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Mundo ansioso à espera de um mestre na arte de agitar águas

Donald Trump tem à espera problemas herdados e outros criados por si após ser eleito

Donald Trump venceu as eleições há mais de dois meses e, apesar de só na segunda-feira se tornar o 47º Presidente dos Estados Unidos, parece estar em funções há muito tempo. O cessante Joe Biden já pouco se ouve e muito do que Trump diz assume importância de Estado.

A imprevisibilidade com que governou entre 2017 e 2021 — que o levou a aproximar-se da Coreia do Norte, mas também a ameaçar desproteger aliados da NATO — gera agora ansiedade, potenciada pela sua tendência para simplificar a abordagem de problemas complexos. Da invasão russa da Ucrânia à cobiça do Canal do Panamá, tem-se revelado um mestre na arte de agitar águas à custa de argumentos pouco consistentes, que ele vai adaptando ao sabor da maré.

UCRÂNIA

Em março de 2023 Trump começou a dar sinais de que tencionava voltar à Casa Branca e escolheu a guerra na Ucrânia para puxar dos galões. Em entrevista à Fox News disse que resolveria o conflito “em 24 horas”, sem revelar como. Garantiu também que as negociações com Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky seriam “fáceis”. A 7 de janeiro, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, refez o calendário: “Espero ter… seis meses.” A determinação em acabar com a guerra mantém-se, o que obrigou Zelensky a mudar de discurso. Se o seu Plano de Paz de 10 Pontos omitia qualquer negociação, com Trump em cena o ucraniano passou a admitir a necessidade de “meios diplomáticos” para alcançar “uma paz duradoura”. Em Moscovo, a 19 de dezembro, na sessão anual com jornalistas e cidadãos, Putin disse estar disposto a reunir-se com Trump: “Estamos prontos, mas o outro lado precisa de estar pronto para negociar e para um compromisso.”

GAZA

Com o anúncio do cessar-fogo entre Israel e o Hamas (ver texto nesta edição), Trump averbou uma vitória antes mesmo de entrar na Casa Branca. Depois de ganhar as eleições, ameaçara fazer “rebentar o inferno no Médio Oriente” se os reféns não fossem libertados antes da tomada de posse. O acordo deveria entrar em vigor na véspera. Nas negociações em Doha, no Catar, além da equipa de Biden, participou Steve Witkoff, empresário judeu que Trump nomeou enviado especial para o Médio Oriente. Foi ele quem voou de Doha até Jerusalém e forçou Benjamin Netanyahu a quebrar o shabbat para discutir o acordo. A imprensa israelita diz que a conversa foi “tensa”.

CHINA

O primeiro Governo de Trump foi marcado por uma guerra comercial e tecnológica com a China. A disputa foi tal que durante a pandemia Trump substituiu “coronavírus” por “vírus da China”. O convite a Xi Jinping para a tomada de posse (não estará) pode indiciar predisposição diferente, apesar de Trump ter escolhido um forte crítico de Pequim, Marco Rubio, para chefe da diplomacia. Em campanha, prometeu impor taxas de 10% a 60% sobre os produtos chineses. Questionado sobre o que faria se a China invadisse Taiwan, descartou a resposta militar: “Diria: se forem para Taiwan, peço desculpa, mas vou tributar-vos entre 150% e 200%.”

MÉXICO

Dos mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular nos Estados Unidos, uma larga fatia vem do México. Após um primeiro mandato marcado pela questão do muro na fronteira sul, Trump volta à carga e promete castigar o vizinho com mais taxas aduaneiras se não apresentar serviço a conter os fluxos de migrantes e de drogas. Mas não só: “Vamos mudar o nome do golfo do México para golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território”, propôs Trump. Há cerca de 100 dias no poder, a Presidente, Claudia Sheinbaum, respondeu sugerindo que o continente passasse a designar-se “América Mexicana”, como consta num documento antigo. “O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos.”

CANADÁ

Trump repetiu a fórmula com o vizinho do Norte e ameaçou taxar em 25% todos os produtos importados do Canadá. “Esta tarifa permanecerá em vigor até que as drogas, em particular o fentanilo, e todos os estrangeiros ilegais deixem de invadir o nosso país!”, justificou. Justin Trudeau, o demissionário primeiro-ministro canadiano, retaliou: “Nenhum americano quer pagar mais 25% pela eletricidade, petróleo e gás vindos do Canadá.” Trump sugeriu que “a linha traçada artificialmente” na fronteira desaparecesse e o Canadá se tornasse o 51º estado da federação. Retorquiu Trudeau: “Os canadianos são extraordinariamente orgulhosos de ser canadianos. Uma das formas mais fáceis de nos definirmos é: ‘Não somos americanos’.”

IRÃO

Em 2018, Trump rasgou o acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão. Questionado sobre um putativo ataque preventivo às instalações nucleares irania­nas, respondeu: “Não falo sobre isso, é estratégia militar. Só uma pessoa estúpida responderia.” Volta ao poder numa altura em que dois pivôs regionais do Irão estão enfraquecidos: o palestiniano Hamas e o libanês Hezbollah. “Espero que Trump conduza a região e o mundo à paz e não contribua para o derramamento de sangue ou a guerra”, disse à NBC, esta semana, o Presidente iraniano, Masoud Pezeshkian. “Vamos reagir a qualquer ação. Não tememos a guerra, mas não a procuramos.”

NATO

“Há anos, quando comecei com isto, não sabia muito sobre a NATO, mas acertei. Disse que eles estavam a aproveitar-se”, recordou Trump recentemente. O magnata sempre se insurgiu contra os membros que não gastavam 2% do PIB em defesa. Chegou a dizer que encorajaria a Rússia a atacar os incumpridores. Há dias, defendeu que a percentagem deveria ser de 5% (ver texto nestas páginas).

PANAMÁ

“É uma vergonha o que aconteceu no Canal do Panamá. Jimmy Carter deu-lho por 1 dólar e eles deveriam tratar-nos bem”, acusou Trump. “A China está nas duas extremidades do Canal do Panamá. A China está a gerir o Canal do Panamá.” Para o Panamá, esta via de cerca de 80 km é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 2024, não quer reagir até Trump ser investido. Com sorte, este contentar-se-á com um tratamento mais favorável para os seus navios.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de janeiro de 2025, e no “Expresso”, a 17 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Marco Rubio, o latino que vai liderar a diplomacia dos Estados Unidos e tratar do “quintal da América”

Esta quarta-feira, Marco Rubio tem presença marcada no Comité de Relações Externas do Senado dos Estados Unidos para ser confirmado secretário de Estado. Pela primeira vez, a pasta será entregue a um latino, filho de imigrantes cubanos e casado com uma filha de colombianos. “A América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração”, defende um estudioso da política norte-americana para a região

Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o secretário de Estado será um latino. Marco Rubio, o escolhido por Donald Trump para chefiar a diplomacia do país, nasceu em Miami, no seio de um casal de imigrantes cubanos.

Mario e Oriales abandonaram a ilha em 1956, três anos antes da revolução que colocou Fidel Castro no poder em Havana. El Comandante ficou no cargo 47 anos, seguidos de mais 12 com o seu irmão Raul ao leme do país.

Os Rubio continuaram pelos EUA e obtiveram a cidadania norte-americana em 1975. Mario trabalhou sobretudo como barman e Oriales como empregada de hotel. Tiveram quatro filhos — Marco foi o terceiro a nascer, a 28 de maio de 1971.

O ódio ao comunismo

Marco cresceu no seio de uma comunidade de centenas de milhares de migrantes, exilados e dissidentes políticos, obcecada com a ideia de usar todo o poder dos EUA para punir o regime castrista, nomeadamente através do voto. Nesse contexto, também ele desenvolveu um ódio ao comunismo.

Formou-se em Direito, casou com Jeanette Dousdebes, filha de imigrantes colombianos, e teve quatro filhos. Coroou o sonho americano ao entrar para o Congresso como senador, pela primeira vez em 2010, pelo estado da Florida. O seu livro de memórias tem como título “An American Son” (Um Filho Americano).

Desde a primeira eleição para o Congresso, Rubio tem merecido a confiança ininterrupta dos eleitores, em especial da comunidade cubana de Miami. Esta quarta-feira, comparecerá diante do Comité de Relações Externas do Senado para responder a perguntas dos seus pares visando a sua confirmação como secretário de Estado.

“Sob a liderança do Presidente Trump, conseguiremos a paz através da força e colocaremos sempre os interesses dos americanos e da América acima de tudo”, afirmou Rubio, a 13 de novembro, numa reação à notícia da sua nomeação em tudo consentânea com a forma egocêntrica como Trump posiciona a América no mundo.

As principais prioridades de Trump ao nível da política externa não serão muito diferentes das de Joe Biden — as guerras na Ucrânia e Gaza, e a ascensão da China — porque são questões centrais para os interesses dos EUA”, diz ao Expresso William LeoGrande, professor na Universidade Americana, em Washington DC.

“E se Rubio quiser ser candidato a Presidente em 2028, não pode ser visto como o secretário de Estado para a América Latina”, acrescentou este especialista em política externa norte-americana para a região. “Porém, a América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração.”

“Vamos ter a maior deportação. Não temos escolha”

Donald Trump, a 18 de junho de 2024, num comício em Racine, no estado de Wisconsin

Estima-se que, atualmente, vivam nos EUA mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular — 3% da população total. A maioria é oriunda do México e do chamado Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras). Uma larga fatia vive no país há pelo menos uma década.

Para concretizar o plano de expulsão de milhões de latino-americanos, a futura Administração Trump precisa da colaboração dos países de destino, numa região politicamente fragmentada onde muitos líderes encaram com reservas o lema America First (a América primeiro) do 48.º Presidente.

Os migrantes mexicanos “enviam 65 mil milhões de dólares [63,2 mil milhões de euros] para as suas famílias no México, mas contribuem mais para os Estados Unidos porque esse valor é apenas 20% do que ali deixam, em consumo, poupança e impostos”, alertou Claudia Sheinbaum, a Presidente do México, num discurso comemorativo dos seus 100 dias no poder, assinalados a 9 de janeiro.

“Estaremos sempre de cabeça erguida. O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos”, acrescentou a governante, que é judia e pertence ao Movimento Regeneração Nacional, de esquerda.

Se o primeiro governo de Trump, no que ao México diz respeito, ficou marcado pela questão do muro na fronteira entre os dois países, agora, além da deportação massiva de imigrantes, Washington ameaça castigar com a aplicação de tarifas alfandegárias e ações em nome do combate aos cartéis do crime.

“Enquanto os EUA continuam a enfrentar uma crise sem precedentes de fentanil e de migração ilegal, espero que a Presidente eleita [Claudia] Sheinbaum enfrente estes desafios à segurança e democracia”, reagiu Marco Rubio à vitória eleitoral da mexicana, em junho de 2024.

Há uma semana, Trump agitou as águas entre os dois países ao dizer: “Vamos mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território. Golfo da América, que lindo nome, é apropriado”.

A chefe de Estado mexicana respondeu no mesmo tom e, numa das suas conferências de imprensa diárias, diante de um mapa-mundo, sugeriu que o continente americano passasse a designar-se “América Mexicana”, citando um termo que consta de um documento de 1814, anterior à Constituição mexicana.

Entre os líderes latino-americanos com quem será mais fácil Marco Rubio estabelecer comunicação está o Presidente da Argentina, Javier Milei, que o norte-americano descreveu como “uma lufada de ar fresco” quando o visitou em Buenos Aires, em fevereiro passado.

Autodenominado “anarcocapitalista”, Milei é dono de um estilo muitas vezes comparado a Donald Trump: são antigas figuras da televisão, chegaram à política com estatuto de outsider, têm uma retórica populista e um estilo não convencional e provocador.

Mal entrou na Casa Rosada, uma das primeiras medidas de Milei foi retirar o seu país da rota de adesão aos BRICS, onde está o vizinho Brasil. A Argentina tinha entrada prevista no grupo a 1 de janeiro de 2024.

Outro líder latino-americano que já mereceu elogios de Rubio é Nayib Bukele, o Presidente de El Salvador que professa o “Bukelismo”, uma combinação de populismo, pragmatismo económico, autoritarismo e centralização de poder.

Na sua primeira visita oficial ao país, em março de 2023, Rubio destacou o combate de Bukele contra a violência dos gangues e do crime organizado, um problema na origem do êxodo de milhares de salvadorenhos para os EUA.

“Sob a presidência de Nayib Bukele, um dos países mais perigosos do mundo tornou-se um dos mais seguros e promissores da região, tudo numa questão de meses”, disse Rubio. Bukele, de 43 anos, está no poder desde 1 de junho de 2019.

Em contraponto aos países apreciados por Rubio está a “troika da tirania”, como os designou o ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos John Bolton, durante o primeiro governo Trump, referindo-se a Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Na primeira Administração Trump, Washington inverteu a aproximação a Cuba que vinha sendo desbravada por iniciativa do Presidente antecessor, Barack Obama, que fez uma visita histórica à ilha dos antepassados de Marco Rubio. Este nunca se deixou levar pelas emoções, sempre pugnou pela aplicação de sanções à ilha e considerou qualquer tentativa de aproximação diplomática a Cuba um ato de ingenuidade.

“A decisão [de Obama] recompensar o regime de Castro e iniciar o caminho na direção da normalização das relações com Cuba é inexplicável”, acusou. “Cuba, tal como Síria, Irão e Sudão, continua a ser um Estado que patrocina o terrorismo.”

Igualmente, na primeira passagem de Trump pela Casa Branca, Washington reconheceu (sem sucesso) Juan Guaidó, autoproclamado Presidente da Venezuela, como líder legítimo do país. Na terminologia de Rubio, a Venezuela é a “narco-ditadura de Maduro” à qual a única resposta possível é a “pressão máxima” das sanções.

Assim que foi anunciada a escolha de Rubio para secretário de Estado, a opositora venezuelana María Corina Machado saudou a nomeação: “São excelentes notícias para toda a América Latina”, escreveu na rede social X. “O senador tem uma profunda compreensão das ameaças que regimes como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela representam para todo o hemisfério.”

A 23 de abril de 2024, num artigo na revista conservadora “The National Interest”, Marco Rubio defendeu: “A nossa região atravessa atualmente pelo menos seis grandes crises. Vão de uma migração em massa sem precedentes na fronteira sul dos EUA, ao colapso completo da ordem social no Haiti e à aceleração da opressão estatal em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela”.

Um terceiro grupo de países protagonizou, nos últimos anos, uma “onda vermelha” no continente. Foi o caso do Chile, onde Gabriel Boric, um ex-líder estudantil, é Presidente desde 2022. Rubio, fortemente pró-Israel, defendeu que “sob a presidência de Boric, o Chile tem sido uma das principais vozes anti-Israel na América Latina, mesmo antes do 7 de Outubro” e também um porto seguro para financiadores do grupo xiita libanês Hezbollah.

Outro líder incómodo em Washington é Gustavo Petro, um antigo guerrilheiro do grupo M-19, eleito Presidente da Colômbia em 2022. Rubio considerou tratar-se de uma escolha “muito perigosa” para um país que os EUA veem como um aliado no combate ao narcotráfico.

A 1 de março próximo, o Uruguai consumará outra viragem à esquerda na América Latina, com a tomada de posse de Yamandú Orsi, que venceu as presidenciais de 24 de novembro. Esse escrutínio registou uma taxa de afluência às urnas de 89,36%.

Ao longo de 2025, quatro países realizarão eleições presidenciais: Equador (9 de fevereiro), Bolívia (17 de agosto), Chile (16 de novembro) e Honduras (30 de novembro).

No passado, as políticas intervencionistas dos Estados Unidos na região levaram a que os países latino-americanos fossem genericamente designados — de forma depreciativa — “o quintal da América”.

À primeira passagem pela Casa Branca, entre 2017 e 2021 — quando os EUA tiveram como secretários de Estado Rex Tillerson, um ex-CEO da petrolífera ExxonMobil, e Mike Pompeo, ex-diretor da CIA —, Trump não realizou uma única visita oficial à América Latina, nem mesmo quando o Peru acolheu a oitava Cimeira das Américas, em 2018.

Agora, antes mesmo de assumir formalmente a presidência, já revelou interesse pela América Latina ainda que não de forma cordial. Além de prometer uma mega deportação de migrantes e de propor a mudança de nome do Golfo do México, partilhou a cobiça pelo Canal do Panamá, a via marítima artificial de 82 quilómetros que liga o Atlântico e o Pacífico.

“O Canal do Panamá é vital para o nosso país. Está a ser operado pela China. China! E nós demos o Canal do Panamá ao Panamá, não o demos à China. E eles abusaram disso. Abusaram deste presente”

Donald Trump, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, a 7 de janeiro

“Trump parece ter uma visão do Hemisfério Ocidental de final do século XIX”, conclui William LeoGrande, “em que a diplomacia do canhão e a coerção económica são utilizadas para assegurar o domínio dos Estados Unidos, a fim de garantir rotas marítimas (Panamá) e minerais estratégicos (Gronelândia)”.

Para o Panamá, o Canal é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 1 de julho de 2024, não comentou as palavras de Trump.“Não lhe responderei até que seja Presidente”, disse.

Para concretizar o que defende, Donald Trump terá de se dedicar à América Latina como não o fez da primeira vez. Terá a seu lado Marco Rubio, atento àquilo que de positivo existe na região. Defendeu ele em abril passado: “Mesmo reconhecendo os horrores que ocorrem não muito longe das nossas costas — e fazendo o nosso melhor para os combater — devemos inspirar-nos na nova geração de líderes potencialmente pró-América no Hemisfério Ocidental”.

(IMAGEM Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA EXECUTIVEGOV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Netanyahu nos EUA: sem saber quem será o próximo Presidente, o primeiro-ministro de Israel tenta fazer o pleno

A visita de Benjamin Netanyahu a Washington estava agendada há meses, mas acabou por coincidir com um momento turbulento da política norte-americana. Joe Biden sairá em breve da Casa Branca, Kamala Harris anda atarefada com a campanha, Donald Trump ainda não esqueceu a deslealdade do israelita e, no Congresso, cerca de metade dos democratas boicotaram o seu discurso. Netanyahu arrisca-se a regressar a casa sem o apoio que procura

O primeiro-ministro de Israel está nos Estados Unidos para uma visita programada há meses que acabou por coincidir com um período conturbado do país.

Contestado dentro de portas, em especial devido ao falhanço no resgate dos reféns israelitas, e sem certezas relativamente a quem será o futuro inquilino da Casa Branca, Benjamin Netanyahu tenta jogar em vários tabuleiros.

Reuniu-se com Joe Biden (o atual Presidente) e seguem-se os dois potenciais sucessores: Kamala Harris (democrata) e Donald Trump (republicano). E fez história no Congresso. Quatro momentos.

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Reunião com Joe Biden

Benjamin Netanyahu e Joe Biden, na Sala Oval da Casa Branca JIM WATSON / AFP / GETTY IMAGES

Quatro dias após anunciar que abdicava da corrida à reeleição, o Presidente dos EUA abriu as portas da Casa Branca, mais uma vez, a Benjamin Netanyahu.

Dentro da Sala Oval, diante dos jornalistas, o israelita correspondeu à especificidade do momento e, ao estilo de uma despedida, prestou tributo ao norte-americano, que se estreou na política na década de 1970. “Quero agradecer-lhe pelos 50 anos de serviço público e 50 anos de apoio ao Estado de Israel”, disse.

A presença, na reunião entre ambos, de familiares de reféns, que viajaram para os EUA juntamente com Netanyahu, revelou a centralidade do tema na conversa.

A Administração Biden tem pressionado Netanyahu a terminar os combates e a apresentar planos para o dia seguinte ao fim da guerra na Faixa de Gaza. Esse braço de ferro levou, inclusive, Washington a suspender a entrega de armamento a Israel.

A reunião com Biden levou Israel a atrasar a partida de uma equipa de negociadores israelitas para o Catar, onde é suposto serem retomadas as negociações com vista à obtenção de um acordo de libertação dos reféns.

Esta quinta-feira, o diário israelita “Haaretz” questionou a real intenção de Netanyahu nesta deslocação. “O objetivo da viagem de Benjamin Netanyahu a Washington, incluindo a sua comparência diante do Congresso dos EUA, não é nem nunca foi avançar com um acordo diplomático para trazer para casa os reféns israelitas em segurança, enquanto ainda estão vivos, e pôr fim aos combates e ao sofrimento. Em vez disso, foi concebido para angariar o apoio interno americano para continuar a fazer a guerra.”

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Discurso no Congresso

Benjamin Netanyahu realizou o seu quarto discurso no Congresso dos Estados Unidos KENT NISHIMURA / GETTY IMAGES

Netanyahu fez história na quarta-feira e tornou-se o líder estrangeiro a discursar mais vezes numa sessão conjunta do Congresso dos EUA. Já o tinha feito em 1996, 2011 e 2015.

Com este quarto discurso, ultrapassou o primeiro-ministro britânico Winston Churchill que se dirigiu aos legisladores norte-americanos por três vezes.

Como tem sido habitual, nas intervenções de Netanyahu para fora de Israel, o discurso no Congresso foi amplamente marcado por críticas ao Irão — palavra que repetiu 23 vezes.

Netanyahu acusou o Irão de estar “praticamente por detrás de todo o terrorismo, de toda a turbulência, de todo o caos, de toda a matança” no Médio Oriente e também de “financiar os protestos anti-Israel que estão a acontecer neste momento à porta deste edifício”.

Não foi só fora do edifício do Capitólio que a presença de Netanyahu gerou contestação. No interior, enquanto ele discursava, a democrata Rashida Tlaib, membro da Câmara dos Representantes de ascendência palestiniana, levantou uma placa em que se lia: “criminoso de guerra” e “culpado de genocídio”.

“Todos os países que estão em paz com Israel e todos os países que farão a paz com Israel deveriam ser convidados a aderir a esta aliança”, que designou de “Aliança de Abraão”.

Sensivelmente metade dos congressistas democratas boicotaram a sessão. Não foi o caso de Nancy Pelosi, a antiga presidente da Câmara dos Representantes, para quem a intervenção de Netanyahu “foi de longe a pior apresentação de qualquer dignitário estrangeiro convidado e honrado com o privilégio de discursar no Congresso dos EUA”.

“Muitos de nós que amamos Israel passámos hoje algum tempo a ouvir os cidadãos israelitas cujas famílias sofreram na sequência do ataque terrorista e dos raptos do Hamas, a 7 de outubro. Estas famílias pedem um acordo de cessar-fogo que traga os reféns para casa — e esperamos que o primeiro-ministro dedique o seu tempo a alcançar esse objetivo”, escreveu na rede social X.

Na audiência, estava Noa Argamani, uma antiga refém, resgatada no âmbito de uma operação das forças de Israel, a 8 de junho. Atrás de Noa, estava o empresário Elon Musk, apoiante de Donald Trump e convidado por Netanyahu para assistir ao evento. Nas redes sociais, o ilustrador israelita Yotam Fiszbein recordou que 120 reféns — atualmente 115 — ficaram privados de o ouvir.

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Encontro com Kamala Harris

Contrariamente ao que aconteceu com Trump, Netanyahu não se referiu por uma única vez a Kamala Harris no seu discurso no Congresso. Possivelmente, o encontro entre a vice-Presidente norte-americana e o primeiro-ministro israelita — previsto para esta quinta-feira à noite — não seria agendado se, entretanto, Kamala não tivesse ganho relevância na corrida à Casa Branca.

Kamala Harris — que é casada com um judeu, o advogado Doug Emhoff — vê-se assim forçada a elaborar, olhos nos olhos com Netanyahu, sobre um dos assuntos mais sensíveis do momento: a relação com Israel, com uma guerra como a que se trava na Faixa de Gaza.

Num discurso em março, em Selma (Alabama), por ocasião do 59.º aniversário do Domingo Sangrento, ela defendeu “um cessar-fogo imediato” e qualificou a situação em Gaza de “catástrofe humanitária”.

E acrescentou: “O Governo israelita deve fazer mais para aumentar significativamente o fluxo de ajuda humanitária. Sem desculpas”. A televisão NBC noticiou que o seu discurso foi previamente suavizado, já que uma primeira versão era mais dura relativamente à atuação de Israel.

Uma multidão concentrou-se em frente ao Capitólio, a sede do Congresso dos EUA, para dizer a Netanyahu que é “procurado” por crimes de guerra ALEX WONG / GETTY IMAGES

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Visita a Donald Trump

A pedido do primeiro-ministro israelita, Netanyahu e Donald Trump têm encontro agendado, esta sexta-feira, na residência privada do norte-americano em Mar-a-Lago, na Florida.

A reunião foi anunciada por Trump, na rede social que fundou, Truth Social. “Durante o meu primeiro mandato, tivemos paz e estabilidade na região, assinando até os históricos Acordos de Abraão — e vamos voltar a tê-los.”

Trump foi, desta forma, ao encontro das palavras de Bibi que, no Congresso, agradeceu ao candidato republicano pela mediação dos históricos acordos que normalizaram a relação diplomática entre Israel e um conjunto de países árabes (Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Sudão e Marrocos).

“Quero também agradecer ao Presidente Trump por todas as coisas que fez por Israel, desde o reconhecimento da soberania de Israel sobre os Montes Golã, ao confronto com a agressão do Irão, ao reconhecimento de Jerusalém como a nossa capital e à transferência da embaixada americana para lá. Essa é Jerusalém, a nossa capital eterna que nunca mais será dividida”, disse Netanyahu.

Desde que Trump deixou de ser Presidente, a relação entre ambos degradou-se. O norte-americano não gostou de ver o israelita entre os líderes que se apressaram a parabenizar Biden pela eleição, em 2020, e acusou-o de deslealdade. “Que se f…”, disse numa entrevista em 2021.

Trump também instou publicamente o primeiro-ministro a terminar rapidamente com a guerra para possibilitar o regresso dos reféns. Na semana passada, na convenção republicana de Milwaukee, referiu-se ao assunto: “E para o mundo inteiro, digo-vos isto: queremos os nossos reféns de volta — e é melhor que eles voltem antes de eu assumir o cargo, ou vocês pagarão um preço muito alto”.

(FOTO PRINCIPAL O rosto de Benjamin Netanyahu numa faixa colocada na linha de mira da cúpula do Capitólio, a sede do Congresso dos EUA NATHAN HOWARD / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de julho de 2024. Pode ser consultado aqui

Estados Unidos-Israel, uma aliança à prova de bala

Os dois países têm uma relação baseada em valores, interesses e na culpa pelo Holocausto

Quando o dia 29 de novembro de 1947 amanheceu e começou a contagem decrescente para a votação, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, do plano de partilha da Palestina num Estado judeu e noutro árabe, os judeus não tinham a certeza de que o escrutínio estivesse ganho. Para que o sonho se tornasse realidade, dois terços dos 57 membros da organização — dez deles países muçulmanos — teriam de dizer “sim”.

Nos dias prévios à votação, parte da estratégia da Agência Judaica — uma espécie de Governo oficioso dos judeus da Palestina — passou por identificar países indecisos ou contrários à sua pretensão e exercer a pressão possível, de forma direta ou via terceiros. Um dos alvos foi a Libéria, dos poucos Estados africanos independentes, que era hostil à divisão da Palestina.

A Libéria era quase propriedade da Firestone, a fabricante de pneus criada em 1900, em Nashville, Tennessee, que ali possuía 400 mil hectares de plantações de árvores de borracha. Pressionado pela Casa Branca, o diretor Harvey Firestone fez saber ao Presidente da Libéria, William Tubman, que um voto contra o Estado judeu faria perigar futuros investimentos. A Libéria trocou o voto e contribuiu para a maioria de 33 países que viabilizou o nascimento de Israel.

Compensar sobreviventes

O Presidente dos Estados Unidos era Harry Truman, um dos líderes aliados que participaram na Conferência de Potsdam (Alemanha) sobre o pós-guerra, dois anos antes. “Vi alguns lugares onde os judeus foram massacrados pelos nazis. Seis milhões de judeus foram mortos: homens, mulheres e crianças. É minha esperança que tenham uma casa onde possam viver”, afirmou.

Truman era a voz do sentimento de culpa partilhado por muitos americanos relativamente ao Holocausto e à inação internacional que permitiu todo aquele horror. Uma forma de compensar os sobreviventes era dar-lhes um Estado na terra com que sonhavam. Quando, a 14 de maio de 1948, os judeus declararam a independência do Estado de Israel, os Estados Unidos reconheceram-na no próprio dia.

Passados mais de 75 anos, a solidez da relação entre Israel e os Estados Unidos ficou provada na visita-relâmpago que Joe Biden realizou a Israel, a 18 de outubro, 11 dias após o bárbaro ataque do Hamas. Biden e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, estão longe de se admirarem. Quando foi eleito, o americano demorou a telefonar ao israelita, no que foi entendido como uma manifestação de distanciamento. Mas em contexto de crise — como o 7 de outubro —, é indiferente quem está no poder em Washington ou Telavive para a aliança se impor.

“O apoio, em 1947, ao estabelecimento de Israel, pelos Estados Unidos e também pela União Soviética e pela maioria dos membros da ONU, teve que ver com o Holocausto, embora essa não tenha sido a única razão”, diz ao Expresso Natan Sachs, diretor do Centro para Política do Médio Oriente do Brookings Institution. “Esta é uma relação de longa data, que tem que ver com um sentimento de valores partilhados em torno da democracia e de ameaças do terrorismo, sobretudo depois do 11 de Setembro. Há também uma afinidade generalizada com a ideia de Israel como país de refugiados que ali constroem uma vida nova. A narrativa em si tem grande influência no imaginário americano.”

Segundo a Agência Judaica, em 2023 havia 15,7 milhões de judeus em todo o mundo. A esmagadora maioria vivia em Israel (7,2 milhões) e nos Estados Unidos (6,3 milhões). As sondagens dizem que cerca de 75% dos judeus americanos votam no Partido Democrata e que a maioria defende dois Estados.

A máscara de Netanyahu

Domingo passado, dois dias após conversar com Biden, ao telefone, e de o ter ouvido defender “uma solução de dois Estados com a segurança de Israel garantida”, Netanyahu deixou cair a máscara. “Não vou comprometer o controlo total da segurança israelita sobre todo o território a oeste da Jordânia [Cisjordânia e Faixa de Gaza incluídas]. E isto contraria um Estado palestiniano”, escreveu na rede social X.

“Não creio que a Administração Biden tenha sido equívoca quanto ao seu apoio a esse tipo de horizonte político [dois Estados]. A questão é mais como lá chegar. Neste momento, as condições entre israelitas e palestinianos são tais que esta é uma possibilidade muito distante”, acrescenta Sachs.

À semelhança do eleitorado, “a maioria dos líderes democratas desde o Presidente Clinton disse apoiar os dois Estados”, diz ao Expresso Joel Beinin, professor emérito de História do Médio Oriente, na Universidade de Stanford (Califórnia). “Exceto Clinton, que fez muito pouco e demasiado tarde, nenhum fez por que isso acontecesse. Biden também não. Numa eleição acirrada como a deste ano, não arriscará perder um voto por causa disso”. A seu ver, “enquanto Netanyahu for primeiro-ministro, desafiará Biden nesta questão, e Biden terá medo de parecer fraco”.

A proteção do veto

Beinin diz que Israel é um parceiro especial dos Estados Unidos também pelo seu papel “na manutenção da hegemonia imperial americana, não apenas no Médio Oriente, mas a nível global”. Ainda que, nos últimos anos, a Casa Branca tenha escolhido o Pacífico como prioridade estratégica, Israel não é percecionado em Washington como um fardo. “Enquanto os Estados Unidos puderem contar com Israel no Médio Oriente, será mais fácil mudar para o Pacífico.”

Ao longo dos anos, a influência dos Estados Unidos sobre Israel tem-se feito de múltiplas formas. Nos anos 90, exerceu-se, em especial, através de ajudas financeiras, sob a forma de garantias de empréstimos. Hoje, diz Sachs, já não há tanto dinheiro envolvido. “Os Estados Unidos fornecem uma grande quantidade de ajuda militar, que é gasta nos Estados Unidos, na indústria das armas, que depois vão para Israel.”

Há ainda a cobertura que a diplomacia americana garante aos interesses israelitas na ONU. “Muitas vezes, vetaram resoluções desfavoráveis a Israel no Conselho de Segurança.” Foi o que aconteceu a 8 de dezembro, relativamente a uma resolução que apelava ao “cessar-fogo humanitário imediato” em Gaza.

A 23 de dezembro de 2016, Barack Obama rompeu com essa prática de décadas e, numa decisão que enfureceu Israel, ordenou a abstenção americana numa resolução que defendia que os colonatos israelitas na Cisjordânia são uma violação do direito internacional.

Sachs não gosta do adjetivo “incondicional” para rotular a relação privilegiada. “Há um apoio muito forte, em parte porque Israel é muito popular entre o povo americano. Se olharmos para as sondagens, mesmo agora, quando há mais críticas a Israel da esquerda e da geração mais jovem, Israel ainda é esmagadoramente popular nos Estados Unidos.”

(IMAGEM Bandeiras dos Estados Unidos e de Israel DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Nas Nações Unidas, 185 países votaram pelo fim do embargo a Cuba. Então porque não acaba?

O bloqueio económico imposto pelos Estados Unidos a Cuba dura há 12 presidentes. Republicanos ou democratas, de John F. Kennedy a Joe Biden, nenhum se atreveu a contrariar a sensibilidade dos cubanos exilados em Miami. “Democratas como Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Os democratas não têm hipótese de ganhar”, diz ao Expresso um estudioso norte-americano da América Latina. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos”

As garras do Tio Sam envolvem a ilha de Cuba CARLOS LATUFF / CANADIAN DIMENSION

Há 124 anos, por esta altura, Cuba saboreava os primeiros dias como país independente. A 10 de dezembro de 1898, terminara a terceira guerra contra o colonizador espanhol, em que os cubanos contaram com a preciosa ajuda de tropas norte-americanas.

Nas décadas seguintes, a ilha caribenha ficou na dependência económica dos Estados Unidos. Quando, a 1 de janeiro de 1959, a revolução socialista de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara triunfou sobre a ditadura de Fulgencio Batista, para muitos cubanos isso significou a libertação de outro tipo de colonialismo.

A nacionalização de dezenas de empresas norte-americanas, decretada pelo novo regime, levou Washington a impor restrições comerciais à ilha. Numa primeira fase, ficaram de fora alimentos e medicamentos (Administração Eisenhower); posteriormente, um embargo afetou todo o comércio (Administração Kennedy).

Esse bloqueio económico dura até hoje. Desde 1992, por iniciativa de Cuba, a Assembleia-Geral das Nações Unidas vota, anualmente, a resolução “Necessidade de acabar com o embargo económico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba” — em 2020, devido à pandemia, a votação não se realizou.

Estados Unidos quase isolados

A resolução não é juridicamente vinculativa, mas permite tirar o pulso à opinião mundial sobre o assunto. Na primeira resolução, em 1992, apenas 59 países votaram a favor; hoje, há quase unanimidade contra o embargo. É isso que espelha a última votação, a 3 de novembro passado:

▪ 189 Estados-membros votaram;
▪ 185 votaram a favor do fim do embargo;
▪ 2 votaram contra: Estados Unidos e Israel;
▪ 2 abstiveram-se: Brasil e Ucrânia.

ISRAEL — “O voto de Israel não parece ser surpreendente. É um firme aliado dos Estados Unidos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui. Na Assembleia -Geral da ONU — onde os votos dos países têm todos o mesmo peso —, o Estado judeu tem sido o único a replicar cegamente a posição dos Estados Unidos.

BRASIL — “O Brasil de Jair Bolsonaro tem uma relação fria com o Governo de Joe Biden e mantém boas relações com a Rússia de Vladimir Putin. Provavelmente, se Lula da Silva já fosse Presidente teria votado contra o embargo”, acrescenta Labaqui. De 1992 a 2018, o Brasil votou sempre a favor do fim do embargo; em 2019 (o primeiro ano de Bolsonaro no Palácio do Planalto) votou contra e desde então tem-se abstido.

UCRÂNIA — Kiev tem optado pela abstenção desde 2019. No atual contexto de guerra, o voto ucraniano não será alheio à necessidade de ajuda militar e de mais sanções à Rússia. Até então, com uma única exceção em 1993 (em que se absteve), os ucranianos votaram sempre contra o embargo.

E Portugal?

Portugal tem votado pelo fim do embargo desde 1995, ano em que António Guterres se tornou primeiro-ministro. Entre 1992 e 1995, quando o Governo era chefiado por Aníbal Cavaco Silva, Portugal absteve-se na resolução apresentada por Cuba.

Da votação na ONU resulta um quase total isolamento dos Estados Unidos nesta questão. Ronn Pineo, historiador norte-americano e especialista na área da América Latina, recua aos primórdios da democracia norte-americana para explicar o porquê de sucessivos governos — ora republicanos ora democratas — insistirem no embargo.

“O sistema político dos Estados Unidos é altamente disfuncional. Aspetos importantes antiquados foram concebidos há muito tempo para proteger interesses económicos poderosos de épocas passadas. Este sistema foi elaborado por fazendeiros ricos e donos de escravos para frustrar qualquer possibilidade de uma verdadeira democracia. Este sistema perdura”, diz ao Expresso.

“É justo criticar o sistema político dos Estados Unidos como algo em funcionamento para assegurar a lei de uma minoria fechada. Os Estados Unidos não têm uma democracia funcional.”
Ronn Pineo

O peso eleitoral da Florida

“Uma característica deste sistema político injusto é a estranha alocação de poder político indevido a swing states, estados que ora podem cair para os democratas, ora para os republicanos, nas eleições presidenciais. A Florida é um desses estados.”

Na Florida vive a maior comunidade de cubano-americanos do país. Tem origem no êxodo de cubanos em fuga às lideranças dos irmãos Castro, que mandaram em Cuba durante quase seis décadas — Fidel entre 1959 e 2008, Raúl entre 2008 e 2018. “Ao criar raízes na Florida, estes cubano-americanos notabilizaram-se por uma característica constante no seu comportamento eleitoral: votam em função de um assunto único.”

“A única coisa com que os cubano-americanos se importavam era punir os Castro e usar todo o poder dos Estados Unidos contra a revolução cubana.”
Ronn Pineo

“Nos Estados Unidos, todos os candidatos presidenciais sentem que têm de ganhar na Florida se quiserem vencer no colégio eleitoral, e a única forma de vencer nesse estado é obter o voto fundamental dos cubano-americanos. Manter o bloqueio económico a Cuba foi essencial para conquistar esse voto. Para os candidatos presidenciais e para os presidentes não houve penalização política pela continuação do bloqueio. E não há nenhum grupo de eleitores americanos que considere o levantamento do bloqueio assim tão importante.”

Além da influência do lóbi cubano de Miami, Ignacio Labaqui identifica outra razão que dificulta o levantamento do embargo. “O embargo surgiu por um decreto presidencial da Administração Kennedy. Manter ou levantar o embargo era uma decisão presidencial. Isso mudou na década de 1990 com a lei Helms-Burton [de 1996], que, entre outras coisas, converteu o embargo numa decisão legislativa”, passando a reforçar o papel do Congresso nesta questão.

Guerra Fria acabou, embargo continuou

Originalmente, o embargo foi uma decisão vinculada à lógica da Guerra Fria. Hoje, isso faz pouco sentido. O embargo mostrou ser ineficaz para conseguir o objetivo que presidiu à sua criação: provocar a queda do castrismo através de sanções económicas”, acrescenta Labaqui.

“Desde a aplicação do embargo, passaram-se 61 anos e 12 presidentes norte-americanos, e a ditadura cubana ainda lá está.”
Ignacio Labaqui

“Por outro lado, a Guerra Fria acabou há mais de 30 anos, pelo que o argumento a favor do embargo de que Cuba é uma ameaça estratégica para a segurança dos Estados Unidos não é sustentável. O embargo continua porque é difícil conseguir maiorias legislativas [no Congresso] para o levantar e por causa da influência dos grupos mais anticastristas do exílio cubano.”

Na Assembleia-Geral da ONU, só em 2016 os Estados Unidos não votaram contra o fim do embargo, optando pela abstenção. Israel acompanhou na abstenção e 191 países votaram a favor do levantamento do bloqueio económico à ilha. O inquilino da Casa Branca era Barack Obama que, em março desse ano, fizera história ao tornar-se o primeiro Presidente norte-americano a visitar Cuba em 88 anos — a última viagem realizara-se em 1928, por Calvin Coolidge.

O degelo ensaiado por Obama na relação bilateral com Cuba não produziu raízes. No ano seguinte, os Estados Unidos recuperaram o tradicional “não” e, assim que Donald Trump se tornou Presidente, os cubanos de Miami voltaram a respirar de alívio.

“Democratas como o Presidente Joe Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Esse cálculo político está errado. Os democratas não têm hipótese de ganhar este estado”, diz Pineo. O atual chefe de Estado foi eleito sem precisar de vencer na Florida, aliás.

“Podem ignorar com segurança os cubano-americanos que insistem em prosseguir com o bloqueio económico e, em vez disso, podem considerar apenas fazer a coisa certa”, diz o perito. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos.”

Florida, um feudo republicano

A eleições para o Congresso (midterms) de novembro passado confirmaram o domínio generalizado e amplo dos republicanos na Florida:

Ron DeSantis obteve 59,4% dos votos, sendo reeleito governador — é apontado como o mais forte candidato a desafiar Trump nas primárias republicanas para as presidenciais de 2024.
Para o Senado, Marco Rubio, de ascendência cubana, foi reeleito com 57,7%.
E para a Câmara dos Representantes, os eleitores da Florida elegeram 20 republicanos e oito democratas.

Nas Nações Unidas, o número máximo de países que votaram simultaneamente “não” foi quatro — aconteceu cinco vezes. Além de Israel, votaram ao lado dos Estados Unidos, em diferentes anos, Roménia, Albânia, Paraguai, Usbequistão, Ilhas Marshall, Brasil e Palau.

Um aliado chamado Palau

Ronn Pineo particulariza o caso deste microestado no Oceano Pacífico, com cerca de 20 mil habitantes, para expor a fragilidade de alguns apoios recebidos por Washington. “O Palau procurou defender o seu voto como ato de profunda consciência, contra a tirania socialista, mas esse voto é visto como resultado direto da dependência total da pequena nação em relação à assistência económica americana para a sua própria sobrevivência.”

“As nações que votam com os Estados Unidos são países que dependem profundamente da ajuda militar norte-americana. Os republicanos no Congresso poderiam acabar com a assistência militar americana se esses países, sobretudo Israel e a Ucrânia, votassem a favor de suspender o bloqueio económico dos Estados Unidos a Cuba.”

“O embargo terminará quando houver mudanças políticas efetivas ou de regime político em Cuba ou quando uma nova geração de cubanos ou de cubano-americanos entenda que deve terminar.” Nancy Gomes, diretora do polo em Portugal da Fundação Universitária Ibero-Americana (FUNIBER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui