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Seis recados que o Irão enviou com o ataque aos EUA

O Irão consumou a prometida vingança à morte do general Qasem Soleimani bombardeando duas bases militares dos Estados Unidos no Iraque. O ataque tem implícitas mensagens importantes para dentro e, sobretudo, para fora do país

As ruas iranianas clamaram por vingança e ela foi servida exatamente cinco dias após os Estados Unidos terem assassinado o general iraniano Qasem Soleimani, que comoveu toda a nação persa.

Duas rajadas de mísseis atingiram esta madrugada outras tantas bases norte-americanas no Iraque. “Uma chapada na cara” dos EUA, disse o Líder Supremo do Irão, o “ayatollah” Ali Khamenei. A bola está agora do lado dos Estados Unidos. Até se perceber se haverá resposta, é importante atentar nos recados que o Irão quis enviar com este ataque, para dentro e fora de portas.

O ataque vingou o assassínio do general

A operação “Vingança Dura”, como Teerão batizou o ataque, foi desencadeada sensivelmente à mesma hora a que, na sexta-feira passada, Qasem Soleimani foi atingido mortalmente por um drone dos EUA no aeroporto internacional de Bagdade. “Entre a 1h45 e as 2h45 [mais três horas do que em Portugal Continental], o Iraque foi atacado por 22 mísseis”, anunciaram os militares iraquianos em comunicado. “Todos os mísseis atingiram bases da coligação [internacional].”

Se na sexta-feira, Donald Trump reagiu no Twitter publicando apenas uma imagem da bandeira norte-americana, desta vez foi Saeed Jalili, representante do Líder Supremo no Conselho Supremo de Segurança Nacional, a responder-lhe à letra, ‘postando’ a bandeira do Irão. Uma brincadeira na rede social favorita de Trump reveladora da predisposição das partes para seguirem com a tática de “olho por olho”.

O Irão atacou por si e não através de terceiros

Uma das (enormes) vantagens estratégicas do Irão no Médio Oriente é o chamado “arco de influência” que construiu no mundo árabe (o Irão não é árabe, mas sim persa). São atores importantes ao serviço dessa estratégia o Hezbollah no Líbano, forças paramilitares na Síria, milícias armadas no Iraque e os huthis no Iémen, que em setembro reivindicaram um espetacular ataque contra refinarias na Arábia Saudita que afetou fortemente a produção de petróleo do reino.

Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas e um comandante muito presente no terreno, junto desses atores. Na hora de retaliar a sua morte, Teerão quis faze-lo por mãos próprias — e não recorrendo a um ou vários dos seus próximos (“proxies”). Não há dúvidas de que o ataque foi lançado a partir do seu território.

O programa balístico iraniano funciona

Nos dois bombardeamentos, o Irão utilizou mísseis balísticos, projéteis sofisticados com capacidade para transportar ogivas nucleares que seguem trajetórias pré-determinadas.

Uma das críticas mais fortes ao acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano — co-assinado pelos EUA de Obama em 2015 e do qual Trump retirou o país em 2018 — é o facto de excluir restrições ao programa de mísseis balísticos do Irão. Na altura, este facto foi uma grande vitória negocial do Irão: apesar de condicionado na produção de armas nucleares, ficava de mãos livres para continuar a desenvolver o seu veículo de entrega, ou seja, os mísseis balísticos.

As bases atingidas são simbólicas

Os alvos da operação iraniana foram bases militares de grande importância estratégica para os EUA. Uma delas, Al-Assad, localizada na província de Anbar, a 180 km para oeste de Bagdade, é a maior base aérea do Iraque.

Foi esta base que Trump visitou aquando da sua primeira visita a tropas em missão, no Natal de 2018. No ano passado, foi ali que o vice-presidente Mike Pence passou o Dia de Ação de Graças.

Começou a ser usada pelas forças americanas após a invasão do Iraque que derrubou Saddam Hussein, em 2003; deixou de funcionar após a retirada das tropas de combate dos EUA, em finais de 2011; e foi reativada no contexto da luta contra os jiadistas do Daesh.

A outra base alvejada situa-se em Erbil, no Curdistão iraquiano. Em outubro, foi desta base que partiu a unidade de comandos que surpreendeu e eliminou Abu Bakr al-Baghdadi, líder do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), na cidade síria de Barisha.

No combate ao Daesh, EUA e Irão estiveram do mesmo lado da barricada e, no Iraque, foi crucial o desempenho das Forças de Mobilização Popular (xiitas), apoiadas pelo Irão. O seu nº 2, o iraquiano Abu Mahdi al-Muhandis, foi assassinado pelos EUA no mesmo ataque que vitimou Qasem Soleimani.

Se os EUA retaliarem, há outros países em mira

Com os ecrãs das televisões tomados por rastos de luz no céu escuro do Iraque à passagem dos mísseis iranianos, correspondentes de órgãos de informação ocidentais em Teerão eram porta-vozes de mais recados do regime dos ayatollahs.

“O Irão está a avisar que se houver retaliação às duas vagas de ataques lançadas, a terceira vaga destruirá o Dubai e Haifa”, escreveu no Twitter Ali Arouzi, da televisão norte-americana NBC.

O Dubai é um dos sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos, um aliado dos EUA na região. E Haifa é uma cidade de Israel, o país que mais tem pressionado o amigo americano no sentido de um confronto militar com o Irão.

Um ataque a estes dois países arrastaria todo o Médio Oriente para uma guerra total, com consequências em todo o mundo. Esta quarta-feira, o primeiro-ministro israelita advertiu: “Estamos firmes contra aqueles que buscam as nossas vidas. Estamos de pé com determinação e força. Quem tentar atacar-nos receberá em troca um golpe esmagador”, declarou Benjamin Netanyahu, numa conferência em Jerusalém. De forma não oficial, Israel tem armas nucleares.

Mensagens para dentro de portas

Na euforia do ataque, as autoridades iranianas disseram que tinham sido mortos “80 terroristas”, como o Irão passou a designar os soldados norte-americanos. Mas nem os EUA nem o Iraque confirmam a existência de vítimas mortais.

A informação terá, porém, confortado muitos iranianos, feridos no seu orgulho pela execução de uma figura popular como o general e que os orgulhava.

O ódio ao “Grande Satã” (como a República Islâmica se refere aos EUA) é um factor de unidade nacional no Irão e a primeira reação oficial iraniana ao ataque espelha-o: “Saiam da nossa região!”, escreveu no Twitter o ministro das Telecomunicações, Azari Jahromi.

Nos EUA, no conta-gotas noticioso relativo ao perfil deste ataque começaram a surgir insinuações de que o Irão pode não ter atingido soldados norte-americanos “intencionalmente”. Se assim foi, e atendendo às palavras do seu chefe da diplomacia — “Não queremos guerra com os EUA”, disse Mohammad Javad Zarif —, o Irão dá sinais de querer resolver esta crise pela via do diálogo possível.

(IMAGEM Pelo menos cinco estruturas da base foram atingidas pelos ataques com mísseis do Irão, como mostra esta imagem de satélite ©2020 Planet Labs, Inc. cc-by-sa 4.0 / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 8 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Quatro dúvidas sobre o regresso da tensão máxima ao Médio Oriente

Há espaço para uma negociação? O acordo nuclear tem condições para sobreviver? Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque? O que ganham os EUA com tudo isto? Analistas ouvidos pelo Expresso anotam as interrogações pós-morte de Qasem Soleimani. A resposta vai sempre parar ao mesmo destinatário: Donald Trump

O mundo está de respiração suspensa à espera da prometida “vingança” do Irão ao assassínio do general Qasem Soleimani pelos Estados Unidos. Esta terça-feira, Ali Shamkhani, secretário do Conselho Supremo Nacional do Irão, disse que estão a ser avaliados 13 “cenários de retaliação”.

O militar ia a enterrar esta terça-feira, em Kerman (sul), a sua cidade natal, mas o funeral foi adiado por circunstâncias trágicas: pelo menos 32 pessoas morreram e 190 ficaram feridas numa debandada durante as exéquias participadas por muitos milhares de pessoas. Os iranianos choram a morte do comandante como que se de um familiar se tratasse e cerram fileiras em torno do regime dos ayatollas. A ameaça do regresso da guerra ao Médio Oriente atirou o preço do ouro para máximos e fez disparar o preço do petróleo. Um pouco por todo o mundo, multiplicam-se sinais de nervosismo e sobram interrogações.

Há espaço para negociação entre EUA e Irão?

Esta terça-feira, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros denunciou que lhe foi negado visto de entrada nos EUA para participar na reunião do Conselho de Segurança da ONU, agendada para quinta-feira, em Nova Iorque. “Receiam que alguém venha aos EUA e revele a realidade das coisas”, acusou Mohammad Javad Zarif.

O diálogo entre Washington e Teerão não se afigura fácil, mas a politóloga iraniana Ghoncheh Tazmini acredita que uma negociação ainda é possível, “mesmo no meio do rancor e da dor”, diz ao Expresso. “Um porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros disse que a Administração Trump continua a ser bem vinda para se juntar Irão e ao E3+2 [França, Reino Unido, Alemanha, Rússia e China] à mesa das negociações. Mas isso implica, em primeiro lugar, suspender as sanções ao Irão, que provocam escassez de alimentos e remédios junto do povo (não do regime nem do Estado)”, diz a investigadora na Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres.

O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi um sucesso da Administração Obama que Donald Trump reverteu, em maio de 2018, retirando os EUA desse compromisso. Em consequência, o Irão já adotou “medidas corretivas” ao acordo por cinco vezes, a últimas das quais esta semana ao anunciar que vai deixar de respeitar os limites relativamente ao enriquecimento de urânio.

O acordo nuclear tem condições para sobreviver?

Recordemos: Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas no Médio Oriente assentes em grupos xiitas como o Hezbollah libanês, os Huthis no Iémen, forças paramilitares na Síria e milícias armadas no Iraque, que visitava quando foi alvejado por um drone norte-americano, em Bagdade.

Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque?

Dezassete anos após terem invadido o Iraque, deposto o ditador Saddam Hussein (sunita) e possibilitado — pela via do voto popular — a ascensão ao poder da maioria xiita, os EUA receberam “guia de marcha” para regressarem a casa. No domingo, o Parlamento iraquiano aprovou uma resolução exigindo a saída das tropas estrangeiras do país.

Foi Barack Obama quem anunciou o fim da guerra e o regresso a casa das tropas de combate, que se concretizou em finais de 2011. Mas cerca de 5000 americanos estão ainda no Iraque, em funções sobretudo de assessoria, num ambiente cada vez mais hostil.

Horas após o assassínio do general, a NATO suspendeu a missão de treino das forças iraquianas. Na segunda-feira, em Bruxelas, a Aliança apelou à contenção e à diminuição da escalada. “Um novo conflito não será do interesse de ninguém”, alertou o secretário-geral Jens Stoltenberg. “O Irão deve abster-se de mais violência e provocações.”

Mas a tensão é inegável e, nos países com tropas destacadas no Iraque, o nervosismo é indisfarçável. A Alemanha anunciou que vai deslocar 30 dos seus 120 militares de Bagdade para a Jordânia e Kuwait. Os restantes 90 estão mais ‘protegidos’, na região curda (norte).

O que ganham os EUA com tudo isto?

Com os órgãos de informação saturados com notícias sobre o “impeachment” a Donald Trump e, agora, a tensão com o Irão, quase não se dá conta que as eleições primárias que irão escolher os candidatos às presidenciais de 3 de novembro começam em menos de um mês, no Iowa (3 de fevereiro).

Aos olhos de muitos norte-americanos, Trump poderá surgir como um líder corajoso e destemido, o melhor de todos para os defender, mas para o interesse nacional do país, o assassínio do general Soleimani pode ter sido um tiro no pé. “Colocam os EUA numa situação extremamente complicada no Iraque, já que se tratou de uma clara violação da soberania”, diz ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor na Universidade Complutense de Madrid. A confirmar-se a saída das tropas, “a morte de Soleimani não só não enfraqueceria a posição do Irão na região, como a fortaleceria. Os EUA podem ser a principal vítima de uma decisão claramente precipitada que pode ter o efeito oposto ao desejado.”

“A única tábua de salvação que os EUA têm para mitigar esta crise perigosa fabricada por Trump seria regressar aos termos do acordo nuclear”, realça Ghoncheh Tazmini. “Os iranianos e o mundo árabe xiita estão unidos, fervendo de raiva, rancor e tristeza. Os EUA não estão mais seguros hoje do que há uma semana. A missão suicida de Trump devia ser interrompida e, para mim, a única forma de isso acontecer é retomar o acordo.”

(FOTO Sepultura de Qasem Soleimani, no Cemitério dos Mártires de Kerman MOHAMMAD ALI MARIZAD / WIKIMPEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 7 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Joe Biden lidera a corrida às eleições de 2020. Mas porque é que o “irmão” Barack Obama ainda não o apoiou?

Quando falta um ano para as presidenciais nos Estados Unidos, Joe Biden surge como o candidato democrata mais bem colocado para derrotar Donald Trump. Ao Expresso, o autor de um livro sobre a “parceria extraordinária” entre Obama e Biden quando estiveram na Casa Branca ajuda a perceber por que razão Biden pode não ser o favorito do anterior Presidente

Durante oito anos, Barack Obama e Joe Biden conviveram na presidência dos Estados Unidos como verdadeiros irmãos. Na presença um do outro, o Presidente e o seu vice não pouparam nos sorrisos, nas mostras de carinho e nos gestos de cumplicidade.

A amizade transbordou os corredores do poder e, muitas vezes, surgiram juntos em eventos desportivos, como o fazem os melhores amigos. Na imprensa, esta relação de grande proximidade ganhou as cores de um “bromance” — um romance entre irmãos (brothers, em inglês).

Três dias antes de deixar funções, Obama prestou tributo a essa caminhada conjunta e condecorou Biden com a Medalha Presidencial da Liberdade, a maior honra concedida a um civil. “Foi o melhor vice-presidente que a América alguma vez teve”, disse o 44º Presidente, eleito pela primeira vez faz esta segunda-feira onze anos.

Se Obama é hoje alguém distante dos palcos da política, já Biden sonha ainda com a cadeira do poder. A 25 de abril passado, o antigo senador pelo Delaware lançou a sua candidatura às eleições presidenciais de 3 de novembro de 2020. Envolto em ações de campanha desde então, ainda não ouviu do “irmão” Obama o esperado apoio.

“Obama não pôde endossar Biden logo após ter anunciado a sua candidatura porque não se sabe se ele será o candidato democrata”, explica ao Expresso Steven Levingston, autor do livro “Barack and Joe: The Making of an Extraordinary Partnership” [Barack e Joe: A Realização de uma Parceria Extraordinária], recentemente publicado.

“Obama é a pessoa mais popular — e mais poderosa — no Partido Democrata. O seu apoio terá muito peso pelo que terá de o fazer com cuidado e somente após o partido ter a certeza de quem será o seu candidato. Se Obama apoiar Biden, ou qualquer outro, antes da nomeação final, corre o risco de escolher a pessoa errada e, quando o candidato for nomeado, o seu apoio ter menos peso.”

Obama parece, pois, determinado em repetir o guião de 2016, adotando uma postura de neutralidade na fase das primárias e expressando apoio – no caso a Hillary Clinton – dissipadas as dúvidas quanto ao candidato escolhido.

“O relacionamento entre Obama e Biden foi único na história americana. Presidentes e vice-presidentes não se comportam daquela maneira. Admiravam-se e respeitavam-se verdadeiramente, tinham uma amizade profunda e formaram uma equipa dinâmica na Casa Branca”, continua Levingston. “Mas, na sua essência, o relacionamento era um casamento político. A política intercetou a amizade. Esta relação pessoal tão profunda não podia superar as necessidades da política.”

Com Obama em silêncio, Biden procura tirar dividendos desse percurso ímpar ao lado de um dos Presidentes mais emblemáticos da história do país, sobretudo nos debates com os adversários democratas. “O meu problema com o vice-presidente Biden é que sempre que se refere algo de bom sobre Barack Obama, ele diz: ‘Oh, eu estava lá, eu estava lá, isso sou eu também’”, criticou Julián Castro, no debate de 12 de setembro. “Mas sempre que se questiona um aspeto da Administração da qual ambos fizemos parte, ele diz: ‘Bem, isso foi o Presidente’.” Castro foi secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbanístico entre 2014 e 2017.

O apoio de Obama a Biden levaria o antigo vice-presidente a disparar nas sondagens, mas dizem os números que desde que iniciou a corrida democrata Biden esteve sempre na liderança. E mesmo num eventual confronto com Donald Trump, a última projeção divulgada, da insuspeita Fox News (com inquéritos realizados entre 27 e 30 de outubro), dá 51% a Biden e 39% a Trump.

“Se Biden for o candidato democrata, acredito que Obama o apoiará com força e com um desejo genuíno de o ver eleito. Na sua perspetiva, é mais importante que os democratas reconquistem a Casa Branca em parte para redefinir a nação e restaurar parte do legado de Obama”, defende Levingston, editor de Não-Ficção do jornal “The Washington Post”.

“De certa forma, Biden pode ser o melhor candidato para preservar a herança de Obama, tendo trabalhado em estreita colaboração com ele e sendo mais moderado do que outros candidatos democratas que querem empurrar a nação para além do lugar onde Obama a colocou.”

Mas se Biden é realmente o favorito de Obama, talvez só mesmo o 44º Presidente saiba a resposta. “Do ponto de vista do seu legado, pode muito bem ser que Obama prefira um candidato que seja mais indicativo de mudança política do que Biden é”, concluiu o autor. “Obama alterou a paisagem política ao tornar-se o primeiro Presidente negro. Se os EUA elegessem agora uma mulher [Elizabeth Warren] ou um Presidente homossexual [Pete Buttigieg], isso promoveria mais o legado de Obama como pioneiro na cena política norte-americana — um homem que remodelou a natureza da política americana.”

(FOTO Joe Biden e Barack Obama partilham uma risada, antes de uma ação de campanha para as presidenciais desse ano, em Portsmouth, em Nova Hampshire, a 7 de setembro de 2012. Obama seria reeleito Presidente dos EUA e Biden continuaria a ser o seu vice-presidente PETE SOUZA / US GOVERNMENT / RAWPIXEL)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 4 de novembro de 2019. Pode ser consultado aqui

EUA deixam os curdos sozinhos, mais uma vez

Com a saída dos EUA do nordeste sírio, os curdos ficam sem aliados por perto e à mercê da mão castigadora da Turquia

Os apuros de Donald Trump dentro de portas parecem realçar uma certa impaciência do Presidente dos Estados Unidos na hora de lidar com problemas internacionais. Aconteceu no domingo passado, quando Trump anunciou a retirada das tropas norte-americanas em missão no nordeste da Síria. “Desde o primeiro dia em que entrei na política, tornei claro que não queria travar estas guerras intermináveis e sem sentido, em especial as que não beneficiam os EUA”, disse.

Três dias depois, a Turquia começava a bombardear a área desguarnecida pelos norte-americanos. Anunciada pelo Presidente Recep Tayyip Erdogan, a ofensiva “Fonte de Paz”, com fogo aéreo e de artilharia, visa áreas controladas pela milícia curda Unidades de Proteção do Povo (YPG).

O jornal turco “Daily Sabah” noticiava, quinta-feira, que a “operação antiterrorista” já tinha “libertado” 11 aldeias nas imediações das cidades de Tal Abyad e Ras al-Ayn. Há mais de 60 mil pessoas em fuga e notícias de pelo menos 277 mortos. A Turquia diz que são “militantes”, os curdos dizem que alguns são civis.

Ressurgimento do Daesh

Nos EUA, a decisão de Trump e o que se lhe seguiu no terreno geraram críticas, até no campo republicano. “Os EUA estão a abandonar os nossos aliados curdos, que combateram o Daesh [autodenominado Estado Islâmico] e ajudaram a proteger a nossa pátria”, acusou a deputada republicana Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney. “A decisão ajuda os adversários da América — Rússia, Irão e Turquia — e abre caminho ao ressurgimento do Daesh.” Trump respondeu que os curdos não ajudaram os EUA durante a invasão… da Normandia, em 1944.

No barril de pólvora que a Síria se tornou após 2011, com a esperança de uma primavera árabe a degenerar num inverno sangrento, as forças curdas foram aliadas fiéis, profissionais e destemidas contra os extremistas. Na língua curda, peshmerga — como se intitulam os combatentes curdos — significa “os que enfrentam a morte”.

Passadeira aos turcos

No jornal israelita “Haaretz”, sexta-feira, Akil Marceau, ex-diretor da representação do governo regional do Curdistão iraquiano em Paris, decretou: “Qualquer esforço internacional que não resulte no estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre o norte da Síria e a proteção das suas minorias étnicas será uma cortina de fogo, na melhor das hipóteses — e na pior, uma faca nas costas” dos curdos. Em 1992, foi uma solução desse género que protegeu os curdos iraquianos de Saddam Hussein, após a Guerra do Golfo.

Às primeiras notícias da ofensiva turca, Trump comentou ser “má ideia” e acrescentou que Washington “não apoia” o ataque. Sobre o que faria se Erdogan acabar com os curdos, Trump respondeu: “Se a Turquia fizer algo que eu, na minha grande e ímpar sabedoria, considerar fora dos limites, destruirei e obliterarei toda a economia turca (já o fiz!).”

Por muito que Trump o tente iludir, a saída de cena das tropas americanas funcionou como “luz verde” para a investida turca sobre o nordeste da Síria. Ancara justifica a operação com a necessidade de criar uma “zona segura” — uma extensão de 400 quilómetros de comprimento e 30 de largura entre a fronteira e o rio Eufrates — para repatriar milhões de sírios refugiados na Turquia.

“É improvável que uma chamada ‘zona segura’ no nordeste da Síria, como a prevista pela Turquia, satisfaça os critérios internacionais para o regresso de refugiados”, reagiu Federica Mogherini, chefe da diplomacia da UE. Para Bruxelas, “o regresso de refugiados e deslocados internos aos seus locais de origem tem de ser seguro, voluntário e digno, quando as condições o permitirem. Qualquer tentativa de promoção de alterações demográficas é inaceitável. A UE não dará assistência em áreas onde os direitos das populações sejam ignorados”. Adivinha-se pois nova tragédia humana.

Um povo único

Etnicamente não-árabes — como turcos, iranianos, paquistaneses e afegãos —, os curdos são o maior povo sem Estado do mundo. Cerca de 30 milhões de pessoas vivem na intersecção de quatro países do Médio Oriente frequentemente desavindos: Turquia, Síria, Iraque e Irão. E sonham com um Curdistão independente.

Na Turquia, onde os curdos são entre 15% e 20% de uma população de 80 milhões, essa ambição é sentida como ameaça à segurança nacional. Abdullah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, ilegalizado e que EUA e UE consideram terrorista), é o inimigo público nº 1. Cumpre prisão perpétua, há 20 anos, na ilha-prisão de Imrali.

Com a retirada dos EUA da região de Rojava — o chamado Curdistão sírio, composto pelos enclaves de Afrin, Kobane e Yazira —, os curdos ficam entregues a si próprios. Não foi a primeira vez que viram um aliado virar-lhes costas. Talvez por isso um velho ditado curdo profetize: “Não temos amigos, apenas as montanhas.”

TRÊS TRAIÇÕES

I GUERRA MUNDIAL — Pelo Tratado de Sèvres (1920), Aliados e Império Otomano contemplam a criação de um Curdistão na atual Turquia. De fora ficam os curdos do Irão, do Iraque (tutelado por britânicos) e da Síria (franceses). Depois o assunto é esquecido

IRAQUE — Os EUA armam os curdos durante o Governo de Abdel Karim Kassem. Após este ser deposto, em 1963, cortam apoio à minoria e ajudam o novo Governo, que investiu contra os curdos

GUERRA DO GOLFO — Em 1991, Bush (pai) apela aos iraquianos que se envolvam na deposição de Saddam Hussein. No norte, os curdos corresponderam. Os EUA não avançam sobre Bagdade e Saddam massacra a minoria

(IMAGEM Bandeira do Curdistão Sírio WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui

A fórmula de Trump para que não falte dinheiro à ONU

António Guterres alertou os funcionários da ONU para a possibilidade da organização ficar sem dinheiro até ao final do mês. Esta quarta-feira, no Twitter, Donald Trump disse-lhe como resolver o problema

As Nações Unidas estão quase sem dinheiro e, esta semana, o secretário-geral António Guterres enviou uma carta aos 37 mil funcionários da organização alertando para o perigo real do dinheiro faltar até ao fimd este mês.

Esta quarta-feira, no Twitter, como é seu hábito, Donald Trump deu-lhe um conselho: “Então faça com que todos os países paguem [as suas contribuições], e não apenas os Estados Unidos!”

As palavras de Trump vão ao encontro de um comunicado divulgado pelo porta-voz de Guterres apelando a que os Estados membros da ONU cumpram com os compromissos financeiros que assumiram perante a organização. Stéphane Dujarric alertou para o facto de apenas 70% do orçamento para 2019 estar assegurado.

Historicamente, os Estados Unidos têm sido de longe o maior contribuinte para o orçamento das Nações Unidas. Mas com Donald Trump na Casa Branca, o cheque tem vindo a perder zeros. Há cerca de um ano, o próprio Presidente anunciou a diminuição em 25% das contribuições norte-americanas para as missões de paz da ONU.

Anteriormente, Washington já tinha cortado o seu financiamento à UNESCO, uma agência especializada das Nações Unidas que, desde 2011, reconhece o Estado da Palestina como membro de pleno direito.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui