Arquivo de etiquetas: França

Manuel Valls ao Expresso. “A prioridade de França é reconciliar os franceses”

O antigo primeiro-ministro francês passou por Portugal em campanha eleitoral. Candidato pelo círculo da emigração nas legislativas deste mês, em representação dos franceses que vivem nomeadamente em Portugal, concedeu uma entrevista ao Expresso onde identificou os principais problemas de França, comentou a guerra na Ucrânia e explicou por que razão abandonou o Partido Socialista

Manuel Valls foi primeiro-ministro de França entre 2014 e 2016, durante o mandato presidencial de François Hollande. Então militante do Partido Socialista, o francês nascido na Catalunha abandonou essa histórica força política após ter perdido as primárias para as presidenciais de 2017 para Benoît Hamon, da ala esquerda. Agora que o PS aderiu à frente chefiada por Jean-Luc Mélenchon, Valls decreta a sua morte. Ele, que sempre foi centrista, aproveitou a dupla nacionalidade para ser candidato à Câmara Municipal de Barcelona em 2019, pelo partido centrista liberal Cidadãos. Não ganhou, mas foi vereador. Agora regressa à arena política francesa ao lado do Presidente, Emmanuel Macron, candidatando-se às legislativas de 12 e 19 de junho pela frente centrista e liberal do chefe de Estado, rebatizada de Renascimento. Aos 59 anos, concorre à Assembleia Nacional pelo círculo eleitoral que representa os franceses emigrados em Portugal, Espanha, Andorra e Mónaco. Esteve em Portugal no final de maio, em ações de campanha que o levaram de Braga ao Algarve.

ACREDITO QUE HOJE O PRINCIPAL PROBLEMA DE FRANÇA É A SUA DIVISÃO

Quais são hoje os principais problemas de França?
 A sua divisão. São as fraturas sociais, geracionais e geográficas demonstradas na primeira volta das presidenciais, com três grandes blocos: Macron, Le Pen, Mélenchon. Todas as sociedades democráticas vivem essa polarização. Temos em Espanha o fenómeno Vox. Em Portugal, pela primeira vez, há uma lista à direita da direita. Há movimentos na rua, como os “coletes amarelos”. A democracia representativa está em crise. A abstenção é muito alta, a sociedade está tensa, enquanto no plano económico a situação é boa: teríamos perspetiva de pleno emprego se não fosse a crise ucraniana. França resistiu à crise sanitária com investimento na ajuda às empresas, negócios, cultura, pessoas e famílias. Não obstante, há desigualdades, precariedade no trabalho. Cuidado: a economia é uma coisa, depois existem as pessoas que ficam de lado. Basicamente, a principal prioridade de França é reconciliar os franceses consigo mesmos.

É candidato pela maioria presidencial, que perdeu votos relativamente a 2017. Como vê a evolução eleitoral de Marine Le Pen?
Na primeira volta das presidenciais, Macron ganhou votos em relação a 2017. A segunda volta foi diferente, mas é normal. Teve, ainda assim, mais do que as sondagens previam, 58%. O fenómeno novo é a tripartição Macron-Le Pen-Mélenchon, e haver um hipercentro em torno do Presidente, de centro-esquerda e centro-direita: os republicanos, a social-democracia, os ecologistas também estão com Macron. Temos a ascensão da extrema-direita e aquilo a que chamo mélenchonismo, a união da esquerda que é totalmente contrária à história do Partido Socialista. Os extremos alimentam-se da raiva, do medo do futuro, da precariedade social, de pessoas que não se sentem consideradas. Hoje há esse sentimento junto de pessoas que, mesmo que ganhem bem a vida, estão muito preocupadas porque o custo da gasolina ou do aquecimento impossibilita o equilíbrio dos orçamentos familiares. É por isso que Macron precisa de uma forte maioria nas legislativas, porque o país está dividido, pode haver movimentos na rua, há reformas que têm de ser feitas. É preciso que a Assembleia o faça.

OS EXTREMOS [COMO MÉLENCHON E LE PEN] ALIMENTAM-SE DA RAIVA, DO MEDO DO FUTURO

Porque saiu do Partido Socialista?
Deixei-o há cinco anos, após primárias, porque, em 2017, o Partido optou por abandonar a cultura de Governo. Escolheu criticar. Não é que tudo tenha sido bem feito, mas colocou-se na oposição ao que havíamos feito durante cinco anos com François Hollande [Presidente de 2012 a 2017]. Rompeu com a social-democracia. Qual é a diferença entre [Olaf] Scholz, [António] Costa ou [Pedro] Sánchez e os socialistas franceses? É que uns querem governar e governam. Os socialistas franceses desistiram de governar, e eu previ-o. Agora não só renunciaram a governar, como renunciaram a ser o que eram, desde que aceitaram pela primeira vez submeter-se a um acordo eleitoral onde são marginalizados e, sobretudo, a uma submissão ideológica de projeto. Estão sujeitos não ao Partido Comunista, mas a Mélenchon e à sua visão populista, violenta, com um projeto que representa uma tripla rutura: com a União Europeia (UE) e a NATO, com os valores da República — têm uma visão muito comunitária, buscaram essencialmente o voto muçulmano — e com a seriedade económica. Fiz bem há cinco anos, infelizmente. A percentagem de votos do PS quando saí era de 6,5%, já não era muito. Hoje é de 1,5%. Acabou.

AO CONTRÁRIO DE SCHOLZ, COSTA OU SÁNCHEZ, O PS FRANCÊS DESISTIU DE GOVERNAR

Era primeiro-ministro em 2014, ano em que a Rússia anexou a Crimeia. A invasão da Ucrânia surpreendeu-o?
Há que ser honesto, a maioria dos especialistas ficou surpreendida com os objetivos de Vladimir Putin. Não tanto pela vontade de conquistar o Donbas ou fechar o Mar Negro ou o Mar de Azov. O que surpreendeu foram os objetivos iniciais, ou seja, a destruição da Ucrânia e do poder democrático em torno do Presidente Zelensky. Num artigo muito importante de cunho histórico, em julho de 2021, Putin escreveu que a Ucrânia não existe. Há que ler o que o ditador escreveu. E por isso há que ter muito cuidado. Felizmente, a Ucrânia resistiu. Houve uma reação da UE e da NATO que impediram consequências históricas maiores. O pedido de adesão à NATO da Suécia e da Finlândia é uma mudança muito importante. Mas atenção, Putin foi impedido, mas ocupa a Crimeia e outras regiões que vai querer integrar na Federação Russa. E, um dia, vai querer unir os territórios russos, pelo que Odessa, a Transnístria, os territórios próximos da Roménia podem ser alvos. Por isso, a crise ucraniana, a tensão com a Rússia a nível diplomático, militar e económico vai durar.

Como avalia a resposta da União Europeia?
Foi forte. Caminhamos sobre arame, porque trata-se de ajudar a Ucrânia em termos financeiros e no plano militar, fornecer armas, com os norte-americanos, claro. Há sanções contra a Rússia, os efeitos nesta fase são limitados. Ao mesmo tempo, não estamos em guerra com a Rússia. Às vezes é difícil entender. Mas há que ser prudente, pois estão em causa potências nucleares — Rússia, Estados Unidos, França. O mais importante, como na crise pandémica, é que a Europa está consciente de que deve ser soberana e autónoma em muitos domínios, em particular no que diz respeito ao gás, o que abriu um grande debate na Alemanha. Outra estratégia energética para todo o continente diz respeito à Península Ibérica: a questão do gás argelino, a energia fotovoltaica, as energias solares renováveis. Portugal e Espanha podem estar na dianteira. Temos necessidade de outra estratégia energética, de outra estratégia militar, nos próximos meses e anos, o que é uma mudança considerável. Recordemo-nos que há dois ou três anos, dizia-se que a Europa estava acabada. A Europa está aí, é um mercado, uma democracia, uma moeda, pode ter uma defesa. Há muitas coisas a fazer para integrar ainda mais esta Europa.

A TENSÃO COM A RÚSSIA, A NÍVEL DIPLOMÁTICO, ECONÓMICO, MILITAR, VAI DURAR

É favorável à adesão da Ucrânia à UE a curto prazo?
Temos de enviar uma mensagem muito clara. Se a Ucrânia não entrar na Aliança Atlântica, o que basicamente é um pretexto por parte de Putin, já que não estava na agenda, por outro lado a entrada na família da União Europeia é inquestionável. Sabemos que por razões económicas e orçamentais, mas também devido ao funcionamento do Estado ucraniano, o país não está pronto. É provável que leve muitos anos. Há países como a Sérvia e a Albânia, sobretudo, que não são membros da UE e estão à espera. Isso significa que temos de encontrar uma Europa em várias velocidades, um velho debate, ou então o que Macron propõe, uma “comunidade política europeia”. De qualquer forma, deve haver muito rapidamente um gesto que mostre que a Ucrânia está a entrar num processo e que está protegida pela Europa. Há que encontrar a fórmula certa. Sou favorável a que se ajude este grande país de 40 milhões de habitantes, metade de cuja riqueza acaba de ser destruída. Sabemos que não faz muito sentido entrar na União Europeia, no mercado único ou na zona euro, mas há que criar uma amarra forte. O país merece. O seu povo merece a nossa união, ao abrigo de formas que devem ser inventadas muito em breve.

Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui. A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui

Entrevista a Manuel Valls: “No período que vivemos, nenhum ex-primeiro-ministro pode permanecer apenas espectador”

Ausente do primeiro plano da política francesa há mais de cinco anos, o ex-primeiro-ministro Manuel Valls vai a votos nas eleições legislativas de 12 e 19 de junho. Disputa um lugar de deputado, em representação dos franceses residentes em Espanha, Portugal, Andorra e Mónaco. A candidatura trouxe-o a Portugal, para desenvolver contactos e participar em ações de campanha em Lisboa, Cascais, Porto, Braga, Tavira, Portimão e Setúbal

O ex-primeiro-ministro Manuel Valls disputa um lugar no Parlamento francês, onde já serviu durante 16 anos, entre 2002 e 2018 RUI OLIVEIRA

A menos de três meses de completar 60 anos de vida, o ex-primeiro-ministro francês Manuel Valls tem a atitude de um jovem apaixonado pelo mundo da política. Após 16 anos como deputado na Assembleia Nacional (2002-2018), dois anos como ministro do Interior (2012-2014) e outros dois como chefe do Governo (2014-2016), volta a candidatar-se a um assento no Parlamento de França.

Se for eleito, cumpre o mandato de deputado? Ou será opção para o próximo Governo, como ministro ou mesmo primeiro-ministro?
 Não. Já fui ministro e primeiro-ministro e o compromisso que assumi é o de estar na Assembleia Nacional para ajudar a maioria e o Presidente, alem de estar presente com os franceses em Espanha e Portugal e nos principados de Andorra e do Mónaco. Tenho [quase] 60 anos e cinco pela frente para fazer bem este trabalho. É fascinante, através deste círculo também tocamos em questões económicas, do Mediterrâneo, da relação com a América Latina, que conheço bem, e de África, através do papel de Espanha e Portugal. Há muito que fazer.

Que motivação tem agora para se candidatar a deputado, depois de ter sido primeiro-ministro?
 No período que vivemos em França e na Europa, com desafios consideráveis ligados à guerra na Ucrânia, com consequências económicas, as alterações climáticas, a transformação ecológica, os riscos terroristas, a crise da democracia representativa, a necessidade de reconciliar os franceses consigo mesmos, nenhum ex-primeiro-ministro pode permanecer apenas espectador ou comentador. Tenho energia e vontade, caso contrário ficaria tranquilamente na minha ilha de Menorca. Mas quero agir. Concordei com o Presidente da República que poderia voltar a ser útil à maioria presidencial. Para mim, a ação deve ter a legitimidade do voto. Como vivo entre Espanha e França, não ia regressar ao círculo eleitoral onde fui eleito 16 anos [Essonne], a sul de Paris. O círculo dos franceses que vivem no Mónaco, Andorra, Espanha e Portugal, foi natural para mim, porque tenho dupla cultura e as nacionalidades espanhola e francesa. Nasci em Barcelona, falo catalão e espanhol. Havia uma lógica, uma consistência.

Filho de pai espanhol e mãe italo-suíça, Manuel Valls nasceu na Catalunha e cresceu em França RUI OLIVEIRA

Que tipo de relação espera desenvolver com Portugal e com a comunidade francesa que aqui vive, se for eleito deputado?
 Devemos estar atentos às expectativas dos franceses que vivem aqui, no que diz respeito ao acesso aos documentos administrativos, passaportes, bilhetes de identidade, carta de condução, certificados de residência… Depois há as questões de acesso às escolas, o custo da matrícula nos liceus [franceses] do Porto e Lisboa. Há todas as questões relacionadas com pensões, os problemas fiscais dos franceses mais velhos que escolheram Portugal para terem uma vida doce.

E depois, há todo o tecido económico, sobretudo em Lisboa e Porto. Um antigo primeiro-ministro pode ser útil às empresas francesas e portuguesas. Já existem muitas câmaras de comércio, a Alliance Française, clubes de empresários, empresas francesas muito grandes em Portugal e muitos franceses que abriram pequenos comércios, mercearias, padarias, talhos, restaurantes, outros que trabalham na publicidade. É uma força incrível.

Há dois milhões de portugueses ou de origem portuguesa em França, há 40 a 50 mil franceses em Portugal, há descendentes de portugueses que começam a tentar ganhar a vida em Portugal… tudo isso cria uma rede, uma cooperação que deve ser estimulada enquanto elemento importante de uma relação muito bonita, muito apoiada na cultura, entre a França e Portugal, mas que precisa de encontrar mais força no plano económico. Estamos no ano da Temporada Cruzada Portugal-França e Emmanuel Macron virá este ano a Portugal, logo há muitas coisas para acompanhar.

Disse que tem dupla cultura. E já exerceu cargos políticos em França e em Espanha. Que ligação tem com estes dois países a nível sentimental? Sente-se mais francês ou espanhol?
 Sou profundamente francês na minha maneira de pensar e de ser. E sinto-me francês. Escrevi um livro cujo título é uma citação de um intelectual francês, um grande lutador da resistência, um amigo do general de Gaulle que se chamava Romain Gary: “Não tenho uma gota de sangue francês”. Usei-a para título [“Pas une goutte de sang français, mais la France coule dans mes veines” (Não tenho uma gota de sangue francês, mas a França corre-me nas veias), editora Grasset, 2021].

O meu pai é espanhol e a minha mãe é italo-suíça, mas a França corre nas minhas veias e na minha mente. O facto de ter dupla cultura, de falar catalão com a minha mãe, a minha irmã e a minha esposa [a empresária catalã Susana Gallardo], de falar castelhano e catalão na rua, de sonhar em ambas as línguas dá-me grande abertura, que vou pôr ao serviço dos franceses que vivem em Espanha e em Portugal, mas não só. Também na relação entre Espanha e Portugal, por um lado, e a França, por outro.

Estou muito feliz por estar em Portugal estes dias. Voltarei regularmente se for eleito, e se não for deputado também. Mas claro que espero voltar como deputado, porque há uma ligação, antes de tudo, a nível da língua e da cultura. França deve recuperar mais influência a nível cultural, especialmente agora que há muitos franceses a viver cá.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui. Na segunda parte da entrevista, publicada na edição impressa, nas bancas esta sexta-feira, Manuel Valls identifica os principais problemas de França, justifica o seu divórcio do Partido Socialista e comenta a guerra na Ucrânia

Presentes, mas distantes: assim estiveram Putin e Macron enquanto conversaram sobre a Ucrânia

O Presidente francês chamou a si os esforços para tentar inverter a escalada da tensão entre a Rússia e a Ucrânia e, esta segunda-feira, reuniu-se com o homólogo russo, Vladimir Putin, em Moscovo. Esta terça-feira, viajará para Kiev, para tomar o pulso à sensibilidade ucraniana, sem “acreditar em milagres espontâneos”

Se o protocolo russo não descurou nenhum pormenor nos preparativos para o encontro entre Vladimir Putin e Emmanuel Macron, esta segunda-feira, no Kremlin, então a longa mesa a que se sentaram os chefes de Estado russo e francês tem implícita uma grande distância entre ambos.

O Presidente da França — país que detém a presidência rotativa do Conselho da União Europeia — tem assumido os principais esforços diplomáticos visando uma inversão na escalada da tensão que se faz sentir junto à fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Esta segunda-feira, Macron reuniu-se com Putin em Moscovo, na que foi a primeira deslocação à Rússia de um líder ocidental desde a forte mobilização de tropas russas na direção da Ucrânia.

Querido Emmanuel…

Num relato reproduzido no jornal russo “The Moscow Times”, sentados à mesa, o Presidente francês disse que ali estava para abordar a “situação crítica” na Europa. “Esta discussão pode começar na direção em que precisamos ir, que é uma desescalada”, disse Macron, solicitando “uma resposta que seja útil tanto para a Rússia como para toda a restante Europa”.

Putin dirigiu-se ao homólogo como “querido Emmanuel” e afirmou que os dois países “partilham preocupações sobre segurança na Europa”. Saudou também “o esforço que a atual liderança francesa está a fazer” por resolver as preocupações.

Baixas expectativas

Antes de partir para Moscovo, Macron desdobrou-se em declarações em relação ao que ia, descartando qualquer solução “a curto prazo”. “Devemos tentar eliminar todas as incertezas de ambos os lados e reduzir o campo de ambiguidades, para ver onde estão os pontos de desacordo e os possíveis pontos de convergência”, defendeu. No imediato, “temos que construir os termos de uma equação que possibilite a desescalada a nível militar”. Já em Moscovo, declarou: “Estou razoavelmente otimista, mas não acredito em milagres espontâneos”.

Também o Kremlin, antes do encontro, baixara as expectativas, dizendo que a cimeira Putin-Macron era “muito importante”, mas que não seria de esperar avanços significativos. “A situação é demasiado complexa para que haja avanços decisivos num único encontro”, frisou o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.

Paris-Moscovo-Kiev

De Moscovo, Macron parte para o outro lado do conflito, a Ucrânia, onde tem encontro marcado esta terça-feira com o homólogo Volodymyr Zelensky. Na próxima semana, será a vez de o chanceler alemão, Olaf Scholz — que esta segunda-feira foi recebido por Joe Biden em Washington — se deslocar a Moscovo e a Kiev para se reunir com Putin e Zelensky.

Em antecipação à cimeira desta segunda-feira, o diário francês “Le Monde” qualificou a missão diplomática de Macron de “arriscada”. Em causa está a probabilidade de regressar de mãos vazias desta tentativa de mostrar liderança, a dois meses das eleições presidenciais francesas. O atual inquilino do Palácio do Eliseu ainda não anunciou a recandidatura.

FOTO: Vladimir Putin (à esq.) e Emmanuel Macron, reunidos no Kremlin, esta segunda-feira SPUTNIK / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

O terror chegou de carro outra vez

Armas de fogo, facas, suicidas, carros… Os métodos terroristas em França são variados

“Se não fores capaz de encontrar uma bala ou um IED (explosivo improvisado) então escolhe um ímpio americano, francês ou qualquer aliado, golpeia-lhe a cabeça com uma pedra, mata-o com uma faca, passa-lhe por cima com o carro, empurra-o de um lugar alto, estrangula-o, ou envenena-o.” Esta frase soou em setembro de 2014, da boca do porta-voz do autodenominado Estado Islâmico (Daesh), Abu Mohamed Al-Adnani. Num áudio, o jiadista incitou simpatizantes a espalhar o terror junto do Ocidente de várias formas possíveis. “Especialmente, os sujos e desprezíveis franceses.”

Dias antes, a França entrara na guerra ao Daesh. A 19 de setembro, dois caças-bombardeiros Rafale descolaram de Abu Dhabi, no Golfo Pérsico, e destruíram um arsenal nos arredores da cidade iraquiana de Mossul (norte), ainda na posse do Daesh. Com esta ação, a França tornava-se o primeiro país europeu a atacar alvos jiadistas, ao lado dos EUA, e colocava-se na mira do Daesh.

Os apelos de Al-Adnani não tardariam a começar a ser concretizados. A 20 de dezembro de 2014, um cidadão francês nascido no Burundi e convertido ao Islão atacou à facada um posto de polícia em Joué-lès-Tours, ferindo três agentes.

Atropelamentos pelo Natal

Nos dois dias seguintes, com a França em preparativos para o Natal, dois atentados — um em Dijon e outro em Nantes — incluíram outra das técnicas sugeridas por Abu Mohamed Al-Adnani: o lançamento de viaturas contra transeuntes, como agora em Nice com o camião (em Dijon foram atingidas 11 pessoas e em Nantes 10, uma fatalmente). Um terceiro abalroamento com carro aconteceu a 1 de janeiro de 2016 quando um francês de 29 anos de ascendência tunisina atingiu quatro militares que protegiam uma mesquita em Valence (sul), com o objetivo de “matar soldados”. Seriam encontradas no seu computador imagens de propaganda jiadista.

Os ataques ao “Charlie Hebdo” e a um hipermercado kosher (judaico) de Paris, em janeiro de 2015 (20 mortos e 22 feridos), onde foram usadas armas de fogo, representaram uma ameaça terrorista em solo francês sem precedentes. Menos de um ano depois, os múltiplos atentados na capital — 130 mortos e 352 feridos no clube Bataclan, junto ao Stade de France e em várias esplanadas e restaurantes — onde, além de armas de fogo, também foram usadas granadas e coletes suicidas, confirmaram a vulnerabilidade do país.

Um caso de decapitação

A 26 de junho de 2015, registara-se em França um caso de decapitação, na zona industrial de Saint-Quentin-Fallavier, perto de Lyon (sueste). O motorista Yassin Salhi decapitou o patrão e a seguir atirou uma carrinha contra cilindros de gás na subsidiária francesa da Air Products and Chemicals, ferindo duas pessoas.

A agora martirizada Nice também não foi poupada pela ameaça. A 3 de fevereiro de 2015, três militares que guardavam um centro judaico foram atacados por Moussa Coulibaly, de 30 anos, conhecido das forças de segurança e condenado por seis vezes, entre 2003 e 2012, por delitos de direito comum.

Do rol de ataques que têm fustigado a França desde a declaração do “califado”, em junho de 2014, só poucos foram reivindicados pelo Daesh (como o de novembro de 2015 em Paris) ou pela Al-Qaeda (“Charlie Hebdo”, reivindicado pelo braço da organização no Iémen). A maioria foi realizada por indivíduos que atuam por conta própria, inspirados pela propaganda jiadista.

Como explicou ao “Expresso” Manuel Almeida, doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics, a propósito da vaga de atentados durante o Ramadão, os bombardeamentos sobre o Daesh na Síria e no Iraque levarão a um processo de descentralização do grupo.

“A tendência será para um aumento do número de ataques, muitos dos quais levados a cabo por indivíduos com laços ténues ao grupo, que receberam pouco ou nenhum treino e que apenas partilham a ideologia”. Como parece ser o caso do de Nice.

CRONOLOGIA

PAÍSES FUSTIGADOS PELA VIOLÊNCIA

NIGÉRIA — Dois homens fazem-se explodir a 28 de novembro de 2014 na mesquita central de Kano. Este ataque do Boko Haram faz 121 mortos e 260 feridos

PAQUISTÃO — A 16 de dezembro de 2014, sete homens armados afetos ao Tehrik-i-Taliban atacam uma escola em Peshawar. Morrem 148 pessoas

CAMARÕES — Boko Haram atravessa a fronteira e ataca a cidade de Fotokol: 90 mortos e 500 feridos

IÉMEN — Quatro ataques suicidas contra duas mesquitas de Sanaa matam 142 e ferem 352. O Daesh reivindica o ataque

QUÉNIA — A 2 de abril de 2015, homens armados irrompem na Universidade de Garissa e matam 148 pessoas. Ataque atribuído ao grupo Al-Shabaab

AFEGANISTÃO — Uma série de ataques à bomba no centro de Cabul atribuídos aos talibãs fazem 50 mortos, a 7 de agosto de 2015

TURQUIA — Duas bombas são detonadas no exterior da estação central de Ancara, a 10 de outubro de 2015. 103 mortos e mais de 500 feridos

IRAQUE — A 3 de julho de 2016, decorria o Ramadão, dois ataques à bomba numa área comercial de Bagdade matam 291 pessoas.

(Mapa: Promenade des Anglais, em Nice (França), onde teve lugar o atentado de 14 de julho de 2016, com um camião, que provocou 84 mortos)

Artigo publicado no Expresso, a 16 de julho de 2016