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Cristiano Ronaldo, o novo avançado da ambição internacional da Arábia Saudita

A Arábia Saudita quer enterrar de vez a imagem negativa que a persegue fora de portas e conta com o prestígio de Cristiano Ronaldo para consegui-lo. Esta parceria pode atravessar-se na corrida de Portugal ao Mundial de 2030

A transferência de Cristiano Ronaldo (CR7) para o clube Al-Nassr, da Arábia Saudita, aos 38 anos, pode soar a princípio do fim da carreira de um futebolista extraordinário que recebeu por cinco vezes a Bola de Ouro, troféu que consagra o melhor jogador do mundo. Para o país que o acolheu, contudo, Ronaldo é a esperança de uma grande transformação.

Entre a visibilidade que veio dar ao campeonato saudita e a animação que gera no seio de uma população de 35 milhões, em que 70% têm menos de 35 anos, Ronaldo contribui, pela positiva, para a afirmação internacional de um país agastado por uma imagem ultraconservadora e desrespeitadora dos direitos humanos e por um estatuto que depende, em exclusivo, da abundância de petróleo.

“Julgo que a ida de Ronaldo para a Arábia Saudita é uma mistura de soft power e exercício de marketing, dois conceitos que estão ligados entre si”, comenta ao Expresso David Roberts, professor no King’s College de Londres. “Diz respeito a um reposicionamento mais vasto da Arábia Saudita e à tentativa de criar uma narrativa fundamentalmente diferente, que a afaste de questões negativas e de imagens do passado” e conduza o país “em direção a um sentimento popular inequívoco mais positivo”. Para este perito em assuntos do Médio Oriente, “Ronaldo é muito importante nesse novo pensamento”.

A arma da imagem

Nos manuais de Ciência Política, soft power (poder brando) é um conceito que remete para a capacidade de influência de um país por via do exemplo, dos valores e da aposta em áreas como a cultura e o desporto. Por contraponto, o hard power (poder duro) é o recurso a meios coercivos, sejam militares ou económicos, como as sanções.

“Acredito que a Arábia Saudita esteja a investir no desporto porque reconhece que um país não pode confiar apenas no hard power. Também precisa de soft power para manter boas relações com outros países”, diz ao Expresso Danyel Reiche, professor na Universidade de Georgetown no Qatar. “Por isso, reconhece que os poderes militar e económico não bastam e que também precisa de investir na sua imagem.”

Pelo respeito que conquistou dentro e fora dos relvados, CR7 é uma extraordinária ferramenta de soft power para um país desesperado por reabilitar a sua imagem, degradada nos últimos anos pela campanha de bombardeamentos no Iémen e, sobretudo, pelo caso de Jamal Khashoggi, jornalista saudita crítico do regime que foi assassinado e desmembrado no interior do consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia.

A investigação ao crime implicou diretamente o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS), homem forte do reino e principal mentor de um amplo programa de reformas com que o país se quer abrir ao mundo e no qual CR7 pode ser um peão importante.

Do Newcastle à Fórmula 1

“Ronaldo reflete a mudança na política de poder, que conta não apenas com o hard power, mas passa a visar também o soft power”, diz Reiche. Na área do desporto, “os investimentos começaram antes de Ronaldo, com os jogos [de futebol] referentes às Supertaças de Espanha e de Itália a realizarem-se na Arábia Saudita” e a compra do Newcastle United F.C., clube tradicional inglês, por um fundo de investimentos pertencente à família real saudita.

O país investiu também nos desportos motorizados, passando a acolher o mítico rali Dacar em 2020 e, no ano seguinte, inscrevendo uma corrida no calendário de Fórmula 1, o Grande Prémio de Jeddah, que este ano se realiza a 19 de março. Em 2022, a Arábia Saudita criou o torneio LIV Series, uma espécie de superliga do golfe.

Desde que foi lançada em 2016, a estratégia “Visão 2030” — o tal plano de reformas — tem por objetivo primordial diversificar a economia saudita e reduzir a dependência do reino relativamente à indústria do petróleo, impulsionando, por exemplo, o sector do turismo.

Em paralelo, o programa tem implícito o objetivo de aliviar o controlo wahabita — doutrina religiosa ultraconservadora, austera e puritana, que é religião oficial do Estado — sobre a sociedade. O fim da proibição de as mulheres conduzirem, em 2018, foi uma das medidas mais simbólicas e mediáticas, bem como a autorização da entrada das cidadãs sauditas nos estádios de futebol.

Concubinato é ilegal, mas…

Neste capítulo, a presença de Ronaldo e família na Arábia Saudita é desafiante. Tanto quanto se sabe, o futebolista não é casado com a companheira e o concubinato é prática interdita no reino. Os analistas ouvidos pelo Expresso desvalorizam essa condição, realçando o percurso que a Arábia Saudita vem trilhando em matéria social.

“Se é verdade que Cristiano e a sua companheira não são casados, não vejo que isso seja problema. O atual Governo saudita indicou de várias formas que está a tentar romper com o passado e não se importa com essas abordagens conservadoras da velha guarda”, diz Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”.

“O Governo muda as políticas e retira poderes e influência às crenças religiosas e afins. Nesse sentido, mesmo que a lei não seja consentânea com a realidade, não me parece que isso seja uma preocupação” para as autoridades sauditas, acrescenta o docente.

A tolerância de que Ronaldo beneficia no que respeita à sua condição matrimonial vem em linha com uma lei adotada em 2019, que passou a permitir que turistas estrangeiros solteiros partilhem um quarto de hotel, e que levou as autoridades a fecharem os olhos a algumas dinâmicas dos habitantes estrangeiros.

“O relaxamento das normas sociais não começa com o facto de Ronaldo morar com a sua companheira sem serem casados”, diz Reiche, investigador nas áreas do desporto, política e sociedade. “Há muitas mudanças sociais em curso na Arábia Saudita e o desmantelamento da polícia religiosa em 2016 foi, na minha opinião, a maior de todas.”

Abaya niqab já não são obrigatórios

Formada na década de 1940, a chamada Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício destruía instrumentos musicais, invadia salões de beleza, rapava cabeças, chicoteava pessoas e queimava livros. Difícil é imaginar como atuaria perante um casal com um estilo de vida e exposição mediática que vão além do que é aceite na Arábia Saudita, ainda que o uso da abaya (túnica comprida) e do niqab (véu quase integral) já não seja obrigatório em público para as mulheres.

Roberts não acredita no potencial de contestação social que a falta de sincronia entre o quotidiano de Ronaldo e a realidade saudita possa originar. “Não acho que o Governo saudita sinta pressão de movimentos sociais dentro do país. É muito controlado e controlador, está aos comandos da narrativa.”

A nova estrela do Al-Nassr F.C. (“A Vitória”, em árabe), um dos principais clubes de Riade, é campeão dentro e fora dos relvados. Ronaldo tem mais de 550 milhões de seguidores na rede social Instagram, mais de 160 milhões no Facebook e quase 108 milhões no Twitter.

A sua companheira, a influencer argentina Georgina Rodriguez, é seguida por cerca de 47 milhões de pessoas no Instagram. Se, em público, “Gio” procura primar pela discrição, nas redes sociais posa para as selfies com a ousadia de sempre.

Através das redes sociais, o casal funciona como vitrina para sinais de mudança no país que é o guardião dos dois principais lugares santos do Islão — as mesquitas de Meca e de Medina.

Acusações de sportswashing

A 3 de janeiro, quando foi apresentado em Riade, o próprio CR7 reclamou um papel nesse processo. “Tive muitas oportunidades… Muitos clubes tentaram contratar-me, mas dei a minha palavra a este clube para desenvolver não só o futebol, mas outras áreas deste país fantástico”, disse na conferência de imprensa.

“Quero dar uma visão diferente deste clube e deste país. É por isso que aproveitei esta oportunidade.”

A opção do futebolista português pela Arábia Saudita, Estado não muito cotado nos rankings de respeito pelos direitos humanos, motivou a Amnistia Internacional a emitir um comunicado ao estilo de apelo.

“Cristiano Ronaldo não devia permitir que a sua fama e estatuto de celebridade se tornem uma ferramenta saudita de sportswashing [uso do desporto para melhorar a reputação e mascarar ações merecedoras de condenação]. Devia usar o seu tempo no Al-Nassr para falar sobre a miríade de problemas com os direitos humanos no país.”

Circunscrevendo o impacto do português ao sector desportivo, Ronaldo pode contribuir fortemente para o desenvolvimento da modalidade no reino e noutros países árabes, à semelhança da importância de Pelé no aumento da popularidade do soccer nos Estados Unidos. O “rei” jogou no Cosmos de Nova Iorque entre 1975 e 1977 — os Estados Unidos organizam o Mundial em 1994.

A Arábia Saudita não parece disposta a esperar tanto pelo seu momento. Depois de o futebol ao mais alto nível ter chegado ao Golfo Pérsico com o Mundial no Qatar, em 2022, a Arábia Saudita parece ansiosa por também acolher esse torneio.

Notícias recentes dão conta de que o reino terá sondado o Egito e a Grécia no sentido de uma candidatura conjunta ao Mundial de 2030. Com o anúncio do(s) país(es) organizador(es) previsto para o próximo ano, uma candidatura saudita poderia robustecer-se com o apoio de Ronaldo.

Ronaldo contra Portugal?

“Não tenho a certeza de que 2030 seja hipótese realista para a Arábia Saudita, já que acaba de realizar-se um Campeonato do Mundo no Qatar”, diz Reiche. “Mas é certo que a Arábia Saudita quer ter o seu Mundial um dia, mesmo que não seja em 2030.”

A eventualidade de Ronaldo se tornar uma espécie de embaixador do projeto colocá-lo-ia em rota de colisão com as pretensões de Portugal, que já está na corrida em conjunto com Espanha e Ucrânia.

“É provável que, se a Arábia Saudita lançar uma candidatura ao Mundial de 2030, vá querer que Cristiano desempenhe um papel fundamental nisso, obviamente”, diz Roberts. Em relação à possibilidade de ir contra o seu país, “acontece o mesmo com Messi, suspeito que fosse um momento estranho para ambos”.

Lionel Messi entra em campo porque também a Argentina está na corrida pelo Mundial de 2030, num projeto conjunto com Uruguai, Chile e Paraguai. O astro argentino é ainda embaixador da campanha Visit Saudi, do Turismo da Arábia Saudita. Se esta concorrer ao Mundial de 2030, é bem possível que Ronaldo e Messi passem, por fim, a fazer parte da mesma equipa… saudita.

(FOTO A 22 de fevereiro de 2023, Cristiano Ronaldo associou-se às comemorações do Dia da Fundação do reino TWITTER DO AL-NASSR)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de março de 2023, e na Tribuna Expresso, a 12 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

‘Kafala’, o sistema laboral do Catar que faz do sonho pesadelo

As críticas ao Catar, onde o Mundial arranca no domingo, decorrem de uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante

A esmagadora maioria dos migrantes abrangidos pelo sistema kafala entregam o seu passaporte ao seu empregador MIGRANT-RIGHTS.ORG

A polémica em torno dos direitos dos migrantes no Catar capturou um evento talhado para deslumbrar. Pelo exotismo de ser o primeiro Mundial a decorrer no Médio Oriente e por projetar um pequeno Estado com uma riqueza infinita, que recentemente lhe permitiu resistir a três anos e meio de bloqueio ao território aplicado por quatro países vizinhos.

Na base deste portento estão leis, práticas e costumes laborais que transformam os trabalhadores estrangeiros em ‘escravos dos tempos modernos’ — o sistema kafala. Em árabe, kafala significa ‘garantia’, a mesma que, em teoria, um empregador dá ao empregado quando o contrata.

“No centro deste sistema está uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante, o que a torna particularmente problemática”, explica ao Expresso Ryszard Cholewinski, responsável do gabinete para os países árabes da Organização Internacional do Trabalho.

“A entrada do migrante no país está vinculada a um empregador específico, através de uma autorização de trabalho e residência; a renovação da permanência no país é da responsabilidade do empregador, sendo que a não-renovação da autorização de residência coloca o trabalhador em situação irregular, sujeito a prisão, detenção e deportação; a rescisão do contrato de trabalho requer a aprovação do empregador; mudar de um empregador para outro requer a aprovação do primeiro; a saída do país tem de ter aprovação do empregador.”

Catar lidera nas reformas

O sistema kafala é aplicado nos seis países ribeirinhos do golfo Pérsico, mas também em países árabes, como Jordânia, Líbano e Iraque, com populações significativas de migrantes. Apesar de estar na mira das críticas, o Catar é um dos países que mais reformas tem realizado.

O sistema kafala está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os habitantes nativos

Segundo a Organização Internacional para as Migrações, em 2011, no Catar, 92% dos ‘colarinhos azuis’ (que realizam trabalhos manuais, como trabalhadores da construção civil ou motoristas) tinham entregado o seu passaporte ao empregador. Fruto de pressões regulatórias, em 2014 a percentagem tinha caído 18 pontos. Paralelamente, a quantidade de trabalhadores que dizia conservar consigo o passaporte subiu de 8% para 22%. Hoje, reter o passaporte do trabalhador é ilegal, exceto se tal for solicitado por escrito pelo próprio.

Que querem os nativos?

“O Catar está mais avançado em termos de reformas do sistema kafala e começou a desmantelar os aspetos mais problemáticos do mesmo”, diz Cholewinski. “As reformas incluem a abolição da autorização de saída e do Certificado de Não-Objeção”, ou seja, os migrantes já não precisam do ‘sim’ dos patrões para sair do país ou mudar de emprego.

“Os imigrantes sempre tiveram um papel imenso nas monarquias do golfo, com origem na indústria das pérolas, no século XIX, que impulsionou a imigração em massa a partir do Corno de África”, explica ao Expresso David B. Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”. “Hoje, o sistema também está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os locais. Nativos e líderes querem ter um mecanismo de controlo de quem está no país.”

Cerca de 90% dos 2,8 milhões de habitantes do emirado são estrangeiros, sobretudo da Índia, Bangladexe e Nepal. “Os catarenses estão em desvantagem no seu próprio país, nas empresas, fábricas e casas.”

À parte a pressão interna­cional para que o sistema acabe, essa terá de ser uma vontade local. “O Catar é um país autocrático”, conclui o professor do King’s College de Londres. “E, mesmo em autocracias, os líderes precisam de perceber até que ponto podem insistir em ideias e políticas que os locais não querem. O sistema kafala é um tema quente no Catar. Os locais não querem que seja diluído e até gostariam que fosse alargado.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Um apelo a Ronaldo, Messi e companhia: “Se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar, será uma oportunidade perdida”

As críticas à volta da atribuição do próximo Mundial ao Catar colocam ainda mais os holofotes sobre os futebolistas que irão competir nos luxuosos relvados do emirado. “Os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem” sobre o trabalho escravo dos migrantes, as restrições impostas às mulheres ou a rejeição dos homossexuais, defende Tim Sparv, antigo futebolista finlandês, em entrevista à Tribuna Expresso. Sparv pôs a mão na consciência e tornou-se uma voz em defesa da moralidade no desporto

Nos últimos quinze anos, dois dos maiores eventos desportivos à escala global foram atribuídos, por quatro vezes, a países autoritários, com a ficha suja ao nível do respeito pelos direitos e liberdades individuais.

A China organizou os Jogos Olímpicos de verão em 2008 e a edição de inverno de fevereiro passado, ambos em Pequim. Já a Rússia acolheu os Jogos de inverno de 2014, em Sochi, e o Campeonato do Mundo da FIFA de 2018.

Este ano, ao realizar o Mundial de futebol, o Catar soma-se à lista exclusiva de países com capacidade para organizar, por si só, um evento de grande dimensão. Sem créditos na modalidade, o pequeno emirado do Golfo Pérsico — pouco maior do que o distrito de Beja e com menos de três milhões de habitantes — beneficia de um orçamento suficientemente ilimitado para deslumbrar o mundo do desporto.

Haverá uma sombra a ofuscar todo o glamour: o tratamento escravo dado aos imigrantes, as restrições dos direitos das mulheres e a rejeição à comunidade LGBTQIA+ levantam questões morais que responsabilizam, neste caso, a FIFA e não deixam indiferentes muitos profissionais do desporto.

Um prémio para ditadores

“Atribuir um grande torneio, como o Mundial de futebol, devia ser um prémio por um registo positivo ao nível dos direitos humanos. Devia existir um conjunto de critérios na hora de dar este tipo de eventos. De outra forma, vamos pôr vidas humanas em risco e vamos recompensar ditadores e países que não o merecem”, defende o antigo futebolista finlandês Tim Sparv, em entrevista à Tribuna Expresso.

“Para mim, este tipo de organizações devem compensar bons comportamentos e atitudes, pessoas focadas na igualdade e em valores positivos. Não pode ser suficiente montar um bom espetáculo durante um mês. É necessário algo mais”, sublinha.

Tim Sparv foi o capitão da seleção da Finlândia no Euro 2020, o primeiro Europeu em que a equipa nórdica participou, em 2021 JOOSEP MARTINSON / GETTY IMAGES

O internacional finlandês, que arrumou as chuteiras no final do ano passado, aos 34 anos, é hoje uma voz ativa na denúncia dos problemas laborais no Catar e no apelo para que os agentes desportivos se envolvam.

“Os atletas podem ter um grande impacto na sociedade, mas muitas vezes isso não acontece. Estamos muito envolvidos na profissão e não vemos as possibilidades que temos, de falarmos com crianças e jovens e de os influenciarmos, de passarmos mensagens positivas, contra o racismo, a favor da igualdade, sobre os migrantes, a importância da leitura, pode ser sobre tantas coisas…”, diz.

“Mas é preciso que seja algo em que acreditemos e que nos apaixone. Chegou um pouco tarde na minha carreira, mas estou feliz por fazer algo.”

Viver na bolha, sem olhar o mundo

Sparv despertou para o problema dos abusos dos direitos humanos no Catar em 2019, quando a seleção finlandesa tinha um estágio agendado nesse país do Golfo. Riku Riski, um companheiro de equipa, alegou razões éticas e recusou fazer a viagem.

“Este episódio fez-me questionar: ‘O que se passa? O que não estou a ver?’ Eu sabia que o Catar não era propriamente como a Finlândia, mas vivia na minha bolha, demasiado concentrado em ser futebolista acima de qualquer coisa, em vez de usar a minha condição de capitão da seleção nacional para consciencializar para determinados assuntos.”

Antes de um jogo contra a Turquia, Haaland, estrela da seleção norueguesa e do Manchester City, usa uma ‘t-shirt’ com a inscrição “Direitos humanos, dentro e fora do campo” JORGE GUERRERO / AFP / GETTY IMAGES

Se qualquer futebolista internacional, mesmo em países sem grande projeção na modalidade, tem potencialmente uma audiência de milhões de adeptos a escutá-lo, esse ativo é muitas vezes desperdiçado pelos maiores craques.

“Nestas grandes competições, os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem destes assuntos. Ficarei muito desiludido se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar. Será uma oportunidade perdida.”

A diplomacia das t-shirts

Tim acredita que haverá equipas ou jogadores individualmente a colocarem o dedo na ferida. Anima-o iniciativas como as das seleções da Noruega, Alemanha e Países Baixos — as duas últimas qualificadas para o Catar — que, em jogos de qualificação para o torneio, recorreram à “diplomacia da t-shirt” para difundir mensagens importantes.

“Direitos humanos dentro e fora do campo”, defenderam os noruegueses em camisolas usadas no aquecimento do jogo contra Gibraltar, a 24 de março de 2021. No dia seguinte, antes de defrontarem a Islândia, os jogadores alemães apresentarem-se em formação com a expressão “direitos humanos” estampada em t-shirts pretas. Dias depois, foi a vez dos neerlandeses juntaram-se à campanha com o slogan “Futebol apoia a mudança”.

Sem adesão da equipa adversária (Hungria), os jogadores ingleses protestam contra o racismo, na Puskas Arena de Budapeste NICK POTTS / GETTY IMAGES

Em março deste ano, Harry Kane, o capitão da seleção inglesa, revelou que os jogadores tinham-se reunido para discutir a questão dos direitos humanos no Catar. E garantiu que os ingleses irão usar as plataformas ao seu dispor para aumentar a consciencialização sobre o assunto.

“É importante perceber que, antes de tudo, enquanto jogadores, nós não escolhemos onde este Campeonato Mundial vai ter lugar”, disse Kane. “Mas isto acabou por contribuir para lançar o foco sobre questões importantes que poderiam não ter vindo à tona se o Mundial não se realizasse ali.”

Ainda o exemplo de Kaepernick

A equipa inglesa tem sido das que, de forma mais convicta, continua, antes de cada partida, a colocar o “joelho no chão”, num protesto antirracismo criado por Colin Kaepernick. Em 2016, este jogador de futebol americano ajoelhou-se durante a execução do hino dos Estados Unidos, em protesto contra a violência racial no país. O gesto acabou com a carreira do futebolista, mas continua a inspirar desportistas em todo o mundo.

“Tenho a certeza que alguém vai usar o Mundial no Catar para fazer algum tipo de campanha, alguma ação focada na situação dos trabalhadores migrantes, na igualdade, nos direitos das mulheres ou da comunidade LGBTQ”, diz Sparv.

“Estou bastante confiante que alguém diga: ‘Ok, esta é uma grande possibilidade de falarmos sobre estes assuntos, de sermos criativos e fazermos algo acontecer, dentro ou fora do campo, antes ou depois dos jogos’. E os adeptos também têm a possibilidade de desempenhar um papel.”

Tim Sparv abandonou os relvados em dezembro de 2021, aos 34 anos, encerrando uma carreira de quinze anos como futebolista profissional LARS RONBOG / GETTY IMAGES

Sparv acredita no poder da palavra. Além das entrevistas aos órgãos de informação, tem escrito artigos incitando os protagonistas do futebol a não ficarem indiferentes.

Já este ano, deslocou-se ao Catar, numa viagem organizada pela Federação Internacional das Associações de Futebolistas Profissionais (FIFPro), o que lhe possibilitou o contacto com migrantes, deu-lhe um conhecimento mais amplo do problema e conferiu-lhe maior legitimidade para falar.

Como tratar a Rússia?

O finlandês não se mostra partidário do boicote a eventos desportivos realizados em países alvo de algum tipo de desaprovação internacional. Mas aceita que possa haver exceções, e toma como exemplo a invasão russa da Ucrânia.

“Boicotar a Rússia, impedindo-a de participar em eventos desportivos internacionais, é a única coisa a fazer. É um pouco difícil ver como isso afeta os atletas russos individualmente. Eles deviam ter a possibilidade de continuar com as suas carreiras, não usando a bandeira da Rússia, claro. Mas no caso de atletas que apoiem a guerra, façam a apologia de Vladimir Putin ou usem a letra Z, penso que não deverão ter hipótese de participar em competições internacionais.”

Uma bandeira com o “Z” de apoio à invasão russa da Ucrânia é desfraldada durante um jogo do campeonato sérvio ANDREJ ISAKOVIC / AFP / GETTY IMAGES

A agressão da Rússia à Ucrânia levou países vizinhos a recearem passar por igual pesadelo. A Finlândia, em particular, pôs fim à sua neutralidade histórica e pediu adesão à NATO.

Sparv, que vive atualmente em Praga, a capital da República Checa, de onde é natural a companheira, fez a sua parte e entregou as chaves do seu apartamento, na cidade de Vaasa (na costa ocidental), a uma família ucraniana composta por mãe e dois filhos.

“O pai ficou na Ucrânia, mas a família está bem, se é que é possível dizê-lo desta forma. As crianças gostam de futebol, então levei-as a um clube local, em Vaasa. Já estão a praticar e a fazer novos amigos. Para mim, foi uma forma concreta de ajudar alguém. Senti-me mesmo bem.”

(FOTO PRINCIPAL “Direitos humanos”, lê-se nas ‘t-shirts’ da seleção da Alemanha, num jogo de qualificação para o Mundial do Catar TOBIAS SCHWARZ / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 4 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

O Euro não é só futebol: 10 momentos políticos durante a fase de grupos

Uma claque de ultras nas bancadas de Budapeste, jogadores ajoelhados em protestos contra o racismo, traumas de guerras recentes ou mais longínquas e, inevitavelmente, as dificuldades colocadas pela covid-19… O Euro ainda não vai a meio e já não faltam contendas políticas

1. MUITO MAIS DO QUE UMA CLAQUE

O aviso fora dado três dias antes de arrancar o Euro. Num jogo amigável, em Budapeste, entre a Hungria e a República da Irlanda, as bancadas da Puskás Arena reagiram mal ao protesto contra a discriminação racial realizado pelos jogadores irlandeses. Apuparam-nos todo o tempo que permaneceram de joelho no chão, antes de o jogo começar.

Alguns jogadores húngaros indignaram-se com a tomada de posição dos colegas irlandeses e apontaram para a palavra “Respeito”, impressa na manga dos equipamentos de todas as seleções que disputam o Euro. Ora, essa palavra é parte de uma campanha promovida pela própria UEFA, de combate… ao racismo.

A exceção húngara no Euro 2020 — é o único país organizador a permitir bancadas cheias — contribuiu para dar visibilidade a uma contestação organizada a estas intervenções cívicas nos relvados. Na Puskás Arena (68 mil lugares), onde a seleção da casa recebeu Portugal e a França (e onde estas duas seleções se defrontaram quarta-feira), centenas de pessoas com t-shirts pretas, apinhadas numa das bancadas, deram nas vistas neste papel. São uma espécie de claque oficial da seleção húngara e respondem pelo nome de Brigada dos Cárpatos.

Este grupo de ultras alia o entusiasmo pelo futebol à exaltação do nacionalismo. Engloba grupos radicais, como os Monstros Verdes, que apoiam o Ferencváros nas competições de clubes. Nas bancadas da Groupama Arena, em Budapeste, são frequentes os cânticos visando negros, ciganos, judeus e homossexuais, bem como a saudação nazi.

Criados na década de 1990, os Monstros definem-se como patriotas de extrema-direita e exibem, com orgulho, a sua opção pela violência, envolvem-se em lutas com grupos rivais e espancam ou esfaqueiam quando a sua equipa perde. Numa demonstração de força, muitas vezes, nas bancadas, alguns despem as t-shirts pretas para exibir os troncos musculados.

Membros da Brigada dos Cárpatos, na Puskás Arena, durante o Hungria-França ALEX PANTLING / GETTY IMAGES

Animados pela circunstância de, pela primeira vez, a Hungria acolher um evento da dimensão e com a projeção do Euro, a Brigada surge como grupo de apoio à seleção magiar mas também a Viktor Orbán, o primeiro-ministro conservador da Hungria, que tem no futebol o seu desporto favorito e no combate à homossexualidade uma prioridade política.

No exato dia em que Hungria e Portugal disputaram a sua primeira partida do Euro em Budapeste, o Parlamento húngaro aprovou legislação introduzida pelo partido de Orban (Fidesz — União Cívica Húngara), que proíbe a divulgação de conteúdos alusivos à homossexualidade e à mudança de sexo junto de menores de 18 anos. Algo que a Brigada dos Cárpatos não contesta.

2. A GUERRA DA JUGOSLÁVIA AINDA FERVE

O jogo estava longe de ser dos mais interessantes do Euro, mas a temperatura subiu já muito perto do fim quando, ao minuto 89, a Áustria confirmou a vitória por 3-1 com um derradeiro golo. O marcador, Marko Arnautovic, austríaco de ascendência sérvia, não se conteve nos festejos e provocou Ezgijan Alioski, adversário de ascendência albanesa. “Que a tua mãe albanesa se vá f****”, gritou na direção do macedónio.

Não contente, fez o gesto de OK com a mão, conotado com os movimentos supremacistas brancos. O insulto ressuscitou velhos fantasmas dos tempos da Jugoslávia, onde sérvios, macedónios, albaneses e muitos outros grupos étnicos simulavam coexistência pacífica dentro das mesmas fronteiras.

Após marcar à Macedónia do Norte, o austríaco Marko Arnautovic celebrou com um gesto supremacista, na direção de um rival DANIEL MIHAILESCU / AFP / GETTY IMAGES

No dia seguinte ao jogo, já com a controvérsia no domínio público, o austríaco pediu desculpa pelas suas “palavras a quente” e disse não ser racista. Mas a Federação de Futebol da Macedónia do Norte — que participou pela primeira vez na fase final de um Campeonato da Europa em 30 anos de independência — não o poupou e apelou à UEFA, que puniu Marko Arnautovic com um jogo de suspensão.

3. MODA UCRANIANA NÃO PEGA NA RÚSSIA

Ainda o apito não soara no Europeu e já o torneio estava envolvido numa contenda política. Nas malas para Amesterdão, onde assentou arraiais antes da primeira partida, a seleção da Ucrânia levou camisolas com um pormenor que desencadeou a fúria dos russos.

Discreto, a amarelo, o mesmo tom das camisolas, um mapa da Ucrânia tinha como parte integrante do território a Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, bem como as regiões separatistas pró-russas de Donetsk e Lugansk, no leste do país. Os equipamentos tinham também bordados dois slogans nacionalistas: “Glória à Ucrânia!” e “Glória aos heróis!”.

O mapa da Ucrânia, com a Crimeia incluída, bordada num equipamento da seleção ucraniana que a UEFA não autorizou AFP / GETTY IMAGES

Andrii Pavelko, Presidente da federação ucraniana, disse que o equipamento simbolizava “a pátria única e indivisa” e inspiraria os jogadores a “lutarem em nome de toda a Ucrânia”. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia falou de uma medida “desesperada” e os protestos de Moscovo chegaram à UEFA, cujos estatutos proíbem mensagens políticas nos equipamentos dos atletas.

Pesados os prós e contras, o organismo que tutela o futebol europeu autorizou os ucranianos a vestirem a contestada camisola, com uma única exigência: a remoção da inscrição “Glória aos heróis!” da parte interior do colarinho, dada a sua conotação militar.

A sorte quis que as duas seleções não se defrontassem na fase de grupos, o que evitou males maiores. Já o mérito desportivo ditou que a Rússia fosse eliminada e a Ucrânia seguisse em frente, mas sem hipótese de ter que jogar em São Petersburgo…

4. UMA RIVALIDADE CENTENÁRIA QUE NÃO ESMORECE

Um França-Alemanha é daqueles jogos que não escapa a conotações políticas, nem mesmo quando é ‘a feijões’. Mais ainda quando, consumado o ‘Brexit’ — a saída do Reino Unido da União Europeia —, os dois países voltaram a ser os dois grandes polos políticos da comunidade.

Neste Europeu, após os gauleses vencerem os germânicos por 1-0, alguns franceses acenaram com essa rivalidade histórica. No dia seguinte ao jogo, o prestigiado jornal desportivo “L’Équipe” escreveu em manchete: “Como em 18”.

As reações à capa do jornal dividiram-se entre duas interpretações. Por um lado, houve quem pensasse tratar-se de uma referência ao Mundial da Rússia de 2018, que a França venceu e onde a Alemanha foi para casa de forma humilhante após a fase de grupos. Outra leitura socorre-se de uma memória mais longínqua: a da rendição alemã na Grande Guerra, em 1918.

“L’Équipe” foi acusado de mau gosto e de estar a ressuscitar fantasmas nacionalistas. No Twitter, o jornalista francês Samuel Etiene, da televisão pública France 3, desabafou: “A referência à Guerra 14-18 e aos seus milhões de mortos é forçosamente necessária após um França-Alemanha?”

Hans-Dieter Lucas, embaixador alemão em França, não atribuiu (ou não quis atribuir) o mesmo significado à opção editorial do “L’Équipe” e reagiu de forma surpreendente: “A memória do Campeonato do Mundo de 2018 continua dolorosa, mas felizmente os nossos amigos — Les Bleus — ajudaram-nos a sentir grandes emoções naquele ano. Viva a amizade franco-alemã”, escreveu no Twitter.

5. JOELHOS NO CHÃO, APUPOS NAS BANCADAS

Foram uma minoria entre as 24 equipas que disputaram a fase de grupos do Euro. Inglaterra, Escócia, País de Gales, Suíça e Bélgica não abdicaram de usar o palco mundial que é esta competição para afirmarem convicções e manifestarem-se contra o racismo, dobrando um joelho no chão antes do início do jogo.

Este gesto ‘fez escola’ após Colin Kaepernick, então jogador da liga de futebol americano, o ter feito durante a execução do hino norte-americano, em 2016, num protesto contra a violência policial sobre os afroamericanos. Desde então, tornou-se um símbolo do movimento Black Lives Matter.

Neste Euro, antes do Dinamarca-Bélgica, o belga Jason Denayer aliou o joelho no chão ao punho erguido, gesto popularizado nos Jogos Olímpicos da Cidade do México (1968), por dois atletas norte-americanos, num ato de solidariedade para com o movimento Black Power.

No Inglaterra-Escócia, ambas as equipas realizaram o protesto antes do início do jogo MIKE EGERTON / GETTY IMAGES

Amplamente executado na Premier League, primeira divisão inglesa, não causou surpresa que tanto ingleses como escoceses repetissem o protesto no jogo que os opôs. Outra partida onde houve unanimidade envolveu outra equipa britânica: o País de Gales, contra a Suíça.

O gesto não tem sido, porém, totalmente compreendido por todas as nacionalidades em presença neste Europeu. Quando a Bélgica defrontou a Rússia e os belgas se ajoelharem no relvado, as bancadas do Estádio de São Petersburgo vaiaram-nos.

6. PROTESTO SEGUIDO DE PEDIDO DE DESCULPAS

Não correu bem, e a Greenpeace acabou a pedir desculpa pela sua ação. Estava prestes a começar o Alemanha-França, em Munique, e um paraquedista irrompeu, desgovernado, no perímetro da Allianz Arena. Na tela, um apelo: “Abandonem o petróleo!”

Não era suposto que o ativista da Greenpeace aterrasse no relvado do Alemanha-França MARKUS GILLIAR / GETTY IMAGES

No Twitter, a organização ambientalista detalhou o propósito daquela iniciativa: “Ei, Volkswagen, é hora de abandonar o petróleo! Ativistas do Greenpeace protestam contra o patrocinador dos jogos na partida entre a Alemanha e a França e exigem: parem de vender carros a gasóleo e gasolina que prejudicam o ambiente!”.

Ao descer na direção do relvado, o ativista perdeu o controlo do paraquedas, passou rente à bancada e feriu dois adeptos que tiveram de ir para o hospital. Acusada de irresponsabilidade, a ONG esclareceu que o plano inicial era o ativista apenas sobrevoar o estádio e deixar cair uma bola de látex com uma mensagem.

7. BRAÇADEIRA PÕE MANUEL NEUER ‘NO BANCO DOS RÉUS’

Junho é, em todo o mundo, o Mês do Orgulho, a favor da igualdade de direitos para todas as orientações sexuais e identidades de género. Da baliza da seleção alemã, Manuel Neuer associou-se à campanha pela diversidade e contra o ódio, entrando em campo com a braçadeira de capitão tingida com as cores do arco-íris, bandeira da comunidade LGBTQI+.

A UEFA abriu uma investigação ao atleta, que depressa foi arquivada em função das inúmeras críticas que o procedimento desencadeou. Numa carta enviada à federação alemã, a UEFA lavou a face e considerou a braçadeira um símbolo coletivo a favor da diversidade e, portanto, de “uma boa causa”.

Manuel Neuer, após a vitória alemã sobre Portugal, com a faixa arco-íris no braço CHRISTIAN CHARISIUS / GETTY IMAGES

Este episódio teve um segundo capítulo. A autarquia de Munique demonstrou vontade de iluminar a Allianz Arena com as cores do arco-íris, por ocasião do jogo entre a Alemanha e a Hungria. A ação teria o intuito de “enviar um sinal de solidariedade visível” à comunidade gay da Hungria, país que recentemente introduziu legislação anti-LGBT+ e onde, dentro dos estádios, há manifestações racistas e homofóbicas.

Foi o que aconteceu na Puskás Arena, no jogo contra Portugal, onde das bancadas saíram cânticos de “Cristiano homossexual” e depois contra a França, altura em que Kylian Mbappé e Karim Benzema foram alvo de insultos racistas.

A UEFA decidiu investigar os incidentes no estádio de Budapeste, mas não autorizou a iluminação da Allianz Arena dado o seu “contexto político”. Sentindo-se no olho do furacão, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que considerara a ideia de iluminar o estádio “muito nociva e perigosa”, cancelou a sua presença no jogo de Munique, em que a Hungria bateu o pé à poderosa Alemanha (2-2).

8. RUSSOS E FINLANDESES, FRENTE A FRENTE DESTA VEZ NO FUTEBOL

À semelhança da Macedónia do Norte, também a Finlândia participa numa fase final do Euro pela primeira vez na história. Integrados no grupo B, os finlandeses disputaram dois jogos inesquecíveis: o primeiro contra a Dinamarca, tragicamente marcado pela paragem cardíaca de Christian Eriksen; o segundo, contra a Rússia, de quem a Finlândia se tornou grão-ducado no início do século XIX, só ascendendo à independência em 1917.

Para explicar o simbolismo desta partida — marcada para o Estádio de São Petersburgo —, crónicas de antecipação ao jogo recuperaram uma citação dita em 2007 pelo então ministro da Defesa da Finlândia, Jyri Häkämies, que afirmou que as três maiores ameaças à segurança do país eram: “Rússia, Rússia, Rússia”.

Quatro finlandeses para um russo, em São Petersburgo, no primeiro embate de sempre entre as duas seleções, numa fase final do Euro MAKSIM KONSTANTINOV / GETTY IMAGES

Neste Euro, o jogo entre as duas equipas resultou numa vitória da experiente Rússia — vencedora do torneio em 1960 (enquanto União Soviética) — sobre a caloira Finlândia. Mas fechadas as contas, os finlandeses terminaram em terceiro lugar no grupo e os russos em quarto, sem que nenhuma equipa tenha seguido em prova.

9. DRAGHI VS ERDOGAN, UM ITÁLIA-TURQUIA POR OUTROS MEIOS

O jogo que inaugurou o Euro, no Estádio Olímpico de Roma, teve implícito um diferendo político recente. No início de abril, o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, foi das vozes mais agressivas para com o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, após o caso Sofagate — a humilhação da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante uma visita Ancara, sem lugar onde se sentar num encontro com Erdogan. Então, Draghi chamou “ditador” ao chefe de Estado turco.

Este acusou o italiano de “falta de tato” e “grosseria” e responsabilizou-o por minar a relação entre os dois países. “Ao fazer esta declaração, o homem chamado Draghi infelizmente fez cair o machado sobre o nosso relacionamento exatamente no momento em que esperávamos que as relações turco-italianas chegassem a bom porto.”

“Fair-play” entre os treinadores turco, Senol Gunes, e italiano, Roberto Mancini, um gesto impossível entre Erdogan e Draghi BURAK AKBULUT / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

Apesar de se ter deslocado ao Azerbaijão para ver a sua Turquia perder por 2-0 com o País de Gales, no Estádio Olímpico de Baku, Erdogan primou pela ausência nas duas partidas que a Turquia disputou no Olímpico de Roma, contra a Itália e a Suíça.

Se tivesse ido, no jogo contra a Squadra Azurra, teria à sua espera algo incómodo para digerir, tendo em conta as suas posições políticas: o quarto árbitro do jogo foi uma mulher, a francesa Stéphanie Frappart, a primeira a participar num Europeu masculino.

Em Itália, grupos de ativistas pressionaram para que a equipa de arbitragem fosse integralmente composta por mulheres, em resposta ao tratamento sexista de Ursula von der Leyen em Ancara e, sobretudo, da saída da Turquia da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, assinada em 2011… em Istambul.

10. COVID-19 ENTRA EM CAMPO

A pandemia adiou o Euro 2020 para 2021, mas mesmo assim o campeonato — que decorre em 11 cidades de 11 países — não está livre de sobressaltos. Terminada a fase de grupos, e com a covid-19 a manifestar-se pelo continente a diferentes velocidades, subsistem dúvidas em relação aos próximos locais dos jogos, designadamente os das meias-finais e o da final, agendados para o Estado de Wembley, em Londres.

Para entrar no Estádio de Wembley, para além do bilhete para o jogo, há que verificar também o estado dos espectadores em matéria de covid-19 LEON NEAL / GETTY IMAGES

No Reino Unido, o aumento do número de contágios, que levou o Governo britânico a adiar para 19 de julho a última fase do desconfinamento, e a prevalência da variante Delta (altamente contagiosa) levaram algumas vozes a defender o afastamento das meias-finais e finais de solo britânico.

O primeiro-ministro Boris Johnson já afirmou que “a saúde pública continua a ser a prioridade”. A UEFA preocupa-se em especial com a quarentena obrigatória de dez dias que Londres aplica a quem chega ao país vindo de territórios que não estão na lista verde (como é o caso de Portugal). Já foi isso que travou a realização em Inglaterra da final da Liga dos Campeões, entre duas equipas inglesas. Acabou por ser no Porto.

A regra pode inviabilizar a entrada no Reino Unido de largas centenas de convidados da organização, entre funcionários, patrocinadores e VIP, o que pode levar a UEFA a socorrer-se de um plano B para contornar esse obstáculo. Como cidade alternativa a acolher a final, pelas menores limitações à pandemia, a opção mais falada tem sido… Budapeste, a capital da Hungria.

(FOTO PRINCIPAL Jason Denayer, futebolista belga, alia o joelho no chão ao punho erguido, num protesto antirracista antes do jogo com a Dinamarca, em Copenhaga WOLFGANG RATTAY / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 24 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Paris Saint-Germain vs. Manchester City. O “dérbi do Golfo” que vai muito além do futebol

Paris Saint-Germain e Manchester City disputam, esta quarta-feira, a primeira mão das meias-finais da Liga dos Campeões. Os dois clubes são pontas de lança ao serviço de dois países do Médio Oriente empenhados em projetar poder e influência em todo o mundo: Qatar e Emirados Árabes Unidos. A vitória no relvado terá também uma dimensão geopolítica

Ambos sonham conquistar a Liga dos Campeões e os muitos milhões que têm ao seu dispor aproximam-nos dessa possibilidade. Paris Saint-Germain (PSG) e Manchester City medem forças, esta quarta-feira, na primeira mão das meias-finais da prova milionária.

Mais do que uma disputa desportiva entre dois emblemas que querem chegar ao topo do futebol europeu, os jogos desta quarta-feira, em Paris, e de 4 de maio, em Manchester, têm implícito um braço de ferro entre dois países do Médio Oriente — o Qatar (dono do PSG) e os Emirados Árabes Unidos (proprietário do City) — que rivalizam entre si e que, tendo comprado estes dois emblemas, usam-nos como arma de soft power para projetar poder e influência em todo o mundo.

Será uma partida picante a nível político e a nível popular, já que cada clube é sinónimo de uma monarquia. Como tal, muitos tenderão a olhar para este jogo como uma disputa por procuração, mesmo que não estejam assim tão interessados em futebol”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres e autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017).

1880 É fundado o Manchester City Football Club. Foi comprado pelo Abu Dhabi United Group em 2008. Joga no Etihad Stadium e o patrocinador das camisolas é a Etihad Airways, uma das transportadoras aéreas dos Emirados Árabes Unidos

1970 O Paris Saint-Germain foi criado após fusão entre o Paris Football Club e o Stade Saint-Germain. Foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011. Joga no Parque dos Príncipes e tem entre os seus parceiros premium o Turismo do Qatar e a Qatar Airways

Qatar e Emirados são antigos protetorados britânicos que conservaram o gosto pelo futebol mesmo após declararem independência, em 1971. Passados 50 anos, servem-se desse património afetivo e da sua enorme riqueza — a do Qatar vem do gás natural e a dos Emirados, do petróleo — para se afirmarem, patrocinando clubes e comprando outros.

Desde 2008 que o Man City é detido pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dabi, principal dos sete emirados que compõem o país chamado Emirados Árabes Unidos. O Abu Dhabi United Group, empresa privada que comprou o City, é também dono do Bombaim FC, do Melbourne FC e do Cidade de Nova Iorque FC, entre outros clubes por todo o mundo.

Já o PSG foi comprado em 2011, numa altura em que andava arredado dos títulos, mesmo em França. Foi adquirido pelo próprio emir do Qatar, através do Qatar Sports Investments, fundo soberano que é uma espécie de ponta de lança do país no esforço de afirmação internacional. Ao leme do PSG, o Qatar mostrou cedo ao que vinha: em 2012 contratou Zlatan Ibrahimovic, em 2013 Edinson Cavani e David Beckham e em 2017 Kylian Mbappé e Neymar.

“O PSG é enorme no Qatar, por razões óbvias”, diz David B. Roberts. “Embora o futebol inglês seja dominador, regra geral, com as notáveis exceções dos dois clubes espanhóis [Real Madrid e Barcelona] cada vez menos pessoas admitirão apoiar o Man City no Qatar!”

A estratégia do pequeno emirado — que tem uma população de três milhões e área oito vezes menor do que Portugal — terá o seu ponto alto no próximo ano, quando o Qatar acolher o Mundial de futebol, que terminará uma semana antes do Natal.

Seja ou não um bom jogo, o duelo entre PSG e City terá inevitavelmente uma dimensão geopolítica, dada a rivalidade entre Qatar e Emirados e o facto de apoiarem fações contrárias em várias contendas do Médio Oriente. Cinco exemplos:

  1. BLOQUEIO AO QATAR. Os Emirados foram um dos quatro países que a 5 de junho de 2017 impuseram um bloqueio por terra, mar e ar ao Qatar. Durou 43 meses e terminou a 5 de janeiro passado, em vésperas de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos e defender a necessidade de “recalibrar” a relação com a Arábia Saudita (primeiro país que Donald Trump visitou), outro promotor do bloqueio ao Qatar.
  2. RELAÇÃO COM O IRÃO. Apesar de Qatar e Emirados serem países muçulmanos sunitas, o Qatar tem uma relação de proximidade ao Irão (xiita) como nenhum outro país do Golfo. Para tal, não será alheio o facto de ambos partilharem o maior campo de gás do mundo. Já a relação entre Irão e Emirados tem-se pautado pela tensão, sobretudo em torno da disputa de três ilhas: Abu Musa, Grande Tunb e Pequena Tunb.
  3. INTERVENÇÃO NA LÍBIA. Neste longínquo país do Norte de África, em guerra desde o fim do regime de Muammar Kadhafi (2011), os Emirados apoiam as forças leais ao general rebelde Khalifa Haftar enquanto o Qatar alinha ao lado da Turquia em defesa do Governo de Tripoli, internacionalmente reconhecido. A relação com a Turquia — que tem uma base militar no Qatar — intensificou-se na sequência do bloqueio regional ao país.
  4. NORMALIZAÇÃO COM ISRAEL. Os Emirados foram um dos países árabes que, no ano passado, normalizaram a sua relação diplomática com Israel. Por seu lado, o Qatar é dos principais fornecedores de ajuda financeira ao território palestiniano da Faixa de Gaza (controlado pelo grupo islamita Hamas).
  5. APOIO A ISLAMITAS. Como revela a sua posição em relação à questão palestiniana, o Qatar não tem pejo em apoiar grupos islamitas — como o Hamas e, sobretudo, a Irmandade Muçulmana —, enquanto os Emirados se opõem terminantemente e os reprimem internamente.

PSG e City encontram-se na Champions num momento em que ecoa ainda o fracasso da Superliga Europeia, projeto que mereceu dos dois clubes posições contrárias: o City foi um dos fundadores e o PSG recusou participar.

“Para o PSG teve muito mais que ver com o papel mais amplo do sotf power, não tanto o dinheiro. O mesmo pode ser dito sobre o Man City e os seus proprietários”, diz Roberts. “Julgo que a diferença crucial se prende com a pressão de outras equipas inglesas sobre o Man City no sentido de aderir (por comparação à ausência de pressão em França), e com a relação muito próxima entre o PSG e a UEFA, a nível pessoal e institucional.”

Falhanços no desporto e na política

Para a história, o PSG (e o Qatar) ficou bem na fotografia, enquanto o Manchester City (e os Emirados) saiu rotulado como um dos “12 sujos”. “Para os Emirados, [o insucesso da Superliga Europeia] foi outro malogro depois de o seu bloqueio ao Qatar ter falhado por completo. Nenhuma das 13 exigências apresentadas ao Qatar em junho de 2017 foi cumprida, incluindo a exigência ridícula de fechar a Al Jazeera, cadeia noticiosa que estabeleceu novos padrões críticos para reportagens no Médio Oriente”, comenta ao Expresso Danyel Reiche, investigador na área da Política e Desporto, que lidera um projeto de investigação sobre o Campeonato do Mundo de 2022, na Universidade de Georgetown do Qatar.

“O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, foi muito esperto em não aderir à Superliga, proposta que ignorou o sentimento de uma vasta maioria de adeptos europeus, que rejeitam a americanização dos desportos europeus e a eliminação da meritocracia, com ligas fechadas sem promoções e despromoções. Creio que o PSG, e também os grandes clubes alemães, serão recompensados pela sua resistência à Superliga, ganhando o apoio de adeptos em todo o mundo. Isso é especialmente bom para o PSG, que era, até agora, sobretudo associado ao sucesso a partir de combustíveis fósseis.”

Para o PSG, a vitória neste embate significará a repetição da época passada, quando atingiu a final de Lisboa, que perdeu para o Bayern de Munique. Já para o City a chegada às meias-finais é feito inédito no palmarés do clube, numa altura em que a sua popularidade já teve melhores dias.

“Muito foi dito sobre os donos do Liverpool, que ignoraram o desejo dos adeptos. Mas para mim o desenvolvimento mais interessante foi o do Manchester City”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor de Desporto e Teoria Social na Universidade de Loughborough (Inglaterra). “No passado, muitos adeptos de outros clubes consideravam o City a sua segunda equipa, porque não era o Manchester United, era o verdadeiro clube de Manchester (o United tem sede em Salford). O City não teve muito êxito em grande parte da sua história e, no entanto, tinha adeptos locais leais. Questiono-me que pensarão os adeptos mais antigos sobre aquilo que o clube se tornou.”

A perspetiva de ganharem por fim a Liga dos Campeões talvez os leve a serem contidos em relação à liderança do clube. Para tal, o City terá de ultrapassar o PSG. Talvez nenhum outro duelo personifique atualmente o poder do dinheiro no futebol europeu.

(IMAGEM PMNEWS NIGERIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui