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EUA perderam a paciência e começaram a endurecer a relação com Israel: abstenção no Conselho de Segurança viabiliza exigência de cessar-fogo

A posição dos Estados Unidos de apoio incondicional a Israel é cada vez mais insustentável entre os próprios norte-americanos. Depois de, na semana passada, o secretário de Estado Antony Blinken dizer que a ofensiva em Rafah seria “um erro”, este domingo a vice-Presidente Kamala Harris não descartou “consequências” se a investida for avante. Esta segunda-feira, a abstenção de Washington a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que exige o cessar-fogo imediato em Gaza confirma uma mudança de posição em relação a Israel

Com o mês do Ramadão a entrar na terceira semana, o Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas aprovou, esta segunda-feira, uma proposta de resolução com vista a uma trégua humanitária imediata na Faixa de Gaza, que contribua para aliviar o sofrimento da população durante o mês mais sagrado para os muçulmanos, que termina a 9 de abril.

A resolução foi proposta pelos dez membros não permanentes do CS e tinha garantido, à partida, o apoio de dois dos cinco membros permanentes — a Federação Russa e a China. A votação foi inequívoca e também surpreendente: 14 votos a favor a uma abstenção, dos Estados Unidos, que assim optaram por não aplicar o poder de veto em defesa de Israel.

O texto aprovado esta segunda-feira:

“exige um cessar-fogo imediato durante o mês do Ramadão, respeitado por todas as partes, que leve a um cessar-fogo sustentável e duradouro, e também exige a libertação imediata e incondicional de todos os reféns.”

Esta resolução segue-se a uma outra votada há três dias, proposta pelos Estados Unidos que foi vetada por Moscovo e Pequim. Essa iniciativa lançou uma nuvem sobre a relação — até agora à prova de bala — que os EUA mantêm, há décadas, com Israel. A votação desta segunda-feira confirma que Washington perdeu a paciência.

O documento redigido pelos Estados Unidos, que foi a votos na sexta-feira, determinava “o imperativo de um cessar-fogo imediato e sustentado para proteger os civis de todos os lados”. O diploma recebeu 11 votos a favor, uma abstenção e a rejeição de três membros, entre os quais a Federação Russa e a China. Por terem poder de veto, Moscovo e Pequim fizeram prevalecer a sua posição e neutralizaram a vontade da maioria que aprovou a resolução.

Nos corredores das Nações Unidas, circulava a ideia de que os Estados Unidos iam assumir uma rota de colisão com o aliado Israel e defender uma trégua nos combates. Na véspera da votação, um artigo no influente “The New York Times” realçava que a resolução continha “a linguagem mais forte que Washington usou até agora” e que era “uma aparente mudança do aliado mais próximo de Israel”.

O diabo está nos detalhes

Porém, “se lermos cuidadosamente a resolução proposta pelos Estados Unidos, ela não pede um cessar-fogo”, alerta ao Expresso Joel Beinin, professor emérito de História do Médio Oriente, na Universidade de Stanford (Califórnia, EUA).

O texto era significativamente mais forte do que diplomas anteriores apoiados pelos norte-americanos, dizia que a trégua era importante, mas ficava aquém ao não exigi-la. E, contrariamente a resoluções anteriores vetadas pelos EUA que defendiam um cessar-fogo incondicional, esta ligava diretamente um cessar-fogo à libertação dos reféns israelitas.

Da expectativa de uma posição dura em relação a Israel às críticas sobre a linguagem ambígua e complicada do texto da resolução, que mais parecia uma tentativa de agradar a todos, não ficou clara uma mudança substancial no apoio dos EUA a Israel — que a votação desta segunda-feira confirmou.

Para Joel Beinin, os Estados Unidos tiveram duas grandes motivações para apresentar esta resolução. Por um lado, “as ações israelitas em Gaza são ultrajantes”. Por outro, “a opinião pública nos EUA é favorável a um cessar-fogo, ao fornecimento de ajuda humanitária a Gaza e à libertação dos reféns. O Presidente Biden corre o risco de perder as eleições de novembro se não tiver em conta que partes importantes da base do Partido Democrata se opõem à sua política relativa à guerra em Gaza”.

Desde o ataque do Hamas de 7 de outubro, os EUA já vetaram três resoluções condenatórias de Israel. Desde a década de 1970, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA têm sido um escudo protetor dos israelitas, tendo já usado a prerrogativa do veto 48 vezes em defesa de Israel, mais de metade das 85 vezes em que bloqueou resoluções. Isso tem valido a Washington o rótulo de cúmplice da impunidade de Israel face ao direito internacional.

A resolução apresentada na sexta-feira indiciou uma vontade de mudança em linha com o crescente incómodo vocalizado por políticos norte-americanos em face da desproporcionalidade da guerra, do “pesadelo sem fim”, como o descreveu, este fim de semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, que esteve na fronteira entre Gaza e o Egito, e dos planos de guerra de Telavive, que passam por uma operação em Rafah, onde estão acantonados cerca de 1,5 milhões de palestinianos.

A 14 de março, o líder da maioria democrata no Senado, Chuck Schumer, um judeu, proferiu um discurso apaixonado em que afirmou que Israel tem direito a defender-se, mas que “a forma como exerce esse direito é importante”. Schumer fez a apologia dos dois Estados como solução para o conflito, identificou a liderança do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu como parte do problema e defendeu que “novas eleições são a única forma de permitir um processo de tomada de decisão saudável e aberto sobre o futuro de Israel”.

“Israel não poderá sobreviver se se tornar um pária”, acrescentou. “O apoio a Israel diminuiu em todo o mundo nos últimos meses, e esta tendência só irá piorar se o Governo israelita continuar a seguir o seu caminho atual.”

Este domingo, a televisão norte-americana ABC divulgou uma entrevista à vice-Presidente dos EUA, Kamala Harris, que se mostrou incisiva em relação a Israel. “Temos sido claros em várias conversas e de todas as formas que qualquer grande operação militar em Rafah seria um grande erro”, defendeu. “Deixe-me dizer uma coisa: estudei os mapas. Não há lugar para aquelas pessoas irem.” A vice de Biden sugeriu mesmo que se a investida sobre Rafah for avante poderá haver “consequências” para Israel.

“Claro que, a longo prazo, tudo isto pode ter impacto nas relações entre os Estados Unidos e Israel. Mas por enquanto, os EUA continuam a enviar armas para Israel”, comenta Joel Beinin.

Os EUA são o principal fornecedor de armamento de Israel. E todos os anos, Washington desembolsa uma grande quantia em ajuda militar ao Estado judeu. Em 2023, a verba rondou os 3800 milhões de dólares (mais de 3500 milhões de euros). Atualmente, a Casa Branca está a trabalhar com o Congresso para garantir uma ajuda adicional de 14 mil milhões de dólares (quase 13 mil milhões de euros).

Na passada sexta-feira, a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez defendeu, num discurso na Câmara dos Representantes, que os EUA não podem continuar a “facilitar” matanças em Gaza como forma de honrar a sua aliança com Israel.

“É chegado o momento de forçar o cumprimento da lei dos EUA e dos padrões de humanidade, e cumprir as nossas obrigações para com o povo americano de suspender a transferência de armas dos EUA para o Governo israelita, a fim de parar e prevenir novas atrocidades.”

A 23 de dezembro de 2016, estava Barack Obama a viver os seus últimos dias na Casa Branca (com Donald Trump já eleito), os Estados Unidos fizeram história e abstiveram-se numa resolução do CS sobre os colonatos israelitas nos territórios palestinianos, que assim foi aprovada.

resolução 2334 considera que os colonatos “não têm validade legal e constituem uma violação flagrante do direito internacional” e “exige que Israel cesse imediata e completamente todas as atividades dos colonatos no território palestiniano ocupado”.

O primeiro-ministro de Israel disse que o país não iria obedecer. “Netanyahu já tinha destruído a sua relação com o Presidente Obama ao agir pelas suas costas e combinar com a liderança republicana do Congresso um discurso numa sessão conjunta do Congresso e por fazer lóbi contra o acordo nuclear com o Irão”, explica Joel Beinin.

“Essa resolução foi, em parte, uma forma de ‘retribuição’. Não teve qualquer impacto porque o Conselho de Segurança não adotou qualquer mecanismo de aplicação, Obama estava em final de mandato e os EUA nada fizeram uma vez que a Administração Trump [que se seguiu] apoiou totalmente a expansão dos colonatos. Apesar dessa resolução, os laços EUA-Israel tornaram-se mais estreitos com Trump.”

Oito anos depois, o mesmo Netanyahu continua a bater o pé ao amigo americano. Na quinta-feira, véspera da votação no Conselho de Segurança da resolução proposta pelos EUA, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, defendeu que uma incursão terrestre em Rafah seria “um erro”, algo “desnecessário” para derrotar o Hamas e que os EUA “não apoiam”.

No dia seguinte, Blinken chegou a Israel pela oitava vez desde 7 de outubro. Reuniu-se com o gabinete de guerra do Governo israelita e ouviu de Netanyahu aquilo que não queria: “Eu disse-lhe que não seremos capazes de derrotar o Hamas sem entrar em Rafah e eliminar os batalhões restantes que lá estão”, afirmou o chefe do Governo israelita. “Eu disse-lhe que esperava fazê-lo com o apoio dos Estados Unidos, mas que, se for necessário, fá-lo-emos sozinhos.”

(FOTO Sala do Conselho de Segurança das Nações Unidas WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Problemas na justiça afastam Trump do combate político: “O público sabe quem sou”

Ex-Presidente, que lidera as sondagens, faltou ao primeiro debate entre candidatos às primárias republicanas

Foto de BRENDAN SMIALOWSKI / Getty Images. Ilustração fotográfica de LINDSEY BAILEY / AXIOS

Se em 234 anos, tantos quantos passaram desde a criação da presidência dos Estados Unidos, nunca um titular do órgão tinha sido acusado criminalmente pela Justiça do país, Donald Trump levou essa distinção ao exagero. Só este ano, o 45º chefe de Estado já foi indiciado em quatro processos criminais, abertos noutros tantos estados. Em dois deles, o início do julgamento já tem data.

Um dos casos é especialmente mais grave do que os restantes — a acusação de interferência eleitoral na Georgia, após as presidenciais de 2020, que Trump perdeu para Joe Biden por menos de 12 mil votos. Este mês, um grande júri desse estado do sueste implicou Trump e 18 aliados na constituição de uma “empresa criminosa” visando subverter a derrota do republicano naquele estado crucial para as contas finais.

DeSantis respondeu que os Estados Unidos “estão em declínio” e que tal “não é inevitável, é uma escolha”. E acrescentou: “Precisamos de mandar Joe Biden de volta para o seu porão e reverter o declínio americano.”

A acusação tem por base a Lei das Organizações Corruptas e Influenciadas por Extorsionistas (RICO, na sigla inglesa) da Georgia, que possibilita à Justiça o agrupamento daquilo que possam parecer crimes não relacionados, cometidos por pessoas diferentes, mas percecionados como tendo objetivo comum — neste caso, manter Donald Trump na Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2021, à revelia da vontade do eleitorado.

Rendições até ao meio-dia

Foi graças a uma lei deste género que, na década de 1980, Rudy Giuliani, à época procurador do Distrito Sul de Nova Iorque, combateu a máfia da cidade, de que mais tarde seria presidente da Câmara. Agora, o ex-advogado de Trump é um dos acusados ao abrigo da mesma lei. Quarta-feira, entregou-se às autoridades numa prisão de Atlanta, a capital da Georgia. Saiu em liberdade após pagar uma fiança de 150 mil dólares (€138 mil).

Se for condenado no caso de interferência eleitoral na Georgia, o ex-Presidente incorre numa pena de prisão de entre 5 e 20 anos

Os 19 implicados neste processo têm até ao meio-dia de hoje (17 horas em Portugal Continental) para se renderem, incluindo Trump, que aceitou entregar-se mediante o pagamento de uma fiança fixada em 200 mil dólares (€184 mil). O acordo proíbe-o explicitamente de usar as redes sociais para atingir ou abordar réus e testemunhas do caso. Se for condenado, o ex-Presidente incorre numa pena de prisão de entre 5 e 20 anos.

Os inúmeros e graves problemas com a Justiça afastaram Trump do combate político. Quarta-feira à noite, o Fiserv Forum, em Milwaukee (Wisconsin), acolheu o primeiro debate entre candidatos às primárias republicanas com vista às presidenciais de 5 de novembro de 2024. O ex-Presidente faltou e esbanjou confiança na hora de justificar a ausência. “O público sabe quem sou e que presidência bem-sucedida tive”, afirmou, domingo passado, na sua rede social Truth Social. “Portanto, não participarei nos debates.”

Favoritismo esmagador

No mesmo dia, uma sondagem da televisão CBS creditava-o com 62% das preferências de voto. Dos inquiridos, 77% consideravam as acusações na Justiça contra Trump motivadas por razões políticas e 99% dos que escolhiam ou consideravam votar em Trump defendiam que “as coisas estavam melhores” com ele na Casa Branca.

O seu adversário mais próximo, o governador da Florida, Ron DeSantis, ficava à distância de quase 50 pontos percentuais (16%). Os restantes sete candidatos analisados não atingiam a fasquia dos 10%. Mike Pence, o antigo vice-presidente de Trump, não ia além dos 5%.

Entrevista para ofuscar

Apesar da vantagem esmagadora nas sondagens, bem ao seu estilo, Trump não deu de barato todo o tempo de antena aos oito adversários que foram a debate. Cinco minutos antes de arrancar a discussão em Milwaukee, começou a ser transmitida na rede social X (antigo Twitter) uma entrevista de Trump concedida a Tucker Carlson, polémico apresentador despedido há tempos da Fox News.

A conversa de cerca de 45 minutos, pré-gravada no clube de golfe de Trump em Bedminster, Nova Jérsia, não fez manchetes, mas roubou audiência ao debate republicano, com mais de 80 milhões de visualizações nas duas horas que se seguiram à sua divulgação. Ao mesmo tempo que desviou atenções dos antagonistas, Trump fez uma provocação à Fox News, que transmitiu o debate em direto, e com quem Trump já teve melhores dias.

E se Trump for condenado…

Em Milwaukee, o assunto Trump apenas surgiu na segunda metade da discussão (que durou duas horas), porventura para dar tempo a que quem acorreu a ouvir o ex-Presidente na rede social voltasse a sintonizar a Fox. O moderador referiu-se a Trump como “o elefante que não está na sala” e perguntou aos oito candidatos se tencionam apoiá-lo na eventualidade de ele ganhar a nomeação republicana às eleições de 2024 e for também condenado na Justiça.

Quatro foram rápidos a levantar a mão — Doug Burgum (governador do Dacota do Norte), Tim Scott (senador pela Carolina do Sul), Nikki Haley (ex-governadora da Carolina do Sul e antiga embaixadora dos EUA na ONU) e Vivek Ramaswamy (empresário). Outros dois foram lentos a fazê-lo — Ron DeSantis e Mike Pence (também ex-governador do Indiana). Um demonstrou relutância (Chris Christie, antigo governador da Nova Jérsia) e apenas um assumiu que não o apoiaria (Asa Hutchinson, ex-governador do Arkansas).

Num debate em Milwaukee, oito republicanos disputaram o título de ‘melhor candidato alternativo’ a Trump

A pergunta não foi inocente, já que um dos critérios previamente estabelecidos pelo Comité Nacional Republicano para selecionar os participantes no debate foi a assinatura do “Compromisso Vencer Biden”, com o qual os candidatos prometeram apoiar o vencedor da nomeação republicana, fosse quem fosse, no duelo contra Biden, previsível vencedor incontestado da nomeação democrata. Duas outras exigências foram a obtenção de pelo menos 1% das intenções de voto em três sondagens nacionais e já terem angariado um mínimo de 40 mil doadores únicos para a sua campanha.

Durante duas horas, e perante uma audiência ao vivo de 4 mil pessoas (que reagia a cada resposta e não se inibia de vaiar quem criticasse Trump), os oito republicanos — com idades entre os 38 anos (Vivek Ramaswamy) e os 72 (Asa Hutchinson) — disputaram o título de ‘melhor candidato alternativo’ a Trump, o mais velho de todos (77 anos). Para alcançá-lo, o alvo preferencial foi Joe Biden, que tem mais quatro anos do que Trump.

O significado da canção

Consistente no segundo lugar das preferências de voto republicanas, DeSantis apontou ao atual Presidente quando confrontado sobre o porquê de o grande êxito musical do momento no país (‘Rich Men North of Richmond’, em português homens ricos a norte de Richmond) ser um tema country interpretado por um artista desconhecido (Oliver Anthony) que discorre sobre os problemas e as frustrações da classe trabalhadora e aponta o dedo aos poderosos de Washington.

OS CASOS QUE ATRAPALHAM TRUMP

O ex-Presidente enfrenta 91 acusações em quatro processos abertos em estados diferentes. Dois julgamentos já têm data

SUBORNO COMO DESPESA LEGAL
A campanha para as presidenciais de 2016, que Donald Trump venceu, estava nas últimas semanas quando saíram das suas contas 130 mil dólares para evitar um escândalo. A verba foi usada para comprar o silêncio de Stormy Daniels, atriz de filmes pornográficos com quem Trump se terá envolvido. A transação configura possível violação da lei estadual de Nova Iorque, não pelo pagamento em si, mas por ser registada como despesa legal. Trump enfrenta 34 acusações sobre falsificação de registos comerciais, num julgamento agendado para 25 de março de 2024. Sendo o crime estadual, só o governador de Nova Iorque poderá perdoar-lhe.

POSSE DE DOCUMENTOS SECRETOS
Na Florida, onde vive no luxuoso resort de Mar-a-Lago, Trump responde por 40 acusações de posse de documentos confidenciais, alguns classificados como “ultrassecretos”, que terá levado quando deixou a Casa Branca, em janeiro de 2021. Devolveu caixas de documentação, mas subsistiram suspeitas de que mantinha na propriedade registos importantes, o que lhe valeu uma acusação de obstrução aos esforços das autoridades para reavê-los. O início do julgamento está agendado para 20 de maio de 2024. Estando em causa crimes federais, se Trump for reeleito Presidente poderá absolver-se a si próprio.

REVERTER A DERROTA DE 2020
O 45º Presidente enfrenta quatro acusações de crimes federais relativas a uma ampla campanha destinada a reverter o resultado oficial da eleição presidencial de 2020, que Trump perdeu para Joe Biden. Em causa estão disseminação de informação falsa sobre fraude eleitoral ou pressão sobre autoridades estaduais republicanas para minar resultados vitoriosos de Biden. O último esforço culminou com a invasão ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, por uma multidão de apoiantes que tentou abortar a transferência de poder. O processo decorre em Washington. Se reeleito e condenado, Trump poderá perdoar-se.

INTERFERÊNCIA ELEITORAL
É o caso mais grave e pode valer ao ex-Presidente entre 5 e 20 anos de prisão. Trump enfrenta 13 acusações de tentativa de interferência eleitoral na Georgia, estado crucial para o desfecho das eleições de 2020. A 2 de janeiro de 2021, ao telefone, incitou o secretário de estado da Georgia (republicano) a “encontrar” 11.780 votos, necessários para ganhar a Biden. Várias recontagens confirmaram a vitória do democrata. Além de Trump, estão acusados 18 aliados, ao abrigo de legislação estadual usada para acusar máfias e gangues do crime. Os perdões são concedidos por um painel de cinco membros nomeado pelo governador.

Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Primeiro debate entre candidatos republicanos não conseguiu ignorar “o elefante que não esteve na sala”

Donald Trump falhou ao debate do Partido Republicano que foi tiro de partida para a próxima corrida à Casa Branca, quarta-feira à noite. O ex-Presidente, que lidera destacado as sondagens para a nomeação do ‘partido do elefante’ e prometeu entregar-se à justiça esta quinta-feira, não foi a Milwaukee, mas montou um palco só para si. Sensivelmente à mesma hora, foi publicada numa rede social uma entrevista sua ao polémico apresentador Tucker Carlson

No sentido dos ponteiros do relógio, a partir do canto superior esquerdo: Mike Pence, Ron DeSantis, Nikki Haley, Vivek Ramaswamy, Chris Christie, Asa Hutchinson, Tim Scott e Doug Burgum SCOTT OLSON, DREW ANGERER / GETTY IMAGES

A 441 dias das próximas presidenciais nos Estados Unidos, abriu mais uma época eleitoral no país, com o primeiro debate na televisão entre candidatos às primárias do Partido Republicano. Transmitido pela conservadora Fox News, realizou-se no Fiserv Forum, em Milwaukee, Wisconsin, um estado simbólico que os republicanos consideram ser crucial para decidir as próximas eleições.

A braços com graves problemas na justiça — 91 acusações criminais no âmbito de quatro processos abertos em quatro estados e dois julgamentos já agendados —, Donald Trump, que lidera de forma destacada todas as sondagens relativas à corrida republicana, faltou ao debate.

“O público sabe quem eu sou e que presidência bem-sucedida tive. Por essa razão, não participarei em debates”, escreveu, dias antes, na sua rede social Truth Social, deixando no ar a possibilidade de não comparecer a nenhuma discussão futura.

Trump aposta na contraprogramação

Bem ao seu estilo, Trump não deu de barato todo o tempo de antena aos adversários. Cinco minutos antes de o debate começar, foi para o ar, na rede social X (antigo Twitter), uma entrevista de Trump concedida a Tucker Carlson, apresentador despedido da Fox News, pré-gravada no seu clube de golfe em Bedminster, Nova Jérsia.

Desta forma, pelo menos durante 45 minutos, Trump desviou audiências do debate, roubando palco aos seus diretos antagonistas e provocando a Fox News, com quem já teve melhores dias.

Mas não terá sido a vontade de provocar que afastou Trump da discussão. O debate realizou-se quarta-feira à noite (madrugada de quinta-feira em Lisboa), horas antes de Trump — assim o prometeu — se entregar à justiça, para responder no caso de interferência eleitoral na Geórgia após as eleições de 2020, que perdeu para Joe Biden. “Irei a Atlanta, na Geórgia, quinta-feira, para ser PRESO”, escreveu noutra mensagem na rede social que fundou.

OS OITO PARTICIPANTES

  • Ron DeSantis, 44 anos, governador da Florida
  • Mike Pence, 64, vice-presidente de Donald Trump
  • Nikki Haley, 51, ex-governadora da Carolina do Sul e antiga embaixadora dos EUA na ONU
  • Chris Christie, 60, antigo governador da Nova Jérsia
  • Doug Burgum, 67, governador do Dacota do Norte
  • Asa Hutchinson, 72, ex-governador do Arcansas
  • Tim Scott, 57, senador pela Carolina do Sul
  • Vivek Ramaswamy, 38 anos, empresário da área da tecnologia

Pela ausência no debate e pelo que anunciou para o dia seguinte, Trump tornou-se “o elefante que não está na sala”, na formulação do moderador Bret Baier. De seguida, perguntou aos oito candidatos se tencionam apoiar Trump na eventualidade de ele vir a ser o candidato republicano às eleições de 2024 e for condenado na justiça.

Quatro foram rápidos a levantar a mão (Doug Burgum, Tim Scott, Nikki Haley e Vivek Ramaswamy), outros dois foram lentos a fazê-lo (Ron DeSantis e Mike Pence), um demonstrou relutância (Chris Christie, que afirmaria, sob grande vaia do público, que “a conduta [de Trump] está abaixo do cargo de Presidente dos Estados Unidos”) e apenas um não levantou a mão (Asa Hutchinson).

A pergunta não foi inocente. Um dos critérios previamente estabelecidos pelo Comité Nacional Republicano para selecionar os participantes no debate foi a assinatura de um “Compromisso Vencer Biden”, através do qual os candidatos prometem apoiar o vencedor da nomeação republicana, seja quem for, no duelo contra Biden, previsível vencedor incontestado da nomeação democrata.

Durante duas horas, e perante uma audiência ao vivo de 4000 pessoas (pouco tolerante a críticas a Trump), oito republicanos com idades entre os 38 anos e os 72 anos disputaram o título de ‘melhor candidato alternativo’ a Trump, que tem 77 anos. Para alcançá-lo, o alvo preferencial foi… Joe Biden.

Consistente na segunda posição das preferências de voto republicanas, o governador da Florida, Ron DeSantis, apontou ao atual Presidente quando confrontado sobre o porquê do grande êxito musical do momento no país (“Rich Men North of Richmond”) ser um tema country de um artista desconhecido (Oliver Anthony) sobre os problemas da classe trabalhadora.

DeSantis respondeu que os Estados Unidos “estão em declínio” e que “esse declínio não é inevitável, é uma escolha”. E acrescentou: “Precisamos de mandar Joe Biden de volta para o seu porão e reverter o declínio americano”.

Instados a dar respostas de um minuto (findo o qual soava uma buzina), os candidatos esgrimiram argumentos de forma mais acalorada quando o assunto foi o aborto. Horas antes do debate, o Supremo Tribunal estadual da Carolina do Sul confirmou a constitucionalidade da proibição do aborto a partir das seis semanas de gestação — quando muitas mulheres não sabem sequer que estão grávidas —, decretada em maio pelo governador republicano, Henry McMaster.

Nikki quer consenso, Pence prefere autoridade

Afirmando-se “pró-vida”, Nikki Haley, antiga governadora daquele estado e a única mulher entre os oito candidatos, defendeu que “há que parar de demonizar este assunto”, defendendo a necessidade de um “consenso” caso venha a ser adotada uma proibição do aborto a nível federal.

“Não podemos todos concordar que devemos proibir os abortos tardios? Não podemos todos concordar que devemos encorajar as adoções? Não podemos todos concordar que médicos e enfermeiros que não concordam com o aborto não deveriam ter de realizá-lo? Não podemos todos concordar que a contraceção deveria estar disponível? E não podemos todos concordar que não vamos pôr uma mulher na prisão ou aplicar-lhe a pena de morte se fizer um aborto?”

Haley teve a desafiá-la Mike Pence, que no debate se afirmou “orgulhoso” por ter sido possível, durante o seu mandato (foi vice-presidente de Trump), colocar no Supremo Tribunal três juízes conservadores. O antigo número dois afirmou que “consenso é o oposto de liderança”, defendeu “uma liderança sem remorsos, que se baseie em princípios e expresse compaixão”, e prometeu pugnar pela proibição do aborto após 15 semanas em todos os estados.

Ao longo de duas horas, as perguntas foram trazendo à discussão temas como economia, alterações climáticas, armas, segurança na fronteira, educação, Ucrânia e Rússia, e até objetos voadores não-identificados.

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
outsider Vivek Ramaswamy, que nunca trabalhou no Estado e, nas palavras de Chris Christie, “soava como o Chat GPT”, assumiu-se como o mais trumpista dos candidatos, em estilo e substância. Defendeu que as alterações climáticas são “um embuste” e que “há mais pessoas a morrer de más políticas para as combater do que efetivamente das alterações climáticas”.

NARCÓTICOS
O governador do Dacota do Norte, Doug Burgum, trouxe a debate outro tipo de morte no país. “Não foram só os 70 mil por causa do fentanil. Perdemos 200 mil pessoas por overdose desde que Biden tomou posse.”

SEGURANÇA FRONTEIRIÇA
Questionado sobre se os EUA deveriam enviar forças especiais para dentro do México para combater os cartéis da droga, Ron DeSantis respondeu sem dúvidas. “Sim, reservamo-nos no direito de atuar.”

UCRÂNIA
Chris Christie, que foi, além de Mike Pence, o único a visitar a Ucrânia, considerou que as atrocidades cometidas naquele país são obra de “Vladimir Putin, de quem Donald Trump disse que é “brilhante e um génio”.

A guerra na Ucrânia quase monopolizou os comentários de política externa, com Haley, antiga diplomata na ONU (2017-18), a prever que uma vitória da Rússia seja uma vitória para a China, que a seguir irá “comer Taiwan”. A leitura pode impressionar analistas, mas é pouco provável que mobilize eleitorado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

As 10 palavras que Joe Biden mais repetiu no discurso de tomada de posse

Num discurso que durou quase 22 minutos, o novo Presidente dos Estados Unidos da América falou ao coração dos norte-americanos repetindo, em particular, dez palavras. Com elas, procurou olhar para o passado dos Estados Unidos e projetar o futuro do país, do qual é agora o principal timoneiro

AMÉRICA

“Este é o dia da América.” Assim iniciou Joe Biden o seu discurso. Repetiria a palavra “América” mais 20 vezes, ora para se referir ao passado histórico dos Estados Unidos ora para galvanizar os norte-americanos em relação aos desafios futuros.

Perto do final, o Presidente invocou uma canção que lhe diz muito, segundo o próprio. “American Anthem”, composta no final dos anos 1990, fala do “sonho de uma nação onde a liberdade durará” e de como a dignidade é “aquilo que fortalece a alma de uma nação que nunca morre”.

Biden leu um excerto, como que se tivesse sido escrito em nome próprio: “O trabalho e as orações de séculos trouxeram-nos até este dia. / Qual será o nosso legado? Que dirão os nossos filhos? / Que o meu coração saiba, quando os meus dias acabarem / América, América, que dei o meu melhor por ti.”

NAÇÃO

Biden repetiu esta palavra 15 vezes. Falou da “nação” como sentimento de pertença comum a todos os americanos e apelou à união de todos para que sejam curadas as feridas expostas pelo ataque ao Capitólio e, no imediato, seja vencida a batalha contra a covid-19.

“Meus compatriotas, no trabalho que temos pela frente, vamos precisar uns dos outros. Precisamos de todas as nossas forças para perseverarmos através deste inverno sombrio. Estamos a entrar no que pode ser o período mais difícil e mortal do vírus. Devemos deixar a política de lado e finalmente enfrentar esta pandemia como uma nação. Uma nação.”

POVO

“O povo, a vontade do povo, foi escutada e a vontade do povo foi atendida”, disse Biden, acrescentando que ali se celebrava não a vitória de um candidato, mas da democracia.

Numa homenagem ao “povo” — palavra que proferiu 11 vezes —, o Presidente liderou uma oração em silêncio. “No meu primeiro ato enquanto Presidente, gostaria de pedir-vos que se juntem a mim num momento de oração silenciosa para recordar todos aqueles que perdemos neste último ano para a pandemia. Esses 400 mil americanos. Mães, pais, maridos, esposas, filhos, filhas, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Vamos honrá-los tornando-nos o povo e a nação que sabemos que podemos e devemos ser.”

DEMOCRACIA

Ao longo de todo o discurso, Biden partilhou a ideia de que a democracia norte-americana sobreviveu a ameaças. “Voltamos a aprender que a democracia é preciosa. A democracia é frágil. Neste momento, meus amigos, a democracia prevaleceu”, disse o Presidente. “Este é o dia da democracia.”

Biden socorreu-se igualmente do conceito de “democracia”, que repetiu 11 vezes, para dirigir-se diretamente aos 74 milhões de norte-americanos que não votaram nele.

“Para todos aqueles que não nos apoiaram, deixem-me dizer o seguinte: ouçam-me à medida que avançamos. Avaliem-me a mim e ao meu coração. Se ainda discordarem, seja. Isso é democracia. Essa é a América. O direito de discordar, pacificamente, a barreira de proteção da nossa república, é talvez a maior força desta nação.”

HOJE

Sem nunca se referir expressamente ao seu antecessor, Joe Biden proferiu várias vezes a palavra “hoje” — nove no total — para assinalar um voltar de página na governação do país.

“Hoje, neste momento, neste lugar, vamos começar do zero, todos nós. Vamos começar a ouvir uns aos outros novamente. Escutar-nos uns aos outros, olharmos uns aos outros, mostrar respeito uns pelos outros. A política não necessita de ser um fogo furioso, que destrói tudo à sua passagem. Cada desacordo não precisa de ser razão para uma guerra total. E devemos rejeitar a cultura na qual os próprios fatos são manipulados e até fabricados.”

Biden reafirmou a importância do dia de “hoje” para realçar a tomada de posse da primeira mulher no cargo de vice-presidente, Kamala Harris. “Não me digam que as coisas não podem mudar.”

UNIDADE

Paralelamente aos elogios ao “povo” e à “democracia” norte-americanos, Joe Biden desdobrou-se em apelos à “unidade” entre todos. “Este é o nosso momento histórico de crise e desafio. E a unidade é o caminho a seguir”, disse o 46º Presidente. “Pois sem unidade não haverá paz — apenas amargura e fúria. Não haverá progresso — apenas uma indignação esgotante. Não haverá nação — apenas um estado de caos.”

Biden referiu a presença na cerimónia de antigos presidentes do Partido Democrata (Bill Clinton e Barack Obama,) e do Partido Republicano (George W. Bush). O democrata Jimmy Carter esteve ausente por razões de saúde mas Biden sublinhou que tinha falado com ele pelo telefone na véspera. O republicano Donald Trump saiu da Casa Branca sem reconhecer a vitória de Biden e não quis assistir à cerimónia. Não sucedia há 152 anos.

“Superar os desafios, restaurar a alma e garantir o futuro da América exige muito mais do que palavras. Requer o mais elusivo de todas as coisas numa democracia: Unidade. Unidade.” Citou esta palavra oito vezes.

HISTÓRIA

Biden falou oito vezes de “história” para invocar o passado e projetar o futuro. “História, fé e razão mostram o caminho, o caminho da unidade.”

E acrescentou: “Eu sei que falar de unidade pode soar para alguns como uma fantasia tola, hoje em dia. Eu sei que as forças que nos dividem são profundas e reais, mas também sei que não são novas. A nossa história tem sido feita de uma luta constante entre o ideal americano de que todos somos criados de forma igual e a dura e feia realidade de que o racismo, o nativismo, o medo e a demonização há muito nos separaram. A batalha é perene e a vitória nunca está garantida.”

DESAFIO

“Poucas pessoas na história da nossa nação enfrentaram mais desafios ou depararam-se com tempos mais desafiadores ou difíceis do que o tempo que agora vivemos. Um vírus que acontece uma vez por século assola silenciosamente o país. Ceifou tantas vidas num ano como as vidas que foram perdidas em toda a Segunda Guerra Mundial. Perderam-se milhões de empregos. Centenas de milhares de empresas fecharam. Somos movidos por um grito por justiça racial, que dura há quase 400 anos. O sonho da justiça para todos não mais será adiado.”

Biden falou sete vezes de “desafio”, particularizando a crise ambiental, o extremismo político, a supremacia branca e o terrorismo interno.

“Amigos, este é um tempo que nos põe à prova. Enfrentamos um ataque à nossa democracia e à verdade, um vírus rompante, desigualdade lancinante, racismo sistémico, uma crise climática, o papel da América no mundo. Qualquer um destes é suficiente para nos desafiar de formas profundas.”

GUERRA

Por sete vezes o novo Presidente proferiu a palavra “guerra”, para enumerar conflitos passados e enfatizar como perante a luta, o sacrifício e os desaires, os norte-americanos sempre prevaleceram — a guerra civil (1861-1865), a Grande Depressão (1929-1939), a II Guerra Mundial (1939-1945) e o 11 de Setembro (2001).

Recordou que o Capitólio, onde decorria aquela cerimónia, foi concluída durante a guerra civil e admitiu que em 2021, os Estados Unidos vivem outro tipo de guerra. “Temos de pôr fim a esta guerra incivil que põe vermelho [republicanos] contra azul [democratas], rural contra urbano, conservador contra liberal.”

GRANDE

Foi um dos adjetivos preferidos de Donald Trump e uma presença constante no seu limitado discurso. Joe Biden repetiu-o seis vezes para exaltar a “grande nação” americana, para dizer que “podemos fazer grandes coisas” e para incentivar a que todos contribuam para escrever “o próximo grande capítulo da história dos Estados Unidos da América”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

“Cabe inteiramente aos Estados Unidos escolher que presente de Natal querem receber”. O ultimato de Kim a Trump está a expirar

Os Estados Unidos têm até ao fim do ano para reconhecer a boa-fé da Coreia do Norte e fazer concessões. Se isso não acontecer, diz Pyongyang, a contenção deixa de fazer sentido. “É de prever uma escalada na tensão”, vaticina uma especialista

O relógio está em contagem decrescente na Coreia do Norte. Pyongyang deu a Washington um ultimato que está prestes a expirar: os norte-americanos têm até ao final do ano para fazer concessões importantes e assim salvar o diálogo entre ambos. “Cabe inteiramente aos Estados Unidos escolher que presente de Natal querem receber”, avisou na terça-feira Ri Thae Song, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte.

Kim Jong-un e Donald Trump já se encontraram por três vezes — em Singapura (12 de junho de 2018), Hanói (27 e 28 de fevereiro de 2019), e na Zona Desmilitarizada entre as duas Coreias (30 de junho) —, mas essa aproximação tarda em produzir resultados. Os EUA querem que a Coreia do Norte prove que está a desmantelar o seu programa nuclear. Já a Coreia do Norte exige ser recompensada pela suspensão de “uma série de ações”.

“As duras condições impostas pela Coreia do Norte para retomar as conversações sobre desnuclearização com os EUA — a remoção de sanções e as garantias de segurança para as ‘medidas de boa vontade’ que a Coreia do Norte já adotou — refletem uma posição de endurecimento por parte da Coreia do Norte relativamente aos EUA”, comenta ao Expresso Rachel Minyoung Lee, que analisa a realidade norte-coreana a partir de Seul (Coreia do Sul). “Julgo que a próxima movimentação política de Kim Jong-un será no sentido da linha dura, pelo que é de prever uma escalada na tensão.”

Numa avaliação ao estado da relação com os EUA, feita nas Nações Unidas, a Coreia do Norte reclama não ter ganho “nada” com a aproximação entre Kim Jong-un e Donald Trump “a não ser um sentimento de traição”. “É bastante natural que reforcemos as nossas capacidades, a fim de reduzir visivelmente as crescentes ameaças que obstruem a nossa segurança e desenvolvimento”, defendeu a missão norte-coreana.

Nos últimos três meses, Pyongyang vem sinalizando a sua impaciência retomando a realização de testes com mísseis. Aconteceu a 24 de agosto, a 10 de setembro, a 31 de outubro e a 28 de novembro, este último de forma algo provocatória ao coincidir com o feriado de Ação de Graças nos EUA. “Estamos sentados sobre um vulcão ativo”, disse a 12 de novembro Robert L. Carlin, antigo negociador na área do nuclear do Departamento de Estado dos EUA, numa conferência na Universidade de Yonsei, em Seul. “Não temos muito tempo para recuar.”

O diálogo direto entre EUA e Coreia do Norte rompeu-se definitivamente a 5 de outubro, após um encontro de oito horas e meia entre negociadores de topo, nos arredores de Estocolmo (Suécia). Onze dias depois, Kim Jong-un esbanjou confiança, cavalgando no Monte Paektu, o ponto mais alto da península.

“Mais do que uma demonstração de confiança, julgo que o passeio a cavalo foi um desafio”, diz Rachel Minyoung Lee. “A subida ao Monte Paektu seguiu-se a críticas explícitas por parte de Kim Jong-un em relação às sanções dos EUA. Aquela escalada visou sublinhar que a Coreia do Norte seguirá o seu caminho — aquilo que os órgãos oficiais do Estado designam de ‘autossuficiência’ —, apesar das dificuldades resultantes de prolongadas sanções.”

A imprensa norte-coreana condimentou o passeio dizendo que foi um momento de reflexão do líder, de quem se espera para breve “uma grande decisão”. Referido nos hinos nacionais das duas Coreias, o Monte Paektu é também simbólico na relação que a dinastia Kim estabeleceu com o país que fundou em 1948 e que lidera desde então. “De acordo com a propaganda, Kim Il-sung [avô do atual líder] travou batalhas nessa montanha contra o colonizador japonês”, explica a analista.

A associação nacionalista entre o local e os Kim continuou com Kim Jong-il, pai do líder atual, que, diz a propaganda, “nasceu no ‘Campo Secreto’ do Monte Paektu, em 1942, apesar dos registos históricos no mundo real dizerem que nasceu na Rússia em 1941”.

Igualmente, o recurso a um cavalo branco não é um pormenor irrelevante. “Segundo as memórias de Kim Il-sung, um cavalo branco veio de algures na sua direção durante uma batalha contra os japoneses e conseguiu grandes conquistas. Provavelmente por essa razão, os três líderes norte-coreanos foram todos retratados com cavalos brancos”, conclui Rachel Minyoung Lee. Uma forma elegante de mostrarem quem está às rédeas do país.

(FOTO Rodeado por um grupo de atiradores de elite da Força Aérea norte-coreana, Kim Jong-un mostra quem manda no país REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 5 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui