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Até à paz falta fazer tudo

Washington e Pyongyang enterraram o machado de guerra na cimeira de Singapura, mas o comunicado final é vago

Donald Trump e Kim Jong-un, Presidentes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte ILUSTRAÇÃO DONKEYHOTEY

Estavam Donald Trump e Kim Jong-un ainda resguardados no interior do Hotel Capella, em Singapura, a minutos de fazerem História com um simples aperto de mão, e nos ecrãs da CNN o ex-basquetebolista Dennis Rodman desfazia-se em lágrimas. “É um grande dia! Estou aqui para o presenciar. Estou muito feliz!” No rasto dos líderes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte, também a antiga estrela dos Chicago Bulls esteve, terça-feira, em Singapura “para dar qualquer apoio necessário aos amigos”, anunciou previamente no Twitter.

De óculos escuros, boné com o slogan eleitoral de Trump (“Make America Great Again”), piercings na boca e no nariz, tatuagens nas mãos, braços e pescoço e uma T-shirt com o logótipo do patrocinador da sua viagem — a criptomoeda PotCoin, criada para financiar a indústria da canábis —, o excêntrico Rodman surgia, ironicamente, como voz habilitada a comentar a cimeira, tão improvável como a sua personagem. Nos corredores de Washington, não havia diplomata que tivesse, como ele, privado com ambos os líderes: foi concorrente no programa “The Celebrity Apprentice”, apresentado por Trump, e esteve várias vezes em Pyongyang, uma delas liderando uma equipa de ex-estrelas da NBA, de que Kim é fã confesso.

Trump e Kim estiveram reunidos 40 minutos. No final, gestos de afabilidade entre ambos indiciavam que se tinham entendido. Mas logo o comunicado que assinaram diante das câmaras revelou que o caminho até à paz final entre ambos tem pedras que, em Singapura, os dois líderes não conseguiram remover. O texto — curto, genérico e vago — é mais um processo de intenções.

Uma desnuclearização vaga

“O mais importante é a cimeira ter tido lugar: é a primeira entre o Presidente dos EUA e o Presidente do Conselho de Estado da Coreia do Norte, que muitos tentaram impedir e quase todos consideraram impossível”, comenta ao Expresso Carlos Gaspar, do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). “Os termos da declaração final são um primeiro passo para a normalização das relações bilaterais, processo que só é possível se existirem progressos no domínio nuclear — fim dos ensaios nucleares e de mísseis de longo alcance, fim da produção de armas nucleares — e no domínio diplomático, nomeadamente um tratado de paz entre os EUA, a China e as duas Coreias que ponha fim à Guerra da Coreia” (1950-1953), que terminou apenas com um armistício.

Na declaração conjunta, “a Coreia do Norte compromete-se a trabalhar no sentido da desnuclearização total da península coreana”. Ao abordar o programa nuclear de Pyongyang, questão que, não há muito tempo, parecia colocar os dois países na iminência de uma guerra, não explica, porém, o roteiro para a tornar pacífica. “Nesta fase das negociações o que importa, em primeiro lugar, é a aproximação das duas administrações e a promoção da confiança entre as partes”, sublinha Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei (Japão). “O termo ‘desnuclearização’ é convenientemente amplo e dado a diversas interpretações”, consoante se esteja em Washington ou Pyongyang.

Gaspar explica as nuances, resumidas em dois adjetivos. “A ‘desnuclearização completa da península coreana’ — fórmula norte-coreana inscrita no comunicado conjunto — deve implicar não só o desmantelamento dos arsenais norte-coreanos como o fim da garantia nuclear dos EUA à Coreia do Sul, o que não implica a retirada das forças militares norte-americanas estacionadas na Coreia do Sul, uma vez que os EUA retiraram as suas armas nucleares da Coreia do Sul em 1991. A fórmula norte-americana, que não está na declaração final, reclama a ‘desnuclearização completa, verificável e irreversível’ da Coreia do Norte”.

Donald Trump e Kim Jong-un tornaram-se os primeiros líderes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte a encontrarem-se

Na quinta-feira, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, deixou claro que as sanções à Coreia do Norte só serão levantadas quando o processo de desnuclearização estiver concluído. No mesmo dia, as duas Coreias começavam a dar passos no sentido da desejada confiança entre as partes. Pela primeira vez desde 2007, Seul e Pyongyang reuniram-se na zona desmilitarizada, ao nível de generais, e acordaram o restabelecimento das linhas de comunicação militar.

Nesse encontro, e aproveitando uma deixa de Trump em Singapura — que admitiu suspender os exercícios militares com a Coreia do Sul, considerando-os “jogos de guerra muito caros e provocadores” —, os norte-coreanos pediram o fim desses treinos conjuntos. O próximo (o Ulchi Freedom Guardian, que simula um ataque da Coreia do Norte à do Sul) está marcado para agosto.

“O grande fator de mudança é o facto de os chefes de Estado e de Governo de ambos os países estarem dispostos a continuar a encontrar-se pessoalmente para resolver assuntos que importam a ambos os Estados, à região da Ásia-Pacífico e ao resto do mundo”, diz Saraiva.

Trump à defesa

Para a Coreia do Norte, a cimeira significou a quebra do isolamento internacional em que vive desde a sua criação, em 1948. Kim Jong-un foi ao estrangeiro pela primeira vez em março (de comboio até à China); no mês seguinte atravessou a pé o paralelo 38 em Panmunjom para se reunir com o homólogo sul-coreano, Moon Jae-in; foi outra vez à China; e esta semana voou até Singapura. Tudo contribui para que o líder norte-coreano tivesse considerado esta cimeira “histórica”.

Já Trump, sempre efusivo na hora de qualificar os seus feitos, não foi além de um “muito importante”, talvez ciente do que tem pela frente. Na quarta-feira procurou tranquilizar os americanos: “Antes de assumir o cargo as pessoas assumiam que estávamos a caminho de uma guerra com a Coreia do Norte”, escreveu no Twitter. “O Presidente Obama disse que a Coreia do Norte era o nosso maior e mais perigoso problema. Já não é — durmam bem esta noite!”

THE SINGAPORE MINT

CONTEXTO

Acordo
Trump e Kim assinaram uma declaração de quatro pontos, visando “uma nova relação”

Desnuclearização
Pyongyang promete “trabalhar no sentido da desnuclearização total da península coreana”. Versão dos EUA acrescentava “verificável” e “irreversível”

Irão
O texto não é comparável com o acordo do nuclear iraniano de 2015. Este tem 159 páginas (em inglês) e pormenoriza processo e calendário

Artigo publicado no Expresso, a 16 de junho de 2018

Documentos secretos revelam: CIA orquestrou golpe de 1953

Era uma suspeita, hoje foi confirmado. Documentos da CIA revelam a sua participação no golpe que depôs o primeiro-ministro iraniano Mohammed Mosaddegh

Documentos da CIA, desclassificados em 2011 e publicados hoje no sítio do Arquivo de Segurança Nacional, confirmam a participação da CIA no golpe de Estado que afastou o primeiro-ministro iraniano Mohammed Mosaddegh, em 1953.

“O envolvimento norte-americano e britânico no afastamento de Mosaddegh é há muito do conhecimento público, mas o que publicamos hoje inclui o que cremos ser o primeiro reconhecimento formal da CIA de que ajudou a planear e a executar o golpe”, lê-se no texto que acompanha a publicação dos documentos. 

A informação divulgada revela que a operação decorreu em cinco fases. A primeira aconteceu a 19 de agosto de 1953, com a realização de grandes manifestações populares, lideradas por rufias pagos para o efeito. Os grupos reuniram-se no bazar e noutras partes do sul de Teerão, pelas seis da manhã, dirigindo-se depois para a parte norte da capital iraniana.

Golpe com vastos recursos

O material publicado no sítio do Arquivo de Segurança Nacional (ASN) – instituição fundada em 1985, por jornalistas e académicos, para “verificar o crescente secretismo do Governo” — consta de 21 documentos originários dos arquivos da CIA e outros 14 dos arquivos britânicos.

Os documentos da CIA “reforçam a conclusão que os Estados Unidos, e a CIA em particular, empregaram vastos recursos e atenção política ao mais alto nível para derrubar Mosaddegh, e suavizar as suas consequências”, diz o ASN.

O primeiro-ministro Mohammad Mosaddeq foi deposto há 60 anos, após ter nacionalizado a indústria petrolífera iraniana, até então controlada pelos britânicos da Companhia Petrolífera Anglo-Persa (mais tarde, British Petroleum, BP). Sucedeu-lhe o general Fazlollah Zahedi nomeado pelo Xá.

“Partidários políticos de todos os lados, incluindo o Governo iraniano, invocam regularmente o golpe para discutir se o Irão ou poderes estrangeiros são os principais responsáveis pela trajetória histórica do país, se podem confiar que os Estados Unidos vão respeitar a soberania do Irão, ou se Washington precisa de pedir desculpa pela sua interferência prévia antes que as relações melhorem.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de agosto de 2013. Pode ser consultado aqui

O que pensam antigos ministros dos Negócios Estrangeiros portugueses

A propósito do arranque das eleições primárias no Estados Unidos, o Expresso pediu a antigos ministros dos Negócios Estrangeiros portugueses que fizessem um balanço da Administração Bush e projectassem o que poderá vir a ser o próximo governo norte-americano. Quatro acederam: José Medeiros Ferreira (1976-1977), André Gonçalves Pereira (1981-1982), João de Deus Pinheiro (1987-1992) e António Martins da Cruz (2002-2003)

IMAGEM TUMISU / PIXABAY

Quem vencerá as primárias (democratas e republicanas)?

MEDEIROS FERREIRA É cedo para um prognóstico ponderado. Neste momento, admito como mais provável uma vitória de Hillary Clinton entre os democratas. A situação no meio republicano é muito mais confusa. Mas grande parte dos resultados eleitorais dependerá da escolha do candidato republicano.

GONÇALVES PEREIRA Neste momento, é imprevisível. Nunca houve uma eleição tão aberta. Do lado democrata, há uma clara favorita, a sra. Clinton. Mas ela terá maior facilidade em vencer as primárias do que a eleição. Para Barack Obama é o contrário.

DEUS PINHEIRO Julgo que no campo republicano acabará por ganhar Giuliani. Parece ser aquele que acaba por combinar uma certa proximidade com o cidadão com uma certa aura de herói pós-11 de Setembro. Apesar da sua vida pessoal não ser um modelo para alguns dos mais puritanos americanos, é capaz de ser o candidato mais sólido. Entre os democratas, julgo que Hillary Clinton vai conseguir superar Obama, porque Obama é considerado por muitos como um jovem relativamente inexperiente, o que assusta normalmente os americanos. E a senhora Clinton é exactamente o oposto, denota um traquejo e uma experiência política que dá aos norte-americanos uma certa tranquilidade. Acho que, no final, ela é capaz de ganhar a parada.

MARTINS DA CRUZ Dado o complexo calendário das eleições primárias até às convenções, afigura-se difícil uma previsão. Aliás, vendo os resultados das primárias no Iowa desde 1972, nem sempre o candidato vencedor foi eleito Presidente dos Estados Unidos. Mas são indicações de tendência que devem ser devidamente consideradas.

Em caso de vitória democrata, em 2008, quais serão as principais diferenças em relação à Administração Bush?

MEDEIROS FERREIRA As circunstâncias internas e externas ditarão as principais diferenças. Mas nenhum Presidente democrata — também republicano mas sobretudo democrata — poderá iludir a questão da presença militar norte-americana externa e das políticas sociais internas. Caso Hillary Clinton seja eleita, vejo-a relançar os serviços públicos federais nos domínios da educação e da saúde, arrastando atrás de si parte do mundo ocidental, hoje muito orientado para soluções neo-liberais nos domínios sociais.

GONÇALVES PEREIRA Muito menores do que se supõe. Nomeadamente, não é possível uma saída rápida e honrosa quer do Iraque, quer do Afeganistão. Nenhuma nova administração, de qualquer partido, cometerá na esfera internacional os erros fatais cometidos pela presente equipa. A Europa terá uma boa oportunidade de recuperar algum peso internacional, como já começa a fazer. No caso do Afeganistão, o erro não foi a invasão, mas o seu abandono, para se concentrar no Iraque, o que permitiu a recuperação dos talibãs, deixando a guerra entregue a uma NATO que não tem para tanto nem capacidade nem desejo. Escrevi, desde o início, contra a guerra do Iraque, ao contrário de tantos…

DEUS PINHEIRO Seja qual for o governo, mesmo republicano, haverá diferenças substanciais. A começar pela situação internacional, na medida em que se considera que esta administração Bush tratou muito mal a cena internacional e não apenas no que respeita ao Iraque. Veja-se mais recentemente a questão do Irão em que a CIA vem dizer que afinal os iranianos não têm a possibilidade de vir a ter a arma nuclear nem estão a trabalhar para isso no curto prazo. Qualquer administração que venha irá tentar cortar com a ideia de que os que não são nossos amigos têm de ser abatidos e tentar entrar num diálogo muito intenso sobretudo com a Rússia, a Índia e a China — três parceiros incontornáveis na cena internacional. Em relação à Europa, estou convencido que se acelerará o chamado espaço económico atlântico, para haver um comércio livre e total entre a América do Norte e a União Europeia.

MARTINS DA CRUZ Se o candidato democrata vencer as eleições em 2008, antevejo, na tradição daquele partido, uma maior intervenção dos Estados Unidos na política internacional. O novo Presidente fixará, provavelmente, um calendário para a retirada, porventura parcial, das forças norte-americanas do Iraque, sem pôr em causa, ou até reforçando, a presença militar em outros países da região. Uma administração democrata tenderá a olhar com mais atenção para a América Latina, prosseguirá a construção de um Comando Africano e terá um papel activo no Médio-Oriente, justificado até pelo ‘voto judeu’ nos Estados Unidos, que é tradicionalmente democrata. A luta contra o terrorismo continuará prioritária, bem como a defesa dos interesses norte-americanos a nível global, incluindo as relações com a Rússia. Haverá mais diálogo, mas colocar-se-á, uma vez mais, o problema do uso do poder. No plano interno, a actual administração deslocou o debate para soluções conservadoras, e as chamadas questões da sociedade tenderão a ser vistas nesse prisma. As perspectivas de recessão e os cenários económicos negativos condicionarão as propostas sociais. Para Portugal, será indiferente a cor política do novo Presidente. Tratando-se do nosso principal aliado, de quem depende o essencial da nossa defesa e segurança, as relações com Washington não são susceptíveis de variar conforme a orientação política da Casa Branca. Como demonstrou Cavaco Silva nos dez anos em que foi primeiro-ministro.

Como avalia os oito anos de George W. Bush na Casa Branca?

MEDEIROS FERREIRA Muito negativamente, sobretudo pelos resultados. Deixou o seu país envolver-se numa guerra de usura e, manifestamente, não soube sair dela. O muro fronteiriço com o México assinala os limites da sua ideia de globalização e de quase integração do continente americano. Em termos portugueses, a sua administração também não deixa saudades. Utilizou Portugal sem escrúpulos nos Açores e foi ingrato ao vetar uma lei que permitiria programas de ensino da língua portuguesa em estados da costa leste, dando este ensino, aliás, como um exemplo de gastos inúteis. Era uma ‘afronta desnecessária para um aliado tão constante como é Portugal. Também se lamenta que nunca tenha convidado um chefe de Estado português, durante estes oito anos, a visitá-lo em Washington.

GONÇALVES PEREIRA Aspectos positivos haverá decerto mas são esmagados pelos negativos. A aceitação por este Presidente de uma ideologia neo-conservadora, que decerto não compreendeu, marca para a história esta presidência.

DEUS PINHEIRO Foram péssimos. Sinceramente, foram uma grande decepção porque o pai, apesar de tudo, tinha sido um líder com uma certa capacidade de diálogo, que entendia como o mundo funcionava. O filho, quanto a mim, foi uma catástrofe nessa matéria. Mesmo no plano económico, em que normalmente os republicanos costumam ter um bom currículo e uma boa performance, foi um falhanço, o que aliás se vê pelo valor do dólar relativamente ao euro, por exemplo.

MARTINS DA CRUZ Ainda é cedo para fazer o balanço da Administração de George W. Bush. Tendo tomado a decisão de avançar militarmente no Iraque, apoiada no Congresso pela esmagadora maioria dos democratas e por 21 dos 27 países da União Europeia, não soube depois avaliar soluções civis e militares adequadas. Será julgado por isso, apesar de ter sido o Presidente reeleito com a maior maioria de sempre.

Como é que a história o recordará?

MEDEIROS FERREIRA Como um Presidente que fez muito mal aos Estados Unidos.

GONÇALVES PEREIRA Como o maior impulsionador do aumento do fundamentalismo islâmico.

DEUS PINHEIRO Como um parêntesis na história norte-americana.

MARTINS DA CRUZ A história não sei. Os comentadores, sobretudo os europeus, tenderão a julgar Bush de acordo com a sua própria opção política. Incluindo os portugueses.

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de janeiro de 2008 e no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui