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Um drama dentro do drama na fronteira entre Estados Unidos e México

Umas chegam acompanhadas por familiares, muitas outras seguem sozinhas. Há cada vez mais crianças a entrar ilegalmente nos Estados Unidos, vindas de países da América Central. O agravamento da crise migratória após a entrada de Joe Biden na Casa Branca obrigou o Presidente a recuperar as infames “gaiolas” que tantas críticas valeram a Donald Trump

Nunca houve tantas crianças ao deus-dará junto à fronteira entre os Estados Unidos e o México. Estatísticas do Serviço de Proteção das Alfândegas e Fronteiras dizem que só em março foram detetadas 18.890 crianças desacompanhadas, um recorde absoluto no contexto da crise migratória.

O anterior máximo acontecera em maio de 2019, quando foram registados 11.475 menores junto à fronteira. No total, só em março, foram detidas mais de 172 mil pessoas após entraram nos EUA de forma ilegal.

As chamadas “caravanas de migrantes”, alimentadas por gente em fuga à pobreza, à violência do crime organizado e mesmo a desastres naturais, como furacões, intensificaram-se após a chegada de Joe Biden à Casa Branca. Partem do chamado Triângulo Norte da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador).

“Não venham”, pede Biden

No seu primeiro dia em funções, o novo Presidente reverteu várias medidas da política migratória de Donald Trump. Suspendeu a construção de novos troços do muro, na fronteira com o México, e introduziu legislação com vista à legalização de quase 11 milhões de pessoas que já vivem no país.

A vontade de Biden de lidar com a pressão migratória de uma forma mais digna fez disparar rumores nos países de origem dos candidatos a migrantes, e criou a ilusão de que as fronteiras dos Estados Unidos estavam escancaradas.

“Ouvi no outro dia que eles estão a vir porque sabem que eu sou um bom tipo e que não vou fazer o que Trump fez. (…) ‘Não venham.’ (…) ‘Não abandonem a vossa cidade ou comunidade.”
(Joe Biden, em entrevista à ABC News, a 16 de março, dirigindo-se aos potenciais migrantes)

Pressionadas pelas dificuldades quotidianas, milhares de pessoas ignoraram os apelos de Biden e continuaram a fazer-se à estrada, a pé ou à boleia, muitas vezes colocando as suas vidas nas mãos de traficantes, na esperança de viverem o sonho americano.

Sem ter onde alojar tantos menores desacompanhados que seguem nessas caravanas, a Administração Biden reativou centros de instalação temporários, geridos pelo Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras, que tantos protestos provocaram durante a Administração Trump.

As paredes em plástico substituíram o gradeamento, mas o conceito de detenção é o mesmo, e o espaço continua a ser exíguo.

Durante a era Trump, por força de uma política de tolerância zero à imigração ilegal, os EUA passaram a criminalizar quem entrava à socapa no país. Os adultos eram detidos em estabelecimentos federais que não admitiam crianças e estas eram separadas das famílias e ficavam a viver em jaulas de arame.

Em junho de 2018, o próprio Trump assinou um decreto executivo e acabou com a separação das famílias. O aumento do número de menores desacompanhados revela que o problema está muito longe de estar resolvido.

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De aspeto adoentado, a pequena Jocelyn, uma hondurenha de seis anos, é confortada pela mãe enquanto espera por transporte da polícia norte-americana. As duas, e dezenas de outros migrantes, acabaram de entrar nos EUA, em jangadas ADREES LATIF / REUTERS
Esta criança espera por vez para tomar um duche, nas instalações para menores desacompanhados, em Donna, no Texas DARIO LOPEZ-MILLS / AFP / GETTY IMAGES
Tem apenas quatro meses. Adormecida, a hondurenha Karli vai ao colo do pai, quando o grupo em que seguem é intercetado por uma patrulha fronteiriça, em Hidalgo, no Texas JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Muitos migrantes entram nos Estados Unidos em frágeis jangadas, através do Rio Grande, a fronteira natural entre EUA e México JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Um hondurenho carrega a filha às costas, após entrarem nos EUA. A sujidade nas vestes revela a dureza de uma longa caminhada que ficou para trás ADREES LATIF / REUTERS
Muito cansaço acumulado após uma longa caminhada que os levou da América Central aos Estados Unidos JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Um grupo de migrantes faz uma pausa, em San Pedro Sula, nas Honduras, já com a fronteira com a Guatemala à vista, antes de retomar a marcha a pé a caminho dos EUA WENDELL ESCOTO / AFP / GETTY IMAGES
Têm ambos um ano de idade e nasceram na Guatemala. Marvin e Brando seguem às cavalitas das mães a caminho do ‘sonho americano’ ADREES LATIF / REUTERS
Oscar segue só. Tem 12 anos, partiu da Guatemala e acabou de atravessar o Rio Grande, que separa México e Estados Unidos ED JONES / AFP / GETTY IMAGES
Um grupo de migrantes aguarda, num campo do Texas, que a polícia norte-americana os recolha e os leve para centros de acolhimento ADREES LATIF / REUTERS
Após entrar nos EUA, muitos migrantes procuram a polícia para se entregarem e pedir asilo JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS
Muitos migrantes são oriundos das Honduras. De Tegucigalpa, a capital, até território norte-americano são mais de 2500 quilómetros JOHN MOORE / GETTY IMAGES
O descanso possível após muitos quilómetros nas pernas ADREES LATIF / REUTERS
Chegados aos Estados Unidos, vindos da Guatemala, pai e filho esperam que o seu pedido de asilo seja apreciado JOHN MOORE / GETTY IMAGES
Uma menina rasga um pedaço de papel higiénico, num ginásio de Ciudad Juarez, no México, convertido num centro de acolhimento de migrantes expulsos dos EUA PAUL RATJE / AFP / GETTY IMAGES
Depois da longa aventura da viagem, começa a espera pela conclusão do processo burocrático, em solo americano ADREES LATIF / REUTERS
Esta mulher, com um filho pequeno ao colo, foi largada na margem do Rio Grande. Os perigos que enfrenta são múltiplos JOHN MOORE / GETTY IMAGES
A hondurenha Jennifer e o seu filho Carlos, de seis anos, descansam entre o feno, num campo texano, após entrar nos Estados Unidos ADREES LATIF / REUTERS
Francisco e Megan, pai e filha. Dois entre milhares de nomes que partiram das Honduras a caminho dos Estados Unidos ADREES LATIF / REUTERS
Crianças contra o “muro”, uma batalha impossível de vencer JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS
De mão dada à mãe, Taznari, uma pequena hondurenha de três anos, prossegue caminho ADREES LATIF / REUTERS
O carinho possível no seio de uma família guatemalteca, em Penitas, Texas JOHN MOORE / GETTY IMAGES
O sonho terminou para estas crianças e respetivas famílias, sentadas num parque público de Reynosa, no México, após serem expulsas dos Estados Unidos DANIEL BECERRIL / REUTERS
A noite foi passada a tentar dormitar, encostados ao gradeamento de um campo de beisebol, em La Joya, Texas ADREES LATIF / REUTERS
Pequenas mãos “espreitam” por entre as lâminas do “muro” entre os Estados Unidos e o México ADREES LATIF / REUTERS
Um agente da polícia de fronteira dos EUA ajuda um insuflável que transporta migrantes a atracar, no fim da travessia do Rio Grande GO NAKAMURA / REUTERS
Para esta criança e sua mãe, a viagem chegou ao fim. A polícia americana deixou-os numa paragem de autocarro entre Brownsville, no Texas, e a cidade mexicana de Matamoros, para que regressem a casa CHANDAN KHANNA / AFP / GETTY IMAGES
Este pai e o seu filho bebé foram deportados dos EUA. Este repouso, num centro de acolhimento mexicano, não está isento de preocupações JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS
Não é este o caso, mas há cada vez mais crianças desacompanhadas a chegar aos Estados Unidos ADREES LATIF / REUTERS
Após atravessarem o Rio Grande pela calada da noite, estes migrantes escutam as instruções da polícia. Começa a batalha pela legalização GO NAKAMURA / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

O puzzle de interesses à volta do programa nuclear

O norte-americano Joe Biden quer reverter a estratégia do seu antecessor para o Irão. O iraniano Ali Khamenei só aceita negociar se as sanções forem levantadas. E o israelita Benjamin Netanyahu fará de tudo para que não haja acordo

A velha máxima segundo a qual não se deve regressar ao local onde se foi feliz parece não se aplicar ao processo diplomático em torno do programa nuclear do Irão. Foi em Viena que, a 14 de julho de 2015, sete países assinaram um acordo que limitou as atividades nucleares iranianas, colocando-as sob supervisão internacional. É também na capital da Áustria que, desde 6 de abril, as mesmas partes tentam reativá-lo e minimizar os danos causados pela saída unilateral dos Estados Unidos, decidida por Donald Trump, em 2018.

EUA e Irão não têm relações diplomáticas e nutrem desconfiança mútua que os condiciona em contexto de aproximação. Houve, pois, que recorrer à criatividade para tornar a diplomacia possível. Em Viena, as duas delegações estão hospedadas em diferentes hotéis (o Grand Hotel Wien e o Imperial), que distam menos de 100 metros, cabendo a britânicos, franceses, alemães, russos e chineses a tarefa de andarem de um lado para o outro para se reunirem em separado.

Este diálogo sofreu um abalo esta semana, depois de a central de Natanz — principal infraestrutura nuclear iraniana — ter sofrido um apagão, na sequência de uma grande explosão que responsáveis iranianos não hesitaram em qualificar de “terrorismo nuclear”.

Ações de sabotagem

“Apesar de os EUA declararem que não estão envolvidos na operação que levou à explosão em Natanz, a desconfiança que já existia entre os responsáveis iranianos saiu reforçada”, comenta ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho.

Teerão conteve-se na hora de apontar o dedo acusador, mas este ataque vem engrossar todo um historial de ações de sabotagem atribuídas a Israel, que vê no programa iraniano uma ameaça à sua existência. São exemplos o assassínio de cientistas nucleares (como Mohsen Fakhrizadeh, principal cientista do programa, em novembro passado), ataques cibernéticos (como o Stuxnet, em 2010, atribuído à Mossad e à CIA, que se estima tenha causado um atraso de anos ao programa); e ataques a navios iranianos.

Há muito que a tensão entre iranianos e israelitas transbordou do domínio verbal. Nas últimas semanas, tem sido visível uma escalada ao estilo de uma batalha naval

“Se é Israel que está por trás do ataque [em Natanz], fê-lo com dois objetivos”, enumera ao Expresso o israelita Ely Karmon, investigador do Centro Interdisciplinar de Herzliya (Israel). “Primeiro, com um objetivo operacional: travar o progresso do programa nuclear iraniano, que é real, uma vez que já começou a enriquecer urânio a 20% e iniciou o funcionamento com centrifugadoras avançadas (IR-9), que têm capacidade de separar isótopos de urânio 50 vezes mais depressa do que as centrifugadoras de primeira geração (IR-1). Depois, há um objetivo político: convencer os responsáveis ocidentais que estão a negociar em Viena a não ceder à pressão iraniana. O Irão quer regressar ao acordo original sem quaisquer restrições ao nível da produção de mísseis de longo alcance e da sua atuação agressiva na Síria, Líbano, Iraque e Iémen.”

O ataque a Natanz, no domingo, coincidiu com a visita a Israel do secretário da Defesa dos EUA, general Lloyd Austin. Ao lado do homólogo israelita Benny Gantz, o chefe do Pentágono reafirmou o compromisso “duradouro e blindado” dos EUA para com Israel. Mas, numa altura em que a Administração Biden se predispõe a dialogar com o arqui-inimigo de Israel, o aliado americano não se mostra sensível ao chavão israelita de que “é melhor nenhum acordo do que um mau acordo”.

Batalha naval

Há muito que a tensão entre iranianos e israelitas transbordou do domínio das palavras. Nas últimas semanas, tem sido visível uma escalada ao estilo de batalha naval. A 6 de abril, o exato dia em que começava o diálogo em Viena, o “Saviz”, navio de carga iraniano que se suspeita seja usado para apoiar os huthis no Iémen, foi atingido por uma mina no Mar Vermelho. Já esta semana, terça-feira, o navio comercial “Hyperion Ray”, de uma empresa israelita, foi atingido por mísseis quando navegava no Golfo Pérsico.

A economia iraniana entrou num terceiro ano consecutivo de recessão após o triplo choque causado pelas sanções, pelo colapso do mercado petrolífero e pela covid-19

Nessa mesma terça-feira, o Irão subiu a fasquia da pressão e informou a Agência Internacional de Energia Atómica de que vai começar a enriquecer urânio a 60% — quando chegar aos 90% poderá utilizar o minério em armamento.

“Isto vai melhorar significativamente a qualidade e a quantidade dos produtos radiofarmacêuticos”, regozijou-se Kazem Gharibabadi, representante do Irão junto da organização, enfatizando o argumento de Teerão de que só quer energia nuclear para fins pacíficos, nomeadamente para usar na área da saúde.

Trump falhou

Ao abrigo do acordo de 2015, o Irão está obrigado a respeitar uma percentagem máxima de enriquecimento de urânio de… 3,67%. Foi depois de os EUA se retirarem do acordo e adotarem uma estratégia de “pressão máxima”, reintroduzindo sanções, que o Irão começou a violar os compromissos.

“Muitos responsáveis do aparelho de Defesa israelita e muitos peritos, que em 2015 acharam que o acordo era mau e que a Administração Obama podia ter alcançado um melhor, opuseram-se às medidas de Trump”, recorda Karmon. “Hoje, consideram que a estratégia de Trump falhou e que os iranianos avançam ainda mais rapidamente na direção da bomba.”

No Irão, não se olha de forma unânime para as negociações com o Ocidente. “Há um grupo que as considera vitais para a sobrevivência do regime”, diz Eslami. “Outro ponto de vista, dominante, considera-as prejudiciais, ‘veneno que mata’ o regime, como qualificou o ayatollah Ali Khamenei”, Líder Supremo da República Islâmica.

Triplo choque

Para quem governa o país, as negociações podem ser tábua de salvação para grandes problemas. Em janeiro, um relatório do Banco Mundial identificou um “triplo choque” que destrói o país. “A economia iraniana entrou num terceiro ano consecutivo de recessão a seguir ao triplo choque provocado pelas sanções, pelo colapso do mercado petrolífero e pela covid-19”, lê-se. Não por acaso, em Viena, a principal reivindicação do Irão para voltar a cumprir o acordo é o levantamento das sanções.

“Ainda que algumas negociações produtivas, que melhorem o câmbio da moeda, diminuam a inflação e ajudem ao controlo da pandemia sejam cruciais para o Governo, e para os partidos reformistas que tentam atrair votos nas eleições [presidenciais de 18 de junho], a visão da liderança é a de não fazer compromissos”, diz Mohammad Eslami. “O Líder Supremo está sempre a promover a confiança nas capacidades internas, popularizada como ‘autossuficiência’.”

As eleições que se aproximam estão na sombra das conversações de Viena. O atual Presidente, Mohammed Rouhani, é reformista (defensor do diálogo com o Ocidente), mas a linha dura do regime tem argumentos para ambicionar resgatar o cargo — ‘o acordo foi uma traição’, ‘nada ganhamos com ele’. “A sugestão do Líder Supremo à nação para que eleja um Presidente ‘jovem e revolucionário’ reforça a ideia de que não está otimista em relação às negociações. Apesar de não ter dito o nome, a maioria dos analistas acredita que ‘jovem e revolucionário’ é um ‘código’ para Saeed Mohammad, general dos Guardas da Revolução [52 anos] profundamente antiocidental e antinegociações.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

A quem já telefonou Joe Biden… e a quem não

Nas primeiras conversas com líderes estrangeiros, o novo Presidente dos Estados Unidos privilegiou os dois países vizinhos, três aliados europeus e alguns pesos-pesados da geopolítica mundial

Nos últimos 30 anos, os Presidentes dos Estados Unidos da América recém-chegados à Casa Branca usaram os seus primeiros telefonemas internacionais para promover a boa vizinhança. Donald Trump ligou para o Canadá e para o México, no dia seguinte a tomar posse. O antecessor, Barack Obama, privilegiou o Canadá e, antes dele, George W. Bush o México. Só Bill Clinton colocou a geopolítica à frente de tudo e ligou, prioritariamente, para Rússia e Israel.

Joe Biden, que tomou posse faz amanhã um mês, tinha telefonado, até ontem, a 11 líderes estrangeiros. “Parece preocupado em restabelecer as grandes linhas que dominaram a política externa dos EUA nas últimas décadas, e que Trump rompeu abruptamente”, comenta ao Expresso o americanófilo José Gomes André. “Nomeadamente, reconstruir conexões com aliados permanentes (como os grandes países europeus) e construir um arco diplomático alicerçado em democracias sólidas e confiáveis para enfrentar os grandes desafios geopolíticos.”

22-01 CANADÁ 
Desilusão a norte

A conversa com o primeiro-ministro Justin Trudeau durou cerca de 30 minutos, o suficiente para acordarem áreas de cooperação e identificarem obstáculos no caminho. Trudeau expressou a sua “desilusão” em relação à decisão de Biden de cancelar a construção do polémico oleoduto Keystone XL, que levaria petróleo de Alberta até ao Texas ao ritmo de 830 mil barris por dia. Biden fê-lo no seu primeiro dia em funções, ao mesmo tempo que decretava o regresso dos EUA ao Acordo de Paris sobre as Alterações Climáticas.

22-01 MÉXICO 
Provocação a sul

Andrés Manuel López Obrador foi, juntamente com o homólogo brasileiro Jair Bolsonaro, dos mais resistentes a felicitarem Joe Biden pela vitória eleitoral. O norte-americano desvalorizou e colocou o México entre os contactos prioritários. Biden prometeu cooperação, nomeadamente ao nível dos fluxos migratórios irregulares, e ignorou as controvérsias recentes. Em janeiro, López Obrador ofereceu asilo político a Julian Assange, numa atitude provocatória para com os EUA, que lutam na justiça pela extradição do fundador da WikiLeaks, detido no Reino Unido.

23-01 REINO UNIDO 
Uma relação especial

Ao contrário do seu antecessor, Biden nunca foi adepto da saída do Reino Unido da União Europeia (‘Brexit’), mas a opção britânica por esse desígnio não parece beliscar a relação privilegiada entre os dois lados do Atlântico. A seguir aos vizinhos, o novo Presidente telefonou ao primeiro-ministro Boris Johnson, com quem conta para revitalizar os laços transatlânticos. Segundo informações da Casa Branca, os dois discutiram a coordenação de prioridades em matéria de política externa, nomeadamente a Rússia, a China e o Irão.

24-01 FRANÇA 
Alinhar estratégias

Na retórica de Washington, França é “o mais antigo aliado” dos EUA, sentimento que Biden enfatizou na sua conversa com o homólogo Emmanuel Macron. Segundo o palácio do Eliseu, os governantes constataram “uma grande convergência de pontos de vista” e “vontade de atuar em conjunto no sentido da paz e estabilidade no Médio Oriente, em particular no dossiê iraniano e na situação no Líbano”. Já o comunicado da Casa Branca realçou a necessidade de alinhar estratégias na região africana do Sahel, onde a França lidera uma operação internacional de combate ao extremismo islâmico.

25-01 ALEMANHA 
Procurar consenso

Um dos símbolos da tensão transatlântica sentida na era Trump foi a decisão de os EUA fazerem regressar 9 mil soldados estacionados em solo alemão. Biden congelou a medida, e Berlim suspirou de alívio. “Há uma oportunidade muito mais ampla para um consenso político com o Presidente Biden”, reagiu a chancelerina Angela Merkel, após conversar com aquele. Segundo a Casa Branca, ambos afirmaram a necessidade de acertar agulhas relativamente a cenários como o Afeganistão, a Ucrânia e os Balcãs. Ficou claro também o desejo de Biden de revitalizar a relação com a União Europeia, que Trump desprezou, acusando os europeus de “fazerem batota” à custa da economia dos EUA.

26-01 RÚSSIA 
Um rol de queixas

No mesmo dia em que conversou com o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, para reafirmar o seu compromisso com o multilateralismo, designadamente ao nível da segurança, Joe Biden falou com o líder do país contra o qual a Aliança Atlântica foi criada. No relato da Casa Branca, Biden “não se conteve” ao telefone com Vladimir Putin: reafirmou o apoio à soberania da Ucrânia, abordou o ataque cibernético SolarWinds, as denúncias de recompensas russas a ataques aos militares dos EUA no Afeganistão, a interferência nas eleições de 2020 e o envenenamento de Alexei Navalny. A conversa não terá indisposto totalmente o Presidente russo, já que poucos dias depois EUA e Rússia prolongaram o Tratado New START (relativo à redução dos arsenais nucleares) mais cinco anos.

27-01 JAPÃO 
Hoje e sempre, a segurança

EUA e Japão têm uma relação marcada pelo desfecho da II Guerra Mundial e, na conversa que manteve com o primeiro-ministro, Yoshihide Suga, Biden reafirmou o compromisso inabalável de Washington com a defesa do aliado nipónico, incluindo as ilhas Senkaku, reivindicadas pela China. Biden e Suga “passearam-se” pela região do Pacífico e enfatizaram a necessidade de desnuclearização total da Península da Coreia.

03-02 COREIA DO SUL 
A pensar no Norte

Washington e Seul têm uma relação que dura há mais de sete décadas, tantas quantas a Coreia do Sul existe enquanto país. Para Washington, aquela nação é “o pilar de segurança e de prosperidade” na região do Pacífico. Foi este o ponto de partida da conversa entre Biden e o homólogo Moon Jae-in, numa conversa que teve como assunto incontornável a Coreia do Norte. A Coreia do Sul acompanhou Donald Trump na sua histórica aproximação a Kim Jong-un, mas esse é um legado que a nova Administração norte-americana recebeu com cautelas e que quererá abordar com calma.

03-02 AUSTRÁLIA 
Uma questão de ambição

Nos seus telefonemas aos líderes mundiais, como se constata nos comunicados da Casa Branca, Biden insistiu na cooperação com vista ao combate às alterações climáticas. O Presidente considera serem uma “ameaça existencial ao planeta” e já agendou uma cimeira sobre o clima para 22 de abril. Quando conversou com o primeiro-ministro Scott Morrison, houve na Austrália quem achasse que Biden iria pressioná-lo no sentido de maior compromisso com o desafio ambiental — a Austrália ainda não se comprometeu com a meta da neutralidade carbónica até 2050. Morrison disse que essa pressão não existiu e resumiu: “No que respeita às relações entre a Austrália e os EUA, não há nada para consertar, apenas coisas para construir.”

08-02 ÍNDIA 
Com a China no pensamento

As viagens internacionais estão fortemente condicionadas pela pandemia de covid-19, mas assim que se tornarem seguras, Joe e Jill Biden já têm convite em mãos para visitarem a Índia. Foi endereçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, durante o telefonema com o Presidente dos EUA, que abordou os desafios da região e a necessidade de fortalecimento da segurança através do Quad. Abreviatura de Diálogo Quadrilateral de Segurança, trata-se de um fórum frequentado por quatro países (Índia, EUA, Japão e Austrália), que, de forma informal, trabalha para contrariar a influência política, comercial e militar da China na região.

10-02 CHINA 
O concorrente mais sério

A proximidade ao Ano Novo Chinês deu um toque festivo à conversa de Biden com o homólogo Xi Jinping, que não iludiu as inúmeras preocupações norte-americanas relativas ao modus operandi chinês: práticas económicas coercivas, repressão em Hong Kong, violações dos direitos humanos em Xinjiang e ações assertivas na região do Pacífico. As palavras de Biden não terão apanhado Xi de surpresa. Cerca de uma semana antes, no seu primeiro discurso sobre política externa, o americano defendeu: “A liderança americana deve enfrentar este novo momento de avanço do autoritarismo, incluindo as ambições crescentes da China de rivalizar com os Estados Unidos.” E acrescentou. “Enfrentaremos diretamente os desafios colocados à nossa prosperidade, segurança e valores democráticos pelo nosso concorrente mais sério, a China.”

ISRAEL NERVOSO, IRÃO IMPACIENTE

A ausência de Israel do grupo de países prioritários a receber telefonema do novo Presidente dos EUA causou inquietação no mais sólido aliado dos norte-americanos no Médio Oriente.

“É possível que o silêncio de Washington tenha como objetivo enviar uma mensagem muito clara a Israel: o mergulho de cabeça de Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro israelita] na política partidária dos EUA e os seus ditames para a nova Administração têm um preço na Casa Branca”, diz ao Expresso Ari Heistein, investigador no Instituto para os Estudos de Segurança Nacional, de Israel.

O israelita defende que a situação “deixa Netanyahu nervoso” devido à proximidade das legislativas de 23 de março (e à possibilidade de não poder afirmar-se na campanha como “o grande estadista de Israel”, dada a frieza do aliado americano), e também devido à questão iraniana.

“A diplomacia nuclear dos EUA com o Irão começará em breve e Israel espera muito ter um canal de comunicação aberto com Washington ao mais alto nível, de modo a garantir que os seus interesses e preocupações em relação ao programa nuclear do Irão sejam levados em conta pelos EUA.”

Em Teerão, este silêncio é interpretado “como sinal de que os EUA querem negociar. Não por uma questão de vontade, mas porque têm de o fazer”, comenta ao Expresso a iraniana Ghoncheh Tazmini, investigadora na London School of Economics.

“O Irão reduziu gradualmente o seu compromisso com o defunto acordo [sobre o seu programa nuclear] e há rumores de que está a ficar impaciente e pode considerar acelerar o programa nuclear se não houver avanços do lado dos EUA.” Com Netanyahu por perto, a margem de manobra de Joe Biden será menor.

(FOTO Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, ao telefone, na Sala Oval da Casa Branca ADAM SCHULTZ / FLICKR / CASA BRANCA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

À espera que o outro dê o primeiro passo

Diálogo entre iranianos e americanos está refém de pré-condições de ambas as partes

A chegada de Joe Biden à Casa Branca foi um bálsamo de esperança para a revitalização do acordo sobre o programa nuclear do Irão. Essa janela de oportunidade está, contudo, a fechar-se a cada dia que passa. Em junho haverá eleições presidenciais na república islâmica e, no tradicional braço de ferro entre candidatos da linha dura e moderados, começam a faltar argumentos aos últimos (como o Presidente Hassan Rohani) para continuarem a defender o diálogo com o Ocidente.

“Após a retirada dos Estados Unidos do acordo [decisão de Donald Trump], surgiu no Irão uma espécie de fobia à cooperação internacional. Muitos pensam: ‘Mesmo que façamos um novo acordo, que garantias temos de que os outros países vão respeitar os compromissos?’ Por causa desse ceticismo nas elites políticas e na sociedade iraniana, creio que vai haver mais votos em candidatos da linha dura”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho que se dedica aos estudos do Médio Oriente.

“Os moderados procuram preservar o interesse nacional em negociações internacionais. Os conservadores acham que o interesse nacional só fica garantido quando se é poderoso em termos militares, defendem que o Irão só pode confiar em si próprio e que a autossuficiência é o mais importante. Por isso acho que as pessoas vão escolher um conservador, que não vai negociar de forma alguma.”

Ciente de que a eleição de um Presidente da linha dura será a sentença de morte para o acordo nuclear, um dos seus principais negociadores, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Javad Zarif, alertou esta semana: “O tempo está a esgotar-se para os americanos, tanto por causa do decreto do Parlamento [que obriga o Governo iraniano a endurecer a sua posição nuclear se as sanções não forem suavizadas até 21 de fevereiro] como devido à atmosfera eleitoral que se seguirá ao ano novo iraniano [celebrado a 21 de março].”

Só a Venezuela paga ao Irão

Depois de Biden se ter mostrado recetivo a um novo compromisso, Teerão e Washington hesitam em dar o primeiro passo. “O Irão diz que quem saiu da mesa da negociação primeiro tem de voltar à mesa da negociação primeiro”, diz o professor Eslami, invocando as palavras, há dias, do Líder Supremo do Irão, que detém o poder de decisão em matéria de política nuclear.

Os Estados Unidos “não têm direito a estabelecer condições. Quem tem direito a colocar condições à continuação do acordo é o Irão, porque o Irão cumpriu todos os seus compromissos desde o início”, disse o ayatollah Ali Khamenei. “Se querem que o Irão regresse aos seus compromissos, têm de levantar as sanções por completo.”

Face à perspetiva de recomeço, as partes querem maximizar ganhos. Para o Irão o interesse passa por vender petróleo e preservar a segurança, vendendo e comprando armas e equipamento militar. “O Irão perdeu oportunidades de vender petróleo, de ganhar dinheiro, por causa das sanções. Mesmo em tempos de pandemia, não conseguiu importar medicamentos”, diz Mohammad Eslami. “O Irão vendeu 7000 milhões de dólares [€5800 milhões] de petróleo à Coreia do Sul. O dinheiro está numa conta em Seul, mas o Irão não consegue mexer-lhe por causa das sanções. Há muitos países a reter dinheiro iraniano. Só a Venezuela está a pagar ao Irão.”

Esta semana, em entrevista à CBS, Biden defendeu que as sanções não serão levantadas enquanto o Irão não voltar aos níveis de enriquecimento de urânio a que está obrigado. O acordo nuclear prevê uma percentagem máxima de 3,67%, fasquia que o Irão começou a desrespeitar após a saída dos EUA — atualmente, enriquece a 20%.

“O interesse dos Estados Unidos, totalmente ligado ao de Israel, passa por controlar o Irão e parar o programa iraniano de mísseis balísticos de longo alcance”, diz o analista. “A força aérea do Irão é antiquada, o país não pode comprar carros de combate nem barcos de guerra, a única coisa com que se pode defender é o programa de mísseis balísticos. A doutrina militar iraniana depende muito deste programa, que significa dissuasão. O Irão não vai negociar a sua política de defesa.”

Governo Biden sensível ao tema

Na equipa governativa de Biden há vários nomes que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidos na elaboração do acordo nuclear. O próprio Presidente e o secretário de Estado Antony Blinken eram, à época, vices dos cargos que agora ocupam. Há, pois, sensibilidade para o tema, mas nem o problema se resolve por decreto (como Biden resolveu o regresso do país ao Acordo de Paris) nem 2015 é 2021. Se a desconfiança mútua é constante desde a Revolução Islâmica de 1979, acentuou-se perigosamente com Trump.

“A saída dos Estados Unidos do acordo foi muito importante. Mas o principal ponto de viragem foi o assassínio do general Qasem Soleimani, que era um herói nacional, defendia o país e derrotou o Daesh”, conclui Eslami. “O povo iraniano não quer confiar nos Estados Unidos.”

SETE ANOS A (DES)CONFIAR

2015
A 14 de julho, Irão, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha assinam um acordo sobre o programa nuclear. Em troca do fim das sanções, o Irão aceita limitar o enriquecimento de urânio e inspeções internacionais

2016
EUA e UE levantam sanções, a 16 de janeiro. No dia seguinte Obama aprova sanções visando o programa de mísseis balísticos do Irão (não incluído no acordo)

2017
Trump chega à Casa Branca a 20 de janeiro. A 17 de maio confirma a renúncia às sanções ao Irão

2018
A 8 de maio os EUA retiram-se do acordo, repõem sanções e anunciam uma estratégia de “pressão máxima” sobre o Irão. Este aumenta os níveis
de enriquecimento de urânio

2019
Os EUA rotulam os Guardas da Revolução (corpo de elite do Irão) de organização terrorista, a 8 de abril. O Irão declara que as forças americanas no Médio Oriente passam a ser alvos

2020
Um drone dos EUA mata o general iraniano Qasem Soleimani, a 3 de janeiro, no Iraque. Cinco dias depois, o Irão bombardeia duas bases dos EUA

2021
Biden chega à Casa Branca com vontade de novo pacto com o Irão

(FOTO Mural anti-Estados Unidos no muro da antiga embaixada norte-americana em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de fevereiro de 2021

‘Impeachment’ traz Trump de volta ao palco da política numa altura em que a América precisa de esquecê-lo

Donald Trump começa a ser julgado esta terça-feira, no Senado, pelo papel que teve na invasão ao Capitólio. Ao Expresso, o americanólo José Gomes André defende que o processo, nesta altura, é um erro. “Num momento em que a América precisa de superar o trauma Trump e virar a página, vai-se falar dele”, diz. Será o quinto impeachment da História dos EUA. Nenhum dos anteriores resultou na condenação do Presidente, e este não deverá ser diferente

A caminho de cumprir 245 anos de vida, os Estados Unidos já sujeitaram quatro presidentes a processos de impugnação (impeachment). Metade dos casos aconteceu nos primeiros 200 anos; os outros dois nos últimos 25. Esta terça-feira, começa no senado o julgamento de Donald Trump, o único Presidente norte-americano a ser impugnado duas vezes.

“Em pouco mais de um ano, e com um só Presidente, houve tantos impeachments como nos primeiros 200 anos da História americana. Isto significa que podemos estar a entrar numa fase em que o impeachment deixa de ser considerado um recurso de última instância para se vulgarizar e banalizar como arma política”, comenta ao Expresso o americanófilo José Gomes André, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

“O que começa a acontecer é que de cada vez que a maioria que controla o Congresso desgosta ou não concorda com quem está na Casa Branca, inicia um impeachment. Um dia destes o impeachment passa a equivaler a um protesto, um desagrado. É assim, também, que se desvalorizam as instituições.”

Emoções à solta

Vinte dias apenas após deixar a Casa Branca, Trump volta a ter sobre si o foco da política norte-americana para se defender das acusações de incitamento à insurreição que levou à invasão do Capitólio. “A meu ver, é uma opção política errada. Vamos continuar a falar de Trump, vamos ter mais Trump no palco político, vamos ter outra vez as emoções à solta e a sociedade norte-americana confrontada com uma decisão maniqueísta — ‘Condenação ou absolvição?’ —, quando o que os Estados Unidos precisam rapidamente é de superar este trauma”, defende o académico.

O facto de o ex-Presidente enfrentar um processo de destituição numa altura em que já não pode ser destituído (deixou o cargo a 20 de janeiro, na sequência de derrota eleitoral) levanta dúvidas em relação à oportunidade desta medida. “O argumento a favor da inevitabilidade do impeachment a Trump [atendendo à gravidade dos factos naquele que foi um evento sem precedentes na História americana] está muito relacionado com a dimensão moral do que se passou. Trump não só foi conivente como esteve ligado, mesmo que tacitamente, a um certo incitamento, sublinhando a necessidade de um protesto veemente”, recorda José Gomes André.

O investigador de Filosofia Política acrescenta, porém: “Aquilo que me parece ser má ideia tem sobretudo que ver com o facto de o impeachment surgir numa altura em que Trump já não é Presidente”.

“Isto significa que o que está por trás deste impeachment é muito mais um fenómeno de vingança e punição do próprio Trump e uma tentativa de precaver uma recandidatura presidencial. É nesta segunda dimensão que este impeachment me parece bastante criticável e questionável, porque a dimensão moral é indiscutível.”

As reservas de José Gomes André — autor de uma tese de doutoramento sobre o pensamento de James Madison, o 4.º Presidente dos EUA (1809-1817), considerado “o Pai da Constituição” — decorrem do contexto histórico em que tudo acontece.

“Num momento em que o próprio Presidente Joe Biden fala em reconciliação, na necessidade de curar as feridas, de todo um processo de divisão crescente, de uma América quase traumatizada, de manhã apela-se à reconciliação e à tarde discute-se o impeachment”, critica o investigador.

“Isto vai voltar a colocar Trump no núcleo da discussão política. Num momento em que a América precisa de superar o trauma Trump e virar a página, vai-se falar dele. Vai-se alimentar ainda mais, inclusive, a convicção dos seus apoiantes de que ele é perseguido pelos adversários, de que é uma vítima, um mártir. Parece-me um erro enorme da parte dos democratas, que só vai dividir ainda mais o país. Ainda por cima, tudo isto é reforçado pelo facto de este impeachment ter muito poucas hipóteses de vingar.”

Para Trump ser condenado, o impeachment tem de ser aprovado nas duas câmaras do Congresso: na Câmara dos Representantes por maioria simples e no Senado por maioria de dois terços dos seus membros.

A votação na Câmara dos Representantes aconteceu a 13 de janeiro, ainda antes do final do mandato do 45.º Presidente. A destituição foi então aprovada por 232 votos, contra 197. Dez republicanos tiraram o tapete a Trump e votaram ao lado dos democratas.

No Senado, a aprovação requer a anuência de pelo menos 67 senadores. Isso significa que, além dos 50 democratas (incluindo neste total dois independentes alinhados com o partido de Biden), 17 republicanos terão de votar contra Trump. Isso não está garantido nesta altura.

“Há várias maneiras de sancionar os atos de Trump. Umas já foram usadas, como uma condenação política pública. Outra é um caminho judicial tradicional” nos tribunais, que tem uma carga de neutralidade que o Congresso não tem.

“Outra é o impeachment. Tem de haver uma escala”, explica o americanófilo. “O impeachment é uma figura de última instância, fundamentalmente de condenação política. Não tem outra dimensão além dessa.”

Impeachment… a Joe Biden

A febre dos impeachments poderá, no entanto, não ficar por aqui. A 21 de janeiro, no dia seguinte a Joe Biden tomar posse como 46.º Presidente, Marjorie Taylor Greene, deputada na Câmara dos Representantes, eleita pelo estado da Georgia, e simpatizante do movimento QAnon (que espalha teorias infundadas sobre uma rede de pedófilos canibais patrocinada pelo Partido Democrata), avançou com um pedido de destituição do novo Presidente.

A congressista fundamentou o pedido dizendo que Biden, enquanto vice-Presidente, “permitiu suborno e outros crimes graves e contravenções, ao autorizar o seu filho [Hunter Biden] a influenciar a política interna de um país estrangeiro [Ucrânia] e aceitar vários benefícios — incluindo compensação financeira — de estrangeiros em troca de certos favores”.

José Gomes André não acredita que o atual Presidente saia minimamente beliscado deste processo. “É símbolo apenas da tal radicalização do discurso e da invocação do impeachment por tudo e por nada, mas não tem impacto possível, nem pouco mais ou menos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui