019, Donald Trump descreveu a execução do misterioso Abu Bakr al-Baghdadi, “califa” do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh), “após entrar num túnel sem saída, a choramingar e a gritar”.

A 3 de fevereiro passado, foi Joe Biden a confirmar o óbito do desconhecido Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi, sucessor de Al-Baghdadi no Daesh. Este “terrorista horrível”, contou o Presidente, morreu durante “uma operação de contraterrorismo destinada a proteger o povo americano e os nossos aliados, e a tornar o mundo um lugar mais seguro”. Será mesmo?

“Penso que o Daesh está moribundo, em vias de ser erradicado definitivamente. Mas isso não quer dizer que não apareça outra afirmação de radicalismo islâmico”, diz ao Expresso Luís Saraiva, professor na Universidade Lusíada. “Aconteceu com a Al-Qaeda [no Iraque], que deu origem a este ‘Estado Islâmico’. Ainda existem resquícios da Al-Qaeda. O Daesh pode também originar uma evolução, decorrente até da perseguição que a comunidade internacional lhe faz.”

O Daesh é ‘um filho’ da guerra no Iraque, após a invasão americana de 2003. Tem na origem a Al-Qaeda no Iraque, que se alimentou da desintegração do Estado e da destruição do país para crescer. Em 2014, anunciou a criação de um “califado”, com a ambição de estender fronteiras da Índia à Península Ibérica. Embora longe de o concretizar, chegou a controlar um território comparável à Grã-Bretanha, que se estendia entre a Síria e o Iraque.

Em perda, mas capaz

Ao mesmo ritmo que o Daesh ganhou território, também o perdeu, pressionado pela guerra declarada pela coligação militar internacional. Em março de 2019, a conquista da localidade síria de Al-Baghuz pelas Forças Democráticas Sírias, lideradas pelos curdos e apoiadas pelos EUA, foi considerada o fim do “califado”.

“Desde então, o Daesh tem adotado uma atitude mais discreta. O Daesh não é a mesma potência de 2014, mas não deixou de ser uma organização capaz”, diz ao Expresso Carolina Novo, investigadora independente na área do terrorismo e ideologia do Daesh. “Diria que o grupo atravessa mais uma das muitas reorganizações por que já passou. Não apenas ao nível dos seus membros e líder, mas de estratégia. Já não é um protoestado, mas uma organização insurgente.”

O Daesh atravessa mais uma de muitas reorganizações, ao nível de membros, líder e estratégia

Uma prova de resiliência reveladora do empenho do Daesh em reorganizar-se foi o assalto à prisão de Ghwayran, no nordeste da Síria, a 20 de janeiro, por mais de cem homens armados. Aquele que é o principal centro de detenção de jiadistas albergava, na altura, cerca de 3500 — estima-se que também 800 menores, alguns com nacionalidade estrangeira.

Numa demonstração do que é a Síria hoje, a prisão é controlada não pelas forças do Presidente Bashar al-Assad, mas pelos curdos, que só recuperaram o controlo do local após dias de troca de fogo. Este é considerado o maior ataque do Daesh desde a perda do califado, ainda que a maioria dos fugitivos tenha sido recapturada.

Território não é prioridade

“Penso que este episódio demonstra que o grupo não está moribundo, mas a reequipar-se. É importante notarmos que a sua aparente destruição já aconteceu antes. Muitas vezes já se tentou prever o fim do Daesh”, diz Carolina Novo, mestre em História e Relações Internacionais pela Universidade do Porto. “Foi durante um período em que parecia moribundo que o grupo se reergueu mais forte do que nunca e estabeleceu o ‘Estado Islâmico’. Não acredito que vá acontecer na mesma dimensão agora, mas penso que pode servir de lição.”

Contrariamente à estratégia passada, hoje a reinvenção do grupo jiadista não passa pela conquista de uma base territorial, antes “por favorecer a criação de grupos afiliados”, diz a investigadora. “Já o fez em África e na Ásia. Paralelamente, no Médio Oriente, continua a realizar ataques terroristas. Neste momento, a estratégia passa mais por uma atuação descentralizada.”

Franchising terrorista

Luís Saraiva, investigador no Instituto Universitário Militar, refere que os territórios férteis à expansão do Daesh são aqueles onde o controlo e a capacidade de segurança dos Estados evidenciam fragilidades. “Aí vemos aparecer uma espécie de franchising, com grupos radicalizados, islâmicos ou não, a tentarem usar o nome do ‘Estado Islâmico’ para terem alguma projeção internacional. São grupos regionais ou locais que aproveitam o apoio ideológico ou a bandeira do ‘Estado Islâmico’ para dizerem que têm relevância.”

A estratégia do grupo passa por favorecer a criação de grupos afiliados. Já o fez em África e na Ásia

Isso acontece, atualmente, na região moçambicana de Cabo Delgado e em vários outros países, como o Afeganistão. Há duas semanas, Washington anunciou uma recompensa de até 10 milhões de dólares (€8,8 milhões) por informações que conduzam à localização de Sanaullah Ghafari, chefe do Daesh-Khorasan, a designação do grupo no Afeganistão.

Na memória dos Estados Unidos está ainda o negro 26 de agosto passado, em que um único bombista suicida afeto ao Daesh-K matou 13 norte-americanos e pelo menos 170 afegãos no aeroporto de Cabul, quando as tropas internacionais regressavam definitivamente a casa, após uma missão de 20 anos, e milhares de afegãos tentavam, de forma caótica, apanhar boleia para fugir aos talibãs regressados ao poder.

A importância do líder

A história do Daesh, como a da Al-Qaeda, mostra, porém, que a eliminação dos líderes, mesmo os mais carismáticos, não significa a erradicação automática do grupo. Quando muito, dá origem a nova metamorfose.

“À medida que a natureza e estratégia do Daesh se alteram, o mesmo acontece com o papel do chefe. Ainda que seja sempre importante, o grupo depende dele de formas diferentes, consoante a fase em que se encontra”, diz a investigadora Carolina Novo. “Quando o grupo se apresentava, em 2014, como uma entidade estatal, a figura de um líder competente e experiente era crucial para controlar todos os aspetos quotidianos relacionados com o território. Hoje, tendo em conta que o grupo se encontra dividido e se tem dedicado essencialmente a operações de guerrilha e insurgência, uma estrutura de liderança não parece ser tão crucial.”

ONDE ESTÁ O DAESH?

SÍRIA E IRAQUE — Tenta reorganizar-se após ter perdido o “califado”. Os assaltos a prisões são um modus operandi prioritário

ÁFRICA OCIDENTAL — Os países mais permeáveis são Nigéria, Chade, Camarões, Mali, Níger e Burkina Faso. Beneficia do enfraquecimento do Boko Haram e da anunciada retirada das tropas francesas

ÁFRICA CENTRAL — Engloba nesta sua “província” dois países: a República Democrática do Congo, onde, este mês, um grupo ugandês leal ao Daesh invadiu uma prisão; e Moçambique, onde está ativo em Cabo Delgado

NORTE DE ÁFRICA — Outrora feudo da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico, o Daesh está ativo na Líbia e no Egito (Península do Sinai). Na Argélia, está adormecido

ÁSIA ORIENTAL — Atua nas Filipinas, país cristão, através de grupos locais. A 27 de janeiro de 2019, reivindicou um ataque a uma igreja (18 mortos e 82 feridos). Também está ativo na Indonésia

IÉMEN — Está há oito anos neste país em guerra e onde tem sede o braço mais ativo da Al-Qaeda (na Península Arábica)

MALDIVAS — Estreou-se em 2020: incendiou cinco lanchas e dois botes,na ilha de Mahibadhoo

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de fevereiro de 2022

O Daesh desapareceu? Longe disso: nestes locais o terror continua

Primeiro quiseram construir um califado no norte da Síria e do Iraque, e marcaram para sempre aqueles povos com os seus métodos horrendos de perseguição e tortura. Uma coligação internacional ajudada pelos curdos quase eliminou a presença deste grupo terrorista islâmico, mas os que creem na sua doutrina espalharam-se pelo mundo. Hoje é em África e na Ásia que apostam a maioria dos seus recursos e ainda há milhares de combatentes em todo o mundo que juraram manter este reinado do terror. Na Europa, o perigo é quem se radicaliza cá. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

Áustria, França, Moçambique, Afeganistão, Egito, República Democrática do Congo, Arábia Saudita…

Só nos últimos dois meses, todos estes países sofreram ataques terroristas reivindicados ou inspirados pelo autodenominado Estado Islâmico. O Daesh, como é conhecido pelo seu acrónimo árabe, perdeu o califado que proclamou em partes da Síria e do Iraque
e viu o seu líder suicidar-se quando se sentiu acossado por militares norte-americanos.
O movimento enfraqueceu, mas está longe de erradicado.

No final de 2020, vários grupos terroristas com implantação regional assumem-se como extensões do Daesh, em especial em África e na Ásia, onde as regiões controladas pelos jiadistas são designadas de “províncias” pela organização central.

É o caso da Província da África Ocidental, um braço do Daesh com uma ascensão fulgurante. Resultou de uma cisão no Boko Haram e está ativo nos quatro países que rodeiam o Lago Chade: Nigéria, Niger, Chade e Camarões. Estima-se que seja a célula africana do Daesh com mais combatentes nas suas fileiras.

Para leste, a Província da África Central é o braço mais recente do Daesh em todo o mundo. Atualmente é responsável por duas rebeliões: uma no leste da República Democrática do Congo, na região do Kivu, e outra no norte de Moçambique, na província de Cabo Delgado.

Neste país de língua oficial portuguesa, os jiadistas têm crescido em alcance e sofisticação. Demonstram toda a sua crueldade queimando aldeias inteiras, raptando e decapitando locais.

Ainda em África, a região do Sahel é território propício às movimentações do Daesh no Grande Sara. Esta célula resultou de uma cisão no seio de um grupo associado à rival Al-Qaeda e está ativa em três países.

Encontramos ainda a impressão digital do Daesh na Líbia, Tunísia, Argélia, Egito, Somália, Quénia, Tanzânia e Uganda.

E noutros continentes também, como a Ásia. Às portas do Médio Oriente, a Península do Sinai abriga um dos ramos mais antigos do Daesh, com origem num grupo jiadista fundado após a desagregação do poder no Egito e a seguir ao movimento da Primavera Árabe.

Mais para leste, no martirizado Afeganistão, um dos principais focos de violência é atualmente o ramo local do Daesh, o grupo Província do Khorasan, numa referência a uma região histórica da Antiga Pérsia. O Daesh é sunita, tal como os talibãs, mas ao contrário destes rejeita qualquer tipo de negociação com o Ocidente. É, por isso, ainda mais extremista do que os talibãs.

Seguindo ainda mais para oriente, encontramos outro país fustigado pelo Daesh: as Filipinas, consideradas pelos jiadistas a sua Província da Ásia Oriental. Um dos grupos locais que lhe jurou lealdade é o histórico Abu Sayyaf, que leva mais de 30 anos de rebelião contra o poder central naquele país de maioria católica.

Na Europa, a estratégia do Daesh não passa por estabelecer bases. Os ataques são levados a cabo por simpatizantes desta doutrina extremista, homens regressados da Síria ou do Iraque ou radicalizados nos próprios países onde vivem.

Episódio gravado por Ana França.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Samuel foi decapitado. Nadine foi degolada. Por que razão alguns terroristas atacam de forma bárbara?

Nalguns atentados terroristas o atacante age motivado não só pela vontade de matar como também de profanar o corpo. Há razões históricas e religiosas que explicam o recurso à decapitação ou à degola como forma de execução. Um estudioso da Ciência das Religiões diz ao Expresso que é mais provável que, nos dias de hoje, se trate de um fenómeno de imitação dos métodos do Daesh

Pintura de Matthias Stom (séc. XVII) alusiva à decapitação de São João Baptista, a mais importante do mundo ocidental. Exigida por Salomé, a cabeça do pregador foi entregue numa bandeja à neta de Herodes WIKIMEDIA COMMONS

Em outubro passado, dois atentados em solo francês assumiram contornos particularmente cruéis. No dia 16, na cidade de Conflans-Sainte-Honorine, Samuel Paty, professor de 47 anos, foi decapitado por um refugiado de 18 anos de origem chechena. Numa aula sobre liberdade de expressão, o docente havia mostrado caricaturas do profeta Maomé, desencadeando a ira do radical islâmico.

A 29 seguinte, um cidadão tunisino esfaqueou mortalmente três pessoas no interior da Basílica de Notre-Dame de l’Assomption, em Nice. Nadine Devillers, uma mulher de 60 anos, foi degolada, mas a intenção do atacante era decapitá-la.

Uma facada certeira teria sido suficiente para tirar a vida a qualquer das vítimas, mas estes agressores investiram de forma deliberada com a intenção de cortar-lhes a cabeça.

Várias razões explicam uma motivação dessa natureza, desde logo a propaganda que resulta de um ato tão bárbaro. “Quando o ISIS [o autodenominado ‘Estado Islâmico’, também conhecido pelo acrónimo Daesh] degolava pessoas, filmava a execução e punha as imagens a circular nas redes sociais, havia no gesto uma dimensão de propaganda. Degolar é uma imagem tão brutal que induz um medo terrível”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.

“Ainda hoje, no Ocidente, nos nossos códigos penais, temos o crime de profanação de cadáver. Ou seja, uma coisa é matar alguém, que é um crime; outra coisa é, além de matar, profanar o cadáver, criar uma destruição no corpo que o torne irreconhecível.”

Demonstração de poder

Em várias civilizações milenares, há toda uma herança associada ao ato de decapitar como demonstração de poder. “Nas civilizações mais antigas do Médio Oriente, a decapitação surge como uma forma não propriamente usual, mas das mais brutais e das mais usadas em termos icónicos para se mostrar que se dominou alguém”, diz Paulo Mendes Pinto.

Na Paleta de Narmer, por exemplo, que é uma placa com inscrições e relevos representando a unificação do Antigo Egito, o monarca surge junto a uma fila de guerreiros inimigos mortos, deitados no chão lado a lado e com as respetivas cabeças cortadas entre os pés. Também no império Assírio-Babilónico há copiosa iconografia que mostra o rei a contar os corpos de uma batalha: num monte há corpos, noutro cabeças.

Vazar o corpo do líquido da vida

Numa outra componente deste fenómeno, degolar surge como forma mais comum de sacrificar um animal, sangrando-o pelo pescoço. Num ser humano, passar uma lâmina no pescoço é garantia de morte eficaz, nenhum inimigo sobrevive. Matar com recurso à degola tem o intuito de “vazar o corpo do líquido da vida”, explica Mendes Pinto.

Há ainda uma dimensão espiritual no ato de decapitar. “Há muitas visões do fim do mundo, do fim dos tempos, em que se dará a ressurreição final de todos aqueles que foram vivos”, explica o professor. “Há muitos movimentos religiosos que acreditam que para esse juízo final poder ter lugar, o corpo tem de estar inteiro.”

Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição essencial para que no dia do Juízo Final possa haver um novo tempo. Logo, separar a cabeça do resto do corpo é uma forma de impedir que o defunto ganhe a Eternidade.

Uma forma de “morte digna”

Com maior ou menor teatralização, decapitar inimigos é uma técnica que atravessou a História, desde foram forjadas as primeiras espadas. Nas suas crónicas sobre as Cruzadas, Fulquério de Chartres, capelão do exército de Balduíno de Bolonha, conta como os cristãos decapitaram 10 mil judeus e árabes na conquista de Jerusalém (1099).

Na Europa, tornou-se uma forma de “morte digna” para a nobreza — rápida e supostamente indolor —, por oposição ao infame enforcamento, reservado ao povo. O método generalizou-se com a Revolução Francesa e, com o passar do tempo, a guilhotina passou das praças públicas para o interior das prisões.

Para Mendes Pinto, o grau de consciência de todos estes aspetos por parte de quem, nos dias de hoje, realiza este tipo de ataques será reduzido. “Alguém, fundamentalista islâmico, viu as imagens há quatro, cinco anos de gente a ser degolada pelo ISIS e, quanto mais não seja, faz exatamente o mesmo por imitação.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Quem era Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do Daesh

Voltamos a publicar o perfil de Abu Bakr al-Baghdadi escrito em julho de 2014, quando o líder radical exigiu obediência a todos os muçulmanos e deu fôlego ao Daesh

A recente aparição pública de Abu Bakr al-Baghdadi numa mesquita de Mosul (norte do Iraque) causou alarido por várias razões. No pulso, o líder da milícia radical Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) [Daesh] — que quer transformar em país as terras que controla na Síria e no Iraque — usava um Rolex. Algo surpreendente num líder islâmico que prega uma vida austera.

Depois, porque é raro Al-Baghdadi deixar-se observar. Até então, eram conhecidas apenas duas fotos suas. Uma delas constava do arquivo do Centro Nacional de Contraterrorismo dos EUA e foi usada em outubro de 2011 para Washington anunciar uma recompensa de 10 milhões de dólares (7,3 milhões de euros) pelo fornecimento de informações que conduzissem à captura ou morte do “terrorista Abu Du’a”, um dos seus pseudónimos.

A outra é uma fotografia tipo passe, divulgada em janeiro de 2014 pelo Ministério do Interior iraquiano, em que Al-Baghdadi surge com pouco cabelo, de barba curta e de fato e gravata escuros. Por essa altura, já o jihadista — agora autodenominado “califa do Estado Islâmico” — era visto como uma ameaça à estabilidade do Médio Oriente.

É o próprio Abu Bakr al-Baghdadi a alimentar a aura de mistério. Não dá entrevistas nem grava vídeos com mensagens, como Osama bin Laden ou o sucessor deste, Ayman al-Zawahiri. Por isso, entre os seus, ganhou a alcunha de “xeque invisível”.

Um dos líderes anteriores do movimento pagou com a vida os descuidos da exposição pública. O jordano Abu Musab al-Zarqawi — então líder da Al-Qaeda do Iraque (AQI), antecessora do EIIL [Daesh] — foi localizado e abatido pelos Estados Unidos em 2006.

Crê-se que Abu Bakr al-Baghdadi (este é, na realidade, o seu nome de guerra) tenha nascido em 1971, na cidade iraquiana de Samarra, a norte de Bagdade. Aos 18 anos, Ibrahim Awwad Ibrahim Ali al-Badri al-Samarrai (nome real) foi viver para Tobchi, um bairro pobre de Bagdade, habitado por sunitas e xiitas. “Era uma pessoa sossegada e muito educada”, disse Abu Ali, um residente do bairro, à reportagem do jornal britânico “The Telegraph”.

Enquanto estudante na Universidade Islâmica da capital, Al-Baghdadi vivia num quarto anexo à pequena mesquita de Tobchi e fazia parte da equipa de futebol da instituição. “Era o nosso Messi”, diz Abu Ali. “Era o nosso melhor jogador.” Abu Ali recorda também um episódio revelador de um “conservadorismo salafita” (fundamentalismo) na forma como Al-Baghdadi encarava o exercício do Islão. “Lembro-me de haver um casamento e de homens e mulheres dançarem e saltarem alegremente na mesma sala.

Ele ia na rua, viu a situação e gritou: ‘Como é possível homens e mulheres a dançarem alegremente desta maneira? Isto não é religioso.’ E logo acabou com a dança.”

Um estratego silencioso

Após a invasão norte-americana de 2003, que derrubaria o ditador Saddam Hussein, Al.Baghdadi não exibiu uma hostilidade particular aos Estados Unidos, diz Abu Ali. “Ele não ferve em pouca água. Foi sempre um estratego silencioso.” Outro residente em Tobchi diz que Baghdadi costumava liderar orações na mesquita local. “Era calmo e reservado”, diz Ahmed al-Dabash. “Passava algum tempo sozinho. Era discreto.

Ninguém reparava nele.” Episódio importante na radicalização do “califa do Estado Islâmico” foram os quatro anos que passou em Camp Bucca, um centro de detenção dos EUA no sul do Iraque, por onde passaram vários comandantes da Al-Qaeda. Foi libertado em 2009 e, no ano seguinte, subiu à liderança do Estado Islâmico do Iraque (ex-AQI), depois de o líder ser morto por forças americanas e iraquianas.

Al-Baghdadi saltou para as notícias em abril de 2013 quando anunciou a fusão do seu grupo com a Frente al-Nusra, a maior milícia islamita anti-Bashar al-Assad, a qual rejeitou a proposta aliança. Ao fazê-lo, criou o EIIL [Daesh] e abriu uma guerra com a Al-Qaeda mãe, cujo líder, o egípcio Ayman Zawahiri, queria que o EIIL [Daesh] se dedicasse ao “Iraque ferido” e deixasse a Síria para a Nusra.

“Tendo de escolher entre a lei de Deus e a lei de Zawahiri”, disse então Al-Baghdadi, “escolho a lei de Deus.” O desafio à Al-Qaeda granjeou-lhe prestígio entre os combatentes mais extremistas e tornou o EIIL [Daesh] atrativo para milhares de novos jihadistas.

O seu modus operandi inclui ataques suicidas, raptos, vergastadas, decapitações, crucificações e execuções sumárias. Com estes métodos bárbaros, o califa — título que não existia desde a abolição do Império Otomano, em 1924 — reclama-se “líder de todo e qualquer muçulmano”. E nessa condição quer incentivar a luta até à conquista… de Roma.

Curdos deixam governo de Maliki

Os políticos curdos não gostaram que o primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki, acusasse a sua comunidade de dar abrigo a rebeldes islamitas na capital regional, Erbil. Resolveram, por isso, suspender a participação no Governo iraquiano, disse à agência Reuters, na quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros, o curdo Hoshiyar Zebari. Também são curdos o vice-primeiro-ministro e os titulares do Comércio, Migrações e Saúde.

Os curdos continuarão a desempenhar as funções de deputados, mas a notícia não augura nada de bom para a tentativa de formar um governo de união que fortaleça o combate contra os radicais do Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Zebari teme uma desintegração do país caso não seja formado um Executivo de união. “O país está literalmente dividido em três Estados: o curdo, o Estado negro (EIIL) [Daesh] e Bagdade”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui

Daesh cada vez mais encurralado, em Raqqa e Mossul

O cerco ao Daesh aperta-se na Síria e no Iraque. Em Raqqa, forças sírias lideradas pelos curdos surpreenderam os jiadistas e furaram a muralha da Cidade Velha. Na cidade iraquiana de Mossul, já se prepara a vitória

As forças sírias estão mais perto do que nunca de reconquistar a cidade de Raqqa — considerada a capital do autodenominado Estado Islâmico (Daesh).

O Comando Central dos Estados Unidos confirmou esta terça-feira que “as Forças Democráticas Sírias [FDS] romperam a Cidade Velha de Raqqa”, lê-se num comunicado. “Forças da coligação [internacional] apoiaram o avanço das FDS sobre a parte mais fortificada de Raqqa, abrindo duas pequenas passagens na muralha de Rafiqah que circunda a Cidade Velha.”

Segundo o CENTCOM, cuja sede no Médio Oriente é a base aérea de Al-Udeid, no Qatar, “combatentes do Daesh usavam a histórica muralha”, que tem cerca de 2,5 quilómetros de comprimento, “como posição de combate e colocaram minas e explosivos improvisados em várias quebras da muralha”.

Citado pela Al-Jazeera, o Observatório Sírio para os Direitos Humanos confirmou que as forças sírias atacaram Raqqa, pela primeira vez, pelo sul, depois de atravessarem o rio Eufrates. A manobra, efetuada no domingo, liderada pelos curdos, permitiu-lhes entrar na cidade por uma parte nova e surpreender os jiadistas.

“Os confrontos são extremamente violentos”, afirmou Rami Abdulrahman, diretor do Observatório, sedeado em Londres, em contacto permanente com fontes no terreno.

Os avanços das tropas sírias sobre Raqqa — que está nas mãos do Daesh desde julho de 2014 — são de grande simbolismo para a luta global contra o Daesh, sobretudo na Síria e no Iraque. Neste, Mossul — o principal bastião do Daesh no país — está praticamente reconquistado aos jiadistas.

A 29 de junho, o primeiro-ministro iraquiano, Haider Al-Abadi‏, escreveu no Twitter: “Estamos a assistir ao fim do falso Estado do Daesh, a libertação de Mossul prova-o. Não vamos ceder, as nossas bravas forças trarão a vitória”.

Segundo a agência Reuters, na segunda-feira, o Daesh combatia para manter as últimas e poucas ruas ainda sob controlo jiadista na Cidade Velha de Mossul. “Em combates ferozes, unidades do exército iraquiano encurralaram os revoltosos num retângulo de 300 por 500 metros ao lado do rio Tigre.”

A 29 de junho passado — precisamente três anos após Abu Bakr al-Baghdadi ter anunciado o advento do Estado Islâmico, no púlpito da Grande Mesquita Al-Nuri, em Mossul —, as tropas iraquianas anunciaram a reconquista daquele local simbólico. Dias antes, os jiadistas reduziram-no a escombros, numa manobra entendida como uma atitude desesperada que prenuncia o fim do Daesh na mais importante cidade do norte do Iraque.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de julho de 2017. Pode ser consultado aqui