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Acordo de conveniência entre sauditas e iranianos

A normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão é uma derrota para os Estados Unidos e Israel

Não haverá muitas rivalidades no mundo tão amplas e antigas como a que opõe Arábia Saudita e Irão. Frente a frente estão um reino árabe que professa uma matriz sunita fundamentalista do islão e uma república islâmica, assente numa interpretação xiita radical, herdeira da civilização persa. A força destas identidades contamina países vizinhos, origina guerras por procuração e torna a estabilidade no Médio Oriente uma quimera.

Ora, dois territórios declaradamente inimigos há quase 1400 anos — quando se deu o cisma entre sunitas e xiitas — não se tornam amigos da noite para o dia. Anunciada a normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão, dia 10, sobram interrogações acerca do que a motivou.

“Arábia Saudita e Irão estão a sair da esfera de influência ocidental e, no que toca à Arábia Saudita, da esfera dos Estados Unidos”, diz ao Expresso o investigador Tiago André Lopes, do Instituto do Oriente. “E estão a posicionar-se, por dependência energética, mais próximos da China”, mediadora deste diálogo.

Estes países tinham as relações congeladas desde 2016, na sequência da decapitação de um clérigo xiita saudita, crítico do regime de Riade. No Irão houve protestos, invasão da embaixada saudita e promessas de “vingança divina” por parte do líder supremo, ayatollah Ali Khamenei. Há algum tempo, contudo, que ambos queriam voltar a página das hostilidades, sufocados por problemas económicos e despesas extra decorrentes da guerra no Iémen — onde Teerão apoia os houthis (grupo xiita que tomou o poder pela força) e Riade lançou uma ofensiva com o intuito de os depor.

Dois anos a negociar

“As negociações começaram há dois anos, com mediação do Iraque. Enquanto isso, Omã acolheu conversações entre os houthis e uma delegação saudita. O diálogo começou porque as partes precisavam de chegar a acordo. O aumento da tensão não correspondia aos seus interesses”, diz ao Expresso Javad Heirannia, do Centro do Médio Oriente, de Teerão.

O acordo está muito longe de ser uma parceria estratégica ou tratado de amizade e cooperação. Tem um período de carência de dois meses e prevê apenas a reativação dos canais diplomáticos. “As grandes questões de fundo, as diferenças ideológicas, não vão ficar resolvidas. O que se resolve é a abertura das embaixadas”, explica Tiago André Lopes.

“Não interessa à Arábia Saudita nem ao Irão terem demasiadas frentes abertas. Interessa-lhes fechar esta frente, porque o que os separa continuará a separá-los”, continua o professor da Universidade Portucalense, para quem é claro que ambos buscam “um consenso no que toca aos teatros que estão abertos por causa desta confrontação: Iémen e Líbano”.

Irresolúvel do ponto de vista militar, a guerra no Iémen está num impasse há anos. Em abril de 2022, as partes comprometeram-se com um cessar-fogo, que expirou em outubro. Desde então, mesmo sem renovação formal, a trégua não colapsou, indiciando a vontade de pôr ponto final ao conflito.

Já o Líbano, sem viver em clima de guerra aberta, parece muitas vezes à beira desse precipício, com um sistema político retalhado por 18 grupos confessionais — entre os quais os xiitas do poderoso Hezbollah, apoiado pelo Irão —, uma economia falida e uma sociedade fragilizada pela corrupção. “As diferenças entre Irão e Arábia Saudita criaram um impasse político no Líbano, que não produziu resultados para os dois países e respetivas forças aliadas”, comenta Heirannia.

ARÁBIA SAUDITA E IRÃO BUSCAM CONSENSONOS TEATROS ABERTOS PELO CONFRONTO ENTRE AMBOS: IÉMEN E LÍBANO

O potencial estabilizador desta aproximação consagra a mediadora China. Para lá dessa demonstração de poder, duas circunstâncias precipitaram a convergência entre os dois gigantes geopolíticos do Médio Oriente: o programa nuclear iraniano e o aperto económico saudita.

Recentemente, a Agência Internacional de Energia Atómica revelou que inspetores encontraram, na central iraniana de Fordow, “partículas” de urânio enriquecido a 83,7%, muito próximo dos 90% necessários para a produção da bomba atómica. De nada serviu mais de um ano de negociações em Viena com vista à reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão (JCPOA), de 2015, ferido com gravidade pela retirada dos EUA ordenada por Donald Trump. E as sanções com que Washington tentou vergar Teerão não impediram o desenvolvimento do acordo.

Estados Unidos são descartáveis

Separada do Irão pelo Golfo Pérsico, a Arábia Saudita percebeu que a melhor garantia de segurança perante o vizinho nuclear é minimizar os riscos de conflito. Por outro lado, Riade luta com dificuldade para concretizar o plano de reformas “Visão 2030”, que visa diversificar a economia do país e dotá-la de novas fontes de receitas. “A Arábia Saudita está a braços com uma grave crise económica, continua muito dependente de recursos petrolíferos e com muita dificuldade em adaptar-se às economias sustentáveis. Tirando o turismo religioso, não tem alternativas. Não pode continuar a ter orçamentos de defesa e a apoiar uma série de movimentos” fora do país, refere Tiago André Lopes.

Acresce a dimensão de segurança e ausências do amigo americano. “Mesmo durante a era Trump, a Arábia Saudita não conseguiu convencer Washington a lançar um ataque contra o Irão a seguir ao atentado dos houthis contra duas refinarias da Aramco”, diz Heirannia. Essa investida, em setembro de 2019, reduziu para metade a produção da empresa estatal saudita e provocou uma subida global dos preços do petróleo.

Por outro lado, continua o iraniano, “a pressão de Riade sobre Washington para incluir a política regional do Irão nas negociações com vista à reativação do JCPOA deu em nada. Os sauditas concluíram que, para evitarem mais gastos, deveriam resolver as diferenças com o Irão.” Acrescenta o português: “A Arábia Saudita percebeu que, no jogo das superpotências, os Estados Unidos são, hoje, descartáveis.”

A necessidade de fechar frentes de conflito é partilhada pelo Irão, castigado há anos por sanções que penalizam a exportação de petróleo e a braços com protestos antirregime que só conseguiu conter após começar a enforcar manifestantes. Para os EUA, a atuação de Teerão foi fácil de encaixar, já que os dois países não têm relações diplomáticas desde a Revolução Islâmica de 1979. Já o ímpeto saudita surpreendeu em toda a linha. “A Administração Biden está a colher os erros da Administração Obama”, e da sua estratégia relativa à primavera árabe, diz Tiago André Lopes. “Nos últimos dois anos, assistimos [na Tunísia] ao colapso do pouco que a primavera árabe trouxe.”

Doze anos depois, está à vista que “o grande vencedor da primavera árabe é a Rússia. Conseguiu entrar de novo no Médio Oriente, foi o único Estado que fez apostas — na Síria — e, grosso modo, venceu-as”, prossegue, frisando que “quem a Rússia apoiou não caiu”. Simbolicamente, Bashar al-Assad visitou Vladimir Putin, no Kremlin, quarta-feira, 12º aniversário do início da guerra na Síria.

O derrotado na aproximação entre sauditas e iranianos, além dos EUA, é Israel, para quem o Irão é uma ameaça existencial e a Arábia Saudita era um possível futuro signatário dos Acordos de Abraão. Este compromisso, com o qual o Estado judeu vinha abrindo brechas no seu isolamento regional, em nada se diferenciava de uma coligação anti-Irão. Resta saber que réplicas se farão sentir após o abalo que foi o acordo Riade-Teerão.

(IMAGEM Mapa do Médio Oriente, publicado em 1950 BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA / PICRYL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Nestas terras as armas não se calam: 20 conflitos no mundo

Guerras, rebeliões internas, violência sectária, nalguns casos desde há décadas, tornam estas duas dezenas de territórios especialmente instáveis

Ronald Reagan levava pouco mais de um ano na Casa Branca quando, num discurso proferido na cerimónia de formatura do Eureka College (Illinois), a 9 de maio de 1982, partilhou o seu conceito de paz: “Não é a ausência de conflito, é a capacidade de lidar com o conflito por meios pacíficos.”

O norte-americano e o soviético Mikhail Gorbatchov seriam os últimos líderes das duas superpotências que ditaram as regras nos anos da Guerra Fria (1947-1991), quando muitos conflitos foram travados por procuração, numa lógica de esferas de influência que partiu o mundo em dois, tornando-o mais previsível do que é hoje.

No atual mapa-mundo da conflitualidade há disputas ativas que se arrastam há décadas, como na Palestina e no Sara Ocidental, em que as iniciativas de paz não germinam.

Em regiões com grande diversidade étnica, como nos Grandes Lagos africanos ou em Mianmar, a perseguição a um povo concreto com o intuito de o apagar da face da Terra — no caso, os tutsis e os rohingyas — prova que o genocídio não é prática do passado.

Ucrânia, caso único no século XXI

Diferendos envolvendo potências nucleares, seja em torno de Caxemira ou Taiwan, seja a propósito do desenvolvimento de programas nucleares nacionais, como nos casos da Coreia do Norte ou do Irão, têm potencial para escalar para um conflito global.

No Médio Oriente, Iémen, Líbia e Síria são atualmente os incêndios mais ativos numa região onde a conflitualidade é endémica. No continente africano, a Somália e a região do Sahel — latitudes especialmente castigadas pela seca — têm sido portos seguros para grupos terroristas.

No território correspondente à ex-União Soviética e à sua antiga zona de influência dois conflitos ameaçam arrastar terceiros para crises maiores: o estatuto do Kosovo e a disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh.

Já a invasão russa da Ucrânia — inicia­da em 2014, no Leste, e visando todo o país desde 24 de fevereiro de 2022 — não encontra paralelo no século XXI: o ataque de um Estado soberano a outro com o intuito de o controlar.

1. CAXEMIRA

Esta é uma ferida aberta pela partição da Índia britânica, há mais de 70 anos. Situada nos Himalaias, esta região estende-se pela Índia, Paquistão e China. A área administrada pela Índia é problemática, já que é a única região daquele país predominantemente hindu onde a maioria da população é muçulmana. A dinâmica separatista e o facto de ser fonte de abastecimento hídrico à Índia e Paquistão já originou três guerras. Quando a tensão cresce, o mundo fica à beira de um ataque de nervos. Frente a frente estão potências nucleares que encaram Caxemira como um jogo de soma zero: quem a controlar representa uma ameaça existencial à outra.

2. MIANMAR

O Estado reconhece a existência de 135 grupos étnicos. Os rohingyas não só estão excluídos da lista como são alvo de uma campanha de genocídio. Os problemas no país remontam à emancipação da então Birmânia do Reino Unido (1948), tiro de partida para grupos étnicos se lançarem na luta pela autodeterminação — até hoje. A 1 de fevereiro de 2021 a conflitualidade ganhou nova expressão: os militares depuseram o Governo da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi (ele próprio fruto de débil tentativa de democratização após décadas de ditadura) e tomaram o poder. Grupos civis pegaram em armas.

3. TAIWAN

Situada a uma distância média de 180 quilómetros da costa chinesa, a ilha, também designada por Formosa ou China Nacionalista, é um país reconhecido por 12 outros. Para a China Popular, a pretensão independentista da sua província rebelde dificulta a implantação da revolução maoista em todo o território chinês e ameaça o projeto político da ‘China única’. Para o outro gigante geopolítico do Pacífico — os Estados Unidos —, apoiar Taiwan é uma forma de fragilizar Pequim. A perspetiva de conflito aberto em redor de Taiwan é uma grande ameaça à paz mundial.

4. COREIAS

A península da Coreia foi um dos palcos da Guerra Fria, com os territórios a norte e a sul do paralelo 38 a travarem uma guerra (1950-1953) apoiados, cada qual, por uma superpotência. Com a necessidade de assinar formalmente a paz entre as duas Coreias (que apenas celebraram um armistício) e com o sonho da reunificação como cenário, cimeiras ao mais alto nível foram pontuando períodos de desanuviamento, em especial na era Donald Trump, com seis cimeiras em 14 meses, envolvendo Coreia do Norte, Coreia do Sul e Estados Unidos. A falta de resultados práticos levou Pyongyang a retomar os testes com mísseis balísticos. Este mês, o líder norte-coreano, Kim Jong-un, ordenou a intensificação dos preparativos para a guerra.

5. CHINA-ÍNDIA

Há quem diga que China e Índia só ainda não se envolveram numa guerra maior entre ambas porque têm no meio os Himalaias, a cordilheira montanhosa mais alta do mundo. Ao longo de mais de quatro mil quilómetros de comprimento da Linha de Controlo Real, a fronteira entre os dois países mais populosos do mundo, disputas territoriais não-contíguas contribuem para uma tensão permanente. Para minimizar consequências apocalípticas, já que em causa estão os exércitos com mais efetivos no ativo do mundo e com acesso a armas nucleares, um protocolo sino-indiano de 1996 determina que os contingentes militares ali destacados não usem armas de fogo.

6. PALESTINA

O sonho de um Estado independente, traçado pelas fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias (1967) — na qual Israel conquistou os territórios palestinianos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental —, é cada vez menos exequível. Em Israel, o novo Governo, composto por partidos de direita, extrema-direita e religiosos ultraortodoxos, prometeu intensificar a ocupação. Já no seio da Autoridade Palestiniana, a gerontocracia e a corrupção não garantem ao povo uma liderança credível para resolver um problema que dura há gerações. Na ausência de um processo de paz digno desse nome, a luta transfere-se cada vez mais para as ruas.

7. FILIPINAS

Há mais de 50 anos que este arquipélago, formado por cerca de 7640 ilhas, é fustigado por conflitos sectários, muitas vezes em paralelo. Entre os mais duradouros estão a insurgência islamita Moro, na ilha de Mindanau, e a rebelião comunista contra o poder central deste país esmagadoramente católico. Desde 2014, vários grupos locais declararam lealdade ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). Ainda que, pontualmente, sejam celebrados acordos de paz parciais, há sempre focos de guerra ativos.

8. MAR DO SUL DA CHINA

O maior e o mais fundo dos oceanos só é pacífico no nome. Num dos seus mares, o mar do Sul da China, mais de 15 mil ilhas, atóis, bancos de areia e recifes, na maioria desabitados, alimentam disputas territoriais entre países circundantes. Desde que, em 1974, China e Vietname do Sul ocuparam partes distintas das ilhas Paracel, sucederam-se vários outros incidentes. Nos últimos anos a tensão tem-se intensificado com a crescente importância da região enquanto rota comercial e jazida de reservas de petróleo e gás.

9. SARA OCIDENTAL

Em 1976, a retirada de Espanha da sua última colónia em África deu alento ao sonho de independência do povo sarauí. Em nome desse desígnio, a Frente Polisário pegou em armas para defender a autoproclamada República Árabe Sarauí Democrática (RASD) e expulsar Marrocos, que avançara militarmente sobre o território em 1975. Em 1991, a promessa das Nações Unidas de que seria realizado um referendo à autodeterminação do Sara Ocidental levou ao congelamento das hostilidades durante 29 anos. Essa demora, bem como o sentimento de abandono dos sarauís (até Espanha passou a alinhar com Rabat), levou ao fim da trégua no final de 2020.

10. IRÃO

A ambição nuclear do Irão é mais antiga do que a República Islâmica, instituída em 1979. Mas foi só após os ayatollahs tomarem o poder — e Irão e Estados Unidos cortarem relações — que o programa nuclear se tornou um problema internacional, fruto de uma desconfiança generalizada em relação às reais intenções do regime de Teerão. O acordo de 2015, envolvendo sete países, desanuviou, mas os Estados Unidos retiraram-se dele e a tensão voltou a ser a regra.

11. NAGORNO-KARABAKH

Na região do Cáucaso, Azerbaijão e Arménia, antigas repúblicas da União Soviética, disputam há décadas o controlo de um pequeno enclave montanhoso. De maioria arménia, Nagorno-Karabakh é internacionalmente reconhecido como território de soberania azeri. Na prática, quem o administra é, em parte, a autoproclamada República Artsaque, apoiada pela Arménia. Esta disputa — que tem a Rússia ao lado dos arménios e a Turquia em apoio aos azeris — já originou duas guerras.

12. SOMÁLIA

Vive em guerra civil desde 1991, quando o ditador Mohamed Siad Barre foi deposto e vários clãs aproveitaram o vazio de poder para se guerrearem. Parte do território, a Somalilândia, declarou a sua independência logo em 1991. Anos depois, foi a Puntlândia a declarar-se autónoma. Território fragmentado, berço do grupo terrorista Al-Shabaab e porto seguro para a pirataria, a Somália é um desafio à vida.

13. GRANDES LAGOS

Do maior para o mais pequeno, Vitória, Tanganica, Niassa, Turcana, Alberto, Kivu e Eduardo são os sete grandes lagos que dão nome a uma vasta área do Centro, Leste e Sul de África. Abundante em recursos minerais, a região põe em contacto 10 países e múltiplas sensibilidades étnicas. Em 1994, o genocídio dos tutsis no Ruanda forçou milhões de pessoas a fugirem para países vizinhos. Hoje, muita da instabilidade na República Democrática do Congo — o segundo maior país africano — decorre dos êxodos humanos gerados por guerras passadas.

14. SAHEL

A sul do Sara, este corredor semiárido que atravessa África de costa a costa é das regiões mais vulneráveis do continente. Porto de abrigo de grupos islamitas desde a guerra civil na Argélia (1991-2002), o Sahel tem hoje uma dinâmica jiadista alimentada pelas grandes constelações terroristas (Al-Qaeda e Daesh). O cancelamento do mítico Rali Dacar, em 2008, durante a rebelião tuaregue, foi o despertar mediático para os problemas na região. Nos últimos anos o epicentro das crises tem passado de país para país. Em novembro, França deu por terminada uma presença militar permanente nesta zona francófona. Já a influência da Rússia está a crescer.

15. KOSOVO

Desde que declarou unilateralmente a independência, há 15 anos, esta antiga província sérvia de maioria albanesa tem em mãos a batalha da estabilidade. No Norte do país, uma minoria de sérvios kosovares recusa-se a obedecer a Pristina e mantém-se leal a Belgrado. A falta de acordo com a Sérvia mina também o reconhecimento internacional do Kosovo, que ainda não conseguiu tornar-se membro das Nações Unidas.

16. LÍBIA

O movimento da Primavera Árabe tornou-se um inverno rigoroso nesta antiga colónia italiana, com o ditador Muammar Kadhafi executado na rua, em 2011, ao fim de 32 anos de tirania, e o país tomado pela lei das milícias. Doze anos depois a Líbia está refém de dois poderes políticos em competição pelo controlo do país: um com sede em Trípoli, reconhecido pela ONU e apoiado pela Turquia, Catar e Itália; outro sediado no Leste do país, endossado pela Rússia, Egito, Emirados Árabes Unidos e França.

17. SÍRIA

Nos últimos 12 anos, a guerra — que originou o maior êxodo humano desde a II Guerra Mundial —, a corrupção, as sanções, o colapso financeiro do vizinho Líbano, a pandemia e a invasão da Ucrânia originaram “uma crise gémea — humanitária e económica — de proporções épicas”, alertou recentemente Geir O. Pedersen, enviado da ONU para a Síria. A análise não contabilizava ainda os trágicos terramotos de 6 de fevereiro. Uma das zonas mais atingidas foi Idlib (Noroeste), o último reduto da oposição a Bashar al-Assad.

18. UCRÂNIA

A invasão russa da Ucrânia ocorreu… há oito anos. Com manifestações pró-europeias nas ruas (movimento Euromaidan) e a recusa do Presidente (pró-russo) em assinar um acordo de associação com a UE, a corda quebrou para o lado de Viktor Yanukovych, que foi deposto em fevereiro de 2014. A reação da Rússia aconteceria semanas depois, com a chegada de forças pró-Moscovo à península da Crimeia, que acabaria por ser anexada. Em paralelo, o Kremlin não poupou no apoio a forças separatistas pró-russas no Leste da Ucrânia. Desde então, não mais as armas se calaram na região do Donbas. A 24 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin — para quem a desintegração da URSS foi uma catástrofe geopolítica — insistiu na inversão do rumo da História: ao invadir a Ucrânia, quis abortar a aproximação ucraniana à UE e recuperar a influência russa no antigo espaço soviético.

19. IÉMEN

Desde que Norte e Sul se reunificaram (1990) que a união sempre foi uma miragem. O conflito mais recente remonta a 2014, quando os huthis (xiitas), sediados no Noroeste, avançaram sobre Saná e tomaram o poder. Aliados do Irão e vizinhos da Arábia Saudita, o Iémen é uma peça no xadrez das rivalidades regionais. Desde março de 2015 uma coligação de países liderada pelos sauditas bombardeia o Iémen visando o fim da era huthi. Tudo se passa num dos países mais pobres, com dinâmicas separatistas e a Al-Qaeda ativa.

20. ETIÓPIA

O segundo país africano mais populoso, onde vivem 80 grupos étnicos, tenta cicatrizar as feridas abertas por uma guerra recente, em que um dos beligerantes foi liderado por um Nobel da Paz: Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro etíope. Vigora há três meses uma trégua que pôs fim ao conflito no Norte, entre uma coligação de exércitos e milícias leais ao Governo e a Frente de Libertação do Povo do Tigray. Segundo o ex-Presidente nigeriano Olusegun Obasanjo, enviado da União Africana, a guerra fez cerca de 600 mil mortos.

NÚMEROS

103.000.000

de pessoas foram forçadas a fugir de casa em todo o mundo. Mais de metade vive no seu país (deslocados internos)

32.500.000

era o número de refugiados no mundo em meados de 2022, diz a ONU. A Síria é o principal país de origem, a Turquia o que mais acolhe

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de fevereiro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Paris Saint-Germain vs. Manchester City. O “dérbi do Golfo” que vai muito além do futebol

Paris Saint-Germain e Manchester City disputam, esta quarta-feira, a primeira mão das meias-finais da Liga dos Campeões. Os dois clubes são pontas de lança ao serviço de dois países do Médio Oriente empenhados em projetar poder e influência em todo o mundo: Qatar e Emirados Árabes Unidos. A vitória no relvado terá também uma dimensão geopolítica

Ambos sonham conquistar a Liga dos Campeões e os muitos milhões que têm ao seu dispor aproximam-nos dessa possibilidade. Paris Saint-Germain (PSG) e Manchester City medem forças, esta quarta-feira, na primeira mão das meias-finais da prova milionária.

Mais do que uma disputa desportiva entre dois emblemas que querem chegar ao topo do futebol europeu, os jogos desta quarta-feira, em Paris, e de 4 de maio, em Manchester, têm implícito um braço de ferro entre dois países do Médio Oriente — o Qatar (dono do PSG) e os Emirados Árabes Unidos (proprietário do City) — que rivalizam entre si e que, tendo comprado estes dois emblemas, usam-nos como arma de soft power para projetar poder e influência em todo o mundo.

Será uma partida picante a nível político e a nível popular, já que cada clube é sinónimo de uma monarquia. Como tal, muitos tenderão a olhar para este jogo como uma disputa por procuração, mesmo que não estejam assim tão interessados em futebol”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres e autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017).

1880 É fundado o Manchester City Football Club. Foi comprado pelo Abu Dhabi United Group em 2008. Joga no Etihad Stadium e o patrocinador das camisolas é a Etihad Airways, uma das transportadoras aéreas dos Emirados Árabes Unidos

1970 O Paris Saint-Germain foi criado após fusão entre o Paris Football Club e o Stade Saint-Germain. Foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011. Joga no Parque dos Príncipes e tem entre os seus parceiros premium o Turismo do Qatar e a Qatar Airways

Qatar e Emirados são antigos protetorados britânicos que conservaram o gosto pelo futebol mesmo após declararem independência, em 1971. Passados 50 anos, servem-se desse património afetivo e da sua enorme riqueza — a do Qatar vem do gás natural e a dos Emirados, do petróleo — para se afirmarem, patrocinando clubes e comprando outros.

Desde 2008 que o Man City é detido pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dabi, principal dos sete emirados que compõem o país chamado Emirados Árabes Unidos. O Abu Dhabi United Group, empresa privada que comprou o City, é também dono do Bombaim FC, do Melbourne FC e do Cidade de Nova Iorque FC, entre outros clubes por todo o mundo.

Já o PSG foi comprado em 2011, numa altura em que andava arredado dos títulos, mesmo em França. Foi adquirido pelo próprio emir do Qatar, através do Qatar Sports Investments, fundo soberano que é uma espécie de ponta de lança do país no esforço de afirmação internacional. Ao leme do PSG, o Qatar mostrou cedo ao que vinha: em 2012 contratou Zlatan Ibrahimovic, em 2013 Edinson Cavani e David Beckham e em 2017 Kylian Mbappé e Neymar.

“O PSG é enorme no Qatar, por razões óbvias”, diz David B. Roberts. “Embora o futebol inglês seja dominador, regra geral, com as notáveis exceções dos dois clubes espanhóis [Real Madrid e Barcelona] cada vez menos pessoas admitirão apoiar o Man City no Qatar!”

A estratégia do pequeno emirado — que tem uma população de três milhões e área oito vezes menor do que Portugal — terá o seu ponto alto no próximo ano, quando o Qatar acolher o Mundial de futebol, que terminará uma semana antes do Natal.

Seja ou não um bom jogo, o duelo entre PSG e City terá inevitavelmente uma dimensão geopolítica, dada a rivalidade entre Qatar e Emirados e o facto de apoiarem fações contrárias em várias contendas do Médio Oriente. Cinco exemplos:

  1. BLOQUEIO AO QATAR. Os Emirados foram um dos quatro países que a 5 de junho de 2017 impuseram um bloqueio por terra, mar e ar ao Qatar. Durou 43 meses e terminou a 5 de janeiro passado, em vésperas de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos e defender a necessidade de “recalibrar” a relação com a Arábia Saudita (primeiro país que Donald Trump visitou), outro promotor do bloqueio ao Qatar.
  2. RELAÇÃO COM O IRÃO. Apesar de Qatar e Emirados serem países muçulmanos sunitas, o Qatar tem uma relação de proximidade ao Irão (xiita) como nenhum outro país do Golfo. Para tal, não será alheio o facto de ambos partilharem o maior campo de gás do mundo. Já a relação entre Irão e Emirados tem-se pautado pela tensão, sobretudo em torno da disputa de três ilhas: Abu Musa, Grande Tunb e Pequena Tunb.
  3. INTERVENÇÃO NA LÍBIA. Neste longínquo país do Norte de África, em guerra desde o fim do regime de Muammar Kadhafi (2011), os Emirados apoiam as forças leais ao general rebelde Khalifa Haftar enquanto o Qatar alinha ao lado da Turquia em defesa do Governo de Tripoli, internacionalmente reconhecido. A relação com a Turquia — que tem uma base militar no Qatar — intensificou-se na sequência do bloqueio regional ao país.
  4. NORMALIZAÇÃO COM ISRAEL. Os Emirados foram um dos países árabes que, no ano passado, normalizaram a sua relação diplomática com Israel. Por seu lado, o Qatar é dos principais fornecedores de ajuda financeira ao território palestiniano da Faixa de Gaza (controlado pelo grupo islamita Hamas).
  5. APOIO A ISLAMITAS. Como revela a sua posição em relação à questão palestiniana, o Qatar não tem pejo em apoiar grupos islamitas — como o Hamas e, sobretudo, a Irmandade Muçulmana —, enquanto os Emirados se opõem terminantemente e os reprimem internamente.

PSG e City encontram-se na Champions num momento em que ecoa ainda o fracasso da Superliga Europeia, projeto que mereceu dos dois clubes posições contrárias: o City foi um dos fundadores e o PSG recusou participar.

“Para o PSG teve muito mais que ver com o papel mais amplo do sotf power, não tanto o dinheiro. O mesmo pode ser dito sobre o Man City e os seus proprietários”, diz Roberts. “Julgo que a diferença crucial se prende com a pressão de outras equipas inglesas sobre o Man City no sentido de aderir (por comparação à ausência de pressão em França), e com a relação muito próxima entre o PSG e a UEFA, a nível pessoal e institucional.”

Falhanços no desporto e na política

Para a história, o PSG (e o Qatar) ficou bem na fotografia, enquanto o Manchester City (e os Emirados) saiu rotulado como um dos “12 sujos”. “Para os Emirados, [o insucesso da Superliga Europeia] foi outro malogro depois de o seu bloqueio ao Qatar ter falhado por completo. Nenhuma das 13 exigências apresentadas ao Qatar em junho de 2017 foi cumprida, incluindo a exigência ridícula de fechar a Al Jazeera, cadeia noticiosa que estabeleceu novos padrões críticos para reportagens no Médio Oriente”, comenta ao Expresso Danyel Reiche, investigador na área da Política e Desporto, que lidera um projeto de investigação sobre o Campeonato do Mundo de 2022, na Universidade de Georgetown do Qatar.

“O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, foi muito esperto em não aderir à Superliga, proposta que ignorou o sentimento de uma vasta maioria de adeptos europeus, que rejeitam a americanização dos desportos europeus e a eliminação da meritocracia, com ligas fechadas sem promoções e despromoções. Creio que o PSG, e também os grandes clubes alemães, serão recompensados pela sua resistência à Superliga, ganhando o apoio de adeptos em todo o mundo. Isso é especialmente bom para o PSG, que era, até agora, sobretudo associado ao sucesso a partir de combustíveis fósseis.”

Para o PSG, a vitória neste embate significará a repetição da época passada, quando atingiu a final de Lisboa, que perdeu para o Bayern de Munique. Já para o City a chegada às meias-finais é feito inédito no palmarés do clube, numa altura em que a sua popularidade já teve melhores dias.

“Muito foi dito sobre os donos do Liverpool, que ignoraram o desejo dos adeptos. Mas para mim o desenvolvimento mais interessante foi o do Manchester City”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor de Desporto e Teoria Social na Universidade de Loughborough (Inglaterra). “No passado, muitos adeptos de outros clubes consideravam o City a sua segunda equipa, porque não era o Manchester United, era o verdadeiro clube de Manchester (o United tem sede em Salford). O City não teve muito êxito em grande parte da sua história e, no entanto, tinha adeptos locais leais. Questiono-me que pensarão os adeptos mais antigos sobre aquilo que o clube se tornou.”

A perspetiva de ganharem por fim a Liga dos Campeões talvez os leve a serem contidos em relação à liderança do clube. Para tal, o City terá de ultrapassar o PSG. Talvez nenhum outro duelo personifique atualmente o poder do dinheiro no futebol europeu.

(IMAGEM PMNEWS NIGERIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

China movimenta-se na fronteira com a Índia como quem fatia um salame

A tensão regressou esta semana à região da Caxemira, desta feita junto à fronteira entre a Índia e a China, depois de soldados dos dois lados se terem envolvido em confrontos que resultaram no incidente mais mortífero em mais de 50 anos. Um analista indiano explica ao Expresso a estratégia de corrosão da fronteira indiana que a China vem levando a cabo desde há décadas

Nos Himalaias, a região indiana de Ladaque — que faz parte do conturbado e disputado território da Caxemira — viveu há séculos tempos gloriosos. Grandes caravanas de comércio, hordas de conquistadores, vagas de cultura, tudo por ali passou numa dinâmica de contacto contínuo entre o Império Indiano e a Ásia Central. A chegada de Vasco da Gama à Índia, em 1498, retirou importância a essa rota terrestre, ao demonstrar as vantagens do transporte por mar. Ladaque perdeu relevância mas não o interesse dos países em redor.

“Tem imensa importância estratégica para a China e para a Índia”, explica ao Expresso o investigador Dhruva Jaishankar, da Observer Research Foundation, em Nova Deli (Índia). “Para a China, o planalto de Aksai Chin [encostado a Ladaque, controlado pela China e reivindicado pela Índia] era o elo entre o Tibete e Xinjiang [região chinesa de maioria muçulmana], duas regiões agitadas.” Essa importância estratégica levou a que a China ali construísse uma estrada, na década de 1950.

“Para a Índia, a presença chinesa em Ladaque pressiona a sua capacidade de defender a fronteira com o Paquistão. Por essa razão, controlar a estrada, que é o que a Índia tenta fazer atualmente, é uma necessidade. Porém, o desenvolvimento da infraestrutura indiana levou à mobilização do Exército de Libertação Popular da China, dando origem a impasses em quatro locais”, com os soldados praticamente cara a cara.

Foi num desses locais que, esta semana, soldados chineses e indianos se envolveram nos confrontos mais mortíferos desde 1967. Tudo aconteceu quando, no decurso de uma patrulha, soldados indianos foram surpreendidos pela presença de militares chineses (em maior número) numa zona onde não era esperado que estivessem.

Durante horas, na escuridão da noite e com temperaturas negativas, as tropas envolveram-se em lutas corpo a corpo, com recurso a pedras e ferros, e empurrando adversários ravina abaixo, a 4200 metros de altitude.

O facto de nem um tiro ter sido disparado decorre de um protocolo celebrado entre China e Índia, em 1996, que prevê que os contingentes destacados ao longo da fronteira não tenham armas de fogo. Pretende-se com isto evitar que pequenos atritos evoluam para situações graves.

A contenda de segunda-feira à noite demonstra que a chacina é possível mesmo na ausência de armas de fogo. A Índia noticiou 20 soldados mortos (incluindo um comandante), a China não reconheceu qualquer fatalidade.

“Na ausência de provas credíveis, a comunidade internacional não deve dar como certa a versão chinesa ou indiana dos acontecimentos”, aconselha ao Expresso Robert Daly, diretor do Instituto Kissinger para a China e os EUA, do Centro Wilson (Washington DC, EUA). “A China é a nação mais forte e tem sido cada vez mais assertiva no Pacífico Ocidental nos últimos meses. Mas isso não é motivo suficiente para supor que a China tenha sido o agressor.”

Vizinhos distraídos com a pandemia

Precisamente a assertividade da China no Pacífico leva o indiano Brahma Chellaney, analista de geopolítica e escritor, a consolidar uma teoria segundo a qual também a animosidade nos Himalaias faz parte de uma estratégia de longa duração empreendida pela China, composta por pequenas ações não suscetíveis de se tornarem casus belli por si só, mas que com o tempo levam a uma alteração estratégica a favor da China.

“[O Presidente chinês] Xi Jinping tenta tirar vantagem do facto de os seus vizinhos estarem distraídos com a pandemia de coronavírus e abriu várias frentes na sua campanha para tornar a China a principal potência do mundo“, explica ao Expresso. “Como parte das suas ambições, Xi iniciou um conflito com a Índia invadindo algumas áreas fronteiriças indianas em Ladaque.”

O analista indiano compara a estratégia chinesa ao ato de “fatiar o salame”. “A China começou a aperfeiçoar esta tática nos Himalaias na década de 1950, quando cortou o planalto de Aksai Chin, do tamanho da Suíça, que fazia parte da região de Ladaque”, explica. “Nos anos mais recentes, tem ‘fatiado o salame’ no Mar do Sul da China. As suas recentes invasões em Ladaque são outro exemplo desta estratégia. Mordida atrás de mordida, a China tem vindo a corroer as fronteiras himalaias da Índia.”

Estima-se que fruto das movimentações das forças chinesas ao longo da fronteira durante o passado mês de maio, a China tenha tomado entre 40 a 60 quilómetros quadrados de território que a Índia considera seu. slém da conquista territorial, Pequim parece querer, com estas ações, testar a preparação militar, a vontade política e a determinação da Índia para responder.

Índia quer a paz, mas…

“Quero assegurar à nação que o sacrifício dos nossos jawans [soldados do Exército indiano] não será em vão. A Índia quer paz mas é capaz de dar uma resposta adequada se for instigada”, afirmou o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, numa mensagem ao povo transmitida pela televisão.

“Enquanto as forças chinesas não se retirarem, haverá riscos de mais confrontos”, vaticina Brahma Chellaney. “É improvável que a Índia tolere a agressão da China, e um prolongado impasse militar não pode ser descartado. A China calculou mal ao acreditar que poderia causar uma agressão gratuita.”

Uma guerra aberta entre chineses e indianos resultaria num cenário tão apocalíptico que é muito natural que nenhum dos países a deseje. Frente a frente estariam os dois exércitos com o maior número de efetivos no ativo do mundo — o chinês com 2,2 milhões e o indiano com 1,4 milhões —, ambos com acesso a armas nucleares.

Os dois países são liderados por homens profundamente nacionalistas e habitados por cerca de 1300 milhões de pessoas. Ou seja, um conflito entre China e Índia envolveria diretamente um terço da população mundial. “Haverá sem dúvida um aumento das tensões, e muita ira popular contra a China na Índia. Mas há muitas razões para acreditar que este caso não levará a um conflito total”, acrescenta Dhruva Jaishankar. “Mas suspeito que vamos ver menos cooperação ao nível económico ou diplomático entre a Índia e a China no futuro próximo.”

Xi Jinping e Narendra Modi — nos cargos desde 2013 e 2014 respetivamente — vinham desenvolvendo uma relação amigável nos últimos anos. Em abril de 2018, em Wuhan (China), iniciaram um mecanismo de cimeiras informais anuais que teve continuação em outubro de 2019, em Bengala (Índia), onde Xi convidou Modi para nova visita à China em 2020. Aparentemente, a relação não se ressentia do facto da China ser um importante aliado do arqui-inimigo da Índia, o Paquistão, com quem disputa a região himalaia da Caxemira.

Entre estes dois colossos, “a Índia é a nação mais fraca e tem de proceder com a maior cautela, independentemente da sua razão”, defende Robert Daly. “A guerra é improvável. Nem a China nem a Índia têm um interesse vital em jogo em Ladaque e os dois líderes estão profundamente conscientes da necessidade de evitar a violência. As matanças são uma escalada preocupante, mas não aconteceu ainda nada que não possa ser revertido e negociado se houver vontade para tal.”

A fronteira entre a China e a Índia é uma amálgama de disputas territoriais não-contíguas ao longo de uma cordilheira montanhosa. Mesmo o comprimento da fronteira é objeto de discórdia, oscilando entre os 4057 km (métrica internacional), os 3488 km (Governo indiano) e os 2000 km (media chineses). A maior parte do troço não está demarcado, correndo ao sabor de montanhas, rios e desfiladeiros. Tem, pois, muito potencial de desestabilização, assim haja esse interesse.

(IMAGEM Bandeiras da Índia e da China THE HINDU)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

A geopolítica e o negócio Neymar

Alvo de um bloqueio político, o Qatar contra-ataca com o futebolista mais caro de sempre

O Qatar é um caso de persistência nas manchetes internacionais. Em inícios de junho, o pequeno emirado ribeirinho ao Golfo Pérsico foi notícia dias a fio após ser alvo de um bloqueio diplomático e comercial — que ainda dura — decretado por quatro ‘irmãos’ árabes (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito). Há poucas semanas, arrebatou noticiários nos quatro cantos do mundo ao estar por detrás da contratação mais cara da história do futebol — a do brasileiro Neymar, comprado ao Barcelona pelo Paris Saint-Germain (PSG), propriedade de um fundo soberano do Qatar, por 220 milhões de euros.

“Nem tudo o que está relacionado com o Qatar está relacionado com política. Mas penso que, neste caso, é justo estabelecermos uma ligação dessa natureza”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Neste contexto, em que o Qatar é alvo de um bloqueio pouco usual e bastante difícil e a imprensa dos países que se opõem ao Qatar tem promovido uma imagem muito negativa do emirado, dizendo, por exemplo, que apoia terroristas, é perfeitamente plausível que os qataris estivessem interessados em promover esta transferência, para beneficiar de dias, semanas a fio de manchetes demonstrativas de uma mentalidade muito mais positiva.”

O PSG está nas mãos do Qatar desde 2011, quando a Qatar Sports Investments adquiriu 70% do clube francês. Nasser Al-Khelaifi, membro da família real do Qatar, subiu à presidência, contratou o sueco Zlatan Ibrahimovic ao Milan e logo o seu reinado começou a dar frutos: o PSG foi tetracampeão da Ligue 1 entre 2012 e 2016. O ‘penta’ foi-lhe roubado na época passada pelo Mónaco, treinado por Leonardo Jardim.

“O PSG é apenas uma peça de uma campanha mais abrangente de soft power”, diz o professor Roberts, referindo-se à capacidade de influência de um Estado através da ideologia ou da cultura (e não das armas). “Quanto dinheiro é gasto, todos os anos, pela Coca-Cola e pela Pepsi em publicidade em todo o lado? Às vezes não percebemos porque patrocinam determinado torneio de futebol ou até um jogador e o que ganham com isso. Mas toda a grande empresa no mundo gasta milhões em publicidade por alguma razão. É isso que o Qatar está a fazer também.”

Do boxeur Ali ao FIFA 2022

Esta estratégia de afirmação fora de portas através do desporto é, aliás, tão antiga quanto o próprio país. Em 1971, ano em que se tornou independente do Reino Unido, o Qatar recebeu o mediático pugilista Muhammad Ali, que realizou um combate de exibição ao ar livre no Estádio de Doha. Desde então, o país já acolheu quase de tudo, desde torneios de topo de ténis e golfe a competições de desportos motorizados e meetings de atletismo. Em 2006, a capital, Doha, recebeu os Jogos Asiáticos, uma versão regional dos Jogos Olímpicos.

Mas é o futebol, o desporto mais popular no país, que tem justificado grandes eventos. Em 1988, o Qatar organizou a Taça Asiática, o correspondente regional do Campeonato Europeu, que repetiu em 2011. Em 1995, acolheu o Campeonato do Mundo de Sub-20 (em que Portugal foi terceiro). Em 2014, o Estádio Jassim Bin Hamad, em Doha, foi palco da… Supertaça italiana, entre a Juventus e o Nápoles. Em 2022 será colocada a cereja no topo do bolo, com a realização do Mundial da FIFA.

De permeio, por intermédio da Qatar Sports Investments — a mesma que comprou o PSG —, passou a patrocinar o FC Barcelona, um dos clubes mais mediáticos do mundo, primeiro através da Qatar Foundation (2011-2013) e depois da Qatar Airways (2013-2017). Curiosamente, desde 2013 que o patrocinador principal do grande rival do Barça, o Real Madrid, é a companhia aérea Emirates, dos Emirados Árabes Unidos, um dos protagonistas do bloqueio em curso ao Qatar.

Gastar quantias avultadas no desporto não é, pois, algo de novo para o emirado. “O Qatar tem muito dinheiro. É o país mais rico do mundo em termos per capita”, diz David B. Roberts, recordando que o país tem pouco petróleo mas partilha com o Irão o maior campo de gás do mundo. “Um Estado aplica aquilo que tem. O que é que a Coreia do Norte tem? Tem ambição nuclear e armas de longo alcance. O Qatar tem essencialmente instrumentos financeiros, e está a aplica-los.”

Muito dinheiro para gastar

Obrigado a acatar 13 exigências para ver o bloqueio por terra, mar e ar levantado — entre as quais o corte de relações com o Irão (“O Qatar não pode ter uma má relação com o Irão. Têm uma relação pragmática”, defende Roberts) —, o negócio Neymar é uma jogada de contra-ataque. “O Qatar é muito resiliente, tem aliados internacionais importantes e muito dinheiro para gastar”, diz o autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017). “Mas esta crise vai-lhe sair extremamente cara, porque vai ter de reformular a origem da grande maioria das importações. Sim, podem vir do Irão ou, provavelmente, da Turquia, isso já está a acontecer, mas vai-lhe sair muito caro. É um preço que o Qatar está disposto a pagar. Eles dizem: ‘A soberania não tem preço. Para fazermos o que queremos, temos de pagar por isso.’”

No domingo passado, a Qatar Ports Management Co. anunciou a abertura de uma nova rota de navegação entre o seu porto de Hamad e o porto paquistanês de Karachi, visando contornar dificuldades impostas pelo bloqueio. Para David B. Roberts, o desfecho desta crise demorará anos, não meses.

Até lá, em campo, Neymar provará (ou não) se a fortuna que custou teve retorno. Para já, o Qatar não podia estar mais satisfeito. O brasileiro estreou-se pelo PSG no passado domingo, à segunda jornada da Ligue 1, no campo do Guingamp. Marcou um golo, participou nos outros com que o PSG venceu e foi considerado “o homem do jogo”. No final, afirmou: “As pessoas pensam que deixar o Barça é morrer, mas é o contrário, estou mais vivo do que nunca.” E com os bolsos incomparavelmente mais cheios também.

Artigo publicado no Expresso, a 19 de agosto de 2017 e republicado no “Expresso Online” no mesmo dia. Pode ser consultado aqui