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Dia Internacional da Educação: Em Gaza, os livros são usados para acender fogueiras onde as pessoas cozinham e se aquecem

Na Faixa de Gaza, não há razões para celebrar o Dia Internacional da Educação, que se assinala esta sexta-feira. Escolas e universidades são alvos de guerra e, pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano. Asma Mustafa, uma professora de inglês que já se deslocou oito vezes, tenta contrariar as adversidades

Asma Mustafa é professora de inglês na Faixa de Gaza desde 2008 CORTESIA ASMA MUSTAFA

A guerra está a tornar a escola uma memória cada vez mais longínqua para centenas de milhares de jovens da Faixa de Gaza. Pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano.

A esmagadora maioria das escolas e universidades foram arrasadas e as que se aguentaram de pé deixaram de ser centros de estudo e transformaram-se em abrigos para deslocados.

Na ausência de educação formal, o conhecimento continua a transmitir-se graças a pessoas determinadas como Asma Mustafa. Esta professora de inglês de 38 anos, que até ao início da guerra trabalhava numa escola pública para raparigas, no norte de Gaza, desenvolveu uma iniciativa ao estilo de “primeiros socorros educativos”.

“A educação parou desde o 7 de Outubro e ninguém se preocupou mais com as crianças de Gaza. Fiquei muito inquieta pelo facto de os alunos ficarem sem aulas pelo segundo ano consecutivo. É algo muito difícil de aceitar para uma mãe e professora”, diz ao Expresso Asma Mustafa, mãe de duas meninas pequenas.

“Ao mesmo tempo, comecei a olhar à minha volta, nos abrigos e nos acampamentos de deslocados… As crianças estavam perdidas. Segui o meu coração e o meu dever, enquanto professora e mãe para com as crianças deslocadas que me rodeiam, e decidi tornar-me a escola delas”, partilha. “Assumi a responsabilidade de começar a ensiná-las de forma espontânea.”

A professora improvisa salas de aula em todos os locais para onde é deslocada
CORTESIA ASMA MUSTAFA

Cerca de um mês após o início da guerra, a professora empreendeu uma iniciativa educativa a que chamou “Uma História Por Dia”.

“Conto histórias às crianças, histórias com uma lição de vida ou uma mensagem. Histórias que lhes deem força e transmitam ensinamentos sobre a vida. Quero que essas histórias as levem a ter melhores comportamentos e a saber como solucionar problemas. Foco-me muito na resolução de problemas e nas competências para a vida.”

Além das histórias, Asma transmite-lhes conhecimentos básicos de inglês, árabe e matemática. Cria jogos, põe-nas a pintar e a desenhar, organiza atividades de grupo, dá-lhes dicas de higiene pessoal (quando doenças se espalham pelos acampamentos) e promove brincadeiras, para que as crianças façam alguma descarga emocional e lidem menos mal com a sua condição de deslocados.

“Às vezes, reúno-as à volta do meu leitor de MP3. Fico feliz quando elas saltam e começam a bater palmas. Sinto os seus batimentos cardíacos”, diz. Asma ensina-as a dançar a Dabkha, a dança tradicional palestiniana, inscrita, em 2023, na lista da UNESCO de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Tudo contribui para as ajudar a lidar com o trauma da guerra. “Elas ficam felizes por encontrar alguém que as possa ajudar, alguém que é líder, como um professor. Elas acreditam nos professores.”

As sessões são importantes para alhear as crianças do som das bombas, do zumbido dos drones, da omnipresença da guerra, dia e noite. Permitem também que convivam entre si, criem uma rotina e alimentem a esperança de que um dia possam voltar à escola.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

“Nas sessões, também as escuto”, acrescenta a professora. “Os meus alunos estão cheios de histórias e, nas tendas, os pais não têm tempo para os ouvir”, ocupados que estão a arranjar meios de sobrevivência.

As próprias crianças não são poupadas às tarefas de emergência. As horas que deviam passar na escola, são usadas a procurar lenha para as fogueiras, a carregar jerricãs de água ou à espera de comida em pontos de distribuição.

Muitas ficaram órfãs e passam a ser ‘mãe ou pai’ de irmãos mais novos. São obrigadas a tornarem-se adultos à força.

As “turmas” de Asma são compostas por crianças que vivem nas tendas em redor da sua. À semelhança da esmagadora maioria dos habitantes de Gaza, também ela teve de fugir da casa onde vivia, no norte do território. Fala ao Expresso a partir do campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza.

“Já me desloquei por oito vezes: duas para abrigos e seis para tendas. Já me desloquei quatro vezes dentro da mesma zona humanitária, como lhe chama Israel”, diz. “Já testemunhei sete guerras antes desta, mas nunca antes tive de sair de casa, a não ser no dia 7 de outubro de 2023.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

A cada nova etapa rumo ao desconhecido, Asma leva, junto com os pertences, o material educativo que consegue arranjar, por vezes comprado a preços elevados. Chegada a um novo destino, monta “a sua escola”.

“A vida é miserável. Perdemos as casas, perdemos tudo. Agora, para cozinhar, usamos lenha, papéis, tudo o que se consegue arranjar. Povos do mundo, acordem, em Gaza cozinhamos com fogo! Os livros que havia em Gaza foram queimados para as pessoas fazerem fogueiras e poderem cozinhar alimentos”, alerta a professora.

“Mas o mais importante para mim é continuar com as crianças à minha volta. Enquanto for viva, irei ensinar, haja ou não quadro, giz, papel ou lápis. O professor é a escola. O professor é o livro. O professor é a caneta.”

Os números da destruição

Segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), com data de 14 de janeiro, este é, até ao momento, o impacto da guerra no sector da educação:

  • 658 mil alunos não têm educação formal;
  • 12.241 estudantes e 503 funcionários educativos, incluindo professores, foram mortos;
  • 88% dos edifícios escolares (496 de um total de 564) foram destruídos ou parcialmente danificados;
  • 51 edifícios universitários foram destruídos e 57 danificados.

A 18 de abril de 2024, 25 relatores especiais das Nações Unidas expressaram grande preocupação com o padrão dos ataques a escolas, universidades, professores e estudantes, o que parecia configurar, nas suas palavras, “a destruição sistémica do sistema educativo palestiniano”.

Israel sempre rejeitou as acusações, acusando o Hamas de usar os estabelecimentos de ensino para atividades terroristas e a população estudantil como refém.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

Quaisquer que sejam as adversidades, e em Gaza são muitas, Asma Mustafa mantém um compromisso diário com a educação, por meio de métodos de ensino originais e inovadores.

No seu website, por exemplo, ela disponibiliza “45 estratégias inovadoras de ensino de inglês como língua estrangeira”. Nos tempos da pandemia de covid-19, promoveu a iniciativa “Teachers Behind Screens” (Professores atrás de ecrãs), para treinar professores para o ensino de forma virtual.

Com o projeto “I Believe I Can Fly” (Acredito que posso voar), pôs os alunos em contacto com dezenas de países. “As crianças não estão autorizadas a viajar devido ao cerco imposto a Gaza. Estão a perder a comunicação com todo o mundo.”

Em 2020, esta professora foi distinguida com o Global Teacher Award, atribuído pela organização privada indiana AKS (Alert Knowledge Services), que se dedica ao reconhecimento de “educadores excecionais pela eminência e eficácia do seu ensino, pela sua liderança especializada e pelo seu envolvimento com a comunidade”. Em 2022 foi considerada a melhor docente na Palestina.

Formada pela Universidade Islâmica de Gaza, Asma entrou para os quadros do Ministério da Educação em 2008, quando o Hamas já controlava o território.

“Dediquei-me a ensinar as crianças por meio de uma aprendizagem ativa. Quero ajudá-las a pensar de forma crítica e profunda e não apenas a receber informação dos professores, como acontecia comigo quando estudava. Achei que precisava de mudar o método tradicional com que recebi educação. Adoro ensinar com recurso a jogos e acredito nesse tipo de ensino. Quero que os cérebros dos meus alunos estejam frescos e capazes de pensar e repensar.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

O contexto em que se vive em Gaza nos últimos anos — sob bloqueio desde 2007 e, desde então, sob intensos bombardeamentos de Israel, por várias ocasiões —, condena as crianças e jovens a uma carência particular. “Há uma necessidade massiva dos alunos terem mais um amigo do que um professor”, diz Asma. “Decidi ser amiga deles. Em Gaza, as crianças acreditam nos professores.”

No ano em que Asma começou a trabalhar como professora, em 2008, Gaza passou por uma guerra com Israel. “Eu era jovem, tinha 21 anos e era muito próxima dos meus alunos. Após 21 dias de guerra, voltámos às escolas e foi pedido aos professores que se dedicassem à descarga emocional dos alunos. Jogamos, brincamos, deixamos as crianças fazer desenhos e contar as suas histórias para expressarem os sentimentos.”

A mesma tarefa parece agora ser mais difícil de concretizar. “Eu não esperava que a guerra durasse 15 meses. Ninguém esperava”, admite. Por todo o mundo, crises mostram que quanto mais tempo as crianças ficam fora da escola, maior é o risco de não regressarem.

Estima-se que, na Faixa de Gaza, mais de 40% da população tenha até 14 anos. Se continuarem privados de educação, um grande segmento da sociedade fica com o futuro em risco. “Deixar de estudar durante algum tempo torna-se um grande problema. Se a guerra continuar, também o futuro da Palestina ficará perdido.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Cessar-fogo em Gaza e retaliação do Irão a Israel: as duas frentes de um jogo perigoso

As negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, previstas para quinta-feira, são uma prova de fogo para o Irão: uma trégua pode fazer abortar o prometido ataque contra Israel, em retaliação pelo assassínio do líder do Hamas em Teerão. Em cima da mesa das conversações está um plano em três fases, apresentado por Joe Biden, que, pela primeira vez em dez meses de guerra, propõe uma “cessação permanente das hostilidades”

A região do Médio Oriente vive dias profundamente contraditórios em que tanto se fala de um iminente ataque do Irão contra Israel como de negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. A verdade é que a conclusão do segundo processo — a trégua em Gaza — pode determinar a ocorrência do primeiro — a retaliação iraniana contra Israel.

Israel e o Hamas estão convocados para nova jornada de negociações indiretas, agendadas para esta quinta-feira. Sobre a mesa está um plano que, pela primeira vez, aborda uma “cessação permanente das hostilidades”, incluindo a retirada israelita de Gaza e a libertação dos reféns.

“Concordamos que não pode haver mais atrasos”, defenderam o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, numa declaração conjunta divulgada na segunda-feira.

A concretizarem-se, serão as primeiras negociações com Yahya Sinwar na liderança do Hamas, a partir dos túneis de Gaza. Até recentemente, o interlocutor era Ismail Haniyeh, exilado no Catar, que foi assassinado em Teerão, a 31 de julho, num atentado atribuído a Israel, embora não reivindicado pelo Estado hebraico.

Porquê negociar agora?

A guerra em Gaza dura há mais de dez meses, o território está cada vez mais inabitável, o número de mortos entre a população civil não cessa de aumentar e os reféns israelitas tardam em regressar a casa. Paralelamente, a região está cada vez mais perto de uma guerra generalizada.

Na semana passada, os mediadores Catar, Egito e Estados Unidos instaram Israel e o Hamas a retomarem as discussões, a 15 de agosto, no Cairo ou em Doha, para discussão de um “acordo-quadro” cuja finalização está presa “apenas pelos detalhes”.

“Não há mais tempo a perder nem desculpas de qualquer das partes para mais atrasos. É tempo de libertar os reféns, iniciar o cessar-fogo e aplicar este acordo”, defenderam os presidentes Joe Biden (Estados Unidos), Abdel Fattah el-Sisi (Egito) e o emir Tamim bin Hamad Al Thani (Catar), num comunicado conjunto de 8 de agosto.

Em cima da mesa está uma proposta apresentada pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a 31 de maio, numa intervenção a partir da Casa Branca. “Depois de intensa diplomacia levada a cabo pela minha equipa e das minhas muitas conversas com os líderes de Israel, Catar, Egito e outros países do Médio Oriente, Israel apresentou uma nova proposta abrangente. É um roteiro para um cessar-fogo duradouro e para a libertação de todos os reféns. Esta proposta foi transmitida pelo Catar ao Hamas.”

A data das negociações poderá não ser inocente. Na próxima segunda-feira, nos Estados Unidos, arranca, em Chicago, a convenção do Partido Democrata que deverá confirmar o ticket Kamala Harris-Tim Walz na corrida à Casa Branca. Como ficou visível na recente visita a Washington do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a questão palestiniana divide fortemente o Partido Democrata.

Um eventual acordo de cessar-fogo seria uma grande vitória para Biden e para a sua “diplomacia paciente”, como lhe chamou o jornal americano “The Washington Post”. O Presidente dos Estados Unidos tem tentado equilibrar o papel do seu país como pacificador do Médio Oriente, enquanto mantém apoio incondicional a Israel.

Que plano está na mesa do diálogo?

A proposta que israelitas e Hamas têm em mãos vai além das anteriores. Pela primeira vez, aborda um cenário de fim da guerra, uma “cessação permanente das hostilidades”, que inclui a retirada militar israelita completa da Faixa de Gaza e o regresso de todos os reféns vivos. Em concreto, prevê três fases.

FASE 1 — Decorreria durante seis semanas e passaria por um cessar-fogo “total e completo”, retirada das forças israelitas de “todas as zonas povoadas” da Faixa de Gaza, libertação de reféns – incluindo mulheres, idosos e feridos – em troca da libertação de centenas de prisioneiros palestinianos. Civis palestinianos seriam autorizados a regressar a casa “em todas as áreas de Gaza”, incluindo ao norte do território. Haveria um aumento da ajuda humanitária, com a previsão de 600 camiões a entrar diariamente em Gaza. Centenas de milhares de abrigos temporários seriam fornecidos pela comunidade internacional.

FASE 2 — Haveria uma troca de prisioneiros que permitiria a libertação dos restantes reféns vivos, incluindo os soldados do sexo masculino. As forças israelitas retirar-se-iam de Gaza e “desde que o Hamas cumpra os seus compromissos”, o cessar-fogo temporário evoluiria — “nas palavras da proposta israelita”, enfatizou Biden — para uma “cessação permanente das hostilidades”.

FASE 3 — Teria início um grande projeto de reconstrução de Gaza. Os restos de reféns mortos seriam devolvidos às famílias.

    Este plano foi confirmado pela resolução 2735 do Conselho de Segurança, a 10 de junho passado, com 14 votos a favor e abstenção da Rússia.

    Como reagiu o Hamas à proposta?

    A 2 de julho, o Hamas respondeu positivamente ao plano de cessar-fogo anunciado por Biden, abdicando da exigência que vinha fazendo no sentido de um cessar-fogo total e permanente antes de se comprometer com qualquer acordo. Passado mais de um mês, o grupo jiadista defende que as negociações previstas para esta semana devem ser retomadas com base na proposta apresentada por Biden e no ponto do seu ‘sim’ dado em julho.

    O Hamas receia que, assim que as negociações forem retomadas, Israel possa apresentar novas condições. O grupo palestiniano diz ter demonstrado flexibilidade, mas que Israel não revela seriedade na vontade de alcançar uma trégua. Estas dúvidas tornam a presença de uma delegação do Hamas incerta nas negociações desta semana.

    “O que obstrui o sucesso da última proposta é a ocupação israelita”, disse Jihad Taha, porta-voz do Hamas. “Preencher as restantes lacunas no acordo de cessar-fogo passa por exercer pressão real sobre o lado israelita, que estava, e ainda está, a praticar uma política de colocação de obstáculos no caminho do êxito de quaisquer esforços que levem ao fim da agressão.”

    Que defende Israel?

    Israel anuiu ao envio de uma equipa de negociadores às conversações desta semana. Mas no país, a resistência a um entendimento com o Hamas é forte, a começar pelo próprio primeiro-ministro, que sempre defendeu que não aceitaria um acordo que estipulasse o fim da guerra sem a derrota total do Hamas. “O objetivo é o regresso dos reféns e desenraizar o regime do Hamas em Gaza”, defende Netanyahu.

    Segundo um artigo publicado, esta terça-feira, pelo jornal americano “The New York Times”, documentos que detalham as mais recentes posições negociais revelam que “Israel foi menos flexível nas recentes negociações de cessar-fogo em Gaza” e que “fez cinco novas exigências”.

    Dois exemplos: Israel exigiu que as suas forças continuem a controlar a fronteira sul da Faixa de Gaza (o Corredor Philadelphi, junto ao Egito) e impôs restrições ao regresso de deslocados palestinianos à parte norte do território, o que não constava na proposta apresentada por Biden. Segundo a imprensa israelita, a introdução de novas exigências foi feita por Netanyahu. Na prática, contribuem para sabotar a proposta de cessar-fogo, o que originou um braço de ferro entre o primeiro-ministro e a sua equipa de negociadores.

    Na semana passada, o jornal digital israelita “The Times of Israel” descreveu discussões acaloradas entre responsáveis políticos e da área da segurança israelitas a propósito da proposta de cessar-fogo. “Altos funcionários, incluindo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e o chefe das FDI [Forças de Defesa de Israel], Herzi Halevi, terão dito […] ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que a sua insistência em novos termos sabotaria o acordo de cessar-fogo e a libertação de reféns em negociação, levando o primeiro-ministro a afirmar que foi o Hamas, e não ele, a introduzir novas exigências”, relata a publicação.

    Outra altercação descrita por “The Times of Israel” envolveu o chefe da Mossad, que tem liderado as negociações por parte de Israel. David Barnea terá dito, numa reunião com o primeiro-ministro, que há um acordo pronto e que Israel deve aceitá-lo. “Você é fraco!”, terá gritado Netanyahu. “Não sabe como conduzir uma negociação difícil. Está a pôr palavras na minha boca. Em vez de pressionar o primeiro-ministro, pressione Sinwar.” Segundo o jornal, posteriormente, o gabinete do primeiro-ministro negou a afirmação.

    A imprensa israelita escreve que, além do líder da Mossad, são favoráveis a um acordo de cessar-fogo o chefe das FDI, Herzi Halevi, e Ronen Bar, chefe do Shin Bet, a agência interna de segurança de Israel. Para os três, dez meses de uma guerra intensa em Gaza infligiram danos suficientes à capacidade militar do Hamas.

    Outro crítico da atuação de Netanyahu no atual contexto é Benny Gantz, que abandonou o gabinete de guerra em junho em rota de colisão com o primeiro-ministro e que o acusa de dar prioridade à sobrevivência do seu governo em detrimento do resgate dos reféns. “A segurança de Israel durante a campanha mais difícil da sua história tornou-se vítima de caprichos políticos”, disse Gantz, veterano militar tornado político centrista.

    Há relação entre estas negociações e o esperado ataque do Irão a Israel?

    São, basicamente, duas faces de uma mesma moeda. Esta terça-feira, a agência Reuters avançou que “só um acordo de cessar-fogo em Gaza decorrente das negociações esperadas para esta semana impediria o Irão de retaliar diretamente contra Israel”. A convicção decorre de afirmações de “três altos funcionários iranianos”.

    Para o Irão, não retaliar o atentado que vitimou o líder do Hamas, em território iraniano, será admitir fraqueza. Haniyeh estava no Irão a convite do regime, assistira nesse dia à tomada de posse do Presidente Masoud Pezeshkian e ficara alojado numa casa controlada pelos Guardas da Revolução, onde foi morto. Teerão atribui o ataque a Israel.

    Por outro lado, o regime dos ayatollahs está consciente que esse atentado adicionou complexidade a quaisquer negociações com vista a um cessar-fogo em Gaza. Se o Irão retaliar sobre Israel, não só se arrisca a destruir as hipóteses de um cessar-fogo como potencia uma guerra alargada na região.

    Em Teerão, ações como o atentado que vitimou Haniyeh ou, noutra escala, bombardeamentos como o de sábado, que visou uma escola transformada em abrigo para deslocados, na cidade de Gaza, são “armadilhas” de Netanyahu para arrastar o Irão para uma guerra mais ampla, em especial à medida que aumenta a pressão para um cessar-fogo.

    As opções do Irão são limitadas. A aliança dos Estados Unidos com Israel dissuade a República Islâmica de avançar para ações maiores, diretamente ou por procuração. E a continuação dos combates em Gaza corre o risco de contaminar o Líbano e resultar numa derrota do Hezbollah, o aliado mais importante do Irão.

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de agosto de 2024. Pode ser consultado aqui

    Nações Unidas querem investigar valas comuns descobertas em Gaza

    Descoberta de centenas de corpos enterrados em dois dos maiores hospitais levanta novas suspeitas de crimes de guerra

    O horror na Faixa de Gaza parece não ter fim. Terça-feira, as Nações Unidas pediram “uma investigação clara, transparente e credível” às valas comuns descobertas em dois dos maiores hospitais no território palestiniano — o Al-Shifa, na cidade de Gaza (centro), e o Nasser, em Khan Yunis (sul). A descoberta foi possível após a retirada das tropas israelitas e a entrada no terreno de equipas da proteção civil palestiniana. “Dado o clima de impunidade prevalecente, isto deveria incluir investigadores internacionais”, defendeu o austríaco Volker Türk, alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Os hospitais estão abrangidos por uma proteção muito especial ao abrigo do direito internacional humanitário. O assassínio intencional de civis, detidos e outras pessoas que estão ‘fora de combate’ é crime de guerra.”

    As duas unidades de saúde foram palco de operações de forças especiais de Israel, que acusa o Hamas de ocultar infraestruturas terroristas nos hospitais. A ONU fala de centenas de corpos “enterrados profundamente no solo e cobertos de resíduos” e outros “despidos e com as mãos amarradas”. No hospital Nasser, em Khan Yunis, foram recuperados 283 cadáveres.

    Jornalistas fazem falta

    As Forças de Defesa de Israel rejeitaram as alegações de enterros em massa e possíveis execuções dentro de hospitais. Admitiram ter matado e detido centenas de militantes do Hamas nos dois complexos hospitalares e ter procedido à exumação “seletiva” de cadáveres enterrados previamente pelos palestinianos, para tentar encontrar reféns levados pelos jiadistas a 7 de outubro. “Os exames foram feitos de forma cuidadosa e exclusivamente em locais onde os serviços de informação indicaram a possível presença de reféns, com base em dicas fornecidas por reféns previamente libertados. Foram realizados com respeito, mantendo a dignidade do falecido”, afirmou o exército israelita.

    Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, António Guterres, realçou que a descoberta de valas comuns “é outra razão por que precisamos de um cessar-fogo” e de “maior acesso por parte dos [funcionários] humanitários”. Dujarric alertou ainda para o bloqueio à informação em relação ao que se passa em Gaza e que resulta numa deficiente cobertura noticiosa da guerra. “Precisamos de mais jornalistas com a possibilidade de fazer o seu trabalho em Gaza com segurança e contar os factos”, disse. A guerra já dura há mais de meio ano e parece estar longe do fim. Israel tem iminente uma ofensiva na zona de Rafah (sul), onde está concentrada a maioria da população do território.

    (FOTO Deslocação de populações em Gaza JABER JEHAD BADWAN / WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

    A luta de Leah Goldin para resgatar o filho morto em Gaza há dez anos: “Não quero que ninguém morra à fome, só quero trazer Hadar para casa”

    A 1 de agosto de 2014, numa outra guerra na Faixa de Gaza, entre Israel e o Hamas, um soldado israelita foi levado através de um túnel após sofrer uma emboscada. Desde então, a sua família tem-se feito ouvir em instituições de poder — das Nações Unidas ao Vaticano, do Parlamento Europeu ao Congresso dos Estados Unidos — pedindo que obriguem o Hamas a devolver os seus restos mortais. A mãe de Hadar Goldin relata ao Expresso os esforços feitos para que o resgatem e possam fazer um enterro digno

    Leah (ao centro), acompanhada pelo filho Tzur e pelo marido Simha, numa ação de sensibilização, em Kfar Saba. Nas ‘t-shirts’, fotos de Hadar e Oron JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

    A dor da perda de um filho, em circunstâncias especialmente angustiantes, tornou Leah Goldin uma paladina dos direitos humanos. Vai para dez anos que Israel travava outra guerra na Faixa de Gaza quando uma emboscada levada a cabo por militantes do Hamas, surgidos de um túnel subterrâneo, na zona de Rafah, surpreendeu três soldados israelitas. Mataram dois e arrastaram consigo um terceiro. Era Hadar Goldin, filho de Leah que, dez anos depois, não tem certeza se foi levado vivo ou morto.

    Em entrevista ao Expresso, esta israelita de 68 anos descreve o momento em que a vida da família ficou virada do avesso. “A nossa viagem começou a 1 de agosto de 2014. Decorria a operação ‘Barreira de Proteção’ e dois filhos meus, os gémeos Hadar e Tzur, participaram juntos.” Tinham 23 anos.

    “Tzur comandava uma força de salvamento, entrava e saía de Gaza para resgatar companheiros [das Forças de Defesa de Israel (FDI)], uns feridos, outros mortos, muitos deles amigos. Também resgatou umas dezenas de palestinianos, apanhados no meio do fogo, usados pelo Hamas como escudos humanos. Quando lhe perguntava porque o fazia, ele respondia: ‘Mãe, não pode ser de outra forma…’”, recorda.

    “Ao mesmo tempo, o seu irmão gémeo, Hadar, fazia parte de uma unidade de elite — a Brigada Givati — que guardava o corpo de engenharia que participava na destruição dos túneis subterrâneos. Depois da guerra, descobrimos que, [no momento da emboscada a Hadar], estavam a 400 metros de distância um do outro.”

    Hadar Goldin nasceu a 18 de fevereiro de 1991. Quando morreu, tinha casamento marcado para dali a um mês AFP / GETTY IMAGES

    Naquele 1 de agosto, iniciava-se uma trégua de 72 horas, anunciada por Estados Unidos e Nações Unidas. “Duas horas após ser declarada, o Hamas violou o cessar-fogo e atacou a equipa de Hadar. Ele era muito magro, foi levado pelo túnel. Um amigo colocou a sua vida em perigo e, contra os procedimentos, entrou no túnel e encontrou a camisa de Hadar com sangue, o seu tzitzit e o seu livro de orações”, recorda Leah.

    “Procuravam um soldado ferido, mas 36 horas depois, as FDI declararam que as provas forenses recolhidas da sua roupa indicavam que não havia possibilidade de que pudesse estar vivo. Convenceram-nos a fazer o funeral. Digo ‘convenceram-nos’ porque hoje não tenho a certeza do que aconteceu… O que posso dizer é que aquilo que enterrámos foi a prova de que ele foi sequestrado, porque Hadar está nas mãos de Yahya Sinwar, o terrorista que mais sofrimento nos causa.”

    Yahya Sinwar é o atual líder do Hamas na Faixa de Gaza, considerado o cérebro do ataque do Hamas de 7 de outubro. A 13 de fevereiro, as FDI divulgaram um vídeo identificando-o dentro de um túnel, nos primeiros dias da guerra. As autoridades israelitas acreditam que, atualmente, possa estar escondido na zona de Rafah (sul), onde Israel tem iminente uma ofensiva militar.

    Adeus a um corpo distante

    A 3 de agosto de 2014, dezenas de milhares de pessoas despediram-se de Hadar Goldin, numa cerimónia realizada no cemitério de Kfar Saba, a cidade onde ainda hoje vive a família, na região de Telavive. “Enquanto Tzur fazia a coisa mais humanitária que era resgatar palestinianos, as mesmas pessoas violaram o cessar-fogo humanitário, sequestraram o irmão e recusaram-se a devolvê-lo para que fosse feito um enterro digno na sua terra natal”, lamenta Leah.

    “Agora atente nisto: Tzur foi chamado para resgatar Hadar, enquanto responsável pela força de salvamento. Claro que quando chegou ao local foi mandado para casa.” Tzur não sabia que o soldado levado pelo Hamas era o irmão.

    O funeral de Hadar Goldin realizou-se a 3 de agosto de 2014, em Kfar Saba, com honras militares e uma multidão em choque ILIA YEFIMOVICH / GETTY IMAGES

    Vergados à dor da perda de um dos seus, em circunstâncias tão angustiantes como imaginar o tratamento que lhe terá sido infligido por terroristas, os Goldin demoraram algum tempo a reagir. Até ao dia em que se cruzaram com Irwin Cotler, um antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá que defendeu prisioneiros políticos como o russo Andrei Sakharov e o sul-africano Nelson Mandela. Nascido em 1940, no seio de uma família judia, Cotler dispôs-se a defender Hadar pro bono.

    “Hadar foi morto numa violação de um cessar-fogo. Uma vez que a trégua tinha sido mediada pelos Estados Unidos, pelas Nações Unidas e recebera o apoio da União Europeia, todos eles tinham de assumir responsabilidade em relação ao regresso do meu filho”, explica Leah. “Era esse o nosso sentimento enquanto família. Tínhamos esperança que a comunidade internacional nos ajudasse a trazer o nosso rapaz para casa.”

    A cruzada dos Goldin levou-os ao Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas, a 22 de dezembro de 2017, quando este órgão acolheu uma reunião em formato “fórmula Arria”, convocada por um dos seus membros e realizada em registo informal.

    Enquanto Leah prestou depoimento sobre o caso do filho, Cotler fez o enquadramento jurídico e também do de outro soldado israelita — Oron Shaul — levado para Gaza nas mesmas circunstâncias de Hadar, noutro incidente duas semanas antes.

    Leah Goldin entre o secretário-geral da ONU, António Guterres, e o Presidente de Israel, Isaac Herzog, numa visita posterior à sede da ONU, a 20 de julho de 2023 LEV RADIN / GETTY IMAGES

    “Nas Nações Unidas, Irwin Cotler fez uma coisa espantosa. Mostrou que o rapto de Hadar Goldin e Oron Shaul e a recusa em devolvê-los para que fosse feito um enterro digno é uma flagrante violação do direito internacional humanitário. Há todo um capítulo que fala de mortos, de raptos de pessoas indefesas, de pessoas desaparecidas, de recusa em entregar o corpo às famílias para seja feito um enterro digno, de maus tratos e dignidade humana”, enumera a israelita.

    A sessão no CS realizou-se a três dias do Natal. Leah não acreditava que houvesse grande afluência àquela audiência, mas enganou-se. “Havia representantes de 40 países, a maioria politicamente contra Israel. No fim, houve um consenso de que Hadar e Oron deviam regressar imediata e incondicionalmente.” O trabalho frutificou. A 11 de junho de 2019, o CS aprovou, por unanimidade, a sua primeira resolução sobre pessoas dadas como desaparecidas durante conflitos armados (resolução 2474).

    Na mesma linha, a 18 de janeiro de 2024, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução apelando “a um cessar-fogo permanente [na Faixa de Gaza] e ao reinício dos esforços no sentido de uma solução política, desde que todos os reféns sejam imediata e incondicionalmente libertados”. “Isto mostra que estamos certos na nossa luta, a lei está do nosso lado”, diz Leah.

    À esquerda, Leah e o marido, Simha, numa reunião no Parlamento Europeu, a 20 de junho de 2018, sobre o caso humanitário de Hadar Goldin © EUROPEAN UNION 2018 – SOURCE : EP

    Oficialmente, Israel reconhece a existência de 133 israelitas cativos do Hamas. Teme-se que a maioria não esteja viva. Hadar Goldin e Oron Shaul são dois dos nomes. Da lista fazem parte também dois civis: Avraham “Avera” Mengistu, um israelita nascido na Etiópia, com problemas mentais, que entrou em Gaza por vontade própria em setembro de 2014, e Hisham al-Sayed, um israelita árabe beduíno, raptado em 2015.

    Leah, que se descreve como uma mulher religiosa, tem fé que todos sejam devolvidos às famílias sem pôr em risco mais vidas de soldados. Essa crença, e a busca desesperada por atalhos que tragam o corpo do filho até si, levou esta judia a pedir ajuda ao Papa Francisco.

    “Os líderes religiosos têm muitas ligações. Mesmo o Hamas, que grita ‘Allahu Akbar’ quando nos vem matar, é permeável a alguma influência religiosa. Temos de encontrar um caminho…”, diz. “Trazer o meu filho para lhe fazer um enterro digno é uma questão puramente religiosa e moral, de acordo com todas as religiões.”

    A 21 de dezembro de 2022, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, uma delegação de representantes dos quatro israelitas levados pelo Hamas em 2014-15. “Preparei-me para aquele momento”, recorda Leah. “O que é que eu ia dizer ao Papa? Acabei por falar-lhe de duas coisas. Primeiro, da Pietà [a famosa escultura de Miguel Ângelo que representa Jesus morto nos braços de sua mãe]. Depois, disse-lhe que, sendo ele oriundo da Argentina, percebia melhor a dor de uma mãe após o desaparecimento de um filho. No final do encontro, ele veio falar comigo e disse que é uma obrigação devolver um filho a uma mãe para ser enterrado.”

    Meses depois, o Papa fez chegar aos Goldin, através do arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, um relatório de página e meia sobre as diligências feitas junto de vários países. “Ele disse que apesar de ter obtido reações de indiferença, não ia desistir.”

    Leah (de camisola amarela) está à direita do Papa Francisco EMBAIXADA DE ISRAEL NA SANTA SÉ

    A 16 de julho de 2008, numa polémica troca de prisioneiros entre Israel e o grupo armado libanês Hezbollah, Israel libertou cinco prisioneiros (entre os quais Samir Kuntar, condenado por terrorismo e assassínio) e devolveu os corpos de 199 militantes do Hezbollah. Em troca, recebeu dois caixões com os restos de dois soldados (Ehud Goldwasser e Eldad Regev), que tinham sido raptados pelo Hezbollah, a 12 de julho de 2006. Este caso precipitou o início da guerra de 34 dias entre Israel e o Hezbollah no verão de 2006.

    Hadar e Oron nunca foram objeto de um processo semelhante. “O meu marido é historiador e sempre diz que não se pode usar métodos de uma guerra passada numa guerra futura, porque o contexto é diferente. Temos feito essa pergunta ao longo dos anos. Mas as pessoas são diferentes…”

    O negócio dos mortos

    A 8 de julho de 2015, o jornal israelita “The Jerusalem Post” noticiava uma tentativa de contacto com o Hamas por parte de “um mediador europeu”, em nome do Governo de Israel, com vista à “abertura de um canal de comunicação” para resgatar os dois corpos.

    O Hamas recusou discutir o assunto até que Israel libertasse um conjunto de detidos. Estes tinham sido libertados em troca do militar israelita Gilad Shalit, que esteve cativo em Gaza entre 2006 e 2011, mas, entretanto, Israel tinha-os prendido novamente. “É inacreditável o quão cínico o Hamas pode ser para negociar os mortos…”, diz Leah Goldin.

    A 19 de julho de 2023, Leah Goldin foi ovacionada numa sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos, em Washington DC, em que discursou o Presidente israelita, Isaac Herzog BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / GETTY IMAGES

    Leah pede que não falemos de política, mas vai dizendo que Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro que assumiu o cargo pela primeira vez em 2009, não é mais o mesmo. “Todo o Governo é composto por pessoas que perderam os seus valores religiosos, humanitários, morais… Só pensam no seu benefício político. Esta é a nossa maior dor. E agora não somos só nós, são as famílias dos reféns e das pessoas assassinadas.”

    A israelita acredita que se os casos de Hadar e Oron tivessem sido resolvidos, o ataque do Hamas de 7 de outubro nunca teria acontecido. “Enquanto o Hamas não os devolver, nós vamos ceder ao terrorismo, e eles ganham. Se tiverem sucesso nalgumas ações, vão continuar. O Hamas devia saber que manter reféns não é um trunfo, mas antes que tem um custo. Pensariam duas vezes antes de fazer outro sequestro”, diz.

    “E depois de terem conseguido trocar reféns, fazem uma seleção, como na idade das trevas. É o método terrorista, deixam os mortos para o fim para os tornar um ativo melhor. Por isso, encontram legitimidade para matar mais. Temos de pensar ao contrário. O grande erro é usarmos a nossa lógica e os nossos valores na discussão com eles. Eles são terroristas.”

    Para Leah, o compromisso com o imperativo humanitário passa também por garantir que quem recebe apoio cumpre a lei. Caso contrário, os doadores tornam-se cúmplices e também devem ser responsabilizados. Quando a União Europeia ajuda Gaza, por exemplo, tem de exigir um retorno.

    “Não, nós não queremos deixar o povo de Gaza morrer à fome. Eu só quero trazer o meu filho para casa. E isso não custa dinheiro. É só uma questão de seriedade, de comportamento e de diálogo”, diz. “Nós estamos certos. Temos formas de trazer o nosso filho sem guerra, porque as bombas não resolvem problemas humanitários e os reféns são assuntos humanitários.”

    Apontar o dedo às famílias dos reféns

    O 7 de outubro uniu a dor dos Goldin à de centenas de outras famílias que viram parentes seus serem levados pelo Hamas. Mas atualmente, em Israel, nem todos são empáticos com as famílias dos reféns. Muitos culpam-nos de contribuir para um custo pesado que é a libertação de terroristas.

    “Sentimos a palavra ‘custo’ como uma dor”, diz Leah. Os Goldin têm-se privado de participar em manifestações. “Jamais tomaremos parte por qualquer lado político. Somos apenas parte das famílias de reféns que agora são atacadas, o que é inacreditável. Mas não estou preocupada, porque o Governo sugeriu que as famílias dos reféns são de esquerda e os soldados mortos são de direita, portanto estou em ambos. É só estúpido.”

    Familiares de Hadar, Oron, Mengistu e Al-Sayed, em frente à sede do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em Genebra, a 5 de julho de 2023 GABRIEL MONNET / AFP / GETTY IMAGES

    Leah Goldin é doutorada em Ciência da Computação pelo prestigiado Technion (Instituto de Tecnologia de Israel), de Haifa. Dá aulas na Faculdade de Engenharia Afeka, de Telavive, e trabalha como consultora independente para vários tipo de indústrias, como a de Defesa.

    Além dos gémeos Hadar e Tzur, tem uma filha (Ayelet) e mais outro filho (Hemi). Tem 10 netos. O marido, Simha, é professor no Departamento de História Judaica da Universidade de Telavive.

    Nos últimos dez anos, “muita gente abraçou-nos, enxugou as nossas lágrimas e disse que rezava por nós. Disseram que se identificavam com a nossa situação, mas isso é impossível”, conclui Leah Goldin.

    “O problema é que ao longo do caminho — um longo caminho de nove anos e oito meses — aprendemos que muita gente, principalmente decisores, em Israel e em todo o mundo, deixaram para trás os seus valores. Direitos humanos são apenas palavras, não são uma ação. E o mais frustrante é que os interesses políticos governam tudo. Não é o ser humano que esses líderes procuram ajudar. É muito frustrante. Somos humanos, estamos perdidos, ficamos para trás.”

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

    “A esperança e a alegria questionam o modelo de opressão de Israel.” Em Gaza, há palhaços a tentar animar quem tudo perdeu

    Num território destruído e massacrado, como é hoje a Faixa de Gaza, o combate ao medo e ao trauma, sobretudo junto das crianças, passa muito pela tontice dos palhaços. Em entrevista ao Expresso, o galego Iván Prado, referência mundial do circo solidário, fala da intervenção da sua associação, Palhaços em Rebeldia, nos territórios palestinianos. Recorda um episódio antigo em Gaza que lhe despertou a consciência de que o palhaço é um interlocutor da parte da humanidade “que não se deixa vencer pelas bombas”

    Na Faixa de Gaza, o sorriso é uma arma, ainda que ali não haja atualmente motivos para sorrir. No sul daquele território palestiniano, consumido por uma guerra sem trégua vai para quatro meses, uma brigada de “capacetes azuis do riso” desloca-se entre escolas e acampamentos de tendas, onde vivem amontoadas milhares de pessoas que ficaram sem teto.

    Estes saltimbancos são habitantes de Gaza, com formação na área das artes circenses. Eles próprios foram afetados e deslocados pelo conflito. “Desde a primeira semana de guerra, temos trabalhado com as crianças, para aliviar o seu sofrimento. Temos esse dever humanitário e profissional para com elas”, diz ao Expresso Majid Elmosalami, coordenador das atividades. “Temos feito muitas atuações em escolas-abrigo e em tendas para refugiados. As pessoas acreditam que são sítios seguros, mas a verdade é que não são.”

    Os animadores são alunos e formadores da Gaza Stars Circus School, uma escola de circo estabelecida em 2014, em Beit Lahia, no norte do território. Esta região foi o alvo prioritário dos bombardeamentos e da posterior ofensiva terrestre das forças israelitas. “Não sabemos se a nossa sede foi atingida, mas temos a certeza de que perdemos tudo nesta guerra”, continua o responsável.

    Junto dos deslocados, os artistas começam por realizar atividades descontraídas, jogos de grupo e pinturas faciais para criar um clima de diversão. Depois assumem o protagonismo e fazem alguns números de circo, da forma mais criativa possível, tendo em conta o escasso material que têm ao dispor.

    A arrecadação onde guardavam os acessórios para as atuações ficava numa escola que foi bombardeada. Com tudo reduzido a cinza, estes voluntários socorrem-se da criatividade. Procuraram materiais intactos e ferramentas caseiras nas ruas e entre escombros e construíram massas, bolas e arcos com as próprias mãos. O vídeo abaixo mostra como.

    FALTA VÍDEO

    A técnica do improviso não é nova para estes artistas. Por causa do bloqueio à Faixa de Gaza, imposto por Israel e pelo Egito desde 2007, estão impedidos de receber determinado tipo de materiais.

    “Não há ninguém nem nenhum sector que não tenha sido afetado por esta guerra. Aconteceu também na área do entretenimento. Perdemos todo o equipamento de circo que recolhemos junto dos nossos amigos estrangeiros durante os últimos dez anos”, diz Majid Elmosalami.

    A escola ficou também sem o circo móvel, destruído num bombardeamento. Este miniautocarro, destinado a levar animação — e, com isso, apoio psicológico e psicossocial — às zonas mais devastadas de Gaza, tinha sido adquirido há pouco mais de dois anos na sequência de uma campanha de crowdfunding promovida por um dos principais parceiros: o coletivo espanhol Palhaços em Rebeldia.

    CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

    Esta associação cultural com sede em Pontevedra, na Galiza, que encara a figura do palhaço e as artes circenses no geral como antídotos para as desigualdades, as injustiças, a dor e o sofrimento, tem um compromisso especial com a Palestina. “Temos uma relação de vários anos com a Gaza Stars Circus School” diz Iván Prado, o palhaço que fundou e dirige a organização, em entrevista ao Expresso.

    “Visitámo-los, fazemos atuações conjuntas e damos-lhes formação. Mas fundamentalmente damos-lhes apoio económico para que possam andar pelas escolas das Nações Unidas. Neste momento, estão a trabalhar sobretudo em Khan Yunis e Rafah [no sul da Faixa de Gaza]. Também querem dar apoio humanitário — roupa, comida, medicamentos —, por isso estamos a fazer uma campanha para angariar mais dinheiro.”

    CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

    Nascido em Lugo, em 1974, Iván Prado é uma referência mundial do circo solidário. Esse percurso internacional levou um forte impulso precisamente na Palestina, em 2002, estava Gaza ainda sob ocupação israelita e, também na Cisjordânia, as ruas estavam tomadas pela segunda Intifada (revolta palestiniana). “Descobrimos a importância da alegria e do mundo dos palhaços — a palhaçaria — para as populações que sofriam, após bombardeamentos constantes. Éramos três palhaços e fizemos 28 espetáculos em 22 dias, por toda a Cisjordânia e em Gaza.”

    Nessa primeira imersão palestiniana, constataram a esperança que o simples abraço de um palhaço pode provocar. Em Gaza, na zona de Erez, quando estavam prestes a iniciar um espetáculo, no pátio de uma escola, começou um bombardeamento israelita não muito longe dali. “As crianças puseram-se de pé a cantar e a bater palmas para tentar abafar o som das bombas e incentivar os palhaços a atuarem. Preferiam ficar a assistir ao espetáculo, em vez de fugirem e esconderem-se das bombas”, recorda.

    CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

    Este episódio marcou Iván até hoje. “Levou-me a tomar consciência de que o palhaço é um interlocutor dessa parte da humanidade que crê na esperança e no ser humano e que não se deixa vencer pelo medo, pelo terror ou, neste caso, pelas bombas.”

    Se, em contexto bélico, o palhaço pode ser uma “arma de diversão maciça”, como defende a Palhaços em Rebeldia, pode também tornar-se um alvo. Foi o que aconteceu com o galego, em 2010, noutra viagem aos territórios palestinianos: foi detido pelas autoridades de Israel e interrogado durante mais de cinco horas.

    “Disseram de tudo, que eu tinha o número de um terrorista no meu telefone, que me recusei a colaborar com eles, na realidade queriam que abrisse o meu correio eletrónico num computador do Shin Bet [serviço de segurança interna de Israel], o que é ilegal”, conta. “Mas acima de tudo não queriam que fizéssemos um festival de palhaços, porque para eles a esperança e a alegria é algo que questiona o seu modelo de opressão.”

    Passou uma noite numa prisão em Telavive e foi deportado “por razões de segurança”. O ‘caso do palhaço preso’ teve ampla difusão mediática. Apesar de expulso, o espanhol conseguiu voltar à Palestina no ano seguinte para lançar a semente de um projeto improvável, que vingou: o Festiclown Palestina.

    CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

    A primeira edição deste festival internacional de palhaços, em 2011, contou com a participação de 40 artistas — incluindo os Irmãos Esferovite, uma banda de palhaços de Vila do Conde —, que realizaram mais de 100 atuações por toda a Palestina.

    De Pontevedra para o mundo

    As deslocações dos ‘narizes vermelhos’ vão sendo possíveis graças ao financiamento da casa-mãe — Festiclown —, um festival do riso nascido em 1999, no município de Pontevedra, dirigido por Iván Prado. No seu sítio na Internet, o evento apresenta-se como “artefacto de alegria rebelde, que usa o riso como alavanca para mover o mundo”.

    Além da Gaza Stars Circus School, a Palhaços em Rebeldia tem uma escola de circo no Lajee Center, no campo de refugiados de Aida, em Belém (na Cisjordânia ocupada) e apoia, no mesmo território, a Escola de Circo Palestiniana (Birzeit), outra em Silwan (Jerusalém Oriental) e a organização Human Supporters (Nablus).

    CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

    “Conseguimos enviar-lhes um mínimo de apoio económico para que façam o que sabem, que é animar, levar alegria, tentar aplicar as artes mágicas e esperançosas do circo. No fundo, o nosso universo é aquele lugar onde as coisas impossíveis se tornam possíveis e as coisas possíveis se tornam belas. É a nossa função e é por isso que o fazemos, viajando até lugares, como a Palestina, que leva 75 anos de limpeza étnica e apartheid”, acrescenta Prado.

    Na Palhaços em Rebeldia, colocamos a nossa arte ao serviço da humanidade. O que me faria muito feliz seria que futuros palhaços e palhaças entendessem que a nossa arte é uma ferramenta para construir os sonhos e as utopias da humanidade e que sempre estará ao serviço dos que mais sofrem”, prossegue.

    CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL

    A vocação internacional desta associação galega já a fez galgar muitas fronteiras e tornou Iván num nómada, com deslocações frequentes a lugares do mundo onde as pessoas que ali vivem não sabem se estarão vivas no dia seguinte. Para lá dos territórios palestinianos, já esteve nos acampamentos sarauís no deserto da Argélia, nos campos de refugiados em Idomeni (Grécia) e nas favelas do Rio de Janeiro. Quando conversou com o Expresso, tinha acabado de chegar de terras indígenas de Chiapas (México).

    Nessas regiões esquecidas, apesar das dificuldades e do sofrimento, é fácil provocar o riso, garante. “A ferramenta usada pelo palhaço é a estupidez humana, a partir do próprio ridículo de cada um de nós. Essa é uma linguagem internacional e universal. Quando alguém se põe ao ridículo, faz de tonto e trabalha a partir da lógica da estupidez, consegue estabelecer uma relação em qualquer idioma, cultura e circunstância. Há potencial de comunicação de sobra.”

    Quando a guerra terminar, associações como a Palhaços em Rebeldia terão um papel importante num território com muitas crianças órfãs e um grande trauma para debelar. “Seremos imprescindíveis. Nós já estamos a tentar viajar agora para a Palestina. Estamos a ver como e por onde.”

    (FOTO PRINCIPAL CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui