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Kamala Harris, a possível candidata que terá ainda de conquistar os Estados Unidos

A resiliência do Partido Democrata nas midterms, eleições que se projetavam como uma “onda vermelha” favorável aos republicanos, relançou o interesse à volta da corrida democrata às presidenciais de 2024. Com Joe Biden prestes a fazer 80 anos, o foco volta-se para Kamala Harris, a sua vice, que partilha com o Presidente taxas de aprovação… negativas

Caricatura da vice-presidente dos Estados Unidos Kamala Harris GAGE SKIDMORE

“Era uma vez dois irmãos. Um deles correu na direção do mar; o outro foi eleito vice-presidente dos Estados Unidos. E nunca mais se ouviu falar de nenhum deles.” Esta curta história é uma piada atribuída ao norte-americano Thomas Marshall, que a contava para ilustrar a insignificância do cargo que desempenhou entre 1913 e 1921 — a vice-presidência dos Estados Unidos. Governava então Woodrow Wilson.

Com igual humor, Nelson Rockefeller, o n.º 2 de Gerald Ford entre 1974 e 1977, disse sentir-se em permanente estado de prontidão para acudir a “funerais e terramotos”. Já Benjamin Franklin, governador da Pensilvânia entre 1785 e 1788, sugeriu que se chamasse aos titulares do cargo “sua supérflua excelência”.

Nos Estados Unidos, a vice-presidência está longe de ser o posto mais cobiçado para quem ambiciona fazer carreira na política. “O cargo é muito ingrato e arriscado”, explica ao Expresso Germano Almeida, especialista em política norte-americana e autor de quatro livros sobre Presidentes dos EUA. “Não tem poder real e a sua função é, por definição, ‘negativa’. Ou seja, só se tornará importante se algo de errado e inesperado ocorrer com o Presidente.”

A anunciada presença da atual vice-presidente, Kamala Harris, em representação de Joe Biden, na tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil, a 1 de janeiro de 2023, é exemplo da subalternização do cargo em relação ao inquilino da Casa Branca.

Os casos de JFK e Nixon

Além das funções de representação, e do voto de qualidade no Senado conferido pela Constituição — crucial num cenário em que haja empate a 50 senadores entre os dois partidos, como sucedeu desde 2020 e pode continuar até 2024 —, espera-se de um vice-presidente que se mantenha ‘em forma’ para a eventualidade de o Presidente morrer ou renunciar. Aconteceu, e tempos recentes, com Lyndon Johnson após o assassínio de John F. Kennedy, em 1963, e com Gerald Ford após a demissão de Richard Nixon, na sequência do escândalo Watergate, em 1973.

Em 1945, quando ascendeu à presidência após a morte de Franklin D. Roosevelt, Harry Truman teve de tomar decisões exigidas a um chefe de Estado experiente. “Teve de assumir a Casa Branca nos meses finais da II Guerra Mundial, tendo sido dele a ordem de envio das bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui”, recorda Germano Almeida.

Passadas as midterms para o Congresso dos EUA, terça-feira, e com o Partido Democrata (no poder) a revelar uma resiliência que as sondagens não conseguiram descortinar, a corrida do partido do burro às presidenciais de 2024 ganhou renovado interesse. A meio do mandato — e com Joe Biden prestes a atingir os 80 anos de idade (a 20 de novembro) —, quão sólida é uma possível candidatura de Kamala Harris à Casa Branca?

A democrata mais conhecida

Por ser a outra metade do ticket (a dupla Presidente e vice-presidente que vai a votos como um só), Harris, de 58 anos, surge como sucessora natural do mais velho Presidente a ser eleito. “Se Biden não voltar a concorrer à presidência em 2024, julgo que Kamala Harris será a favorita para ganhar a nomeação democrata”, diz ao Expresso Christopher Devine, professor de Ciência Política da Universidade de Dayton (Ohio), com livros publicados sobre a vice-presidência norte-americana.

“Isso não se deve necessariamente ao desempenho de Harris como vice-presidente, mas aos fundamentos de uma campanha para as primárias. Ela seria provavelmente a democrata mais conhecida a concorrer à presidência e não enfrentaria nenhum candidato óbvio. Teria o apoio do Presidente Biden, de muitos altos funcionários democratas e, quase de certeza, amplo apoio entre políticos e eleitores negros — o que, como demonstraram os casos de Hillary Clinton em 2016 e Biden em 2020, pode mais ou menos garantir a nomeação numas primárias democratas.”

BILHETE DE IDENTIDADE

  • Nome: Kamala Devi Harris
  • Data de Nascimento: 20 de outubro de 1964
  • Local de Nascimento: Oakland, Califórnia
  • Pais: Shyamala Gopalan (cientista indiana, na área do cancro da mama) e Donald J. Harris (professor universitário jamaicano, da área da economia)
  • Estado civil: Casada com o advogado Douglas Emhoff, desde 2014. Sem filhos
  • Formação académica: Curso de Direito, no Hastings College of the Law, da Universidade da Califórnia
  • Experiência profissional: Promotora, procuradora-geral e senadora pelo estado da Califórnia

Quarta-feira, na ressaca de uma derrota eleitoral que não lhe foi tão penalizadora como se anunciava, Biden anunciou que vai aproveitar as festividades de Natal para maturar, com a família, a possibilidade de se recandidatar. A decisão será comunicada aos norte-americanos no início de 2023.

“Diria que, neste momento, é altamente improvável que a nomeada presidencial democrata para 2024 seja Kamala Harris”, diz Germano Almeida. “Biden é mais provável, se nessa altura estiver em condições de saúde para tal; se não for o atual Presidente, apontaria outros dois nomes com mais condições políticas do que Kamala: o secretário dos Transportes, Pete Buttigieg, e o governador da Califórnia, Gavin Newsom.”

Quando tomou posse como vice-presidente, Harris fez história — e gerou entusiasmo — no país. Foi a primeira mulher eleita para o cargo e, ainda por cima, era negra e descendente de jamaicanos e asiáticos. “Sendo tudo isso, a verdade é que não representa qualquer desses segmentos no posto”, alerta Almeida.

“O flanco esquerdo do Partido Democrata queria que ela fosse mais radical, a ala moderada e centrista nem com Biden está plenamente satisfeita. Por último, Kamala recebeu do Presidente um dossiê muito complicado de gerir: a imigração e a pressão fronteiriça, tema em que esta Administração ainda não conseguiu marcar pontos.”

“Não venham” para o ‘el dorado’

No seu primeiro dia em funções, Biden derrubou dois pilares da política migratória de Donald Trump: suspendeu a construção de novos troços do muro na fronteira com o México e introduziu legislação com vista à legalização de quase 11 milhões de imigrantes que já viviam no país.

Ao rejeitar uma abordagem securitária do acolhimento de migrantes, Biden incentivou, ainda que involuntariamente, a formação de caravanas de migrantes com origem na América Central, que se fizeram à estrada, muitos a pé, rumo ao El dorado americano.

As imagens degradantes de milhares de pessoas à espera dias a fio para cruzar a fronteira entre EUA e México e dos centros de triagem no Texas sobrelotados, com migrantes instalados em jaulas coletivas, pressionaram a vice-presidente.

A 7 de junho de 2021, durante uma visita à Guatemala — um dos países de origem do problema migratório —, Kamala não criou ilusões a quem só queria fugir da pobreza: “Não venham!”, disse numa conferência de imprensa, ao lado do Presidente guatemalteco.

Migrantes: tema difícil para marcar pontos

“Kamala Harris ficou com uma das tarefas mais difíceis: lidar com os fluxos migratórios da América Latina para os EUA, tema explorado de forma exaustiva pelos republicanos, independentemente da dimensão desses fluxos”, diz ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor na Universidade Portucalense.

“A forma como a vice-presidente tem gerido esta questão, e sobretudo a forma mediática como o tem feito — a visita à Guatemala onde disse aos possíveis migrantes ‘Do not come’ ou as reticências em visitar a fronteira com o México —, tem gerado contestação na ala mais à esquerda do Partido Democrata’, acrescenta.

“Num tema que os EUA pretendem gerir de uma perspetiva estritamente securitária, sem tentar promover o desenvolvimento económico e social, e em que a análise deste está fortemente politizada e carregada de estereótipos, não parece possível que Harris consiga obter vantagens na gestão do tema para a sua carreira política.”

Outro dossiê quente que ficou a cargo de Harris é a questão do “direito ao voto”, tema que causa grande atrito com os republicanos e que muito dificilmente lhe permitirá apresentar trabalho.

“Parte do problema da vice-presidente Harris é que muitos problemas que foram negligenciados sob a Administração anterior ou assuntos sobre os quais ela e o Presidente Biden têm controlo limitado, como a guerra da Rússia contra a Ucrânia, criaram dificuldades económicas que prejudicaram a sua posição”, diz ao Expresso Joel K. Goldstein, professor de Direito na Universidade de Saint Louis (Missuri) e autor do livro “The White House Vice Presidency: The Path to Significance, Mondale to Biden” (2017).

“Harris tem sido uma das principais porta-vozes de conquistas e questões importantes do Governo Biden, como os direitos reprodutivos, a inclusão, a necessidade de responder às alterações climáticas. Isso deve proporcionar uma oportunidade para que ela fortaleça a sua posição enquanto desenvolve trabalho importante a nível governamental.”

A dois anos das próximas presidenciais, as taxas de aprovação não têm sido simpáticas para Harris. Há mais de um ano que tem ininterruptamente uma avaliação no vermelho. O reconhecido projeto FiveThirtyEight, que analisa sondagens, atribuía-lhe, no dia das midterms, 52% de “reprovação” e 39,5% de “aprovação”.

Os números baixos não lhe devem ser imputados em exclusivo. “É muito difícil para um vice-presidente manter popularidade alta quando o índice de aprovação do Presidente é relativamente baixo”, diz Goldstein. É o que acontece com Biden. “A popularidade de Kamala Harris vai andar sempre de braço dado com a do Presidente Biden, muito mais do que pela sua própria ação política”, acrescenta Ponte e Sousa.

“Harris não é muito popular entre os americanos, em geral. Mas é difícil dizer se isso é por caisa dela, ou especificamente da sua atuação como vice-presidente”, afirma Devine. “O mais provável é que esteja a sofrer de uma estreita associação com o Presidente, que tem números baixos. Se Biden não concorrer em 2024, e Harris sim, ela terá a oportunidade de se distinguir dele e concorrer por si própria. Mas, para o bem ou para o mal, a reputação dela estará ligada a Biden. É o dilema que qualquer vice-presidente enfrenta ao concorrer à presidência.”

Adversários de ontem, hoje aliados

Kamala e Joe não são aliados desde a primeira hora, ao contrário do que pode insinuar este descontraído vídeo divulgado no dia da vitória eleitoral de ambos. Foram adversários nas primárias democratas — em que participaram 29 candidatos — e, nos debates, protagonizaram momentos de oposição e tensão.

Na história dos Estados Unidos, não faltam exemplos reveladores do quão dependente estão os vice-presidentes do sucesso dos seus superiores para se aventurarem à Casa Branca. “É uma dependência quase total”, diz Germano Almeida.

“Foi assim com George HW Bush depois de dois mandatos de Ronald Reagan, foi assim com Joe Biden depois de dois mandatos de Barack Obama [com Donald Trump a seguir]. No caso do atual Presidente, o facto de ter sido o escolhido de Obama para vice, em 2008, foi determinante”, apesar dos 36 anos como senador pelo Delaware.

O ‘azar’ de Al Gore

“Nos tempos modernos, quase todos os vice-presidentes foram considerados futuros candidatos presidenciais depois de terem servido como vice-presidente”, conclui Goldstein. “Ser vice-presidente dá vantagem. Mas nunca se deve presumir que garante que se tornarão Presidentes ou candidatos à presidência.”

Almeida dá um exemplo recente de como o trampolim da vice-presidência nem sempre funciona. “Quem tinha tudo para ser um vice-presidente a ascender à presidência após dois mandatos bem-sucedidos era Al Gore [vice de Bill Clinton entre 1993 e 2001]. Teve mais 500 mil votos do que o opositor, mas nunca viria a tomar posse: perdeu no Colégio Eleitoral após três recontagens na Florida.” Especificidades de um sistema eleitoral único, aqui a dar vantagem a George W. Bush.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Há cinco réus encarcerados há 20 anos sem julgamento e vítimas de tortura: “Nem sei se justiça é a palavra certa”

Os sucessivos adiamentos do julgamento dos suspeitos do 11 de Setembro tornaram-se um grande embaraço para os Estados Unidos. Se, por um lado, condenar os acusados levaria algum conforto às famílias de quase 3000 vítimas, por outro o facto de os réus serem vítimas de tortura por parte da CIA agrava a complexidade do caso. Em entrevista ao Expresso, um perito em terrorismo tem reservas em considerar como “justiça” o processo que decorre em Guantánamo

ais de duas décadas depois, o 11 de Setembro é uma tragédia cada vez mais esbatida na memória coletiva dos norte-americanos. A cada novo ano letivo, o professor Tom Mockaitis testemunha-o quando recebe novas turmas na Universidade DePaul, uma instituição privada em Chicago. Os novos estudantes não eram nascidos à época ou eram muito jovens para guardarem lembranças que, hoje, os mobilizem minimamente a cada novo aniversário.

“A maioria dos norte-americanos seguiu em frente. Neste momento, o país está muito mais preocupado com o extremismo interno, a recente decisão relativa ao aborto, o 6 de janeiro [invasão do Capitólio] e, se algo a nível internacional, com a guerra na Ucrânia. É como Pearl Harbor para a geração dos meus pais. As pessoas seguiram em frente”, diz este perito em terrorismo, em entrevista ao Expresso.

A exceção a esta tendência de esquecimento são os familiares e amigos das 2977 vítimas mortais que esperam e desesperam pelo julgamento dos acusados. O processo está em fase de pré-julgamento e tem sofrido sucessivos adiamentos.

Defesa sem acesso a provas

Um dos principais obstáculos prende-se com um braço de ferro entre acusação e defesa relativamente à informação que pode ser usada como prova.

“Muitas das provas foram provavelmente obtidas no âmbito do trabalho classificado dos serviços secretos. Eles não vão revelar muito acerca de onde ou como obtiveram a informação”, explica Mockaitis. “Também não está claro o que é que a defesa pode ver. Num julgamento normal, a defesa tem direito a ver de antemão qualquer coisa que a acusação use como prova e tem a oportunidade de revê-la e refutá-la.”

VÍTIMAS: 2977 mortos

  • 2753 no World Trade Center, em Nova Iorque
  • 184 no Pentágono, em Washington D.C.
  • 40 num campo de Shanksville, na Pensilvânia

O processo decorre numa comissão militar, uma forma híbrida entre um tribunal criminal federal e um tribunal marcial militar, criada em 2006 pelo Congresso dos EUA.

Juiz e júri são assegurados por membros das forças armadas norte-americanas. Já as equipas de acusação e de defesa têm de ter obrigatoriamente advogados militares, mas também civis.

Guantánamo, território incógnito

A comissão militar para os suspeitos do 11 de Setembro está sediada na base naval que os Estados Unidos mantêm na Baía de Guantánamo (arrendada em 1903 às autoridades de Cuba).

“Tudo o que se fez foi colocá-los numa instalação que é, essencialmente, um território controlado pelos Estados Unidos, mas que não faz parte dos Estados Unidos”, explica o professor da Universidade DePaul. “Talvez seja porque os réus não poderiam ser responsabilizados de igual forma perante a lei dos EUA. Esta é uma área muito cinzenta.”

As audiências decorrem sem captação de imagens. São permitidas ilustrações, com algumas restrições. “Temos de cavar para obter informações sobre este julgamento. Há muito pouca informação pública.”

Ilustração sobre a sala de audiências, em Guantánamo, divulgada pelo Departamento de Defesa dos EUA. À esquerda, de branco, os cinco réus DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS ESTADOS UNIDOS

Matthew N. McCall, um tenente-coronel da Força Aérea, é o juiz do processo desde 20 de agosto de 2021. À época dos atentados, concluía a formação em Direito, na Universidade do Hawai. A sua nomeação foi envolta em polémica por não possuir a experiência requerida de dois anos como juiz militar.

O procurador-chefe é o contra-almirante Aaron Rugh, da Marinha. E o principal advogado de defesa é o brigadeiro-general Jackie L. Thompson Jr., do Exército. Os 12 militares que irão compor o júri ainda não foram selecionados.

Juízes em causa própria

Tom Mockaitis inquieta-se perante o facto de que quem julga serem “membros de uma organização que tem liderado a luta contra o terrorismo”. “Como é possível”, interroga-se.

“Fiquei muito preocupado com a ideia de um tribunal militar. Se os homens e mulheres no tribunal trabalham para uma instituição militar, sob uma cadeia de comando, e sabendo que há um forte desejo por parte daquele órgão de atribuir um veredicto de ‘culpados’, como pode o júri ser livre?”

“Estão a usar um sistema muito estranho”, continua. “Este não é um tribunal que resistiria a um escrutínio minucioso em qualquer país. Não há muita simpatia pelos réus, mas é difícil de defender que este seja um processo justo.”

A base naval dos EUA na baía de Guantánamo ocupa cerca de 117 km² da República de Cuba SHANE T. MCCOY / US NAVY / WIKIMEDIA COMMONS

Cinco homens estão no banco dos réus, acusados de cumplicidade com os 19 terroristas que sequestraram os quatro aviões.

Os cinco detidos

Khalid Sheikh Mohammad consta no Relatório da Comissão do 11 de Setembro como “o principal arquiteto dos ataques”. Nascido no Paquistão, é acusado de ter gizado a ideia de um ataque com aviões e de tê-la proposto a Osama bin Laden, o líder da Al-Qaeda. Foi apanhado em Rawalpindi, no Paquistão, em 2003, numa operação conjunta dos serviços secretos norte-americanos (CIA) e paquistaneses (ISI). Foi sujeito a “técnicas aprimoradas de interrogatório” da CIA, denunciadas em relatórios oficiais dos EUA, incluindo waterboarding, uma forma de tortura que simula uma situação de afogamento.

Walid bin Attash é acusado de treinar dois pilotos sobre como lutar em espaços apertados, como aconteceu para controlar os aviões. Nasceu na Arábia Saudita, juntou-se à jihad no Afeganistão, onde perdeu parte da perna direita, e foi detido em Karachi, no Paquistão, em 2003.

Ali Abdul Aziz Ali nasceu no Kuwait e tem cidadania paquistanesa. Também identificado como Ammar al-Baluchi, é acusado de transferir dinheiro desde os Emirados Árabes Unidos, onde trabalhava na área das tecnologias, para os piratas dos aviões. Foi intercetado em Karachi, no Paquistão, em 2003. A defesa acredita que o filme “Zero Dark Thirty” — designadamente as sessões de tortura aplicadas a uma personagem chamada Ammar — é inspirado na sua experiência.

Ramzi bin al-Shibh é acusado de recrutar e organizar a célula de Hamburgo, na Alemanha, e de agir como intermediário entre a liderança da Al-Qaeda e o egípcio Mohammed Atta, um dos piratas do primeiro avião a embater contra as torres gémeas, apontado como o líder operacional do atentado. Nascido no Iémen, Al-Shibh foi preso em 2002, na cidade paquistanesa de Karachi.

Mustafa al-Hawsawi é responsabilizado por prestar assistência logística e burocrática aos sequestradores. Este saudita é o réu que enfrenta menor número de acusações. Nas audiências em Guantánamo, senta-se numa almofada em forma de rosca para vencer as dores decorrentes de ferimentos no reto sofridos quando esteve cativo pela CIA. A defesa diz que foi violado.

“Uma coisa a ter em mente, e é assim que as organizações terroristas funcionam, é que muitas das pessoas que apoiam a célula e a operação não sabem realmente o que vai acontecer”, diz Mockaitis. “Não temos a certeza que todos os sequestradores estavam totalmente cientes de que participavam numa missão suicida.”

Os fatos cor de laranja dos detidos tornaram-se símbolo da infâmia que Guantánamo se tornou SHANE T. MCCOY / US NAVY / WIKIMEDIA COMMONS

Após serem apanhados, os cinco suspeitos foram encarcerados em prisões secretas da CIA fora dos Estados Unidos. Em 2006, foram transferidos para o centro de detenção de Guantánamo para serem julgados. Foram formalmente acusados de:

  • conspiração;
  • ataque contra civis;
  • assassínio em violação da lei da guerra;
  • ferimentos graves intencionais;
  • sequestro de avião;
  • terrorismo.

“Não é fácil ter simpatia por estes indivíduos. Mas dado o calendário do nosso sistema legal, segundo o qual o julgamento deve decorrer num período de tempo razoável e os réus são inocentes até prova em contrário e têm direitos, este sistema não corresponde a nenhum desses padrões. E não importa que haja provas muito boas. A defesa argumenta de forma bastante convincente que as confissões foram obtidas sob coação. Essas provas nunca seriam admitidas num tribunal dos EUA.”

Estas acusações expõem um conflito difícil de conciliar. Por um lado, o objetivo das autoridades norte-americanas é condenar os acusados como forma de fazer justiça à morte de quase 3000 pessoas. Mas essa pretensão acaba por ficar frustrada pelo facto de os réus também serem vítimas de tortura por parte da CIA.

Os réus do 11 de Setembro são cinco dos 36 prisioneiros que, segundo o site “Close Guantanamo”, subsistem naquele centro de detenção, 21 dos quais foram ilibados de acusações e estão aptos a sair em liberdade.

Desde que foi inaugurado, a 11 de janeiro de 2002, passaram pelos calabouços de Guantánamo 779 homens, a maioria de nacionalidade afegã, seguidos de sauditas e iemenitas. Com Joe Biden na Casa Branca, os portões daquela prisão já se abriram por quatro vezes.

Obama tentou, mas não conseguiu

A 22 de janeiro de 2009, escassos dois dias após tomar posse como Presidente dos EUA, Barack Obama assinou a Ordem Executiva 13492 determinando o encerramento de Guantánamo. Mas não conseguiu cumprir a promessa.

Mockaitis explica a complexidade do processo: “Eles não sabem o que fazer com estas pessoas. Se a opção for colocá-las em prisões nos EUA, isso criará uma tempestade de publicidade adversa. Ainda que não haja grande risco se ficarem presos, todos os políticos vão cair imediatamente em cima do assunto.” Outra possibilidade é devolver os detidos aos países de origem, “mas nalguns casos os países não os querem”.

Para o professor norte-americano, Guantánamo é “um embaraço” para os Estados Unidos. “Estes indivíduos foram detidos e mantidos sem julgamento por um longo período de tempo. Não tenho muitas dúvidas de que são culpados dos crimes de que são acusados. Mas por mais que tenham feito coisas horríveis, esse tratamento viola os nossos padrões do que é a justiça.”

“Quando dou aulas de contraterrorismo, uma das coisas que enfatizo é que a lei e a legitimidade são ferramentas muito poderosas do lado daqueles que lutam contra os extremistas. É isso o que nos diferencia deles”, conclui Mockaitis. “Tenho muitas reservas em relação à forma como isto está a ser feito. Nem sei se justiça é a palavra certa.”

(FOTO PRINCIPAL Dois feixes de luz, no local onde se erguiam as Torres Gémeas, iluminam os céus de Nova Iorque, numa homenagem às vítimas do 11 de Setembro KIM CARPENTER / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de Setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Joe Biden foi ao Médio Oriente: sobressaíram 10 momentos

A ano e meio de mandato, o 46.º Presidente dos Estados Unidos viajou até ao Médio Oriente para uma estadia de quatro dias que o levou a Israel, à Cisjordânia ocupada e à Arábia Saudita. Dois objetivos predominaram: a necessidade de conter o Irão e de integrar Israel na região

Meses após usar a palavra “pária” para se referir à Arábia Saudita, Joe Biden foi ao reino promover uma aliança regional MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES

1. O ELEFANTE NA SALA

OIrão e a sua ambição nuclear foram uma sombra que seguiu Joe Biden do primeiro ao último minuto da deslocação ao Médio Oriente este mês. Em Israel, que olha para a República Islâmica como uma ameaça existencial, o Presidente dos Estados Unidos não conseguiu disfarçar uma discordância em relação ao seu mais sólido aliado na região.

Numa entrevista pré-gravada ao Channel 12 de Israel, divulgada no dia em que chegou ao país, Biden defendeu a reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano (a que Telavive se opõe), aceitando manter a opção militar sobre a mesa, “como último recurso”, se Teerão estiver na iminência de obter uma ogiva nuclear.

A apologia das negociações colide de frente com a posição de Israel em relação ao gigante persa. “A única coisa que poderá conter o Irão é saber que, se continuar a desenvolver o seu programa nuclear, o mundo livre usará a força”, disse o primeiro-ministro israelita, Yair Lapid, na conferência de imprensa conjunta com Biden. “A única maneira de detê-los é colocar uma ameaça militar credível sobre a mesa.”

“Continuo a acreditar que a diplomacia é o melhor caminho”, contrapôs Biden. Não ter ouvido da boca do amigo americano palavras mais intransigentes para com Teerão terá sido grande frustração para as autoridades de Israel.

2. NETANYAHU ATIVO NOS BASTIDORES

Um dos israelitas mais vocais na defesa de uma solução militar para o problema iraniano foi o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que governou entre 1996 e 1999 e, depois, entre 2009 e 2021.

O atual líder da oposição assistiu na pista do aeroporto Ben Gurion à aterragem do Air Force One e, logo ali, não enjeitou em comentar o assunto com a imprensa. “Para travar regimes como o Irão, não bastam as sanções económicas e políticas”, disse. “Não há como parar o Irão sem uma opção militar, sem uma ameaça militar credível, na esperança de o deter. Mas se não impedir, não há outra escolha a não ser ativá-la.”

Netanyahu teve direito a um encontro com Joe Biden — “caloroso e excelente”, como qualificou —, onde insistiu na abordagem bélica ao Irão. “Somos amigos há 40 anos, mas, para assegurarmos os próximos 40, temos de lidar com a ameaça iraniana”, afirmou, defendendo que não bastam sanções nem uma aliança defensiva entre Israel e países árabes amigos. “Tem de haver uma opção militar ofensiva credível.” Como “falcão” da política, prometeu: “É o que farei se ou quando regressar ao gabinete de primeiro-ministro.”

Netanyahu, que é o israelita que mais tempo foi primeiro-ministro, aposta todas as fichas nas eleições legislativas de 1 de novembro próximo para regressar à cadeira do poder. As sondagens dizem que é o político mais popular do país.

3. A PRESSÃO DAS ELEIÇÕES

O encontro entre Biden e o primeiro-ministro Lapid, quinta-feira de manhã, no Hotel Waldorf Astoria, em Jerusalém, foi protagonizado por dois líderes pressionados pelo calendário eleitoral.

O Presidente dos Estados Unidos pode ver esfumar-se a curta maioria democrata de que dispõe no Congresso, nas eleições agendadas para 8 de novembro. Já o primeiro-ministro israelita, líder do partido centrista Yesh Atid, tem na mira as legislativas de 1 de outubro, que serão as quintas no país em menos de quatro anos. Lapid está no cargo há menos de um mês, na sequência da mais recente crise na política israelita.

4. O SIONISTA QUE QUER UMA PALESTINA INDEPENDENTE

À chegada a Israel, naquela que foi a sua primeira visita enquanto 46.º Presidente dos Estados Unidos, Biden recordou a primeira visita ao país, em 1973, era ele senador pelo Delaware.

Desde então, Biden já foi oficialmente a Israel dez vezes, o que lhe possibilitou o “privilégio” de conhecer pessoalmente todos os primeiros-ministros desde Golda Meir (1969-1974). “Repito-o: não é preciso ser-se judeu para se ser sionista”, disse agora.

A confissão agradou aos israelitas e lançou desconfiança entre os palestinianos, expectantes em relação ao que ia dizer-lhes. “Israel deve permanecer um Estado judeu, democrático e independente. A melhor forma de o conseguir continua a ser uma solução de dois Estados para dois povos, ambos com raízes profundas e antigas nesta terra.”

Muitos israelitas não terão apreciado que um sionista de coração fizesse a apologia da solução de dois Estados. “Continua a ser, na minha opinião, a melhor maneira de garantir o futuro de igual liberdade, prosperidade e democracia para israelitas e palestinianos”, disse Biden, “ainda que não seja [viável] no curto prazo.”

O roteiro de Joe Biden contemplou umas horas na cidade palestiniana de Belém, na Cisjordânia ocupada. Visitou a Igreja da Natividade, que abriga o local onde nasceu Jesus Cristo — Biden é cristão e católico — e reuniu-se com o Presidente da Autoridade Palestiniana, mas não se comprometeu com um calendário para a retoma das negociações de paz.

Biden e Mahmud Abbas tentaram, em vão, que o encontro fosse selado com uma declaração conjunta, inviabilizada pela complexidade semântica do problema. Os norte-americanos queriam que constasse que o futuro Estado palestiniano teria a sua capital “em” Jerusalém Oriental, enquanto os palestinianos exigiam escrever que “a” capital fosse Jerusalém Oriental.

5. UMA VISITA QUE IRRITOU OS ISRAELITAS

Sexta-feira de manhã, antes de seguir para a Cisjordânia, Biden fez uma visita a Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade santa, ocupada por Israel e que os palestinianos querem para sua capital) que muito indispôs as autoridades israelitas.

O Presidente dos Estados Unidos visitou o Hospital Augusta Victoria, no Monte das Oliveiras (fora da Cidade Velha), recusando a presença de qualquer representante oficial israelita na sua comitiva.

“Estou muito feliz por Biden visitar tanto o ocidente como o oriente da cidade. Tem todo o direito de realizar uma visita privada, mas tenho de dizer que gostava de o acompanhar”, lamentou o autarca de Jerusalém, Moshe Lion.

A iniciativa de Biden é difícil de “encaixar” por parte de alguns sectores israelitas, já que, em 2017, Donald Trump reconheceu formalmente Jerusalém “a capital de Israel” e ordenou a transferência da embaixada dos Estados Unidos para a cidade santa.

Outra circunstância contribuiu para afastar israelitas desta visita. O Hospital Augusta Victoria foi cofundado a seguir à primeira guerra israelo-árabe (1948) por luteranos alemães e pela agência da ONU que ainda hoje assiste os refugiados palestinianos (UNRWA), precisamente para acudir aos palestinianos expulsos de Israel após a criação do Estado.

Desde então, vigora neste hospital uma política de independência que lhe garante boa cooperação com israelitas e palestinianos, mas que, na prática, lhe permite barrar a entrada a representantes israelitas que ali vão em missão de acompanhamento de convidados.

6. ARMAMENTO DE HOJE E DE AMANHÃ

Acabado de chegar a Israel, quarta-feira, foi no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, que Biden cumpriu o primeiro ponto do seu programa de visita. Na pista, uma exposição de equipamento bélico de última geração funcionava como prova da aplicação dos milhões desembolsados por Washington para financiar a indústria israelita de armamento. São exemplos o sistema de defesa antiaéreo Iron Dome (Cúpula de Ferro) e o novo sistema de interceção a laser Iron Beam (Viga de Ferro), em desenvolvimento, com a chancela da empresa israelita Rafael Advanced Defense Systems.

7. UM VOO PARA A HISTÓRIA

De Israel, Biden viajou diretamente para a Arábia Saudita. O voo entre Telavive, na costa do Mar Mediterrâneo, e Jeddah, na costa do Mar Vermelho, fez história, já que os dois países não têm relações diplomáticas. Só muito recentemente, após a normalização das relações diplomáticas entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrain, em 2020, é que Riade passou a autorizar que aviões israelitas atravessassem o seu espaço aéreo.

Biden descreveu o voo como “um pequeno símbolo das relações emergentes e dos passos na direção da normalização [diplomática] entre Israel e o mundo árabe, em que o meu Governo trabalha para aprofundar e expandir”. O voo foi bom prenúncio já que, no mesmo dia, Riade anunciou a abertura dos céus nacionais aos aviões civis israelitas. Companhias aéreas como a El Al vão passar a encurtar horas nos seus voos para oriente e a equacionar abrir novas rotas.

Nos últimos dois anos, através dos Acordos de Abraão, os Estados Unidos têm pressionado no sentido da integração de Israel na região do Golfo Pérsico. Se foi a Administração Trump que apadrinhou os primeiros Acordos, Biden não os enjeita e colocou-os no capítulo prioritário da sua agenda externa, com o ambicioso objetivo de envolver a Arábia Saudita, o gigante árabe do Médio Oriente.

A deslocação de Biden à Arábia Saudita teve também essa componente, ainda que o próprio tenha admitido, em entrevista à televisão israelita, que a normalização total entre Telavive e Riade vai “demorar muito tempo”.

“Precisamos de ter um processo, e esse processo precisa de incluir a aplicação da Iniciativa de Paz Árabe [de 2002, também conhecida como Iniciativa Saudita]”, explicou o ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Adel al-Jubeir. “Uma vez que nos comprometemos com um acordo de dois Estados com um Estado palestiniano nos territórios ocupados, com Jerusalém Oriental como capital, esses são os nossos requisitos para a paz.”

8. A NOVA ARQUITETURA DO MÉDIO ORIENTE

Joe Biden chegou ao Médio Oriente numa altura em que o mundo se debate com altos preços da energia e grave insegurança alimentar, decorrentes da invasão russa da Ucrânia.

Restaurar a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita — deteriorada pelo assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul, em 2018 — tem, por isso, tripla importância: minimizar a crise económica levando o gigante saudita a abrir as torneiras do petróleo, promover a segurança pugnando pela integração regional de Israel e criar uma frente de defesa regional de contenção do Irão e dos seus próximos.

No mesmo dia em que Biden chegou à Arábia Saudita, o Irão mostrou as garras e apresentou a sua primeira divisão de drones, estacionada no Oceano Índico. Também a Rússia aproveitou a presença de Biden na região para responder às movimentações de Washington e anunciou a realização de uma cimeira entre o Presidente Vladimir Putin e os homólogos iraniano e turco, Ebrahim Raisi e Recep Tayyip Erdogan. O encontro acontecerá esta terça-feira, em Teerão.

A etapa saudita do périplo valeu duras críticas a Biden. A seguir ao assassínio de Khashoggi, em 2018, não hesitara em rotular o reino de “pária”, nem de referir-se com desprezo ao todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS). Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos. Sexta-feira, foi MbS quem o recebeu à entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah.

9. I2U2, UMA NOVA FÓRMULA DE INTEGRAÇÃO

Além dos Acordos de Abraão, que constituem uma autoestrada entre Israel e o mundo árabe, esta viagem de Biden inaugurou os trabalhos de um novo fórum de integração regional. A partir de Jerusalém, Biden e o primeiro-ministro Lapid participaram numa cimeira por videoconferência com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o Presidente dos Emirados Árabes Unidos, Mohamed bin Zayed (MbZ).

Estados Unidos, Israel, Índia e Emirados batizaram o quarteto socorrendo-se da primeira letra dos seus nomes em inglês, o que resultou num impronunciável “I2U2” (ai-tu-iú-tu). A parceria visa aprofundar a cooperação económica entre as regiões do Médio Oriente e do Indo-Pacífico, à semelhança do que acontece, no Pacífico, com o Quad, que junta Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos e procura funcionar como contrapeso à influência da China na região.

Um dos projetos anunciados pelo I2U2 passa pela construção de parques agrícolas na Índia, no valor de 2000 milhões de dólares, que usarão tecnologia israelita e que Abu Dabi (um dos sete Emirados) ajudará a financiar.

10. JOGOS SÓ PARA JUDEUS

Num momento mais descontraído, mas pleno de significado político, Biden marcou presença na cerimónia de abertura dos 21.º Jogos da Macabíada, no Estádio Teddy, em Jerusalém.

Também chamados “Jogos Olímpicos Judeus”, contam com a participação de milhares de atletas judeus oriundos de cerca de 60 países e também israelitas não-judeus (20% da população de Israel é árabe). A competição é sancionada pelo Comité Olímpico Internacional e realiza-se de quatro em quatro anos, no ano seguinte aos Jogos Olímpicos de Verão.

No discurso inaugural, o Presidente de Israel, Isaac Herzog, realçou um “dia de festa para o Estado de Israel e para todo o povo judeu, um momento especial de união. Um momento que incorpora os valores compartilhados nos quais acreditamos: sionismo e excelência, fé e esperança, solidariedade e aproximação”. Com Biden a seu lado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui

Diário da ocupação dez dias antes de Biden chegar

A primeira viagem do Presidente dos EUA ao Médio Oriente levou-o a Israel, onde falou do Irão. Hoje tem na agenda a Arábia Saudita. Palestinianos são o parente pobre

Quando Joe Biden entrou na Casa Branca, no início de 2021, a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita estava fragilizada pelo assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018, no consulado saudita em Istambul. Para o 46º Presidente, o crime era tão hediondo que o reino não escapava ao rótulo de “pária”.

Biden prometeu “recalibrar” a relação e desprezou o todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), implicado pessoalmente no caso, privilegiando o contacto com o debilitado rei Salman. A confirmar o afastamento entre Washington e Riade, Biden retirou da lista de organizações terroristas os huthis (apoiados pelo Irão), que os sauditas combatem no Iémen.

A ano e meio de mandato, porém, o pragmatismo parece ter assaltado a política externa de Biden. O Presidente americano chega hoje à Arábia Saudita, pressionado pela urgência em convencer o maior exportador mundial de petróleo a abrir as torneiras para que os preços da energia desçam nos mercados internacionais. A visita inclui um encontro com MbS.

Biden chega à Arábia Saudita após dois dias em Israel. O voo direto entre Telavive e Jeddah indicia uma intenção: pressionar no sentido da normalização da relação diplomática, como já aconteceu, desde 2020, entre Israel e Emirados Árabes Unidos, Barém, Sudão e Marrocos.

Os Acordos de Abraão são uma autoestrada de aproximação do Estado judeu ao mundo árabe, em nome de um inimigo comum: o Irão. Na escala em Israel, Biden defendeu um novo acordo sobre o programa nuclear iraniano (a que Israel se opõe) e garantiu que a opção militar continua sobre a mesa, “como último recurso”, para impedir Teerão de aceder à bomba atómica.

A visita permitiu também um encontro entre dois dirigentes aflitos: o próprio Biden, que pode perder a maioria democrata no Congresso nas eleições de 8 de novembro, e o primeiro-ministro israelita Yair Lapid, que tem legislativas marcadas para 1 de outubro, as quintas em menos de quatro anos. Como nas anteriores, não se prevê que o conflito israelo-palestiniano mobilize o eleitorado.

Hoje, Biden estará umas horas no território palestiniano ocupado da Cisjordânia. Em Israel, prometeu enfatizar o apoio à solução de dois Estados, “mesmo que não seja [viável] no curto prazo”. Até lá, a ocupação israelita continuará a desbravar terreno, nas suas múltiplas expressões.

3 julho: Assédio judeu a Al-Aqsa

Pelo menos 114 colonos judeus extremistas irrompem pela Esplanada das Mesquitas, na cidade velha de Jerusalém, protegidos por polícias israelitas. De forma provocatória, passeiam-se junto à mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar santo para os muçulmanos. Realizam também rituais talmúdicos e recebem explicações de rabinos sobre a importância do Monte do Templo, como os judeus chamam ao local. Os crentes muçulmanos são barrados por seguranças nos portões de acesso.

4 julho: É proibido construir

Seis famílias palestinianas de Khirbet Humsa al-Tahta, comunidade beduína do Vale do Jordão (a zona fértil da Cisjordânia), recebem ordens escritas das autoridades israelitas para pararem de construir em 30 estruturas. Este aglomerado está cercado por israelitas em três lados: o colonato de Hamra, um campo de treino militar e um checkpoint. Esta é uma prática com que Israel visa contribuir para expulsar os palestinianos de certas terras, para que as áreas ocupadas por judeus se expandam.

5 julho: Água não é para todos

Forças israelitas destroem condutas junto a uma nascente de água, que abastece a aldeia de Duma, no norte da Cisjordânia. É também demolido o muro de proteção e trabalhos de reabilitação recentes, feitos pelas autoridades da aldeia. Estas tentaram, em vão, que um tribunal israelita impedisse a destruição da infraestrutura. Na Cisjordânia, o acesso à água faz-se de forma discriminatória: é fácil para os colonos, difícil para os palestinianos, que têm de a comprar a Israel.

6 julho: Cerco aos pescadores

A marinha israelita abre fogo e dispara jatos de água na direção de pescadores da Faixa de Gaza, acusando-os de violação do limite de três milhas náuticas, que estão obrigados a respeitar. O incidente, de que não resultam mortos ou feridos, acontece ao largo das cidades de Jabalia e Beit Lahia, no norte do território. Israel já não tem tropas nem colonos na Faixa de Gaza (onde vivem dois milhões de pessoas), mas ocupa-a desde 2007 por “controlo remoto”, com um bloqueio por terra, ar e mar.

7 julho: Bulldozers ao ataque

Na aldeia de An-Nabi Samwil, em Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade anexada por Israel), bulldozers municipais arrasaram um terreno murado com árvores e um lava-jato, pertencentes a palestinianos, alegando não terem licença. Esta prática é muito usada para dificultar o quotidiano dos palestinianos e levá-los a abandonar terras. Os bulldozers tornaram-se arma da ocupação, ao ponto de empresas como Caterpillar, JCB, Volvo ou Hyundai serem alvo de campanhas de boicote por venderem equipamentos a Israel.

8 julho: Política para empatar

A cinco dias da chegada de Biden, o primeiro-ministro de Israel, Yair Lapid, telefona ao Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), Mahmud Abbas para, segundo o diário israelita “Haaretz”, discutirem “a continuidade da sua cooperação e a necessidade de manter a calma e o sossego na região”. A ocupação israelita beneficia da divisão política palestiniana. Aos 87 anos, Abbas mantém-se, há 17, inamovível à frente da AP (que governa a Cisjordânia) e em Gaza manda o grupo islamita Hamas.

9 julho: Vidas sem valor

No checkpoint de Jalama, a leste de Belém, o cadáver de Faleh Mousa Jaradat é finalmente entregue à família. Este palestiniano de 39 anos fora alvejado, a 17 de janeiro, por soldados israelitas que o acusaram de tentar esfaquear um militar. Israel reteve o corpo como medida de punição. Neste mês de julho, já morreram quatro palestinianos às mãos de israelitas: três homens de 18, 20 e 32 anos (dois a tiro e um por agressões), na Cisjordânia, e uma mulher de 68 anos, numa prisão de Israel.

10 julho: Presos em protesto

Ra’ed Rayyan, de 27 anos, cumpre o 95º dia em greve de fome. Detido na Prisão Hospital de Ramleh, em Israel, este palestiniano de Jerusalém exige o fim da sua detenção administrativa, que dura há meses. Dos mais de 4600 palestinianos presos em Israel (entre os quais 30 mulheres e 180 menores), 640 estão nessa situação: detidos sem acusação ou julgamento. Em janeiro, mais de 450 iniciaram um protesto, que dura até hoje, e recusam-se a comparecer nas sessões, em tribunal militar.

11 julho: A lei dos colonos

Cerca de 450 árvores de fruto são arrancadas de terras árabes por colonos judeus, em Turmusaya e Mughayir (nordeste de Ramallah). Os colonos invadem-nas acompanhados por militares israelitas, cuja missão na Cisjordânia é só proteger os 500 mil judeus que ali vivem, entre três milhões de árabes. A violência dos colonos manifesta-se ainda no bloqueio de ruas, arremesso de pedras contra carros e casas, queima de oliveiras, vandalização de colheitas e agressões físicas.

12 julho: Detenções em massa

Nove palestinianos são presos durante incursões de forças israelitas em várias localidades da Cisjordânia e na área de Jerusalém. As detenções em massa são uma forma de intimidação das populações. No dia 6, foram detidos 42 palestinianos e dois dias antes 25. Em junho, as forças israelitas levaram 464 palestinianos, incluindo 70 crianças e 18 mulheres. Desde 1967, perto de um milhão de palestinianos terão passado pelas prisões israelitas. Algo que afeta quase todas as famílias.

(ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Americanos estão de saída. Teme-se reinício da guerra

Crescem as áreas controladas pelos talibãs. Receando uma insurgência, há cada vez mais civis a pegar em armas

Uma criança afegã caminha junto a um militar norte-americano, na província de Helmand REECE LODDER, U.S. MARINE CORPS / RAWPIXEL

A guerra americana no Afeganistão tem tantos anos como o 11 de Setembro. Foi sobre este país da Ásia Central que os Estados Unidos retaliaram após o pior atentado sofrido em solo próprio. O Afeganistão era governado pelos talibãs, que abrigavam a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Quase 20 anos passados, os militares americanos estão de volta a casa. Para trás deixam um país cada vez mais nas mãos dos talibãs e, de novo, à beira da guerra.

“A verdade é que hoje a sobrevivência, segurança e unidade do Afeganistão estão em perigo”, alertou na quarta-feira Abdullah Abdullah, que lidera o Alto-Conselho para a Reconciliação Nacional no Afeganistão. “Com a retirada das tropas estrangeiras, a guerra escalou. Infelizmente, os talibãs tiraram partido disso. A saída das tropas naturalmente deixou um vácuo nalgumas áreas.”

A percentagem de território na posse dos talibãs não é unânime, mas é consensual a perceção de que os domínios islamitas estão a crescer para norte dos tradicionais bastiões de Helmand e Kandahar, a sul.

“Mesmo com as forças internacionais no terreno, os talibãs vinham há muitos anos aumentando a sua influência e controlo de vastas regiões de território”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força da NATO no Afeganistão entre 2007 e 2008. “Claro que do ponto de vista militar, a saída dos contingentes internacionais facilita-lhes a vida. Terão de fazer face a um inimigo mais reduzido e com menor capacidade militar.”

Esta semana, o comandante das forças dos EUA no Afeganistão expressou grande preocupação em relação ao futuro imediato do país. “A guerra civil é um caminho que podemos visualizar”, alertou o general Austin S. Miller. “A situação de segurança não é boa.”

Notícias dão conta da reorganização de grupos de antigos mujahedin (que combateram a ocupação soviética e, depois, o regime talibã). Igualmente, sobretudo em áreas habitadas por minorias étnicas, como os hazaras, estão a ser formadas milícias civis contra os talibãs. A perspetiva de grupos armados, organizados com base em lealdades tribais e em torno de “senhores da guerra”, voltarem a pegar em armas para repelir uma crescente insurgência talibã é um filme de terror que o Afeganistão já conhece.

Alemães já estão em casa

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estabeleceu o dia 11 de setembro como data final (e simbólica) para a saída das tropas do Afeganistão. A operação deverá ser concluída mais cedo, previsivelmente dentro de dias. Os alemães, que correspondiam ao segundo maior contingente estrangeiro, deixaram o Afeganistão terça-feira.

Quase duas décadas de guerra consagraram o Afeganistão como um atoleiro, onde chegaram a servir em simultâneo 150 mil norte-americanos e onde morreram cerca de 2500. “Falharam muitas coisas” na estratégia americana, analisa Carlos Branco. “Em primeiro, faltou interesse num processo de peace building [construção da paz] logo após a derrota dos talibãs. Os EUA estavam apenas interessados em capturar o Bin Laden e o seu envolvimento inseriu-se no âmbito do contraterrorismo. Isso deu tempo aos talibãs para sarar feridas e recomporem-se.”

“Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável”, diz o major-general Carlos Branco

“Quando a natureza do envolvimento internacional alterou-se e evoluiu para a contrassubversão, Washington assumiu que o conflito ia ser resolvido militarmente, nunca se empenhando a sério em encontrar uma solução política. Essa constatação ocorreu demasiado tarde e de forma errada, para resolver o seu problema com os talibãs, mas não o dos seus aliados afegãos, que terão de viver no Afeganistão lado a lado com os talibãs. O diálogo intra-afegão, que devia estar há anos no topo da agenda, é ainda hoje uma miragem.”

A 29 de fevereiro de 2020, o acordo de paz celebrado entre a Administração Trump e os talibãs abriu caminho ao diálogo intra-afegão que decorre em Doha, capital do Qatar, sem o mínimo progresso. Para o Governo de Cabul, a prioridade é obter um cessar-fogo, mas para os talibãs controlar mais territórios significa ganhos políticos.

“Os Estados Unidos vão retirar-se sem uma solução política para o país”, conclui o militar. “Não sabemos como vai ser o próximo governo e a fórmula política para acomodar a futura correlação de forças. Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável e que há que contar com eles, seja qual for a solução política. Pensou-se ser possível um Afeganistão sem talibãs. Não só são uma força política importante como não vão desaparecer. É incompreensível que nunca tenha havido uma política orientada para os pashtuns, a etnia [maioritária no país] em que assenta o poder talibã. Foi tudo tratado com muita arrogância. Agora há que lidar com as consequências desses erros.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui