No seu primeiro ano na Casa Branca, Donald Trump subiu à tribuna das Nações Unidas para falar de guerra. No segundo, deu um impulso ao muro na fronteira com o México. No ano seguinte, foi alvo de um processo de impugnação no Congresso, o primeiro. E no último ano, obcecado com a reeleição, negligenciou o combate a uma pandemia mortífera. Uma presidência única em 40 imagens
O 45º Presidente dos Estados Unidos, que cessa funções esta quarta-feira, fica para a História como um líder único a vários níveis. Instável, impreparado e egocêntrico, foi o candidato derrotado que mais votos teve numas eleições presidenciais e foi também o único Presidente a ser impugnado duas vezes. Após quatro anos de uma presidência turbulenta, deixa um país mais dividido do que nunca.
1º ANO Ameaça de guerra na casa da paz
Há precisamente quatro anos, a 20 de janeiro de 2017, Donald Trump sucedeu a Barack Obama na presidência dos EUA. Nesse dia, a cordialidade que foi possível testemunhar no contacto entre os Obama e os Trump não deixaria antever a “guerra” que o republicano declararia ao legado do seu antecessor: criticou-o de forma rude, reverteu uma série de decisões importantes, retirando o país de compromissos internacionais (como o Acordo de Paris ou o acordo sobre o programa nuclear do Irão), e empenhou-se até à última em destruir o sistema de saúde que ficou conhecido como Obamacare.
Aos quatro meses de presidência, Trump realizou a sua primeira visita oficial ao estrangeiro. O tour por seis territórios levou-o prioritariamente à Arábia Saudita, num claro sinal de preferência pelo gigante sunita no braço de ferro com o rival Irão, que Trump haveria de castigar com sucessivas sanções.
Durante o primeiro ano na Casa Branca, Trump privou com os pesos-pesados da geopolítica mundial. Realizou uma visita de Estado à China e, na cimeira do G7, em Hamburgo, reuniu-se à margem do evento com o homólogo russo, Vladimir Putin.
Ao longo do mandato, Trump manteria com a Rússia uma trégua que levantou suspeitas — não reagindo a relatos de interferência de hackers russos em instituições americanas, a notícias de que Moscovo pagava aos talibãs para matar soldados americanos no Afeganistão ou não condenando o Kremlin no caso Navalny.
Inversamente, com a China, a relação pegaria fogo: numa primeira fase sob a forma de uma guerra comercial e depois responsabilizando a China pela pandemia que tomou o mundo de assalto.
Num registo nunca antes visto num Presidente dos EUA, a 19 de setembro de 2017, Trump aproveitou o púlpito da Assembleia-Geral das Nações Unidas para quase declarar guerra à Coreia do Norte, que vinha criando tensão com sucessivos testes nucleares.
“Os EUA têm muita força e paciência, mas se forem forçados a defenderem-se ou aos seus aliados, não teremos escolha a não ser destruir totalmente a Coreia do Norte. ‘Rocket Man’ [Kim Jong-un] está numa missão suicida para consigo mesmo e para o seu regime”, disse Trump. Menos de um ano depois, esta relação daria uma reviravolta.
20.01.2017 — Os Obama e os Trump, no dia da tomada de posse do republicano. A aparente harmonia duraria pouco JIM WATSON / AFP / GETTY IMAGES28.01.2017 — Ao telefone com o homólogo russo, Vladimir Putin, Trump está acompanhado pelos seus assessores mais próximos, entre eles o supremacista Steve Bannon DREW ANGERER / GETTY IMAGES21.05.2017 — Em Riade, na inauguração de um centro de combate à ideologia extremista. Acompanha-o Melania, o rei saudita, Salman al-Saud, e o Presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi BANDAR ALGALOUD / GETTY IMAGES22.05.2017 — Donald, Melania e Ivanka Trump recebidos em audiência, no Vaticano, pelo Papa Francisco GETTY IMAGES22.05.2011 — De visita ao Muro das Lamentações, o lugar mais sagrado para os judeus, em Jerusalém, a cidade disputada que Trump reconheceria como capital de Israel RONEN ZVULUN / AFP / GETTY IMAGES07.07.2017 — Aos segredos com o homólogo da Rússia, Vladimir Putin, num encontro à margem da cimeira do G20, em Hamburgo SAUL LOEB / AFP / GETTY IMAGES21.08.2017 — Na varanda da Casa Branca, em Washington, Trump tenta vislumbrar o eclipse solar… sem óculos de observação MARK WILSON / GETTY IMAGES19.09.2017 — De saída do púlpito da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, após proferir um discurso violentíssimo, ameaçando de guerra a Coreia do Norte DREW ANGERER / GETTY IMAGES03.10.2017 — Trump atira um pacote de papel higiénico. Seria divertido não fosse num centro de distribuição de bens de primeira necessidade para vítimas de um furacão, em San Juan, Porto Rico JONATHAN ERNST / REUTERS09.11.2017 — Na companhia de Xi Jinping, durante uma cerimónia de boas-vindas, em Pequim. EUA e China viviam um braço de ferro comercial que evoluiria para uma verdadeira guerra THOMAS PETER / GETTY IMAGES
2º ANO O apoio ao ‘Brexit’ e a visita de Marcelo
Foi só no seu segundo ano na Casa Branca que Trump visitou pela primeira vez o Reino Unido, o principal aliado dos EUA do outro lado do Atlântico. O processo de saída dos britânicos da União Europeia (‘Brexit’) já estava em curso e Trump nunca se conteve em tomar parte, incentivando Londres a cortar o cordão umbilical com Bruxelas.
Ainda antes da deslocação ao Reino Unido, Trump recebeu na Casa Branca Marcelo Rebelo de Sousa. O chefe de Estado português recordou-lhe que Portugal esteve entre as primeiras nações a reconhecer a independência dos EUA e que os fundadores assinalaram esse momento com vinho da Madeira.
Trump demonstrou curiosidade por Cristiano Ronaldo e perguntou a Marcelo se o futebolista não teria hipótese de lhe ganhar numas eleições. “Tenho de lhe dizer que Portugal não é como os Estados Unidos”, respondeu o chefe de Estado português.
No segundo ano de Trump na presidência, uma das suas principais promessas eleitorais levou um impulso — a construção de “um muro grande e lindo” na fronteira com o México. O projeto foi iniciado nos tempos da Administração Clinton, mas Trump defendeu-o como se fosse seu.
Na semana passada, a uma semana de deixar em definitivo a Casa Branca, foi um troço deste muro, na região de Alamo, no estado do Texas, que Trump visitou para mostrar obra feita.
13.03.2018 — Trump discursa junto a um protótipo de muro, durante uma visita a San Diego, Califórnia, junto à fronteira com o México KEVIN LAMARQUE / REUTERS08.05.2018 — O anúncio faz manchetes em todo o mundo: Trump retira os EUA do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano e repõe sanções contra o regime de Teerão CHIP SOMODEVILLA / GETTY IMAGES09.06.2018 — Na cimeira do G7, em Charlevoix (Canadá), Trump parece ser aquele que todos querem ouvir JESCO DENZEL / GETTY IMAGES12.06.2018 — Trump concretiza aquilo que nenhum antecessor conseguira e protagoniza, com Kim Jong-un, a primeira cimeira entre um Presidente dos EUA e um líder da Coreia do Norte, em Singapura ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES27.06.2018 — Trump recebe Marcelo Rebelo de Sousa, na Sala Oval da Casa Branca, em Washington ALEX EDELMAN / GETTY IMAGES13.07.2018 — Boa disposição entre a primeira-ministra britânica Theresa May e Donald Trump, durante a primeira visita oficial do norte-americano ao Reino Unido BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / GETTY IMAGES15.07.2018 — Amante do golfe, Trump é proprietário de vários campos, nos EUA e no estrangeiro, como o da imagem, em Turnberry, Escócia LEON NEAL / GETTY IMAGES11.10.2018 — Um batalhão de jornalistas cobre a visita do ‘rapper’ Kanye West à Casa Branca. À época, o artista apoiava Trump, em 2020 disputou as presidenciais com o republicano RON SACHS / GETTY IMAGES05.12.2018 — Junto a três antigos Presidentes (Barack Obama, Bill Clinton e Jimmy Carter), no funeral de George H. Bush, na Catedral Nacional de Washington CHRIS KLEPONIS / GETTY IMAGES14.01.2019 — Sob o olhar de Lincoln, Trump apresenta uma mesa com ‘fast food’, a sua comida favorita, para banquetear a equipa dos Clemson Tigers, campeã de futebol americano CHRIS KLEPONIS / GETTY IMAGES
3º ANO A pressa e a fé na reeleição
Em 2019 o tradicional discurso sobre o Estado da União, com o qual o Presidente dos EUA toma o pulso ao país, foi para os norte-americanos uma montra da desunião que se vivia entre destacados responsáveis políticos. Quando Trump acabou de falar, a líder da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, aplaudiu o Presidente de forma sarcástica, numa imagem que correu mundo.
No ano seguinte, na mesma cerimónia, Pelosi rasgaria uma cópia do discurso do Presidente, após Trump ignorar a sua mão estendida para o cumprimentar. Pelosi iniciara o processo de destituição do Presidente, com base em suspeitas de que Trump pedira ajuda à Ucrânia para interferir na eleição presidencial de 2020 de forma a favorecer a sua reeleição. Trump não lhe perdoou.
Neste terceiro ano de mandato, Trump teve o seu ‘momento Bin Laden’ a 26 de outubro de 2019, ao acompanhar desde a situation room da Casa Branca uma operação militar, a milhares de quilómetros de distância, que haveria de neutralizar Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do Daesh (autodenominado “Estado Islâmico”), na Síria.
Dezoito anos após o 11 de Setembro, o terrorismo internacional estava mais complexo, com o Daesh a juntar-se à Al-Qaeda na criação do caos. Obama eliminara Bin Laden, Trump provava estar à altura do seu antecessor.
A 18 de junho de 2019, a mais de um ano das presidenciais onde iria tentar a reeleição, Trump lança-se oficialmente na corrida com um comício em Orlando, na Florida, repetindo o slogan de 2016 — “Make America Great Again” (Tornar a América Grande de Novo).
05.02.2019 — Nancy Pelosi, a líder democrata da Câmara dos Representantes, aplaude Trump de forma sarcástica, no Congresso DOUG MILLS / GETTY IMAGES12.02.2019 — John Bolton, conselheiro de Trump para a Segurança Nacional, escuta-o numa intervenção na Casa Branca. Os dois entrariam em rutura e Bolton tornar-se-ia um detrator do Presidente CHIP SOMODEVILLA / GETTY IMAGES02.03.2019 — Trump abraça a ‘Stars and Stripes’, durante um encontro de conservadores, em National Harbor, Maryland TASOS KATOPODIS / GETTY IMAGES22.04.2019 — Acompanhado por um Coelho da Páscoa, Trump dá as boas-vindas aos participantes no Easter Egg Roll, uma tradição na Casa Branca que data de 1878 WIN MCNAMEE / GETTY IMAGES05.06.2019 — Divertidos, Donald Trump e a rainha Isabel II assistem às comemorações do Dia D, em Portsmouth, Inglaterra DAN KITWOOD / GETTY IMAGES18.06.2019 — Quase ano e meio antes das eleições presidenciais, Trump lança a campanha pela sua reeleição, com um grande comício em Orlando, Florida MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES19.07.2019 — Na Casa Branca, em declarações à imprensa, de quem chegou a dizer ser “inimigo do povo”. Para Trump, órgãos como a CNN e “The New York Times” são “fake news media” JABIN BOTSFORD / GETTY IMAGES26.10.2019 — Na ‘situation room’ da Casa Branca, o Presidente acompanha a operação militar na Síria de captura de Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do “Estado Islâmico” SHEALAH CRAIGHEAD / GETTY IMAGES28.11.2019 — Na base de Bagram, no Afeganistão, em visita às tropas norte-americanas em missão naquele país OLIVIER DOULIERY / AFP / GETTY IMAGES03.01.2020 — Momento de oração no evento “Evangélicos por Trump”, num centro religioso em Miami, na Florida JIM WATSON / AFP / GETTY IMAGES
4º ANO Da absolvição à segunda impugnação
Após cinco meses de inquéritos e investigações, o processo de impugnação de Trump chegou ao fim no Congresso com a absolvição do Presidente pelo Senado. O governante mostrou-se vitorioso, mas menos de um ano depois, na reta final do seu mandato, tornou-se o primeiro Presidente dos EUA a ser alvo de um processo de destituição por duas vezes.
Ao recusar reconhecer a sua derrota eleitoral e ao ver goradas as tentativas de vencer as eleições nos tribunais, precipita o seu mandato para o descontrolo. A uma semana de sair de cena, promoveu um comício em Washington, onde apela a uma marcha até ao Capitólio onde, naquele dia, ia ser confirmada a vitória de Joe Biden e Kamala Harris. O apelo resultou no assalto ao Capitólio, por parte de apoiantes seus. Morreram cinco pessoas.
Toda a turbulência política aconteceu no meio de uma pandemia mortífera, cujo combate Trump negligenciou e que já matou mais de 400 mil cidadãos no seu país. Ainda assim, mais de 74 milhões de norte-americanos confiaram nele o seu voto nas presidenciais de 3 de novembro, alimentando-lhe o sonho do regresso em 2024.
06.02.2020 — “Absolvido”, titula “The Washington Post”, na edição em que noticia o fim do primeiro processo de impugnação a Trump DREW ANGERER / GETTY IMAGES25.02.2020 — De visita à Índia, Donald Trump lança pétalas de rosa junto ao memorial de Mahatma Gandhi, em Nova Deli MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES19.03.2020 — Nas notas para um ‘briefing’ sobre a pandemia, na Casa Branca, Trump risca a palavra “coronavírus” e substitui-a por “vírus chinês” JABIN BOTSFORD / GETTY IMAGES20.03.2020 — A preocupação de Anthony Fauci, o principal epidemiologista da Casa Branca, durante um ‘briefing’ de Trump sobre a covid-19, tantas vezes desfasado da realidade JABIN BOTSFORD / GETTY IMAGES01.06.2020 — Trump segura uma Bíblia, à entrada da Igreja de S. João, perto da Casa Branca, após ordenar a repressão dos protestos desencadeados pela morte do afroamericano George Floyd, asfixiado por um polícia BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / Getty Images03.07.2020 — No Monte Rushmore, no Dakota do Sul, onde estão esculpidos os rostos de quatro antigos Presidentes. Assessores de Trump sondaram a governadora acerca do processo necessário para adicionar novos rostos ao monumento… SAUL LOEB / AFP / GETTY IMAGES15.09.2020 — Os protagonistas dos Acordos de Abraão, mediados pela Administração Trump, pelos quais Emirados Árabes Unidos e Bahrain normalizaram a relação diplomática com Israel ALEX WONG / AFP / GETTY IMAGES05.10.2020 — Regressado do hospital onde esteve internado após acusar positivo ao novo coronavírus, Trump assoma-se à varanda da Casa Branca e retira a máscara em sinal de desafio WIN MCNAMEE / GETTY IMAGES08.01.2021 — Uma foto tirada a um telemóvel, na sala de imprensa da Casa Branca, mostra a conta de Trump suspensa no Twitter, o seu meio de comunicação preferido JOSHUA ROBERTS / REUTERS13.01.2021 — “Impugnado”, escreve em manchete o jornal “The New York Times”, junto a uma foto onde se vê militares a proteger o Capitólio. Donald Trump abandona o poder após um só mandato e dois processos de impugnação ROBERT NICKELSBERG / GETTY IMAGES
(FOTO PRINCIPAL Trump discursa num comício em Jacksonville, na Florida, a 24 de setembro de 2020. Cego com a reeleição, negligenciou o combate à pandemia TOM BRENNER / REUTERS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui
As conversações de paz entre o governo do Afeganistão e os talibãs recomeçam esta terça-feira. Mas apesar de um país fustigado por tantos anos de guerra, o interesse pela trégua não é consensual. Ao Expresso, o major-general Carlos Branco, um antigo porta-voz das forças da NATO no Afeganistão, explica como o futuro do país depende muito “da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas e que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs”
“Invadimos o Afeganistão para encontrar Bin Laden. Encontrámo-lo no Paquistão, e ainda continuamos no Afeganistão. Precisamos de um GPS melhor.” A piada tem uns anos e foi dita pelo comediante norte-americano Andy Borowitz, que assina atualmente uma coluna satírica na publicação “The New Yorker”. Na altura, as tropas dos Estados Unidos levavam mais de dez anos no Afeganistão — hoje por lá continuam, a caminho dos 20.
Foi contra o regime dos talibãs — que dava guarida a Osama bin Laden e à sua Al-Qaeda — que os Estados Unidos retaliaram depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Washington e Nova Iorque. Hoje o conflito não tem o caráter de uma guerra aberta, mas o quotidiano dos afegãos continua a ser fustigado por muita violência.
Numa das últimas chacinas, a 3 de novembro passado, o alvo foi a Universidade de Cabul, a maior do país. Durante seis horas, três homens armados entraram no campus e foram detonando explosivos e disparando contra quem surgia pela frente.
O ataque — que foi reivindicado pelo autodenominado “Estado Islâmico” (rival dos talibãs, ainda que ambos sunitas) — fez 22 mortos e mais de 40 feridos. A maioria das vítimas eram alunos, jovens que investiam o seu tempo na educação, acreditando no futuro de um país que, por vezes, parece não ter futuro possível.
Futuro auspicioso é possível, mas…
“Se por futuro entendermos a instauração de uma democracia liberal, então seguramente que não teremos futuro no Afeganistão. Isso está longe de acontecer. Mas há outros futuros possíveis, sem violência e com paz”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz do comandante da força da NATO no Afeganistão, entre 2007 e 2008.
“É possível um futuro auspicioso para o Afeganistão, mas diferente daquele que as potências gostariam que fosse”, continua. “Tudo dependerá do modo como decorrerem as conversações intra-afegãs e da capacidade de reconciliação nacional. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”
Será também importante perceber “como será reformulada a Constituição, até que ponto incorporará a sharia [lei islâmica], qual será o regime político e como será feita a partilha de poder”, acrescenta Carlos Branco. “A resposta a estas questões determinará o futuro do Afeganistão.”
Esta terça-feira, em Doha, a capital do Qatar, foram retomadas as conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs, um processo iniciado em setembro passado. Para as autoridades de Cabul, a prioridade do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo.
“Existe potencial para um cessar-fogo, embora não seja fácil que ocorra. Um cessar-fogo não significa paz, é uma trégua apenas. O Governo afegão está interessado porque encontra-se numa situação militar difícil“, continua o militar, autor do livro “Do fim da Guerra Fria a Trump e à covid-19 — As promessas traídas da ordem liberal“ (Edições Colibri, 2020).
“Para Cabul, o cessar-fogo é importante para recuperar do esforço de guerra a que tem estado sujeito. As forças governamentais encontram-se muito desgastadas.” Inversamente, “os talibãs estão renitentes num cessar-fogo, porque sentem que lhes é desvantajoso”.
Combatentes vão à terra e não regressam
“Os talibãs fazem uma abordagem diferente ao cessar-fogo. Se o cessar-fogo não trouxer a paz, o que não acontecerá tão depressa, terá um impacto tremendo na sua capacidade militar: os seus combatentes voltam para as suas aldeias e será difícil voltar a convocá-los e manter uma capacidade militar capaz de pressionar o Governo.”
Para os “estudantes”, antes do cessar-fogo há que estabelecer um roteiro político que leve a um novo Governo. Com esse objetivo em mira, têm usado ataques contra forças de segurança e civis como demonstrações de poder e formas de alavancar influência na hora de negociar um governo sustentado na lei islâmica.
As conversações de paz que se reiniciam esta terça-feira têm na sua origem um acordo de paz alcançado a 29 de fevereiro de 2020 entre a Administração Trump e os talibãs.
As exigências de norte-americanos e talibãs são claras: os primeiros querem dos “estudantes” a garantia de que não manterão relações com a Al-Qaeda nem permitirão que o país se torne um porto seguro de organizações terroristas, como aconteceu em 2001. Já os talibãs exigem a retirada de todas as tropas estrangeiras do seu país.
“Há um calendário de retirada dos militares americanos que está condicionado pelo comportamento dos talibãs, e que se cumprirá na medida em que os talibãs cumprirem o acordado”, comenta Carlos Branco, que recorda que, nesta altura, o efetivo de membros de empresas de segurança americanas supera o dos militares.
À espera de Joe Biden
O Governo de Cabul não foi tido nem achado no acordo de paz entre os EUA e os talibãs, e essa poderá ser uma das razões pelas quais as conversações de Doha se têm arrastado sem progressos significativos. “Apenas se conseguiu acordar os termos em que as negociações irão decorrer”, comenta Carlos Branco.
“O Governo afegão não se conforma com o facto de ter sido excluído das conversações levadas a cabo pela Administração Trump com os talibãs. Faz resistência passiva, na esperança de que a nova Administração possa fazer algo diferente e reverta algumas das decisões já acordadas. O Partido Democrata já fez saber que não concorda com o atual ‘Estado da Arte’.”
O desinteresse das autoridades de Cabul pelo diálogo é tal que “dá-se a situação irónica de ser Zalmay Khalilzad, o representante especial dos EUA para a reconciliação afegã, nomeado por Mike Pompeo [secretário de Estado dos EUA], quem tenta desesperadamente manter vivo o processo negocial, exercendo pressão constante sobre o Governo para o manter envolvido nas negociações”.
“O Governo afegão não está entusiasmado nem interessado em prosseguir com as negociações porque sabe que qualquer que seja o resultado de um processo de reconciliação nacional, ele será sempre feito às suas custas. Se os talibãs passarem a integrar o Governo do país, este será dominado pelos talibãs, o que é inaceitável.”
Muitas vezes se ouve dizer que não há uma solução militar para o conflito afegão, e que o país tem mais a ganhar com uma resolução obtida à mesa das negociações do que no campo de batalha. Mas quase 20 anos depois de terem sido arredados do poder em Cabul, os talibãs parecem talhados a continuar a ganhar.
O primeiro-ministro de Israel e o príncipe herdeiro da Arábia Saudita ter-se-ão reunido em segredo numa cidade futurista à beira do Mar Vermelho. Esta inédita cimeira, sem confirmação nem desmentido oficial, acontece menos de dois meses de Joe Biden entrar na Casa Branca, decidido a corrigir decisões de Trump. Dois importantes aliados dos EUA no Médio Oriente recordam a Washington que o Irão é seu inimigo comum
Apesar da transferência de poderes já ter começado nos Estados Unidos, Donald Trump parece continuar em negação, fechado na Casa Branca a alimentar no Twitter teorias da conspiração para a sua derrota. Já o seu secretário de Estado não cessa de circular pelo mundo, empenhado em viagens de agenda cheia ao estilo de um governante em início de mandato.
Prestes a sair de cena, Mike Pompeo regressou há dias à Península Arábica para encontros que prometem (continuar a) mudar o Médio Oriente. O chefe da diplomacia americana visitou os Emirados Árabes Unidos, o Qatar — onde se reuniu com os talibãs afegãos — e a Arábia Saudita, onde se encontrou com o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman (M.B.S.) em Neom, cidade futurista saudita nas margens do Mar Vermelho.
Nesse mesmo dia, o voo de um jato privado entre Telavive, em Israel, e Neom captou a atenção dos curiosos da aviação. O aparelho esteve cinco horas em terra, regressando depois a Israel.
Por não haver voos diretos entre os dois países — que não têm relações diplomáticas oficiais —, aquele rasto aéreo nos radares desencadeou palpites e análises geopolíticas.
O ministro saudita dos Negócios Estrangeiros negou-o, mas quer imprensa norte-americana quer israelita noticiaram um frente a frente inédito entre o príncipe herdeiro da Arábia Saudita e seu líder de facto, Mohammed bin Salman (M.B.S.) e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.
Pompeo esteve presente — embora no Twitter só tenha noticiado o seu encontro bilateral com M.B.S. — nesta reunião não assumida a nível oficial, que revela que Israel e Arábia Saudita já estiveram mais de costas voltadas do que hoje.
“Não penso que a Arábia Saudita vá normalizar as relações com Israel agora”, diz ao Expresso o investigador Ely Karmon, do Instituto de Política e Estratégia de Herzliya (Israel). “Vão deixar o assunto como opção para a Administração Biden.”
Um inimigo comum chamado Irão
O fim do isolamento de Israel perante o mundo sunita foi uma prioridade da agenda externa da Administração Trump, e já deu frutos. Nos últimos meses, três países árabes corresponderam aos esforços diplomáticos norte-americanos e normalizaram a sua relação diplomática com Israel: os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain, que a 15 de setembro assinaram com Israel os Acordos de Abraão, na Casa Branca – e o Sudão, numa decisão que não colheu o consenso nos corredores políticos nacionais.
A aproximação entre Israel e a Arábia Saudita pode ser entendida como um novo capítulo dessa estratégia, mas há outro assunto incontornável que empurra Riade e Telavive na direção uma da outra: um inimigo comum chamado Irão.
Neste aspeto, a cimeira em Neom – onde, segundo a imprensa israelita, Netanyahu teve a companhia do chefe da Mossad, Yossi Cohen – pode funcionar como recado para o novo Governo norte-americano, que irá, previsivelmente, reavaliar a sua política em relação ao Irão.
Irá Omã reconhecer Israel?
Outro alvo árabe da diplomacia de Washington tem sido o sultanato de Omã, país discreto que adota uma política de coexistência pacífica com todos os estados da região, incluindo Israel e o Irão. “É possível” que Omã também reconheça Israel, diz Ely Karmon. “Mas por ver a era de Trump chegar ao fim, e com possíveis eleições em Israel, Omã pode decidir esperar para ver.”
O investigador israelita chama a atenção para outros países que poderão, em breve, assinar acordos de normalização da relação com Israel. “Muito provavelmente, alguns países muçulmanos africanos, como o Níger, poderiam vir a seguir.”
O Níger é dos Estados africanos que mais tem estado na mira da diplomacia israelita. Os dois países tinham relações diplomáticas desde a independência do Níger (1960), que as rompeu em 1973 por causa da guerra israelo-árabe do Yom Kippur. Foram retomadas em 1996 e de novo suspensas em 2002, durante a segunda Intifada (revolta) palestiniana.
Ely Karmon afirma também que “será interessante olhar para a Indonésia”. O gigante muçulmano, com cerca de 230 milhões de habitantes, nunca reconheceu o Estado de Israel, mas mantém relações discretas com o Estado judeu a nível de comércio, turismo e segurança – ao contrário, por exemplo, da não longínqua Malásia, em cujos passaportes pode ler-se: “Este passaporte é válido para todos os países exceto Israel”.
A eleição de uma mulher para o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos coloca um dilema ao protocolo: como designar formalmente o marido de Kamala Harris? Nos órgãos de informação e nas redes sociais, proliferam os palpites
Kamala Harris fez história nos Estados Unidos ao tornar-se a primeira mulher eleita para o cargo de vice-presidente (foi apenas a terceira escolhida para candidata por um dos dois grandes partidos). Em contagem decrescente para tomar posse — a 20 de janeiro, dia em que Joe Biden prestará juramento como Presidente —, esta conquista tem suscitado um dilema entre os norte-americanos: como tratar formalmente Douglas Emhoff, o advogado de 56 anos com quem Kamala, da mesma idade, está casada desde 2014?
Nas redes sociais proliferam os palpites. Segundo-homem? Segundo-marido? Vice-esposo? Segundo-cavalheiro? Diz a agência Associated Press que a opção recairá em “segundo-cavalheiro”, como complemento a “segunda-dama”, como têm sido designadas as esposas dos vice-presidentes. Há, porém, quem defenda que esta ocasião inédita deve ser aproveitada para eliminar de vez a terminologia dos cônjuges.
“Devemos deixar de dizer ‘primeira-dama’?”, questiona “The Lily”, publicação associada ao jornal “The Washington Post”. “Sem nenhum título predeterminado para Emhoff, talvez a Administração Biden vá por fim aposentar ‘segunda-dama’ e ‘primeira-dama’, trocando-os por algo mais radical. Talvez simplesmente ‘Sr. Emhoff’ e ‘Dr.ª Biden’”, para Doug e Jill, respetivamente cônjuges de Kamala Harris e Joe Biden.
Ouvida pela mesma publicação, Betty Caroli, autora do livro “First Ladies” (1987), defende: “Os títulos são ridículos. Já ninguém usa esses termos, exceto nas casas de banho”.
Hillary, Laura e Michelle mudaram o cargo
Quando estes termos começaram a ser usados, no século XIX, esperava-se que tanto a primeira como a segunda-dama fizessem aquilo que se esperava de uma qualquer dona de casa norte-americana: organizar eventos, tratar das decorações de Natal e aparecer sempre em público sorridente e bem vestida para cumprir uma agenda primordialmente social.
Nas últimas presidências, porém, umas e outras têm adotado abordagens radicalmente diferentes. Umas chamaram a si projetos próprios: Hillary Clinton dedicou-se à reforma do sistema de saúde, Laura Bush à literacia familiar e Michelle Obama abraçou a causa da obesidade infantil. Outras prosseguiram com as suas vidas profissionais: Jill Biden e Karen Pence, por exemplo, continuaram a ser professoras quando os maridos foram vice-presidentes do país.
Doug Emhoff, advogado de sucesso, já fez saber que deixará de ser sócio do seu atual escritório de advocacia, em Los Angeles, antes de Kamala tomar posse. Quer impedir eventuais conflitos de interesses. Durante a campanha, Emhoff já pedira licença para poder envolver-se no combate político ao lado da mulher.
Harris é a segunda mulher de Emhoff — do primeiro casamento tem dois filhos, do atual nenhum. No Twitter, o nova-iorquino descreve-se, entre outros, como “marido de Kamala Harris” e nas suas publicações não esconde a enorme admiração pela mulher. “Tão orgulhoso de ti”, escreveu no dia em que foi confirmada a vitória da dupla democrata nas eleições de 2020.
(FOTO Kamala Harris e Douglas Emhoff, no gabinete da vice-presidente na Casa Branca, a 21 de janeiro de 2021, o dia seguinte à tomada de posse TWITTER KAMALA HARRIS / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui
Uma constante do mandato de Donald Trump foi a afinidade criada com líderes autoritários. Solidários, cinco países ainda não aceitaram a sua derrota
CHINA Quatro anos de guerra comercial com os Estados Unidos e uma agressividade verbal feia a propósito da pandemia do novo coronavírus — “o vírus da China”, repetiu Donald Trump — não levaram Pequim a querer voltar rapidamente a página do Presidente republicano e a reconhecer a vitória do adversário democrata. “Nós soubemos que [Joe] Biden anunciou a sua vitória. No nosso entendimento, o resultado das eleições presidenciais será determinado de acordo com a legislação americana e os procedimentos estabelecidos”, disse Wang Wenbin, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês. Durante a campanha eleitoral, Joe Biden mostrou-se defensor de uma atitude dura dos EUA em relação à China, dizendo que obrigará Pequim “a funcionar de acordo com as regras internacionais”.
RÚSSIA Em 2016, o Presidente Vladimir Putin demorou apenas horas a cumprimentar o vitorioso Donald Trump. Agora, tem-se mantido em silêncio. Segundo Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, Moscovo irá aguardar pela divulgação do resultado oficial para fazer um comentário. Se a Rússia fora, até Trump, ‘o inimigo de sempre’ dos EUA, o 45º Presidente nunca procurou disfarçar os seus elogios a Putin, avolumando com essa postura as suspeitas de que teria beneficiado de interferência russa nas eleições de 2016. Durante a campanha, comentando essa possibilidade, Joe Biden considerou qualquer interferência estrangeira “um ato adversário”. Em entrevista ao programa “60 Minutes”, elegeu a Rússia como “a principal ameaça” à segurança nacional dos EUA.
BRASIL Um dos silêncios que mais indiciam dificuldade em aceitar o resultado é o do Presidente Jair Bolsonaro. Confesso admirador de Donald Trump, o brasileiro dividiu o país ao copiar do norte-americano as referências misóginas, racistas e homofóbicas e ao desvalorizar a pandemia de covid-19. Esta semana, o vice-presidente Hamilton Mourão tentou justificar a posição: “Eu julgo que o Presidente está aguardando terminar esse imbróglio aí de discussão se tem voto falso, se não tem voto falso, para dar o posicionamento dele”, disse. “É óbvio que na hora certa ele vai transmitir os cumprimentos a quem for eleito.”
MÉXICO A forma como Trump abordou a questão do muro do México — um país de “traficantes, criminosos, violadores”, disse — enxovalhou o vizinho. Causa pois estranheza que Andrés Manuel López Obrador se junte ao núcleo de Presidentes que resistem a vitoriar Biden. “Temos muito boa relação com Trump, de respeito, e não temos problemas com o candidato democrata Biden. Esperemos que as autoridades resolvam. Não vamos ser imprudentes”, disse. Com mais de 3 mil quilómetros de fronteira comum, uma explicação possível para a cautela de Obrador prende-se com possíveis ‘estragos’ na relação que Trump possa fazer até 20 de janeiro.
COREIA DO NORTE Em 2008, quando Barack Obama foi eleito, a imprensa oficial norte-coreana demorou dois dias a dar a notícia. Quando Trump venceu, em 2016, a notícia de uma “nova administração” surgiu passados dois dias, sem se referir o nome do Presidente. A reação de Pyongyang costuma ser tardia e prudente. É possível que, desta vez, esteja à espera de perceber qual será a nova política em relação à Coreia. Com Trump, Kim Jong-un não se deu mal.
Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.