Arquivo de etiquetas: Eurovisão

Eurovisão arranca hoje: Ucrânia volta a ganhar? Há canções políticas? Porque há, como na ONU, cinco países com assento permanente na final?

A organização do festival não gosta, mas a política sobe ao palco da Eurovisão, ano após ano. O certame de 2023 em Liverpool não será exceção. Ao estilo de aperitivo para a primeira semifinal, esta terça-feira à noite, na qual a portuguesa Mimicat disputará um lugar na final, seguem-se dez interrogações de caráter político, comentadas por Tiago André Lopes, professor na área das Relações Internacionais e grande fã do concurso musical

1. A Ucrânia repetirá a vitória do ano passado?

Ainvasão russa continua, mas é pouco provável que o triunfo da Ucrânia, obtido com o coração, no evento de 2022 em Turim — realizado menos de três meses após o início da guerra —, se repita em Liverpool.

“A vitória da Ucrânia parece-me muito improvável este ano. Ao nível dos júris, não parece de todo que a Ucrânia esteja na corrida. Julgo que vão privilegiar canções mais previsíveis de serem premiadas”, diz Tiago André Lopes, professor de Comunicação para a Diplomacia, na Universidade Portucalense. “Mas não ficarei surpreso se, na votação do público, o bloco de leste votar de forma expressiva na Ucrânia”. O país invadido concorre com o tema “Heart Of Steel”, dos Tvorchi.

Afinal, no ano passado, foi precisamente a preferência do público europeu o segredo da vitória da Ucrânia. “Stefania”, da banda Kalush Orchestra, foi a canção mais pontuada no televoto, com 28 dos 39 países participantes a dar os 12 pontos à Ucrânia (Portugal foi um deles).

Porém, ao nível dos júris, a Ucrânia só obteve a pontuação máxima de cinco países do bloco de leste: Letónia, Lituânia, Moldávia, Polónia e Roménia. O júri português atribuiu 8 pontos à canção ucraniana (e o ucraniano deu 10 à portuguesa).

2. A Rússia participa nesta edição?

Não, nem a sua aliada Bielorrússia. Foram ambas suspensas pela União Europeia de Radiodifusão (EBU), a entidade que organiza a Eurovisão, mas por razões diferentes.

A 25 de fevereiro de 2022, no dia seguinte ao início da invasão russa da Ucrânia, a EBU emitiu um comunicado excluindo a Rússia do festival de Turim. “A decisão reflete a preocupação de que, à luz da crise sem precedentes na Ucrânia, a inclusão de uma inscrição russa no concurso deste ano trouxesse descrédito à competição”, explicou a organização. Esta posição levou os três canais russos membros da EBU a ameaçarem desfiliar-se, ao que a União respondeu com a suspensão.

Já a emissora estatal de rádio e televisão bielorrussa BTRC está suspensa desde 28 de maio de 2021, como resposta à “supressão da liberdade de imprensa” no país.

A penalização da Rússia, em particular, tem consequências abrangentes. “A Rússia era um país que contribuía muito significativamente para a EBU, e a sua suspensão fez com que a inscrição [no festival] subisse de preço”, explica Tiago Lopes. “Há países que não conseguiram comportar os custos e optaram por não ir este ano.” Bulgária, Macedónia do Norte e Montenegro são exemplos. O mesmo aconteceu com Portugal em 2013, durante o resgate financeiro pela troika.

Por estes dias, a “superlambanana”, uma icónica escultura de Liverpool, ganhou as cores da Ucrânia PAUL ELLIS / AFP / GETTY IMAGES

3. Há mais países ausentes?

A EBU é composta por organizações de radiodifusão oriundas de 56 países (incluindo os dois suspensos). Em Liverpool participarão apenas 37, logo há bastantes que ficam de fora. A última vez em que concorreram 37 canções foi em 2014. Desde então, houve sempre mais.

Na história da Eurovisão, o recorde de participantes está nos 43, registados em três edições: 2008 (Belgrado), 2011 (Dusseldorf) e 2018 (Lisboa).

Este ano, para lá das questões financeiras, há razões de peso a justificar ausências. A conservadora Hungria, por exemplo, está em declarada rota de colisão com a exuberância que a Eurovisão tem vindo a assumir.

“A Hungria participou pela última vez em 2019, na mesma semifinal de Conan Osíris. Joci Pápai, que já era um repetente na Eurovisão, ficou muito perto da final, mas não passou. Depois, a Hungria retirou-se do certame e uma das razões invocadas foi a de que o festival se tornara uma parada LGBT, e o país não compactuaria com isso.”

Tiago André Lopes recua até 2012 para recordar outra manifestação de grande conservadorismo em relação ao festival. “O anfitrião foi o Azerbaijão, país conservador, de maioria islâmica xíita, como o Irão”, onde cerca de 15% da população é de etnia azeri. “O Irão considerou que o Azerbaijão estava a perverter a sua alma ao receber um espetáculo desta natureza. Em protesto, o embaixador retirou-se e a embaixada iraniana em Baku fechou portas durante o mês de maio para não ser contaminada pelo espírito da Eurovisão.”

4. Em Liverpool, haverá temas com letras políticas?

“A canção da Ucrânia não tem nada que ver com guerra, mas alguns países levam canções cujas letras estão, claramente, contaminadas pela guerra”, diz Tiago Lopes. “A Croácia faz uma paródia aos ditadores.”

Em palco, cinco homens apresentam-se ao estilo de um espetáculo de travestismo e cantam sobre uma “mamã” que “comprou um trator” e “beijou um idiota”, numa alusão implícita ao trator oferecido pelo Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, ao homólogo russo, Vladimir Putin, a 7 de outubro de 2022, como presente pelo seu 70.º aniversário.

“Toda a atuação do grupo croata [Let 3] é muito bizarra e é uma crítica direta a esses dois ditadores.” Com um histórico de provocações, a banda confirmou, numa entrevista, tratar-se de “uma canção contra a guerra. O nosso único desejo é que a guerra acabe o quanto antes e que a paz e o amor emerjam.”

Outra música política é a balada da Suíça, “Watergun”. “Remo Forrer canta sobre o modo como passamos de brincar às guerras, em crianças, para de repente estarmos numa guerra, e numa guerra real onde não se brinca com pistolas de água.”

Carlos e Camila, os monarcas britânicos, visitaram o palco da Eurovisão, a M&S Bank Arena de Liverpool PHIL NOBLE / AFP / GETTY IMAGES

5. Grécia e Chipre vão continuar a dar 12 pontos um ao outro?

É um clássico na Eurovisão que até já motiva apupos dos fãs na plateia. Desde que Chipre se estreou no certame, em 1981, cabem nos dedos de uma mão as vezes em que Grécia e este país insular do Mediterrâneo não deram pontuação máxima ao outro. Na origem desta preferência está a invasão turca da ilha de Chipre, em 1974, que dividiu o território numa parte grega (Estado soberano, membro da UE e com direito a participar no festival) e numa zona turca (um país que só a Turquia reconhece).

“Grécia e Chipre não são caso único”, diz Tiago Lopes. “Roménia e Moldávia, tradicionalmente, também partilham votos. Mesmo o bloco nórdico — Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia — tende a trocar a votação máxima entre si. E também acontecia entre a Rússia e Bielorrússia.” Há também solidariedade natural entre países do Báltico ou dos Balcãs.

Há dez anos, a Rússia protagonizou um dos episódios mais indigestos da história da Eurovisão. No festival de Malmö, na Suécia, o júri russo deu 12 pontos à canção do Azerbaijão (que ficaria em segundo lugar), enquanto os azeris não atribuíram pontos à música russa (que ficou em quinto).

A questão escalou a hierarquia e chegou ao primeiro plano da política. Em Moscovo, o ministro dos Negócios Estrangeiros, já então Sergei Lavrov, disse que foram “roubados 10 pontos” à Rússia. “Esta ação ultrajante não ficará sem resposta”, prometeu. Em Baku, o Presidente Ilham Aliyev ordenou uma investigação aos zero pontos dados à Rússia e uma recontagem de votos.

Esta lógica de blocos regionais e o impacto que tem nas votações levaram Ancara a bater com a porta da Eurovisão. “A Turquia está contra o sistema de votação, porque considera que, tal como Portugal, é prejudicada por ter poucos vizinhos.” A última participação turca foi em 2012, pela voz de um cantor judeu.

A cidade que acolhe a Eurovisão viu nascer The Beatles, em 1960 CHRISTOPHER FURLONG / GETTY IMAGES

6. Há países árabes a participar na Eurovisão?

Atualmente não, mas já houve e poderá voltar a haver. Entre os 56 países membros da EBU, há sete árabes: Argélia, Jordânia, Líbia, Egito, Tunísia, Marrocos e Líbano. Apenas uma vez um deles participou na Eurovisão: Marrocos, em 1980, em Haia. Em 19 participantes, a canção de Samira Bensaid ficou em penúltimo lugar.

“Não correu muito bem, mas, curiosamente o espetáculo em Marrocos, e em particular na Argélia, é muito popular”, diz o professor. “A saída de Marrocos teve um efeito negativo para a Turquia. No ano em que participou, Marrocos, obviamente, deu-lhe 12 pontos.” Além da solidariedade islâmica, “as sonoridades marroquina e turca estão muito próximas”.

7. Há um padrão de votação entre Portugal e Espanha?

“Há um padrão enviesado a favor de Espanha. Tradicionalmente, Portugal dá votações altas, sem dar votações máximas.” A última edição da Eurovisão confirmou a desafinação entre os dois países ibéricos: Madrid deu a “Saudade, saudade”, de Maro, 4 votos do público e 0 do júri. Lisboa deu a “SloMo”, de Chanel, 10 votos através do televoto e 12 do júri. “É mais comum Portugal dar votação alta a Espanha do que o contrário.”

É também frequente “Portugal dar votações máximas a países de leste, porque as comunidades de leste em Portugal mobilizam-se para votar. Moldávia, Roménia, Bulgária já tiveram, várias vezes, votações muito significativas”.

Nos últimos anos, Portugal e Espanha não têm beneficiado dos votos de países onde têm comunidades migrantes significativas. “Andorra é um país muito pouco regular no que troca a Eurovisão, o que é pena para Portugal, porque, por norma, Andorra vota significativamente em Portugal e Espanha, que são as comunidades maiores.”

O mesmo se passa com o Luxemburgo, onde a maior comunidade estrangeira é a portuguesa: este país, que já venceu a Eurovisão cinco vezes, participou pela última vez em 1993.

Mimicat, a representante portuguesa, durante um ensaio, em Liverpool ANTHONY DEVLIN / GETTY IMAGES

8. Qual o único Estado que a EBU não pressiona para ir à Eurovisão?

O Vaticano. É membro da EBU através da Radio Vaticana, mas nunca arriscou uma participação no festival. “Seria complicado para o Vaticano escolher uma canção e estar ao lado de vários tipos de atuações que desafiam os limites e que já levaram a várias reclamações”, diz Tiago Lopes.

Um exemplo aconteceu na Eurovisão de Lisboa, em 2018. “Nesse ano, pela primeira vez, foram dados os direitos de transmissão à China, que lhe foram retirados após a primeira semifinal. A canção da Irlanda tinha uma coreografia em palco que retratava um amor homossexual entre dois homens. Houve um corte na emissão chinesa e a canção não passou. Quando a imagem voltou, já estava outra em palco. A EBU não gostou desta discriminação com base na sexualidade e retirou os direitos de emissão à China para a segunda semifinal e para a grande final.”

Outro caso polémico ocorreu no evento de Malmö, em 2013. “A canção da Finlândia terminava com um beijo entre duas mulheres. Houve vários países — Rússia, Arménia, Azerbaijão — que reclamaram contra esse beijo.”

9. Porque há cinco países com entrada direta na final?

São conhecidos como os Big Five (cinco grandes) e estão para a Eurovisão como os cinco membros permanentes estão para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Espanha não disputam as semifinais e têm lugar assegurado na final de cada festival, com o anfitrião de cada ano.

Nenhum dos cinco foi o país que mais vezes ganhou a Eurovisão: França e Reino Unido venceram cinco vezes, Itália três e Alemanha e Espanha duas vezes. A campeã do festival é a Irlanda (7 vezes), seguida da Suécia (6).

“Os Big Five são uma necessidade”, explica Tiago Lopes. “A EBU precisa de ter estados que contribuam mais do que os outros. A Eurovisão é um espetáculo pesado do ponto de vista financeiro e, apesar de parte significativa dos custos ficar para o canal de televisão do país anfitrião, há gastos que ficam do lado da EBU.”

A passagem direta para a final pode não ser uma passadeira para os Big Five. “Uma vez que não atuam nas semifinais, curiosamente, acabam por ficar prejudicados. Como estão automaticamente na final, não passam pelo filtro, não passam pelas discussões que durante várias semanas animam os fãs. Acabam por gerar menos interesse e ter mais dificuldade para atrair a atenção na final. É uma benesse que pode virar-se um bocadinho contra eles.”

Nos últimos anos, Reino Unido e, sobretudo, Alemanha têm marcado presença nos últimos lugares: em 2015, os alemães receberam 0 pontos e em 2021 foi a vez dos britânicos ficarem em branco.

10. Haverá invasões de palco em Liverpool?

Não há análise política que consiga prever essas surpresas. Na edição de Lisboa, a invasão de palco durante a atuação da britânica SuRie (cerca do minuto 1:40) foi o maior percalço que manchou a realização da RTP.

O invasor, que conseguiu arrancar o microfone das mãos da cantora britânica, autodenomina-se Dr ACactivism e tem currículo em matéria de interrupção de grandes eventos de palco. No ano anterior, por exemplo, este “filósofo, ativista e DJ/MC sedeado em Londres”, como se apresenta n rede social Twitter, tinha invadido o palco durante a final do concurso “The Voice”, no Reino Unido.

Em 2010, em Oslo, um intruso que invadiu o palco durante a atuação de Espanha quase se tornou um verdadeiro figurante, tal foi a demora dos seguranças em tirá-lo dali. Jaume Marquet i Cot, catalão nascido em 1976, era já experiente na “arte”, com investidas no palco dos prémios Goya, no court de Roland Garros, numa pista de Fórmula 1 e em vários relvados de futebol.

Uma das mais célebres aconteceu em Lisboa, durante a final do Euro 2004, entre Portugal e a Grécia. “Jimmy Jump”, como é popularmente conhecido, correu pelo relvado do Estádio da Luz com uma bandeira da Catalunha na mão e arremessou-a contra a cara de Luís Figo. O futebolista português protagonizara a maior das traições, na opinião de muitos adeptos, ao trocar o Barcelona pelo Real Madrid.

(FOTO PRINCIPAL Na impossibilidade da Ucrânia organizar a Eurovisão, por vencer em 2022, a edição deste ano fica a cargo do segundo classificado, o Reino Unido PETER KNEFFEL / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui

Sem boicotes mas com danos

Os múltiplos apelos à não-participação no festival em Israel não tiveram eco junto dos participantes. Mas, fruto das discussões geradas, o país já não é visto da mesma forma

O Festival Eurovisão da Canção em Israel tem uma baixa anunciada por razões políticas: a Ucrânia. A ausência não decorre, porém, dos múltiplos apelos ao boicote feitos por ativistas da causa palestiniana. Simplesmente, a cantora escolhida para representar a Ucrânia recusou-se a cancelar concertos que tinha agendados… na Rússia, o que levou a televisão estatal ucraniana a cancelar a sua participação. Menos mediático e mobilizador do que o conflito israelo-palestiniano, o diferendo entre as ex-repúblicas soviéticas faz mais danos a um evento que Israel quer organizar sem mácula.

“Apesar de nenhum cantor ter desistido, em cada país houve apelos por parte do povo em geral e de músicos e antigos participantes do festival para que cancelassem a participação e se recusassem a dançar sobre as sepulturas de Al-Sheikh Muwannis, que foi alvo de limpeza étnica”, diz ao Expresso o ativista israelita Ronnie Barkan. Esta antiga aldeia palestiniana foi abandonada dois meses antes da guerra da independência (1948), por pressão de grupos armados judaicos. O Centro de Convenções de Telavive — que acolhe a Eurovisão entre terça-feira e sábado — fica sobre as ruínas da aldeia.

O israelita realça, entre as ações de pressão desenvolvidas sobre os concorrentes, a petição assinada por 8% da população da Islândia a pedir um boicote ao evento. Iniciativa no mesmo sentido na República da Irlanda foi apoiada pelo então presidente da Câmara de Dublin. Em Portugal, o apelo feito a Conan Osíris por Roger Waters (Pink Floyd) pôs o assunto na agenda noticiosa.

“A Eurovisão nunca foi uma plataforma para criar consciência política”, continua Barkan. “É vista, mesmo pela indústria musical, como mero espetáculo. Dito isto, é interessante notar que as movimentações e negociações em torno da Eurovisão de 2019 nada têm de apolítico. Tudo o que aconteceu desde a participação de Israel em Lisboa, no ano passado, foi assolado pelo apartheid israelita e pelos seus numerosos crimes contra o povo palestiniano. Isto inclui a celebração de Netta Barzilai, vencedora em 2018, ao mesmo tempo que Israel assassinava 61 civis no gueto de Gaza, horas antes, mas sem estragar a festa.”

“É cada vez mais claro que atuar hoje em Israel é análogo a atuar em Sun City antigamente”

Apesar das garantias dadas à União Europeia de Radiodifusão de que não condicionaria os vistos às ideias políticas dos visitantes, o Governo de Telavive fez saber esta semana, através de Emmanuel Nahshon, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que não hesitará em fechar a fronteira a “ativistas anti-Israel cujo único objetivo é perturbar o evento”.

Soft power musical

O Estado hebraico quer conter eventuais embaraços, mas o receio de que algum concorrente aproveite a sua atuação, em direto para milhões de telespectadores, para fazer uma declaração política e virar os holofotes para o drama palestiniano é real. Uma ameaça séria é a banda Hatari, que representa a Islândia. Crítica da realização do festival em Israel, afirmou numa entrevista, já em Telavive, que Israel é um Estado de “apartheid”. Afirma que o grupo vive uma situação “de conflito” por estar ali, naquele contexto. “Mas enquanto participantes temos o poder de abordar o absurdo de haver um concurso como este, fundado no espírito da unidade e da paz, num país marcado por conflitos e pela desunião.”

“Nunca é tarde para os participantes, cantores e fãs ganharem consciência e recusarem-se a conferir legitimidade a um regime supremacista e criminoso, através da sua participação”, comenta o ativista Barkan. “Alguns grupos podem querer expressar uma forma suave de divergência, o que é compreensível, mas não suficiente. É cada vez mais claro que atuar em Israel hoje é análogo a atuar em Sun City, na África do Sul, antigamente.”

Em Telavive, os primeiros ensaios foram “saudados” por 700 rockets lançados de Gaza

Sun City era um grande casino para brancos na África do Sul, nos anos do apartheid. Apesar do boicote cultural apoiado pela ONU, Frank Sinatra, Julio Iglesias ou os Queen, e mesmo negros como Ray Charles, Tina Turner e Dionne Warwick não resistiram aos cachês. Em 1985, quando foi gravado “We are the world”, contra a fome na Etiópia, outro coletivo de artistas deu voz a “I ain’t gonna play Sun City” (Não vou atuar em Sun City).

Com uma imagem cada vez mais associada à África do Sul racista, seja pela forma como segrega os palestinianos da Cisjordânia (sob ocupação militar e alvo de um projeto colonial) e da Faixa de Gaza (sujeitos a um bloqueio por terra, mar e ar) seja pelo tratamento que dá aos seus cidadãos de cultura árabe (cidadãos de segunda, sob certas leis), Israel busca em eventos como a Eurovisão montras para revelar normalidade.

“Considero a Eurovisão em Israel um instrumento de soft power”, diz ao Expresso o cientista político Joseph S. Nye, pai do conceito. “Soft power é a capacidade de se conseguir o que se quer através da atração, em detrimento da coação ou do pagamento. Na medida em que o evento torna Israel mais atrativo aos olhos de outros, isso melhora o seu soft power.”

Em Telavive, os primeiros ensaios foram “saudados” por uma chuva de 700 rockets lançados de Gaza, que mataram quatro israelitas. A Jihad Islâmica disse que a intenção é “impedir que o inimigo consiga montar qualquer festival que vise prejudicar a narrativa palestiniana”. Em Gaza, Haidar Eid é presença ativa nos protestos contra o asfixiante cerco israelita. O Expresso pergunta-lhe se está desiludido por não haver boicotes ao festival. “Nem por isso. Há outras conquistas”, diz. Envia uma imagem divulgada pela organização Jewish Voice for Peace com “cinco razões por que a Eurovisão é um flop”: bilhetes por vender, hotéis por esgotar, eventos alternativos em todo o mundo, milhares de assinaturas  em petições e recorde de artistas cientes de que atuar em Israel é aprovar o apartheid.

(IMAGEM Logotipo de uma  campanha internacional de apelo ao boicote da Eurovisão em Israel BDS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de maio de 2019

Apelos há muitos, boicotes à Eurovisão não há nenhum

Roger Waters pediu a Conan Osíris que boicote a Eurovisão em Israel. O fundador dos Pink Floyd, um destacado ativista da causa palestiniana, tentou sensibilizar o artista português para a ocupação da Palestina e o “apartheid” ali imposto. Mas a dois meses do Festival, a disputa entre a Rússia e a Ucrânia fez mais danos ao evento do que o conflito israelo-palestiniano…

Roger Waters, fundador dos Pink Floyd, junto ao “muro da Cisjordânia”, na região de Belém, a 21 de junho de 2006. “Stop apartheid”, lê-se AHMAD MEZHIR / REUTERS

Acolher um evento como a Eurovisão pode ser uma faca de dois gumes para um Estado como Israel. Por um lado, confere-lhe uma montra única de promoção do país, já que o evento é visto por centenas de milhões de pessoas. Por outro, tem inerente uma grande dose de risco dada a possibilidade de se registarem boicotes em protesto contra a ocupação israelita da Palestina.

A dois meses da final de Telavive – agendada para 18 de maio – não há, até ao momento, qualquer boicote anunciado. Mas desde domingo que Portugal está na linha de mira do movimento internacional BDS que promove formas de “Boicote, Desinvestimento e Sanções” contra Israel. Na sua página no Facebook, Roger Waters, fundador dos Pink Floyd e um dos mais destacados ativistas da causa palestiniana, publicou uma “carta aberta a Conan Osíris e aos outros 41 finalistas da Eurovisão”.

“Amigos meus disseram-me que Conan Osíris poderia juntar-se à vasta rede de artistas que estão atentos ao apelo palestiniano de boicote à Eurovisão na cidade de ‘apartheid’ de Telavive.” O músico inglês leu a tradução da letra de “Telemóveis”, apreendeu a mensagem “bem profunda” sobre a vida, a morte e o amor e dirigiu-se ao artista português. “[Há dez dias], escrevi-lhe e sugeri que agora ele tinha uma oportunidade para falar da vida sobre a morte e também de direitos humanos sobre erros humanos.”

Na carta, “expliquei que a Eurovisão poderia ser um ponto de inflexão [na situação de ‘apartheid’ em que vivem os palestinianos], pedi a Conan que se erguesse. Infelizmente, até agora, não há resposta de Conan”. À SIC, o português confirmou que recebeu o email, que o leu, mas escudou-se a comentar a abordagem do músico britânico.

Na bolsa das apostas, o inesperado protagonismo de Conan Osíris não o fez mais favorito à vitória do que até então. Esta segunda-feira, estava em 10º lugar quer no EurovisionWorld.com quer no OddsChecker.com — ambos os rankings são liderados pela Holanda, seguida pela Rússia e pela Suécia.

A banda Hatari, que representará a Islândia, tem sido crítica da realização da Eurovisão em Israel FOTO RUV

A ausência de boicotes não significa que as autoridades de Telavive possam confiar num evento sem casos políticos. A perspetiva de algum artista aproveitar o direto para expressar apoio aos palestinianos é real e, com todos os concorrentes já apurados, Telavive tem um receio particular: a banda Hatari, que representará a Islândia com o tema “O ódio prevalecerá”.

Há duas semanas, numa entrevista no Canal 13 de Israel, a banda techno-punk não iludiu a questão: “Houve muita pressão na Islândia para que a competição fosse boicotada. Nós temos sido críticos em relação à realização da competição em Israel, e o facto de a Islândia ter votado em nós significa que concordam com a nossa agenda de manter viva uma discussão muito importante.” A banda — que está em 7º lugar no ranking dos favoritos — não desvendou o que planeia fazer durante a atuação. Porém, “julgamos que não haverá uma bandeira palestiniana no palco”.

Atento à “ameaça”, o Ministério dos Assuntos Estratégicos de Israel montou uma “task force” interministerial para lidar com eventuais críticas de teor político que emirjam de delegações ao festival e que possam constituir uma violação da “Lei de Prevenção de Danos ao Estado de Israel através de Boicote”, de 2011. A organização Shurat HaDin, que representa judeus vítimas de terrorismo, apelou a que a banda seja proibida de entrar no país.

“Não vemos razão para que não sejam autorizados a entrar”, reagiu Jon Ola Sand, supervisor executivo do Festival. “Temos um diálogo estreito com os governantes de Israel, e eles sabem que isso pode rapidamente voltar-se contra eles e contra os organizadores se for recusado visto a alguém.” O “Sr. Eurovisão” acrescentou que a televisão pública islandesa (RUV) está ciente das consequências que podem advir de uma provocação política em palco. As regras da União Europeia de Radiodifusão (EBU, na sigla inglesa) não permitem letras, discursos ou gestos de natureza política e comercial durante a Eurovisão.

Dos 42 membros da EBU com participação prevista na Eurovisão, um saltou fora por razões políticas — não relacionadas com Israel. A Ucrânia, vencedora em 2004 e 2016, e onde Salvador Sobral ganhou, cancelou a sua participação após a candidata escolhida pelo público, Anna Korsun (MARUV de seu nome artístico) ter-se recusado a cancelar os concertos que já tinha agendados… na Rússia.

Uma outra participação envolta em polémica política é a da França. Na semana anterior à Eurovisão, a televisão pública israelita (KAN) tem prevista a transmissão de uma série em três episódios intitulada “Douze Points” (Doze Pontos) alusiva a um festival da canção realizado em Israel. Na trama, o representante francês é um jovem de origem magrebina (franco-argelino), homossexual e muçulmano que se vê pressionado pelo Daesh para realizar um atentado durante o direto do espetáculo. A série decorre num registo humorístico e nem os jiadistas nem os agentes da Mossad que tentam sabotar os planos são poupados à sátira.

Numa coincidência extraordinária, o representante francês em Telavive é Bilal Hassani, um jovem de aparência andrógina, nascido em Paris no seio de uma família franco-marroquina, muçulmano e homossexual. As autoridades francesas acusaram o desconforto, pressionaram para que a série não fosse cancelada mas esclareceu que não tenciona faltar ao evento.

Em matéria de boicotes, dir-se-ia que a organização israelita da Eurovisão tem visto o seu trabalho mais dificultado por… israelitas. Ultrapassadas as meias-finais de 14 e 16 de maio, a final realiza-se no dia 18, um sábado. Entre o pôr do sol de sexta-feira e o de sábado, os judeus observam o “sabbath”, período dedicado à oração e à introspeção, incompatível com qualquer atividade laboral. Ainda que a gala da Eurovisão possa decorrer já num horário posterior, o dia será necessário para ensaios.

Se a escolha de Telavive em detrimento de Jerusalém — a opção preferida do Governo israelita para acolher a Eurovisão — afastou o evento do epicentro de eventuais protestos por parte de judeus ultraortodoxos, não o protegeu em absoluto de danos motivados por questões religiosas. Desafiado pela organização para abrir o espetáculo da final, Omer Adam, estrela da pop israelita, declinou o convite por respeito ao “sabbath”. Já na fase de apuramento do candidato israelita, The Shalva Band, composta por músicos com deficiências e um dos favoritos à vitória, desistiu da competição por incompatibilidade entre os deveres religiosos e o calendário da Eurovisão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 18 de março de 2019. Pode ser consultado aqui

Eurovisão 2019: um festival desafinado

O anúncio da cidade que vai acolher o próximo Festival da Canção está enguiçado. A Eurovisão quer garantias por parte do Governo de Israel de que as opiniões políticas dos visitantes não serão obstáculo à obtenção de visto e que será possível trabalhar durante o “shabat”, o dia de descanso dos judeus

A vitória de Netta Barzilai no Festival Eurovisão realizado em Lisboa pode vir a revelar-se um presente envenenado para Israel.

A União Europeia de Radiodifusão (UER) — a entidade responsável pelo evento — previu, para este mês de setembro, o anúncio da cidade que vai acolher o evento, mas por enquanto o que soa desde os bastidores desse concurso musical é uma grande desafinação.

Uma delegação da UER esteve recentemente em Israel, onde visitou três cidades potencialmente anfitriãs (Telavive, Jerusalém e Eilat, tendo esta última ficado fora da corrida). Para além da avaliação dos locais, os responsáveis da Eurovisão entregaram ao Governo de Benjamin Netanyahu uma lista com exigências para a realização do evento em solo israelita.

Uma delas passa pela concessão de vistos independentemente das opiniões políticas dos visitantes, o que colide com legislação aprovada em 2017 que possibilita que pessoas que apoiem boicotes ou sanções a Israel sejam impedidas de entrar no país. Este ano, ao abrigo dessa lei, pelo menos 250 pessoas não passaram do Aeroporto Internacional Ben Gurion (Telavive), do posto fronteiriço de Taba (entre o Egito e a cidade de Eilat) ou da ponte Allenby, entre a Jordânia e o território palestiniano da Cisjordânia.

Outras condições requeridas pela UER passam pela liberdade de circulação no país sem limitações em virtude de opiniões políticas, religião ou orientação sexual; liberdade de imprensa e de expressão para todos os participantes e delegações; e — porventura a exigência mais sensível — o levantamento da restrição religiosa que impede o trabalho aos sábados (“shabat”), o dia de descanso dos judeus.

“Isto é uma desgraça completa”, reagiu, na terça-feira, o ministro da Segurança Pública, Gilad Erdan. “Não entendo como eles tiveram a ousadia de fazer este tipo de exigências. Espero que o primeiro-ministro não aceite estas condições ultrajantes.”

Qualquer uma das exigências feitas pela Eurovisão desafia limites do Estado judeu. Mas para a UER, “para se fazer o Festival Eurovisão da Canção tem de ser possível trabalhar-se as 24 horas do dia, os sete dias da semana, todas as semanas – não apenas na do evento e dos ensaios, mas nas semanas anteriores, quando se constrói o cenário, quando se prepara o local do espetáculo”, explicou, em entrevista à televisão pública israelita KAN, o norueguês Jon Ola Sand, supervisor executivo da organização. “Lamento ter de o dizer, mas não há forma de realizar a Eurovisão sem se poder trabalhar também aos sábados. É absolutamente impossível, isso é fundamental para nós!”

Para os judeus, o período que decorre entre o pôr do sol de sexta-feira e o de sábado é dedicado a Deus, pelo que as obrigações profissionais devem ser evitadas. Os ultraortodoxos levam o preceito ao limite, recusando-se a conduzir um carro ou a enviar sms. Em novembro, o rabino Yaakov Litzman demitiu-se do cargo de ministro da Saúde, em protesto contra umas obras de reparação da linha ferroviária realizadas a um sábado. (A coligação governamental integra três partidos religiosos: Shas, Judaísmo da Tora Unida e Casa Judaica.)

Ativistas de mangas arregaçadas

Das três vezes que Israel venceu a Eurovisão — em 1978, 1979 e 1998 —, Jerusalém acolheu o espetáculo por duas vezes.

A exceção aconteceu após o triunfo em 1979: Israel fez saber que não conseguia financiar o festival dois anos seguidos e o evento realizou-se em Haia (Holanda).

A possibilidade de a Cidade Santa voltar a receber o Eurofestival, em maio do próximo ano, deixa antever uma grande politização do evento, em virtude do polémico reconhecimento de Jerusalém como capital do Estado de Israel por parte dos Estados Unidos. Se Jerusalém for a escolha da Eurovisão, será pois de prever uma maior contestação ao evento do que se for Telavive — ou não…

“Independentemente de onde se realizar, se a Eurovisão de 2019 for organizada pelo regime de apartheid de Israel, tem de ser boicotada para impedir cumplicidade e negócios com este regime e para evitar manchar a marca Eurovisão, de forma irreversível, com o registo chocante de Israel ao nível dos direitos humanos”, diz ao Expresso o palestiniano Omar Barghouti, cofundador do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). “O ponto-chave é que o Governo de extrema-direita de Israel está a tentar usar a Eurovisão descaradamente como parte da sua estratégia oficial [de promoção] da marca Israel. Netanyahu considerou Barzilai ‘a melhor embaixadora de Israel’. Está desesperadamente a tentar projetar a ‘cara linda de Israel’ para branquear e desviar as atenções de décadas de ocupação e de crimes de guerra contra os palestinianos.”

“Só no dia 14 de maio”, recorda Barghouti, vencedor do Prémio Gandhi da Paz de 2017 (concedido anualmente pelo Governo da Índia), “apenas dois dias após a vitória na Eurovisão, Israel massacrou 62 palestinianos em Gaza, incluindo seis crianças. Nessa mesma tarde, Netta Barzilai atuou num concerto comemorativo [da vitória] em Telavive, organizado pelo presidente da Câmara Municipal que afirmou: ‘Temos uma razão para estarmos felizes’.”

Nascido no Qatar em 1964, Barghouti diz que o movimento BDS já está a preparar uma campanha de boicote à Eurovisão em Israel. Vários apelos nesse sentido já soaram, entretanto. “Acho que a Irlanda não devia enviar um representante”, defendeu Micheal Mac Donncha, presidente da Câmara Municipal de Dublin. “A terrível provação do povo palestiniano tem de ganhar destaque.” Na Islândia, mais de 26.700 pessoas — 8% da população total (330.000 habitantes) — já assinaram uma petição no mesmo sentido.

Em maio passado, a participação de Israel no evento de Lisboa já tinha sido objeto de uma batalha fora de palco. O movimento BDS saiu a público com a campanha “Zero pontos para a canção do apartheid israelita”, que teve o resultado inverso ao pretendido, já que “Toy” foi a mais votada.

Barghouti desvenda a razão do fracasso: “O Governo israelita e organizações lobistas investiram muitos recursos humanos e fundos recordes em publicidade numa campanha de propaganda em toda a Europa para ganhar votos para a sua canção”, diz. “A bem oleada propaganda israelita recorreu ao ‘pinkwashing’ — o uso cínico dos direitos dos LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transexuais] para encobrir a ocupação e o apartheid de Israel — e apelou aos movimentos feministas ao mesmo tempo que deixou de enfatizar Israel na mensagem.”

Uma das plataformas ao serviço dessa estratégia foi a aplicação Grindr, “a maior app mundial para pessoas gay, bi, trans e queer”, criada pelo israelita Joel Simkhai.

Após o apuramento de “Toy” para a final, mal abriam a aplicação, os utilizadores começaram a ser surpreendidos com uma fotografia de Netta e o apelo ao voto na canção nº 22.

(Foto: De troféu na mão, Netta Barzilai atua no Altice Arena, em Lisboa, a 12 de maio de 2018, como a grande vencedora da 63ª edição do Festival Eurovisão da Canção ANDRES PUTTING / EUROVISION)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 7 de setembro de 2018. Pode ser consultado aqui