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Sérgio Godinho, Massive Attack e mais 238 artistas unem-se num apelo ao fim do bloqueio à Faixa de Gaza

A existência de casos de covid-19 na Faixa de Gaza motivou 240 artistas a publicar uma carta aberta. “O bloqueio de Israel impede a entrada de medicamentos e material médico, pessoal e ajuda humanitária fundamental”, alertam. “A pressão internacional é urgentemente necessária para tornar a vida em Gaza viável e digna”

A pandemia que tomou o planeta de assalto levou um pouco daquilo que é ‘a normalidade de Gaza’ aos quatro cantos do mundo: cidades confinadas, restrição de movimentos, encerramento de fronteiras, desemprego em alta, colapso económico, ansiedade, medo e incerteza em relação ao futuro.

Na origem da situação estão a ocupação israelita (1967-2005) e o bloqueio fronteiriço que dura desde 2007 – quando o grupo islamita Hamas tomou de assalto o poder –, com consequências dramáticas para quem lá vive: o desemprego entre os jovens ronda os 60% e mais de 80% da população vive dependente da ajuda internacional.

A isto se somam três guerras desencadeadas por Israel (2008/2009, 2012 e 2014) e agora a pandemia de covid-19, a que Gaza também não escapa, apesar do isolamento. Desde 21 de março foram contabilizados 20 casos positivos.

“Os relatos dos primeiros casos de coronavírus na densamente povoada Gaza são profundamente perturbadores”, alertam 240 artistas, portugueses e estrangeiros, numa carta aberta divulgada na quarta-feira. “O bloqueio de Israel impede a entrada de medicamentos e material médico, pessoal e ajuda humanitária fundamental. A pressão internacional é urgentemente necessária para tornar a vida em Gaza viável e digna. O cerco de Israel deve acabar.”

Entre os signatários portugueses estão o músico Sérgio Godinho, o rapper Chullage, a escritora Patrícia Portela, a pintora Teresa Cabral, o dramaturgo Tiago Rodrigues e o coreógrafo Rafael Alvarez.

Os subscritores internacionais incluem os músicos Peter Gabriel e Roger Waters, a banda Massive Attack, o compositor Brian Eno, a ativista Naomi Klein, o escritor Irvine Welsh e o ator Viggo Mortensen.

Ameaça mortal na maior prisão ao ar livre

“Bem antes da crise em curso, os hospitais de Gaza já estavam no ponto de rutura devido à falta de recursos essenciais negados pelo cerco israelita. O seu sistema de saúde não conseguiu dar resposta aos milhares de ferimentos por bala, obrigando a muitas amputações.”

A carta não se limita a expor a fragilidade de Gaza e do seu sistema de saúde. Vai mais longe e apela a um embargo militar internacional a Israel, “até que este país cumpra todas as suas obrigações à luz do direito internacional”.

“As epidemias (e pandemias) são desproporcionalmente violentas para as populações atormentadas pela pobreza, ocupação militar, discriminação e opressão institucionalizada”, alertam. “Com a pandemia, os quase dois milhões de habitantes de Gaza, predominantemente refugiados, enfrentam uma ameaça mortal na maior prisão ao ar livre do mundo.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Soros, pensos e compressas: as “armas” que condenaram Razan à morte

Razan al-Najjar foi alvejada a tiro por um militar israelita quando tentava socorrer palestinianos feridos nos protestos na Faixa de Gaza. Jovem, formada, corajosa e altruísta, é a prova de que mais do que punir quem se atreve a aproximar-se da sua fronteira, Israel quer minar o futuro da Palestina

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Um colete manchado com sangue. Nos bolsos, pacotes de compressas. “Isto [o colete] era a arma que a minha filha usava para lutar contra os sionistas. E isto [as compressas] eram as munições para essa arma. E aqui está a identificação dela para que possam ver se era terrorista ou não.”

Na hora de chorar a morte da filha, alvejada por um “sniper” israelita, Sabreen al-Najjar mostra as “armas” que a condenaram, num vídeo partilhado nas redes sociais, e deixa que a lucidez se sobreponha à emoção para denunciar o que se passa na Faixa de Gaza. “Os terroristas são os sionistas, que se vangloriam sobre direitos humanos e deixam-nos, aos palestinianos, sem direitos. Onde estão os direitos humanos? Nem este colete a salvou…”

Razan al-Najjar, uma paramédica de 21 anos, foi morta na passada sexta-feira, na Faixa de Gaza, junto à fronteira com Israel, atingida a tiro quando tentava prestar os primeiros socorros a um manifestante ferido, na área de Khuza’a, região de Khan Yunis (sul de Gaza). “Ela foi baleada no peito. A bala rasgou o colete branco estampado com o logótipo da Sociedade Médica de Socorro Palestiniana (PMRS) que a identificava como pessoal médico”, esclareceu, em comunicado, a organização onde Razan trabalhava como voluntária.

Testemunhas ouvidas pela Al-Jazeera relatam que tudo aconteceu quando Razan se aproximou da vedação com a intenção de resgatar um manifestante ferido, caído do lado de Israel, para onde passara após fazer um buraco na rede.

Rida, outra voluntária de 29 anos, ia com ela. Seguiam de braços no ar para mostrarem aos soldados israelitas que não constituíam qualquer perigo. “Assim que entrámos na cerca para recuperarmos os manifestantes, os israelitas lançaram gás na nossa direção. Depois, um atirador disparou uma única bala, que atingiu Razan.”

A morte da jovem não foi imediata. Assistida no local, foi levada para o Hospital Europeu de Gaza, onde acabaria por falecer. “Os fragmentos da bala feriram três outros membros da nossa equipa”, diz Rida. “Era muito claro quem éramos, dados os nossos uniformes, os nossos coletes e bolsas médicas. Não havia outros manifestantes à nossa volta, apenas nós.”

Desde o início da Grande Marcha do Regresso, a 30 de março, que Razan não falhou uma única sexta-feira, o dia dos protestos maiores, de que resultaram sempre mortos. Com esse ativismo, desafiou também estereótipos numa sociedade conservadora como a de Gaza que nem sempre vê com bons olhos o envolvimento das mulheres na vida pública. Num artigo publicado pelo site do Expresso, a 14 de maio, sobre palestinianas na linha da frente dos protestos em Gaza, Razan é uma das “guerreiras” retratadas. É ela quem surge na foto número 15, em dificuldades, após inalar gás tóxico.

Quarenta ambulâncias sob fogo

Razan al-Najjar é a 119ª vítima mortal da Grande Marcha. “No total, Israel feriu 245 paramédicos desde o fim de março, 29 dos quais com fogo real, e alvejou 40 ambulâncias. Atirar contra pessoal médico é um crime de guerra ao abrigo das Convenções de Genebra, tal como alvejar crianças, jornalistas e civis desarmados”, recordou, num comunicado, Mustafa Barghouti, presidente e fundador da PMRS, criada em 1979. “Exigimos uma resposta internacional imediata às violações israelitas ao direito humanitário em Gaza. Apelamos aos nossos amigos e parceiros internacionais que condenem publicamente o assassínio de Razan e que exijam que Israel seja responsabilizado pelos seus crimes ao abrigo do direito internacional.”

Barghouti é um médico e ativista palestiniano que concorreu como independente às eleições presidenciais de 9 de janeiro de 2005, as últimas realizadas. Obteve 19,8% dos votos — foi o segundo mais votado de sete candidatos —, perdendo apenas para Mahmud Abbas (62%). Faz o seu papel ao denunciar os abusos de Israel, mas a experiência política diz-lhe que dificilmente essa responsabilização se concretizará e que, o mais provável, é ouvir um rotundo silêncio.

No dia em que Razan al-Najjar caía morta, a defesa intransigente que os Estados Unidos fazem de Israel no Conselho de Segurança das Nações Unidas — e que, ao longo de décadas, tem comprometido administrações republicanas e democratas — ganhou contornos particularmente polémicos: num primeiro momento, os norte-americanos aplicaram o direito de veto a uma proposta de resolução de iniciativa do Kuwait apelando à “segurança e proteção das populações civis dos territórios palestinianos ocupados, incluindo a Faixa de Gaza”; em alternativa, avançaram com uma resolução exigindo o fim de “todas as ações violentas de provocação” por parte do Hamas e de outros grupos palestinianos, omitindo referências ao uso da força por parte de Israel e à necessidade de proteger os palestinianos. O texto recebeu um único voto favorável — o dos Estados Unidos.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 4 de junho de 2018, e republicado no “Expresso Diário”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

Ataque aéreo a Gaza. “Qualquer lugar pode ser um alvo de Israel a qualquer momento. Por isso o ataque é em todo o lado”

Perto da uma da manhã (23h00 em Portugal continental), Israel terá lançado uma série de ataques aéreos contra posições do Hamas na Faixa de Gaza. Este tipo de ataques já aconteceram outras vezes e o último foi há menos de uma semana. “O hotel abanou, as janelas abanaram. Dezenas de mísseis foram lançados por drones e F-16”, conta Jomma Sommarstrom, jornalista sueco da Swedish Radio em Gaza. Já Ahmed Salama, fotografo em Gaza, diz que os ataques devem ter atingido zonas descampadas mas como Gaza é tão pequeno, “há pessoas e edifícios perto dos locais atacados”

Na madrugada desta quinta-feira (quando passava pouco das 23h00 em Portugal), Israel voltou a bombardear a Faixa de Gaza. Sexta-feira passada tinha ficado marcada como o dia mais violento em Gaza desde 2014. Mais de 50 palestinianos foram mortos pelo exército israelita em protestos na Faixa de Gaza contra o bloqueio económico e social que sofrem há mais de dez anos — e pelo direito de regressarem a um território que consideram ocupado por Israel. No sábado, Israel fechou um dos principais postos fronteiriços com Gaza e destruíram um dos túneis construídos pela milícia palestiniana Hamas construidos numa tentativa de continuar a trazer bens essenciais para Gaza.

O jornal “Times of Israel” confirmou que Israel conduziu uma série de ataques a bases militares no norte da Faixa de Gaza e cita fontes da imprensa palestiniana avançando ainda que estes ataques terão sido uma reposta aos alegados ataques da milícia palestiniana Hamas à cidade israelita de Sderot, que fica perto da fronteira com Gaza. De acordo com o jornal, seis alvos foram atacados.

Nisreen Ashabrawi, estudante de Gaza de 21 anos, ouviu as explosões e conta uma revolta que não é só contra Israel mas também contra o armamento fornecido pelos Estados Unidos. “As forças israelitas estão a bombardear Gaza não apenas com F-16 norte-americanos como também nos estão a atingir com gás lacrimógeneo”. Em Gaza, diz, “qualquer lugar pode ser um alvo de Israel a qualquer momento. Por isso o ataque é em todo o lado”.

Ahmed Salama é fotógrafo em Gaza e descreveu ao Expresso, através de uma conversa no serviço de mensagens instantâneas do Twitter, os primeiros momentos depois do ataque: “Ouvi três fortes explosões a cerca de quinze quilómetros de onde estou. Penso que os ataques tenham atingido zonas descampadas e até agora não me chegaram notícias de que tenha havido mortos”. Ainda assim, salienta, “há pessoas e edifícios perto dos locais atacados”. Não há registo de vítimas até ao momento e, por isso, Ahmed ironiza: “Não há mortos ou feridos por isso isto é tudo normal”.

Alguns palestinianos, contudo, preferem não dramatizar, apesar de também falar de uma normalidade que não tem nada de normal. “Este ataque não foi mais forte que os outros, teve a mesma intensidade e não creio que tenha sido o início de uma ação prolongada, foi só mais um ataque”, diz por seu lado Mohamed Halabi, funcionário público em Gaza.

Cerca de cinco horas antes do ataque, as Forças de Defesa israelitas confirmaram, através da sua conta no Twitter, que tinham atingido dois postos militares do Hamas no Sul de Gaza. As informações agora parecem ser que os ataques divergiram para o ocidente e norte da pequena faixa de terra que, no total, tem 41 quilómetros de comprimento.

As mortes de sexta-feira elevaram para 112 o número de palestinianos mortos na Faixa de Gaza desde o início, a 30 de março, de um movimento de contestação em massa, a “Marcha do Retorno”. Entre os 60 civis palestinianos hoje abatidos a tiro pelo exército israelita, contavam-se “oito crianças com menos de 16 anos”, afirmou o embaixador palestiniano na ONU, Riyad Mansour, em conferência de imprensa, acrescentando que “mais de 2.000 palestinianos ficaram feridos” durante os protestos.

Jomma Sommarstrom, jornalista sueco da Swedish Radio em Gaza, também partilhou o que viu — e sentiu. Estava no quarto de hotel em Gaza quando as explosões aconteceram e ouviu quatro, duas delas muito próximas de onde está. “O hotel abanou, as janelas abanaram. Dezenas de mísseis foram lançados por drones e F-16”, conta ao Expresso. As informações que recolheu no local, e que partilhou, dão conta de seis ataques a fábricas de armamento e posições militares do Hamas.

Artigo escrito com Ana França, Helena Bento e Marta Gonçalves.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

O dia em que os palestinianos choraram duas catástrofes

A história registará que um dos dias mais importantes para Israel coincidiu com mais um banho de sangue na Faixa de Gaza. Esta terça-feira, começaram a ser enterrados os 60 palestinianos mortos durante protestos junto à fronteira no dia do 70º aniversário do Estado judeu. Entre eles está um homem que tinha ficado sem pernas num bombardeamento israelita anterior

ILUSTRAÇÃO DE JOÃO CARLOS SANTOS

É assim há 70 anos. Ano após ano, os palestinianos vivem cada 15 de maio como um dia de luto, em memória da “Nakba”, a “catástrofe” que para eles significou a fundação do Estado de Israel e o êxodo de mais de 700 mil palestinianos das terras onde sempre viveram. Este ano, a catástrofe foi sentida duplamente.

Esta terça-feira, na Faixa de Gaza, começaram a ser enterrados os 60 palestinianos abatidos na véspera por atiradores israelitas posicionados no outro lado da fronteira, naquele que foi o dia mais sangrento desde a última guerra entre Israel e o Hamas, em 2014. Munidos com o mais sofisticado equipamento militar, tinham ordem para alvejar quem ousasse aproximar-se da fronteira para reclamar o que é seu — as terras ocupadas por Israel.

No outro território palestiniano, a Cisjordânia, a solidariedade manifestou-se sob a forma de uma greve geral que parou lojas e escolas. Em várias cidades, as sirenes tocaram durante 70 segundos para assinalar a “Nakba” e homenagear as vítimas.

Na segunda-feira, morreram 60, mas desde o início da Grande Marcha do Regresso, a 30 de março, que tombaram pelo menos 108 palestinianos. “Parece que qualquer um está sujeito a ser morto”, reagiu o porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Rupert Colville. “Não é aceitável que [Israel] diga: ‘Isto é o Hamas, por isso [a nossa reação] está bem’”, acrescentou. “Que ameaça representa um duplo amputado para quem está do outro lado de uma cerca altamente fortificada?”

O Conselho de Segurança das Nações Unidas reuniu-se, esta terça-feira, para debater a situação em Gaza, e escutou a embaixadora dos Estados Unidos defender o indefensável: “Nenhum país nesta sala agiria com mais moderação do que Israel”, afirmou Nikki Haley. Na segunda-feira, nos corredores da ONU, os norte-americanos saíram em defesa dos israelitas e bloquearam uma declaração que apelava a uma “investigação independente e transparente” às ações de Israel junto à fronteira.

Aos microfones da rádio, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked — defensora da pena de morte e da amputação de direitos à população árabe de Israel em nome da maioria de judeus —, tranquilizou os israelitas dizendo que Israel não tem medo do Tribunal Internacional de Justiça de Haia. “As Forças de Defesa de Israel estão a atuar muito, muito bem, ao abrigo dos protocolos de uso de fogo real e dentro da lei e do direito.”

O governo israelita considera que os protestos junto à fronteira constituem um “estado de guerra” pelo que a lei humanitária internacional não se aplica.

O mais recente massacre na Faixa de Gaza motivou reações em todo o mundo, mas poucas ações. África do Sul e Turquia mandaram regressar os seus embaixadores em Telavive e expulsaram os diplomatas israelitas nos seus países. “Netanyahu é o primeiro-ministro de um Estado de apartheid… Tem o sangue dos palestinianos nas suas mãos”, acusou o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.

Na Europa, a Bélgica convocou a embaixadora israelita no país para uma reunião, esta quarta-feira, no ministério dos Negócios Estrangeiros. Dos outros países ouviram-se as condenações vagas habituais. “Israel tem de respeitar o direito aos protestos pacíficos e o princípio da proporcionalidade no uso da força”, disse a chefe da diplomacia da União Europeia, Federica Mogherini. “França condena a violência”, disse a presidência. “Estamos preocupados com relatos de violência e perdas de vidas em Gaza”, reagiu o gabinete da primeira-ministra britânica.

“Chocada e profundamente preocupada”, a Alemanha disse que “Israel tem o direito a defender-se e a garantir a segurança da vedação [na fronteira] contra incursões violentas. Porém, deve aplicar-se o princípio da proporcionalidade.” O Governo português apelou “à contenção de todas as partes envolvidas, no sentido de pôr fim à violência”.

Portugal não se fez representar na inauguração da embaixada dos EUA, como a esmagadora maioria dos 28 Estados membros da UE. Entre os 32 países que assistiram à cerimónia, quatro europeus quebraram a unanimidade europeia: Áustria, Hungria, República Checa e Roménia.

Em Jerusalém, estiveram presentes também Angola e três países que, no rasto dos EUA, vão transferir as suas embaixadas de Telavive para Jerusalém: Guatemala, Paraguai e Honduras.

Esta terça-feira, o dia foi de ressaca também em Telavive. Ontem à noite, a capital de Israel recebeu em êxtase Netta Barzilai, a vencedora da Eurovisão que, acabada de chegar de Lisboa, subiu ao palco, apresentada pelo presidente da Câmara, Ron Huldai, e cantou “Toy” para dezenas de milhares de pessoas que encheram a Praça Rabin. A 70 quilómetros de distância, enquanto se choravam os mortos, crescia o ódio a Israel.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 15 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

As guerreiras de Gaza

Estão na “linha da frente” dos protestos contra Israel. Numa sociedade conservadora como é a da Faixa de Gaza, as mulheres desdobram-se em formas de luta para reclamar um direito histórico — o regresso às terras que outrora foram palestinianas e que agora são território de Israel. “Somos todos terra”, diz ao Expresso uma jovem envolvida nos protestos

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Voluntariam-se para prestar assistência aos feridos, lançam balões e papagaios de papel com as cores da Palestina, fazem pão para matar a fome a quem esgota o corpo a “dar luta” a um dos exércitos mais poderosos do mundo, aproximam-se corajosamente da fronteira para gritar a sua revolta contra a ocupação israelita que transformou o território onde vivem num gueto de onde é difícil sair.

São as mulheres da Faixa de Gaza que, por estes dias, passam grande parte do tempo “em serviço” junto à fronteira com Israel para lembrar, a Telavive e ao mundo, que há algo em dívida para com os palestinianos — o direito do regresso às terras que já foram suas.

“Se queremos alguma coisa, o melhor é fazermos barulho. E quando aquilo que queremos é a nossa terra? O nosso direito? É por essa razão que participo na Grande Marcha do Regresso”, diz ao Expresso Samah, uma palestiniana de 26 anos. “Tenho conhecimentos na área de primeiros socorros, o que me permite ajudar os feridos. Saio de casa às oito horas da manhã e regresso às sete da tarde.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Na Faixa de Gaza, a vida está refém da falta de soluções para o conflito israelo-palestiniano. Em entrevista ao Expresso, o historiador israelita Ilan Pappé defendeu que “a guetização de Gaza é uma forma de apartheid” promovida por Israel, que aplica no território “políticas genocidas”.

Ocupada por Israel na Guerra dos Seis Dias (1967) e entregue à Autoridade Palestiniana após a retirada israelita, em 2005, a Faixa de Gaza viu a sua situação complicar-se após o Hamas tomar o poder pela força, em meados de 2006. A 25 de janeiro desse ano, os islamitas venceram as eleições legislativas palestinianas, mas viram o resultado não ser reconhecido nem pela rival Fatah, nem por Israel nem pela comunidade internacional. O golpe do Hamas motivou, então, um bloqueio às fronteiras do território onde, hoje, para se entrar e sair está-se dependente da boa vontade das autoridades israelitas e egípcias.

“As mulheres veem os seus filhos sem trabalho e ficam desesperadas. Então, participam muito nos protestos, talvez não a pensar nelas próprias mas na terra e nos filhos”, diz Samah. “As mulheres mais jovens também participam. Aqui, na Palestina, quando o assunto é a terra ninguém fica indiferente, seja-se homem ou mulher. Somos todos terra.”

Pressão psicológica de Israel sobre as mulheres

A 5 de abril passado, já com a Grande Marcha do Regresso nas ruas — começou a 30 de março e terminará esta terça-feira, 15 de maio —, Avichay Adraee, o porta-voz do Exército israelita, tentou falar ao coração dos setores mais conservadores de Gaza. Ao estilo de um fanático talibã, escreveu na sua conta em língua árabe no Twitter: “Uma boa mulher é a mulher honrada que se importa com o interesse da sua casa e dos seus filhos, sendo um bom exemplo para que eles a sigam. Quanto à mulher má e sem honra, essa não se importa com nada disso, age como uma selvagem que não tem nada a ver com a feminilidade e não se preocupa com o olhar de desprezo com que a sociedade a olha”.

Nesta como noutras guerras, a psicologia é uma arma e, com este “post”, o militar israelita, ironica e propositadamente, adotou o discurso do mais fundamentalista dos militantes do Hamas para tentar fechar as mulheres de Gaza em suas casas.

“Ser uma sociedade conservadora nunca foi um problema. Gaza pode continuar a ser uma sociedade conservadora mesmo que homens e mulheres, juntamente com os seus filhos, saiam de casa para participarem na Marcha”, diz Samah. “Ser ‘conservador’ não quer dizer ficar em casa e não participar em eventos. Nunca poderá significar que as mulheres não possam gritar pela verdade e que tenham de ficar de lado. Significa apenas saber comportar-se e respeitar a sua fé quando se está fora.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Samah estudou Literatura na Universidade Islâmica de Gaza e fez formação na área da segurança e proteção. Hoje trabalha como tradutora e coloca os seus conhecimentos de socorrista ao serviço do seu ativismo pelo futuro da Palestina.

Entre as cerca de 50 pessoas mortas desde o início dos protestos — a maioria atingida a tiro por “snipers” israelitas posicionados do outro lado da fronteira — não consta nenhuma mulher. Mas muitas estão entre os milhares de feridos. “Houve apenas ferimentos ligeiros, nada de grave”, diz Samah. “Quando as mulheres participam, os homens estão sempre lá para as proteger.”

Com uma pedra numa mão, o telemóvel na outra e carteira a tiracolo, esta palestiniana mostra que a revolta contra Israel faz parte do quotidiano da população de Gaza MOHAMMED SALEM / REUTERS
Uma jovem carrega um pneu em chamas, uma das “armas” usadas nos protestos em Gaza MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Balões de esperança com duas bandeiras palestinianas presas à corda SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
“Derrubar” a fronteira com papagaios de papel, alguns com as cores da bandeira palestiniana MOMEN FAIZ / GETTY IMAGES
Zona de leitura numa área mais afastada da “linha da frente” dos protestos MUSTAFA HASSONA / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Palestinianas “de serviço” às redes sociais, outra frente importante da Grande Marcha do RegressoSAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A bandeira da Palestina que, neste contexto, vale mais do que 1000 slogans MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Arrojadas e destemidas, junto a uma cerca de arame farpado separando Gaza de Israel MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Um cordão de quatro rapazes “protege” uma rapariga, enquanto se afastam da fronteira a correr SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Mulheres que inspiram as palestinianas: a cantora Rim Banna, recentemente falecida, voz de temas patrióticos, e Ahed Tamimi, a cumprir pena de prisão por esbofetear um soldado israelita SAMAR ABO ELOUF
Uma máscara feita com um pedaço de uma garrafa plástica e, sobre o nariz, uma proteção com odor de cebola resguardam esta mulher da inalação de gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Perfume, vinagre, limão, cebola são cheiros fortes a que os manifestantes recorrem para se defenderem dos gases tóxicos lançados por Israel MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Palestiniana com dificuldades respiratórias atingida por uma nuvem de gás lacrimogéneo MOHAMMED SALEM / REUTERS
No terreno para assistir as vítimas, esta médica palestiniana sofre com os efeitos do gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Azáfama no interior de um posto de primeiros socorros SAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A Marcha mobiliza sucessivas gerações de palestinianos, como o prova esta idosa, sentada numa das “tendas do regresso” MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Jovens de Gaza, com a máscara associada ao movimento de hacktivismo internacional anonymous, tiram uma “selfie” ALI JADALLAH / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Duas palestinianas fazem pão, num dos acampamentos erguidos junto à fronteira IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma artista pinta um quadro em memória de Yasser Murtaja, um dos jornalistas palestinianos mortos durante a Grande Marcha SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Acarinhada por outras mulheres, uma palestiniana de Khan Yunis chora a morte de um filho de 15 anos, atingido a tiro pelas forças israelitas MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
O silêncio e a tranquilidade propiciados pela noite trazem à “cidade das tendas” momentos de oração MOHAMMED SALEM / REUTERS
Montadas propositadamente para a Grande Marcha, as tendas foram batizadas com o nome das aldeias de onde palestinianos foram expulsos em 1948, após a criação de Israel IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma pilha de pneus, que, depois de incendiados, vão criar uma cortina de fumo negro com que os palestinianos esperam perturbar a mira dos atiradores israelitas MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Vozes que não se calam, apesar de esbarrarem num muro de indiferença MOHAMMED SALEM / REUTERS
MOHAMMED SALEM / REUTERS

Artigo publicado no Expresso Online, a 14 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui