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Faíscas num barril de pólvora

A Arábia Saudita cortou relações com o Irão. A rivalidade transcende a religião e tem potencial para incendiar toda a região

Arábia Saudita e Irão, os dois gigantes do Médio Oriente WIKIMEDIA COMMONS

Sempre que a relação entre Irão e Arábia Saudita azeda, agita-se a bandeira de um conflito global entre sunitas e xiitas. No entanto, a rivalidade entre os dois gigantes do Médio Oriente vai muito além da religião. “A rivalidade é essencialmente geoestratégica e a desastrosa invasão do Iraque, que destruiu um dos três pilares de equilíbrio do poder regional, veio agravar de sobremaneira esta rivalidade”, explica ao Expresso Manuel Castro e Almeida, colunista do sítio da televisão Al-Arabiya. “Em tempos de crise como os de hoje, o elemento religioso/sectário ganha mais importância.”

A questão voltou a colocar-se esta semana, na sequência do corte de relações diplomáticas, no domingo, decretado pela Arábia Saudita, após a sua embaixada em Teerão ter sido atacada por iranianos em fúria contra a decapitação de um clérigo saudita xiita — braço do Islão minoritário no reino que é o guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina.

“A decisão de cortar relações é inevitável após o ataque à embaixada saudita em Teerão. Qualquer outro país faria o mesmo”, continua o ex-editor do jornal “Asharq Al-Awsat”. “Há muita especulação sobre as intenções da Arábia Saudita ao executar Al-Nimr. Alguns analistas veem-no como uma manobra destabilizadora numa altura em que há uma relativa melhoria nas relações entre o Irão e o Ocidente depois do acordo sobre o programa nuclear iraniano”, assinado em Genebra, a 14 de julho.

Revolução iraniana mudou tudo

O xeque Nimr al-Nimr foi condenado à morte juntamente com mais 46 pessoas (na esmagadora maioria sunitas), acusadas de participação em “organizações terroristas” e “conspirações criminosas”. “Al-Nimr não era um ativista pacífico como foi descrito por parte da imprensa internacional”, continua o analista. “Durante anos, muito antes da primavera árabe, advogou nos sermões que a dinastia Al-Saud era ilegítima, que os xiitas na Arábia Saudita deviam optar pela resistência armada contra o Governo e até o secessionismo. Os sauditas defendem que não o executaram por ser xiita, mas pelo seu papel de incentivador da violência armada.”

No Médio Oriente, os xiitas — que, basicamente, se distinguem dos sunitas por defenderem Ali na linha de sucessão do Profeta Maomé — são maioritários em apenas três países: Irão, Iraque e Bahrain. No resto do mundo islâmico o sunismo é a corrente dominante mas desde a Revolução Islâmica no Irão, em 1979, o peso demográfico das duas sensibilidades deixou de ter uma importância meramente estatística…

“Historicamente, a relação entre Arábia Saudita e Irão foi, de uma maneira geral, racional e cordial, especialmente quando ambos se centraram não em questões ideológicas mas nos seus interesses nacionais”, defende Manuel Castro e Almeida. “As relações pioraram drasticamente com a revolução iraniana. A política externa iraniana passou a assentar no objetivo de exportar a revolução para o mundo árabe” — o Irão não é um país árabe, mas antes de cultura persa —, “incentivar as populações xiitas a revoltarem-se contra os seus governos e mesmo a procurar derrubar outros governos árabes, incluindo os da Arábia Saudita, Kuwait, Iraque, Bahrain, etc.” Na perspetiva de Riade, que é tudo menos um exemplo de respeito pelos direitos humanos (veja-se a sentença de flagelação do blogger Raif Badawi), o clérigo Al-Nimr seria um peão da estratégia iraniana.

Rédea curta no Golfo

Outro exemplo da rédea curta da Arábia Saudita perante agitações xiitas aconteceu em 2011, no Bahrain, em plena primavera árabe. A maioria da população daquele reino do Golfo Pérsico (com o Irão em frente) é xiita, mas o poder reinante é sunita. Quando as manifestações começaram a reivindicar direitos políticos para os xiitas e a contestar a família real, a Arábia Saudita enviou tanques e tropas em socorro dos Al-Khalifa.

Sem surpresa, na segunda-feira, o Bahrain seguiu a posição saudita e cortou relações com o Irão. Emirados Árabes Unidos, Qatar, Sudão, Djibouti e Jordânia anunciaram corte ou revisão da relação com Teerão.

Em lados opostos

O braço de ferro entre sunitas e xiitas ocorre em países com guerras civis, ou seja, na Síria e no Iémen, onde sauditas e iranianos estão em lados opostos. Na Síria, o Irão apoia o regime liderado pelo alauita Bashar al-Assad (os alauitas são uma das seitas do xiismo) e as incursões do libanês Hezbollah, enquanto a Arábia Saudita financia grupos rebeldes (e tem uma relação dúbia com o Daesh). No Iémen, os iranianos apoiam os rebeldes houthis (que são zaiditas, outra seita xiita) e os sauditas apoiam o Presidente deposto pelos houthis.

“Não está nas intenções dos governos de Riade e de Teerão iniciar um confronto direto”, diz o articulista da Al-Arabiya. “Seria desastroso para ambos e para a região. Mas com tanta tensão e conflitos regionais com envolvimento iraniano e saudita, pode haver agravamento das guerras por procuração.”

No Irão, as eleições de fevereiro darão pistas sobre o futuro interno do país e sobre a relação com a Arábia Saudita

Na quinta-feira, órgãos de informação iranianos, citando um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, noticiaram que a embaixada do Irão na capital do Iémen tinha sido atingida deliberadamente pelos bombardeamentos da coligação liderada pelos sauditas. Horas depois, a partir de Sanaa, multiplicavam-se testemunhos de que fora apenas atingida a vizinhança da embaixada.

“A tensão pode baixar se houver acordo em relação à Síria e ao futuro de Assad. Mas isso parece distante. Vai depender da política interna iraniana e quem irá vencer a rivalidade entre as fações radicais e as mais moderadas, que se acentuou com o acordo nuclear. Os moderados querem ver o Irão comportar-se mais como um Estado e menos como uma ideologia imperialista.”

A 26 de fevereiro, as eleições para o Parlamento iraniano e para a Assembleia de Peritos — o órgão que escolhe o Líder Supremo (o ayatollah Ali Khamenei tem 76 anos) — poderão dar pistas sobre o futuro do Irão e, consequentemente, sobre a relação com a Arábia Saudita.

Artigo publicado no Expresso, a 9 de janeiro de 2016

“Guerra fria” aquece no Médio Oriente

Arábia Saudita e Irão protagonizam, há mais de 30 anos, uma espécie de “guerra fria” na região, exibindo toda a sua histórica rivalidade através de guerras por procuração. A execução de um clérigo xiita na Arábia Saudita azedou a já de si tensa relação entre os dois gigantes. Riade cortou relações e já arrastou consigo o Bahrain

A fasquia da conflitualidade no Médio Oriente subiu consideravelmente após, no domingo, a Arábia Saudita ter cortado relações diplomáticas com o Irão. Os dois países personificam as grandes rivalidades políticas, religiosas e culturais que caracterizam — e dividem — a região: a Arábia Saudita (31,5 milhões de habitantes) é uma monarquia árabe sunita, que abriga os principais lugares santos do Islão (Meca e Medina); o Irão (79,1 milhões) é uma república islâmica xiita de cultura persa.

A mais recente crise entre os dois gigantes geopolíticos estalou na sequência da execução, na Arábia Saudita, de um importante clérigo xiita, o xeque Nimr Baqir al-Nimr que, em 2011, no contexto da Primavera Árabe, apelou à realização de eleições no país e apoiou os protestos contra a Casa de Saud (a monarquia reinante).

O xeque pertencia à minoria xiita no país (estima-se que entre 10 e 15% da população, concentrados nos oásis de Al-Ahsa e Qatif, na Província Oriental, onde se encontram as zonas agrícolas mais produtivas e as maiores jazidas de petróleo do reino). Os xiitas dizem-se marginalizados e perseguidos por Riade.

Juntamente com Nimr, foram executados três ativistas xiitas (incluindo um sobrinho) e 43 sunitas condenados por envolvimento em ataques terroristas no reino, em 2003 e 2004, atribuídos à Al-Qaeda — fundada pelo saudita Osama bin Laden.

Com estas execuções — realizadas através de pelotões de fuzilamento e decapitações —, Riade mostra mão firme em matéria de segurança interna e aproveita para calar vozes críticas e reivindicativas de direitos e liberdades para os xiitas, que partilham com o inimigo iraniano a mesma interpretação do Islão.

Conhecida a morte do xeque Nimr, no sábado, violentos protestos visaram a embaixada saudita em Teerão (que foi incendiada) e o consulado em Mashhad (nordeste do Irão), levando à detenção de dezenas de pessoas.

No Twitter, o Presidente do Irão, Hassan Rouhani, criticou os distúrbios junto àquelas representações diplomáticas, levados a cabo por “indivíduos extremistas”, escreveu. Esta posição não foi suficiente para impedir a retaliação saudita que, no domingo, anunciou o corte de relações diplomáticas com o Irão.

O agravamento da relação Riade-Teerão é um cenário que não agrada a ninguém, sobretudo nos Estados Unidos. Os sauditas têm sido fortes aliados e essa relação tem sobrevivido intacta ao facto de serem sauditas 15 dos 19 terroristas do 11 de Setembro serem sauditas e também ao facto dos sauditas serem, a seguir aos afegãos, a nacionalidade mais representada entre os 779 detidos em Guantánamo, desde 2002.

Quanto aos iranianos — inscritos pelo Presidente norte-americano George W. Bush no “eixo do mal” que apoia o terrorismo internacional —, estão em rota de aproximação com o Ocidente, após o histórico acordo de 14 de julho sobre o seu programa nuclear. Irão e EUA continuam, oficialmente, de relações cortadas, mas o acordo de Genebra abriu perspetivas de uma maior colaboração do Irão em várias crises na região.

Guerras por procuração

Em sentido figurado, quando a relação entre Arábia Saudita e Irão apanha um resfriado, é toda a região que se constipa. À semelhança da Guerra Fria que opôs EUA e URSS durante mais de 40 anos, Riade e Teerão travam, hoje, no Médio Oriente várias guerras por procuração, acicatando divisões sectárias para expandir a sua influência — o que acontece, com maior intensidade na Síria e no Iémen.

Na Síria, os iranianos são, juntamente com a Rússia, o mais sólido apoio internacional do Presidente Bashar al-Assad, enquanto os sauditas apoiam e financiam grupos rebeldes.

No Iémen, os papéis invertem-se: os sauditas têm em curso uma intervenção militar em defesa do Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi e os iranianos apoiam a milícia huthi (xiita) que tomou o poder pelas armas.

O potencial de conflito não se resume, porém, a esses dois teatros. Desde a Revolução Islâmica de 1979 que um dos pilares do regime dos ayatollahs tem sido a exportação desse modelo político-religioso que, hoje, passa pela preservação do chamado ‘arco xiita’: o Iraque (onde a derrota de Saddam Hussein catapultou a maioria xiita para o poder), a Síria (os alauitas de Bashar al-Assad são xiitas) e o Hezbollah (o movimento xiita que, para além de ser uma milícia armada, também está representado no Parlamento e no Governo do Líbano).

A estratégia internacionalista consta igualmente da agenda da Arábia Saudita, empenhada em divulgar a doutrina waabita, para o que afeta quantias milionárias de petrodólares, seja para apoiar fações políticas ou armadas seja para financiar mesquitas um pouco por todo o mundo.

Pesos pesados do petróleo

Esta disputa geopolítica coloca frente a frente os dois maiores e mais ricos países do Médio Oriente, situados nas margens do Golfo — Pérsico para os iranianos, Arábico para os sauditas —, por onde é transportado um quinto do petróleo consumido em todo o mundo. (Esta segunda-feira, os preços do petróleo e do ouro aumentaram.)

Na margem ocidental do Golfo, os sauditas controlam a Península Arábica com rédea curta, exercendo uma influência quase absoluta sobre as outras petromonarquias (Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Qatar e Omã).

Quando a Primavera Árabe atingiu o Bahrain — onde o regime é sunita e a população maioritariamente xiita —, tropas sauditas cruzaram a fronteira em socorro dos Al-Khalifa. Nos países onde os xiitas são minoritários, como na Arábia Saudita, Riade vê-os como uma ‘quinta coluna’ ao serviço de Teerão.

Precisamente o Bahrain, esta segunda-feira, seguiu o exemplo da Arábia Saudita e cortou relações diplomáticas com o Irão. Os Emirados e o Sudão também anunciaram uma revisão da sua relação diplomática com o Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 4 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui

Pequeno gigante

Mais pequeno do que o Alentejo, o Qatar quer ter influência mundial. Tem por armas gás, petróleo, a Al-Jazira e a ambição do seu líder

Riyadh Hijab tornou-se, na segunda-feira, o mais alto oficial do regime sírio a passar-se para a oposição. Era primeiro-ministro há dois meses e justificou a deserção acusando Bashar al-Assad de genocídio. Hijab voou para a Jordânia, mas, segundo o seu porta-voz, o destino final é o Qatar. Antes dele, também os embaixadores sírios no Iraque e Emirados Árabes Unidos tinham assumido a rutura com Damasco e refugiado em Doha.

Mais pequeno do que o Alentejo e com uma população nativa inferior à da cidade do Porto — dos 1,7 milhões de habitantes, apenas 300 mil são qatarenses —, o Qatar é dos mais fortes aliados da oposição síria, financiando vários grupos em combate. Em julho de 2011, foi o primeiro país a encerrar a embaixada em Damasco. Em janeiro, o emir Al–Thani foi pioneiro ao defender uma intervenção militar estrangeira na Síria.

Desde a revolução na Tunísia que o Qatar tem vindo a surfar a onda da Primavera Árabe. A sua principal arma é… o livro de cheques. Na Tunísia, garantiu ajudas e investimentos às autoridades emergentes e pagou tratamentos médicos a revolucionários feridos. No Egito, foi um importante financiador da Irmandade Muçulmana e do An-Nur (salafita). “Só esperamos boas coisas do Qatar. É um verdadeiro parceiro na Primavera Árabe”, disse Rashid al-Ghannouchi, líder espiritual do Ennahda, o partido islamita que subiu ao poder após a revolução tunisina.

Na Líbia, o envolvimento de Doha foi bem menos discreto. O Qatar foi a primeira capital a reconhecer o Conselho Nacional de Transição e tornou-se o primeiro país árabe a participar — com caças Mirage — na campanha aérea liderada pela NATO contra Muammar Kadhafi. Forças qatarenses participaram também no assalto final a Bab al-Aziziya, o palácio de Kadhafi em Tripoli.

O apoio incondicional do Qatar às revoluções árabes foi posto em causa no Bahrain, onde Doha deixou vir ao de cima preocupações geoestratégicas. Quando eclodiram os protestos na Praça da Pérola — maioritariamente xiitas — contra a monarquia sunita, os qatarenses não hesitaram em escolher o lado do poder. Segundo a agência noticiosa do Qatar, um pequeno número de oficiais do país entrou no Bahrain paralelamente aos tanques sauditas, para ajudar na contenção dos protestos.

Tempestade de areia sobre o território do Qatar EARTH OBSERVATORY

Entalado entre dois colossos rivais no Médio Oriente — a árabe e sunita Arábia Saudita e o persa e xiita Irão —, o Qatar parece ter nos EUA o seu seguro de vida. Desde 2002, o país acolhe o quartel-general avançado do Comando Central dos EUA (CENTCOM), crucial para a guerra no Afeganistão e, antes, no Iraque.

De bem com todos

Nos corredores diplomáticos ocidentais, o Qatar é, porém, alvo de desconfiança. Diz-se que à segunda-feira o emir é amigo e à terça financia terroristas. No poder desde 1995, após ter liderado um golpe contra o pai, Al-Thani, de 60 anos, ambiciona transformar o país numa ponte entre mundos. Em janeiro, no “60 Minutes” (CBS), disse: “Eles (EUA) não gostam da nossa relação com o Irão, Hamas ou Hezbollah. Talvez o Irão ou o Hamas também não gostem dos nossos contactos com Israel. Mas não é uma boa política para um país pequeno estar de bem com todos?”

Essa estratégia transformou Doha numa marca internacional. Meca de importantes reuniões — as negociações na OMC são as Doha Rounds —, é também porto de abrigo de personas non gratas, sejam familiares de Bin Laden ou opositores aos somalis da milícia Al-Shabaab. Khaled Meshaal, líder do Hamas, tem casa em Doha. E nos últimos anos, a capital recebeu visitas tão díspares quanto o israelita Shimon Peres, o libanês Hassan Nasrallah (Hezbollah) ou o iraquiano Muqtada al-Sadr (milícia radical Exército Al-Mahdi).

No início de 2012, foi notícia a possibilidade de os talibãs abrirem em Doha a sua primeira representação fora do Afeganistão. “Quando isso acontecer”, escreveu a revista alemã “Der Spiegel”, “generais americanos da base Al-Udeid poderão cruzar-se com estrategos do Hamas e talibãs de túnica preta no Clube Diplomático de Doha — numa atmosfera a lembrar o filme ‘Casablanca’.”

AL-JAZIRA É ESPADA DE DOIS GUMES

Entrevista a Gabriel G. Tabarani, autor do blogue ‘Middle East Spectator’

Qual é a agenda do Qatar para a Primavera Árabe?
Desde a revolução iraniana xiita (1979), os Estados árabes do Golfo — hoje coligados no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — e outros países árabes sunitas esforçam-se por criar um equilíbrio político e militar no Médio Oriente e Norte de África para fazer frente ao expansionismo xiita do Irão. Nesse pressuposto, o CCG apoiou Saddam Hussein na guerra contra o Irão (1980-1988). E é nesse contexto que devemos entender a agenda do Qatar. Por outro lado, uma vez que os principais Estados árabes sunitas (Arábia Saudita, Egito, Iraque, Argélia, Marrocos) estavam ocupados com a situação interna, foi criado um vácuo na política externa árabe. Um Qatar confiante, apoiado pela presença militar americana no seu território e uma abundância de dinheiro, além das ambições de liderança, preencheu esse vazio. Mas se os objetivos gerais são conhecidos, os imediatos são vagos, embora persista a imagem de oportunismo. O Qatar está a operar uma mudança na política árabe que o Ocidente terá de compreender: um Médio Oriente dominado por partidos islamitas sunitas, levados ao poder numa região mais democrática e cada vez mais conservadora, tumultuosa, antixiita e anti-Irão.

Está também empenhado no diálogo entre fações palestinianas e entre os talibãs e os EUA…
O Qatar ambiciona desempenhar um papel de liderança na diplomacia internacional, especialmente no que diz respeito aos problemas do chamado Grande Médio Oriente. A mudança importante que ajudou o Qatar a levar a cabo o seu novo papel é a adoção do “modelo turco”, que, no âmbito da política internacional, significa abrir horizontes nas relações com o Ocidente e com a própria região.

O Qatar substituiu a Arábia Saudita na promoção do waabismo na região e na Europa?
O waabismo é a doutrina oficial, mas o Qatar não é tão puritano quanto a Arábia Saudita. Vemo-lo no estilo de vida relativamente liberal da população. Não creio que esteja a espalhar a fação waabi como os sauditas fizeram. Há provas de que o Qatar apoia associações muçulmanas em todo o mundo, incluindo grupos que não estão ligados ao waabismo. Após a guerra de 2006 entre Israel e o Hezbollah, ajudou os xiitas no Líbano.

Há razões para o regime temer uma rebelião interna?
À superfície, as causas das revoltas árabes parecem políticas, mas são económicas. No Qatar, os cidadãos vivem confortavelmente. O rendimento per capita é o mais alto do mundo, rondando os 138 mil dólares por ano. Além disso, o Governo tomou medidas políticas. O Qatar está a evoluir de uma sociedade tradicional para outra baseada em instituições mais formais e democráticas. A Constituição consagra o poder hereditário da família Al-Thani, mas estabelece um órgão legislativo eleito e responsabiliza o Governo perante o Parlamento. O povo é representado pelo Conselho Consultivo, nomeado, que assiste o emir. As primeiras eleições para este órgão serão em 2013.

A região do Golfo é o calcanhar de Aquiles da Al-Jazira?
A Al-Jazira é uma ferramenta diplomática que Doha usa como lhe convém. Já criou vários problemas diplomáticos ao Qatar, especialmente com os governos da Arábia Saudita e do Bahrain. É melhor considerarmos a Al-Jazira como uma espada de dois gumes que pode ser usada para projetar influência, mas que deve ser responsabilizada à semelhança de qualquer agente diplomático qatarense.

RECURSOS: GÁS, PETRÓLEO E… AL-JAZIRA

Como qualquer país banhado pelo Golfo Pérsico, o Qatar cresceu sobre abundantes jazidas de gás e petróleo. Em 2011, o país exportou, em média, 588 mil barris de petróleo por dia e 113,7 mil milhões de metros cúbicos de gás natural. Porém, na sua estratégia de afirmação mundial, uma das principais armas é a Al-Jazira (que em árabe significa “a ilha”, uma analogia à Península Arábica). Propriedade da família real, foi fundada em 1996 — um ano após o emir subir ao poder — e rapidamente se tornou a maior televisão do mundo árabe. Após o 11 de Setembro, era a única estação a cobrir a guerra no Afeganistão em direto com escritório montado em Cabul. A Al-Jazira seria também o canal privilegiado pelo líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, para divulgar as suas mensagens ao mundo. O serviço em língua inglesa só arrancaria em 2006, mas já a Al-Jazira era um ator incómodo no mundo árabe. Em visita à sua sede, o Presidente egípcio Hosni Mubarak afirmou: “Tantos problemas por causa desta caixa de fósforos”. Segundo os documentos revelados pela Wikileaks, o Presidente dos EUA George W. Bush, em 2004, com a guerra do Iraque em curso, chegou a equacionar o bombardeamento da sede da Al-Jazira, em Doha. Tal não chegou a acontecer, mas os escritórios da estação em Cabul e em Bagdade não escaparam ao fogo de guerra. A Primavera Árabe voltou a fazer da Al-Jazira notícia. As suas câmaras foram lestas a chegar a Tunis, ao Cairo ou a Tripoli e os revolucionários agradeceram-lhe. Mas tardou a reportar os protestos em Manama (Bahrain) e foi, por isso, acusada de ser tendenciosa.

2022

Neste ano, o Qatar organiza o Mundial de Futebol. Sepp Blatter, presidente da FIFA, disse: “O mundo árabe merece organizar um Campeonato do Mundo”. Mas a escolha foi envolta em suspeitas de corrupção. Indiferente, o Governo de Doha prevê gastar 10% do PIB com infraestruturas. Ainda no capítulo desportivo, o Qatar fez história ao permitir, pela primeira vez, a participação de mulheres nos Jogos Olímpicos de Londres: quatro, no tiro, atletismo, natação e ténis de mesa. Ironicamente, o país tem na sheik Mozah — que rivaliza em elegância com qualquer primeira-dama — a sua grande relações públicas.

Artigo publicado no Expresso, a 11 de agosto de 2012