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Um hospital com visão para reduzir a cegueira na Palestina

Fundação Champalimaud premeia centro oftalmológico mais antigo do Médio Oriente. Mais de metade do orçamento da instituição vem de donativos

Na sempre agitada região do Médio Oriente, o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém é, há décadas, um exemplo de resiliência. Com mais de 140 anos — vividos entre guerras, sublevações, disputas locais e o domínio de poderes externos —, esta unidade médica de Jerusalém Oriental apenas não funcionou entre 1914 e 1919. A Palestina era então uma região do Império Otomano, o qual, após entrar na Grande Guerra, transformou o hospital num depósito de munições.

A resistência às adversidades e como, em paralelo, se consolidou como um centro de referência ao nível do combate à cegueira numa região marcada pelo conflito valeu ao St. John of Jerusalem Eye Hospital (na designação internacional) a atribuição, esta semana, do Prémio António Champalimaud de Visão, no valor de um milhão de euros.

“Este generoso prémio chega no momento perfeito”, diz ao Expresso o CEO do hospital, Ahmad Ma’ali. “Somos a única instituição de beneficência prestadora de cuidados oftalmológicos a quem vive
na Terra Santa e dependemos de contribuições voluntárias, que re
presentam 55% a 60% do nosso orçamento operacional”, que supera
os 15 milhões de euros. “Dentro de seis a oito meses esperamos ter um hospital a funcionar no Norte da Cisjordânia”, ocupada por Israel.

Casamentos entre primos

Um estudo do St. John apurou que a taxa de cegueira e de deficiência visual entre os palestinianos é 10 vezes superior à verificada no Ocidente. “Há muitas razões. Decorre da falta de acesso a cuidados”, resultante de barreiras físicas e restrições à mobilidade. “Tem a ver também com pobreza e falta de conhecimento”, continua. “Outra causa são os casamentos entre primos em primeiro grau, que ocorrem em 38%-40% da população. Os filhos nascem geralmente com cataratas, glaucoma e outras doenças hereditárias.”

O hospital procurou dar resposta ao problema da consanguinidade e
dotou-se de um “laboratório de genética”, onde, a partir de uma análise ao sangue do paciente, determina a probabilidade de os filhos terem a doença. “Se informarmos as pessoas sobre a probabilidade de os seus filhos terem cegueira ou outras doenças, elas decidem com base na informação.”

Fundado em 1882, o St. John foi o primeiro hospital oftalmológico no Médio Oriente. “Devido à instabilidade política que dura há muitos anos, decidimos que, se as pessoas não conseguem vir até nós, temos de conseguir chegar a elas. Nesse sentido, estabelecemo-nos como um grupo de hospitais”, explica.

Além do hospital-mãe, em Jerusalém, o St. John tem antenas na
Faixa de Gaza (território palestiniano sob bloqueio) e em Hebron
(no Sul da Cisjordânia). Para precaver previsíveis longas esperas dos
pacientes nos postos de controlo (checkpoints), o hospital dispõe de
três unidades móveis que se deslocam para aldeias remotas e áreas
controladas por Israel.

Todos os centros têm desafios específicos. Situado na parte árabe
da cidade (ocupada por Israel em 1967, posteriormente anexada e reivindicada pelos palestinianos para capital do seu Estado), o hospital de Jerusalém está no olho do furacão, integrado no bairro de Sheikh Jarrah, palco com frequência de violência entre árabes e judeus.

Já na Faixa de Gaza, controlada pelo grupo islamita Hamas, o trabalho é mais complexo. Tudo o que entra no território é inspecionado por Israel, por receio de que possa ter dupla utilização e cair em mãos erradas. “Quando ali construímos o hospital, em 2016, tivemos de trabalhar em grande proximidade com as autoridades militares israelitas, porque tudo podia ter duplo uso. O cimento, por exemplo, podia servir para construir túneis”, usados de forma clandestina para infltrar no território produtos que não passariam na fronteira. “As inspeções originam atrasos. Mandar algo para Gaza pode demorar um mês a chegar. Temos muito cuidado em garantir que há stock suficiente em Gaza.”

Entre os cerca de 260 profissionais do St. John, há muçulmanos,
judeus e cristãos. Os pacientes judeus são ínfimos, “uma vez que eles
têm um serviço avançado e gratuito do lado israelita. Mas estamos abertos a toda a gente”. Ma’ali realça a “excelente colaboração com hospitais de Israel”, nomeadamente o prestigiado Hadassah, em Jerusalém Oriental. “Somos um local de formação para ortoptistas judeus enviados pelo Hadassah.”

Quem não paga nada perde

Mandado erguer pela rainha Vitória de Inglaterra, o St. John pertence à Ordem de São João e é “profundamente enraizado nos ensinamentos cristãos”, diz Ma’ali. “A missão é tratar toda a gente, independentemente de raça, religião, classe social ou posses para pagar.”

“Só 40%-45% dos palestinianos têm seguro de saúde. Quando nos são encaminhados, têm cobertura do Ministério da Saúde da AP. Após voltarem a casa, o hospital espera quatro ou cinco anos para ser reem bolsado”, segundo Ma’ali. “Neste momento, a AP deve-nos 3,5 milhões de dólares [3,2 milhões de euros].” Anualmente, a União Europeia desembolsa 13 milhões de euros para abater à dívida da AP aos hospitais de Jerusalém.

No St. John desde 1990, onde entrou como estudante de enfermagem, e CEO desde 2019, Ma’ali diz-se apreensivo com a degradação da segurança na Cisjordânia, onde vive. Para chegar ao trabalho tem
de passar um checkpoint. “Como qualquer CEO, tenho de pensar
de onde virá o próximo dólar, mas a minha grande preocupação é o
acesso de funcionários e doentes ao hospital de Jerusalém.”

DIMENSÃO DO PROBLEMA

10
vezes mais casos de cegueira e deficiência visual são registados
nos territórios palestinianos, por comparação aos países ocidentais

142
mil pessoas foram tratadas no Hospital Oftalmológico São João
de Jerusalém em 2022. Foram também realizadas 6900 cirurgias

80
por cento dos problemas oftalmológicos diagnosticados na
população palestiniana são curáveis, garante o hospital

(FOTO Ahmad Ma’ali, CEO do Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém, fotografado na Fundação Champalimaud NUNO BOTELHO)

RELACIONADO: Prémio Champalimaud recompensa hospital empenhado no “combate à cegueira na Palestina”

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de setembro de 2023

Prémio Champalimaud recompensa hospital empenhado no “combate à cegueira na Palestina”

Com mais de 140 anos de vida e trabalho de qualidade na área da oftalmologia, o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém recebe, esta quarta-feira, o prémio anual atribuído pela Fundação Champalimaud. Em entrevista ao Expresso, um responsável do hospital explica por que razão este prémio, no valor de um milhão de euros, chega no momento certo. E também porque nos territórios palestinianos há dez vezes mais casos de cegueira e de deficiência visual do que em qualquer país europeu

O Prémio António Champalimaud de Visão, que anualmente reconhece trabalho desenvolvido na área da prevenção da cegueira, distinguiu, este ano, um projeto de excelência e de grande resiliência atendendo ao nível de conflitualidade na região em que se insere.

O galardoado é o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém (St. John of Jerusalem Eye Hospital, na designação internacional), localizado no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental. Esta é a parte árabe da cidade histórica anexada por Israel e onde, com frequência, irrompem atos de violência entre árabes e judeus.

A Fundação Champalimaud justificou o reconhecimento — e a atribuição de um prémio no valor de um milhão de euros — “pelo empenho na prestação de cuidados oftalmológicos essenciais numa região marcada pelo conflito”, e em especial “pelo combate à cegueira na Palestina”.

“Este generoso prémio chega num excelente momento. Fortalecerá a nossa determinação em estendermos os nossos braços amigos a mais pessoas marginalizadas que necessitam de cuidados oftalmológicos nesta parte tão problemática do mundo”, reagiu Ahmad Ma’ali, CEO do St. John, em entrevista ao Expresso.

“O nosso hospital é a única instituição de beneficência prestadora de cuidados oftalmológicos para as pessoas que vivem na Terra Santa, e dependemos muito de receitas voluntárias que representam 55% a 60% do nosso orçamento operacional”, que supera os 15 milhões de euros, diz o responsável. E anuncia: “Estamos prestes a lançar outro projeto, na parte norte da Cisjordânia [território palestiniano ocupado por Israel]. Nos próximos seis a oito meses, esperamos ter um hospital em funcionamento nessa região que forneça cuidados oftalmológicos de qualidade a quem aí vive. Por isso, o momento deste prémio é perfeito.”

As causas de um grande problema

Nos territórios palestinianos, os casos de cegueira e deficiência visual são cerca de dez vezes mais do que os registados em qualquer país europeu. “Há muitas razões para isso. Por vezes, decorre da falta de acesso a cuidados, outras têm que ver com pobreza e falta de conhecimento”, explica o responsável palestiniano.

Outras causas possíveis são “consanguinidade ou casamentos entre primos de primeiro grau, que ocorrem em cerca de 38-40% da população. Os filhos nascem geralmente com catarata, glaucoma e outras doenças hereditárias.” Tal decorrerá de questões sociais e culturais, mas também dos enormes desafios à mobilidade que enfrentam quem vive nos dois territórios palestinianos (Cisjordânia e Faixa de Gaza).

Unidades móveis para chegar a quem não se pode deslocar

Além do hospital-mãe em Jerusalém, o St. John tem instalações em Gaza (território sob bloqueio) e Hebron (no sul da Cisjordânia). Numa região onde ir à urgência de um hospital ou a uma normal consulta médica pode implicar longas esperas em postos de controlo, este hospital dispõe de equipas móveis que se deslocam para a área C — zonas da Cisjordânia controladas a 100% por Israel — e para aldeias remotas ou isoladas.

“Temos mais de 140 anos, fomos o primeiro hospital oftalmológico a estabelecer-se em todo o Médio Oriente. Devido à instabilidade, à insegurança política que atravessamos há muitos anos, decidimos que se as pessoas não conseguem chegar até nós, precisamos de chegar às pessoas. E por isso, tornámo-nos um grupo de hospitais. Com esta estratégia, quem precisar de nós poderá alcançar-nos.”

Ahmad Ma’ali
CEO do St. John of Jerusalem Eye Hospital

Em 2022, o St. John tratou quase 143 mil pacientes e realizou cirurgias em mais de 6900. “Fomos credenciados como hospital de qualidade pela Joint Commission International”, um organismo de acreditação de unidades de saúde, com sede nos Estados Unidos.

“Portanto, não se trata apenas da quantidade, mas também da qualidade do atendimento. De muitas formas, o hospital lidera ao nível da formação oftalmológica de médicos e enfermeiros, além de liderar na prestação de cuidados oftalmológicos”, realça Ma’ali.

Excelente colaboração com hospitais de Israel

Entre os cerca de 260 profissionais do hospital, há pessoal de todas as origens sociais e religiosas. A esmagadora maioria dos pacientes é árabe muçulmana, mas as portas estão abertas a cristãos e judeus.

“Temos muito poucos pacientes judeus, uma vez que eles têm um serviço avançado e gratuito do lado israelita. Mas estamos abertos a toda a gente, mesmo colonos e soldados que procurem cuidados médicos à nossa porta”, garante Ahmad Ma’ali, que trabalha no hospital há 30 anos. “Somos também um local de formação para ortoptistas judeus, que nos são enviados pelo Hadassah [hospital universitário israelita de referência, também em Jerusalém Oriental]. Temos uma excelente colaboração com hospitais de Israel.”

Um desejo da rainha Vitória de Inglaterra

Criado em 1882, por determinação da rainha Vitória de Inglaterra, o St. John, que pertence à Ordem de São João, é um hospital “profundamente enraizado nos ensinamentos cristãos. O próprio nome é um indicador disso”, diz o CEO da instituição. “A nossa missão é tratar a todos, independentemente da raça, religião, classe social ou capacidade para pagar” os cuidados médicos ou tratamentos.

“Ficamos felizes em fazer parcerias com quem quer que seja — judeus, muçulmanos, cristãos — que compartilhe o mesmo espírito. Atravessamos fronteiras, deixamos a política para os políticos e concentramo-nos na vertente humanitária do nosso trabalho”, prossegue o CEO do hospital.

O Prémio António Champalimaud de Visão é entregue esta quarta-feira, numa cerimónia realizada na Fundação Champalimaud, com a presença do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Esta ligação disponibiliza a lista de vencedores das edições passadas, bem como a composição do júri.

(FOTO Ahmad Ma’ali, CEO do Hospital Olftalmológico São João de Jerusalém, fotografado na Fundação Champalimaud NUNO BOTELHO)

RELACIONADO: Um hospital com visão para reduzir a cegueira na Palestina

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de setembro de 2023. Pode ser consultado aqui